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A medicina e o corpo: o feminismo ������������������������������������������������������������������������������

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Dedicado in memoriam a Sofia Huentian (bisavó), María Cruz Fuentes (avó) e Carmen Muñoz (avó). Agradecimento especial a Maria Angélica del Pilar Hidalgo Fuentes (minha mãe))

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PARTE I TEMPO II - Formação Universitária

Com toda essa energia voltada para uma mudança no eixo do mundo, envolvidos pelas ideias da Oitava Conferência de Saúde, sobrava pouco para problemas, que os “companheiros” da época chamavam de “causas secundárias”: o feminismo. Assim restava para elas e alguns deles, fazerem algo para mudar a humanidade e suas relações. O mundo do poder começava a ser questionado e, pouco a pouco, percebíamos que passava por todas as relações, como um fractal.

Para as incomodadas com as situações vivenciadas no dia a dia da faculdade, isto deveria ser uma realidade também a ser modificada. E eu estava muito incomodada.

As primeiras reuniões ocorreram em 1987. Graças à dedicação da Rosaura, temos até agora um histó-

rico escrito das nossas atividades. Quando releio o material, me dou conta de como aquele grupo era utópico, corajoso, valente e muito criativo.

Atualmente, lendo Bell Hooks (pseudônimo de Gloria Jean Watkins), vejo que a nossa história, apesar de criativa, não foi original. No livro Feminism Is for Everybody: Passionate Politics, ela descreve a história do feminismo desde a década de 70. Nós, na década de 80, fomos um espelho.

Nossa primeira ação foi traduzir uma tirinha do alemão para o português.

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O objetivo era mostrar como, no cotidiano, passávamos por situações que pareciam “normais”, mas que, para quem as passa, são desgastantes, removem a energia, desvalorizam, nos tornando cidadãs de “segunda classe”.

Pensávamos em tarefas que ajudassem a modificar a realidade da tirinha! Uma delas era ir a um bar, sentar e poder comer e beber tranquilamente sem ser assediada. Aos poucos os garçons do Bar do Beto, da Caverna do Ratão, da Lancheria do Parque já nos conheciam. Eles perceberam nossa tática e eram supercúmplices. Até porque acabávamos gastando um pouquinho mais em comida do que em bebida.

Começamos como um grupo de discussão em que líamos um livro que minha mãe me deu. Era um livro lido por ela com muitas anotações: O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoire.

A cada capítulo era como conversar com alguém que entendia o que estávamos dizendo. Isso parecia muito mágico para todas nós.

Nesse momento, antes de 1987, éramos todas voltadas a Medicina, nenhuma de nós estava ligada a algum partido político.

Sentíamo-nos tão bem com o que estávamos lendo que achávamos que deveríamos nos autodenominar de grupo feminista universitário e convidar outras e outros a participar desse novo mundo que descobríamos e que se chamava feminismo. O gosto pela leitura sempre nos acompanhou, mesmo em momentos de maior ativismo. Foi assim que lemos, além da Simone de Beauvoir, Michel Foucault, Bell Hooks, Camille Paglia, Virginia Woolf, Margaret Atwood entre outras. Começávamos a nos questionar sobre as instituições que, na época, não tínhamos percebido que eram instituições como o casamento, família. E surgiam muitas críticas à forma como tínhamos aprendido a ver tais relações (Anexo: A casa).

Aos poucos, fomos tendo contato com outros problemas que atingiam diretamente a área da saúde, mas que iriam além dos muros de nossa faculdade. O foco da discussão estava muito centrado na sexualidade e na forma de exercê-la livremente. Foi assim que entramos em contato com grupos estadunidenses e recebemos o livro Nossos Corpos Nossas Vidas. Inclusive fizemos contato para poder traduzi-lo.

Algumas de nós tinham uma preocupação de não sermos caracterizadas como mal-amadas. Eu sinceramente achava que isto seria impossível e vendo, agora, retrospectivamente, percebo que realmente era muito pouco provável, pois todas nós éramos super “bem-amadas”. Mas, com o intuito de sermos feministas amigáveis, organizamos algumas festas que serviriam, também, para arrecadar fundos. Não arrecadamos fundos, mas nos divertimos muito. Assim, para manter as nossas atividades, concordamos em contribuir com 1 cruzado (na época, o salário-mínimo estava em, aproximadamente,

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1.641,60 cruzados). Agora, fico pensando que fazíamos milagres, pois isto era, na realidade, muito simbólico. Montamos uma estrutura com tesouraria, prestação de contas, atas. Tudo precisava ser transparente. Em todas as reuniões, dedicávamos os primeiros 10 minutos para conversar sobre essa estrutura de divisão de tarefas. Portanto, de um grupo de reflexão, começávamos a ter uma estrutura que comportava um nível de ativismo.

Aos poucos, começávamos a ser identificadas e com isto recebíamos encaminhamentos de problemas e de reinvindicações sobre situações de clara discriminação. Assim, concordamos que era necessário formalizar o grupo. Em 14 de abril fundamos o Grupo Feminista Universitário. Mantínhamos, nessa época a discussão sobre o “meu corpo me pertence” e tal discussão foi aprofundada com a colaboração do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde de São Paulo. Lá aprendemos a fazer oficinas e foi a primeira vez que vi um espéculo transparente, diafragma de todos os tamanhos. As oficinas eram pensadas para desenvolver o autoconhecimento do corpo para todas as classes sociais e níveis de educação.

As reuniões ocorriam às sextas-feiras às 18 horas no CASL no Instituto de Biociências. Os “mosquitos”, folhetos mimiografados para divulgação, eram todos produzidos por nós. Foi então que começamos a receber o pessoal da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre (FFFCMPA). Portanto, já eram duas Faculdades de Medicina. Por que não uma terceira? Foi assim que organizamos um evento na Pontifícia Universidade Católica (PUC) para onde expandimos as discussões. Lá encontramos a Laura. A primeira moradora da casa de estudantes da UFRGS (CEU). Fiquei apoplética em saber que até há pouco tempo (1980) a casa de estudantes era somente para homens. Isto era incrível!

Ficamos sabendo que no passado, teriam existido outros grupos como o Germinal e o Liberta. Porém ambos muito mais ligados a grupos de esquerda. E nós queríamos manter a autonomia conquistada pela própria ineficiência da esquerda que nos rodeava e que nos jogava a uma discussão a ser feita para depois da “Revolução”.

Portanto, a autonomia do grupo era algo muito conversado. E por isso éramos também muito criticadas.

Havia confusão entre ser liberal do ponto de vista ideológico com ser neoliberal no sentido de defender um sistema econômico. Todas nós certamente éramos liberais no sentido ideológico da palavra. E isso nos aproximou da discussão sobre a legalização do aborto.

Aqui é importante lembrar que havia então uma discussão muito importante sobre a nova Constituição de 1988. Em 1986, em meio ao milagre econômico do plano cruzado, houve uma eleição para governadores, deputados e senadores. Do grupo de deputados e senadores, sairia o Congresso Constituinte, encarregado de redigir a Constituição Federal. Portanto, a Constituinte, que não era exclusiva, diferentemente da Comissão Constituinte formada no Chile em 2021, tinha representantes do governo

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militar. E esses seriam os responsáveis por estabelecer uma nova Constituição “democrática”. Para que um assunto fosse conversado, debatido e tivesse alguma chance de ser contemplado na nova Constituição precisava de Emenda Constituinte, com abaixo assinado que atingisse um certo número de assinaturas. Todas nós andávamos com listas para pedir assinaturas pela liberação do aborto. Sentimos necessidade de nos aproximar das feministas (para nós) históricas. E assim organizamos debates convidando-as. Mal sabíamos que existiam mágoas também históricas. Às vezes, os debates ficavam bastante acalorados. E muitas das divergências se davam por algumas estarem mais ligadas a alguma tendência do que outras.

Como algumas de nós já tinham alguma base de enquete e de como fazer estudos transversais, realizamos nosso primeiro “estudo” composto de 4 perguntas:

1. Você acha que a mulher que ficou grávida por estupro tem direito ao aborto?

2. Durante a gravidez, havendo risco de vida da mulher, deve-se fazer aborto para salvá-la?

3. Você acha justo que a mulher seja presa por ter feito aborto?

4. Você acha que uma vez comprovado defeito grave no feto (mongolismo, efeito da talidomida, etc) a mulher tem direito a recorrer à prática do aborto?

Para nossa surpresa, todas as perguntas tiveram, em algum momento, a resposta “Não”: a mulher não tem direito a fazer aborto!

Fizemos muitos e muitos debates! Fomos a Brasília, organizamos manifestações. E a cada reunião ficava cada vez mais clara a diferença que existia entre movimento de mulheres e movimento feminista. As ruralistas (As Margaridas) diziam que não eram feministas, que lutavam por direitos iguais a ter a terra, e a maioria se dizia católica.

Na época, eu não conseguia entender como ser católica impediria alguém de ser a favor da legalização do aborto. Pois, para mim, a religião não deveria estar no Estado, ou seja, o Estado deveria ser laico. Também não entendia como, em um país com tanta influência afrodescendente, o catolicismo poderia se impor como regra a uma nação. Como as pessoas não percebiam que suas crenças não deveriam ser impostas aos outros, passando por uma interferência estatal que deixava milhares de mulheres condenadas à morte? E o pior foi ao ver um movimento se organizar e autodenominar-se “pró-vida”! Começamos a nos questionar sobre o que era a vida e que vida queríamos. Discutíamos sobre a Lei do Ventre Livre. Para que “a prole pudesse ser livre, o corpo deveria ser meu; e meu ventre, livre.”

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Eu, claramente era feminista.

“Precisávamos unir forças”, e assim nos unimos com um outro grupo que tinha surgido nesse ínterim e viramos Grupo Feminista Universitário: Desperta Lilás, o que ocorreu em 27 de agosto de 1988.

E como Desperta Lilás achamos que deveríamos ter uma sede no Diretório Central Estudantil (DCE). E foi assim que deixamos o CASL para irmos ao DCE, onde ficamos até o início de 1990.

Éramos convidadas cada vez mais a eventos organizados por outras entidades, inclusive por atividades realizadas pelas várias organizações de esquerda que procuravam por quadros de liderança. Assim, algumas entre nós ocuparam cargos importantes quando a esquerda esteve no poder. Atualmente elas têm acumulado uma experiência fantástica de como o Estado se organiza. E eu? Eu tinha muita dificuldade com o centralismo democrático. Como poderia voltar a falar o que quisesse no privado e ter que defender algo com o qual não concordasse no público? A ideia da democracia não era a pluralidade?

Pensando nessa pluralidade, frequentemente propunha a discussão sobre poder. Eu era a grande defensora de que, no nosso grupo, o poder fosse fluído para construir relações sólidas, bem ao contrário de Zygmunt Bauman. Obviamente, quem estava de fora nos identificava como lideranças, e isso ocorria até pela forma como caminhávamos, dançávamos, falávamos. Fazíamos oficinas sobre o poder e de como lidar com as nossas diferenças. Porém faltou a questão de como nos construirmos como liderança. Isto não discutíamos, mas fazíamos na práxis.

Apesar de me considerar muito tímida, eu tinha especial facilidade para falar em público e foi assim que fiz os discursos na “esquina democrática” com microfone e tudo mais, pois tinha claro de que representava um grupo.

Nossas primeiras manifestações ocorreram no dia 8 de março – “Dia da Mulher”, seguindo a agenda do movimento de mulheres/feministas. Iniciamos timidamente. Organizávamos debates, participávamos das passeatas. Porém a campanha pela legalização do aborto que, no fim, virou descriminalização do aborto e que terminou com a continuidade da ilegalidade para a maioria dos casos, nos “obrigou” a perceber que precisávamos superar diferenças. Nos unimos ao Alerta Feminista. Foi no Alerta Feminista que conhecemos o grupo de São Leopoldo chamado Cora Coralina. Foi nesses encontros que conheci a Lelê e a Miriam, ambas eram ferrenhas e este grupo estava muito inserido nos sindicatos. Mas tanto o Cora Coralina como o Desperta Lilás tinham em comum a necessidade de manter uma estrutura, inclusive nas formas de organizar as reuniões.

Com o Alerta organizamos a “greve de mulheres”. Na época eu mal sabia usar a máquina de lavar. Escrevemos o manifesto feminista que, devido à falta de dinheiro, foi impresso em letras minúsculas para caber em uma folha. Organizamos a vigília na frente da Catedral Metropolitana de Porto Alegre.

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Passamos a noite na frente da catedral e no dia seguinte, na missa, as católicas do grupo receberam a hóstia. Tudo foi pacífico e com uma força que atingiu a imprensa de todo o país e a internacional. Fomos convidadas para um encontro internacional feminista que ocorreria em Santiago do Chile.

Adivinhem quem representou o grupo?

Foi o encontro mais impressionante de que participei, era em Santiago, e lá chegaram mulheres de todos os continentes, e os temas eram os que eu já estava acostumada a discutir no Desperta e que tentávamos teorizar no grupo, já fazendo algumas publicações, como o artigo publicado na própria revista da ATM.

No congresso, em Santiago, lembro de duas mesas: uma relacionada à SIDA e outra à Sexualidade.

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Nessa época, já tínhamos visto conhecidos morrerem de uma doença que atingia principalmente os homens homossexuais. A dualidade, característica de épocas de crise e guerra, aparecia claramente. Por um lado, a “liberação sexual”, por outro lado, o discurso do “pecado”. A vida não é dual.

O Estado não tinha uma solução para essa pandemia. Assim, os atingidos pelo HIV se agruparam em Organizações Não Governamentais (ONG). O HIV tinha vindo para mudar o comportamento e fazer perceber que a sexualidade era muito mais complexa do que imaginávamos. Como toda pandemia, além do vírus vem o terror, e neste terror era necessário manter a calma para não virar “carmelita”. O Estado não tinha uma solução, a Igreja muito menos, e as famílias continuavam exilando seus filhos “degenerados”.

A solução que se apresentava estava nas ONGs, e o modelo parecia muito interessante para muitas mulheres. Nesse período, poderiam ser aplicados projetos para algumas instituições capazes de financiar ações para as quais não havia política pública. Pessoalmente, eu não tinha interesse de ter minha vida financeira dependente dessas estruturas. Mas muitas, entre nós, acharam seu caminho se organizando nessas ONGs, muitas das quais existem até agora e fazem um importante trabalho social.

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Ainda nesse congresso, no Chile, no grupo de sexualidade, havia mulheres que falavam da clitoridectomia. Eu imediatamente pedi a palavra para fazer o encaminhamento de ações que pudessem impedir tal atrocidade. Foi quando uma delas disse: vocês, mulheres brancas, têm que parar de nos tratar como inferiores. Falou com tanta força que entendi que eu tinha expressado algum comportamento autoritário. Mas o que também me impressionou foi ter sido chamada de mulher branca. Eu não sou branca. Como tínhamos questões a esclarecer! Aqui começaram a aparecer as intersecções. Como entender a interseccionalidade? Isto ficará para um próximo memorial! Aqui apenas vou compartir o poema Strange Fruit, de Abel Meeropol, que se tornou uma linda música, cantada por Billie Holiday (1939):

Southern trees bear strange fruit Blood on the leaves and blood at the root Black bodies swinging in the southern breeze Strange fruit hanging from the poplar trees

Pastoral scene of the gallant south The bulging eyes and the twisted mouth Scent of magnolias, sweet and fresh Then the sudden smell of burning flesh Here is a fruit for the crows to pluck For the rain to gather, for the wind to suck For the Sun to rot, for the trees to drop Here is a strange and bitter crop

Algumas pessoas que viam o que fazíamos, diziam que “dávamos a cara a bater”. Eu discordo. Ninguém dava a cara à tapa. Mas, sim, trabalhamos com as nossas almas. Assim, em determinado momento, achamos que era importante ter alguém que nos ajudasse como grupo, que nos ajudasse a revisar o rumo. Foi então que surgiu a ideia de uma terapia de grupo. A experiência não foi muito boa! Mas quem sabe tenha ajudado a colocar um ponto. A maioria de nós já estava saindo da faculdade e cada uma iniciava a traçar um novo caminho.

Eu… namorei, casei, tive um filho, me separei!

Anos mais tarde, a Lelê me encontra em uma outra era e me diz: Pacy, precisamos nos reorganizar, o fascismo está voltando. E como em uma profecia… os sinais de autoritarismo retornaram. Esta é uma das razões que me motiva a deixar registrada estas experiencias neste memorial, pois me parece fundamental que a Universidade seja um ambiente plural no qual o questionamento seja possível de ocorrer. Levantar questões é a base da ciência.

Também trago aqui esta experiência de vida, pois muito do aprendido acaba sendo incorporado na forma de gestão do nosso Laboratório. Aprender que escutar o outro é um fundamento para estabele-

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