ANGÉLICA ALMEIDA
PALAVRA DE ACAMPADO
ANGÉLICA ALMEIDA
PALAVRA DE ACAMPADO
Livro-reportagem produzido no semestre 2014/1 como exigência para a conclusão do curso de graduação em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Viçosa (UFV)
AUTORA
Angélica Almeida ORIENTADOR
Ernane Rabelo FOTOGRAFIAS
Angélica Almeida REVISÃO LINGUÍSTICA
Miriam Santos, Rafael Fialho e Robson Filho DIAGRAMAÇÃO
Diogo Rodrigues
GÊNESE LUIZA MARGARIDA
BRAZILINA MARTNS
MARIA DOS ANJOS ADONIAS TEODORO
SEBASTIÃO ANTONELE
ÍNDICE 8
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ZÉ QUERUBIM
ZÉ ROBERTO GILBERTO GILBERTO AZEVEDO AZEVEDO ACAMPADA ANÔNIMA
A REOCUPAÇÃO FOTOS DO “DENIS”
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PALAVRA DE ACAMPADO
Lamento Sertanejo
Dominguinhos
Por ser de lá Do sertão, lá do cerrado Lá do interior do mato Da caatinga e do roçado Eu quase não saio Eu quase não tenho amigo Eu quase que não consigo Ficar na cidade sem viver contrariado Por ser de lá Na certa, por isso mesmo Não gosto de cama mole Não sei comer sem torresmo Eu quase não falo Eu quase não sei de nada Sou como rês desgarrada Nessa multidão, boiada caminhando a esmo
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PREFÁCIO
PALAVRA DE ACAMPADO
por Ernane Rabelo
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Dos males do Jornalismo, a arrogância é um dos principais. Quando sempre acomete o paciente antes mesmo do início de sua escolha profissional, mesmo porque é o que o leva, muitas vezes, àquela carreira. É extremamente difícil curar a soberba no curto período de quatro anos de graduação e, infelizmente, a arrogância tende a piorar com o amadurecimento profissional. E o melhor antídoto contra a arrogância, penso eu, é a convivência com o próximo. Mas a convivência estreita, contínua, que chamamos também de Jornalismo Literário, quando o repórter “mergulha” em determinada realidade e emerge dela outra pessoa, mais rica, mais sábia e mais humana para depois, utilizando recursos da Literatura e do Jornalismo, trazer à tona um relato jornalístico e envolvente. O projeto de Extensão da UFV “Cenas Desconhecidas, Grandes Personagens” tem buscado incentivar entre os estudantes de jornalismo a aproximação mais estreita com a realidade, trocando a “bolha” do campus universitário e dos espaços conhecidos e confortáveis pela ainda incompreendida (pela grande mídia) área por onde caminha a maioria do povo brasileiro. E não o faz por altruísmo mas por entender que este é o melhor método de aprendizado profissional.
E foi isto que fez Angélica ao trocar o conforto do Campus da Universidade Federal de Viçosa por dias de convivência com trabalhadores rurais sem terra, acampados em Goianá, na Zona da Mata Mineira. Angélica dormiu algumas noites em barracas, almoçou a mesma comida e utilizou com os mesmos talheres dos trabalhadores, se molhou na mesma chuva, sentiu o mesmo cansaço e suas pernas tremeram pelo mesmo medo. Ao se dispor a imergir em outra realidade - poderia ter feito uma reportagem mais amena, menos arriscada-, Angélica faz brotar nove brasileiros que jamais serão personagens de quaisquer reportagens de amenidades posto que quase nunca são compreendidos, embora sempre entrevistados. A atividade jornalística deve ser redirecionada a fim de promover a compreensão, rompendo preconceitos e estigmas, e daí geminando solidariedade e fraternidade. A história de vida dos perfilados se passa em um local e em um tempo bem delimitados mas a autora consegue torná-las universais, pois mostra a luta do homem pela sobrevivência. Este outro grande mérito deste livro: o registro de vida dos despossuídos de toda a face da terra. Os entrevistados não são apenas fontes, são gente que vive, sonha e constrói sua vivência.
“Viver é perigoso”, escreveu Guimarães Rosa. O que ele nos diria caso, ao invés dos campos das gerais em torno de Diadorim e Riobaldo, percorresse assentamentos, favelas e periferias brasileiras? E se tivesse topado com Brazilina, Maria dos Anjos, Luiza Margarida, Zé Querubim e os outros personagens descobertos pela autora? Os nove brasileiros perfilados nos lembram os perso-
nagens roseanos e, se a jovem autora não se dispôs a imitar o mestre, aqui novamente sua falta de arrogância, ela também convoca para a frente do palco os agentes de nossa cidadania. E utiliza o recurso da narração em primeira pessoa, em relato quase biográfico, linguagem sensível, seguindo estilo convencional, mas sem deixar de imprimir seus traços angelicais.
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GÊNESE
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“Vem meu bem, vem viver aqui vinte quatro horas pra você ver o quê que é bão”
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“
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Se toda a humanidade menos um fosse de uma opinião e apenas uma pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não estaria mais justificada em silenciar esta pessoa do que ela, se tivesse o poder, estaria justificada em silenciar a humanidade. (...) Quando se podem encontrar pessoas que formam exceção à aparente unanimidade do mundo a respeito de qualquer assunto, mesmo se o mundo está com a razão, é sempre provável que os dissidentes tenham algo digno de ser dito e alegar em sua defesa e que a verdade perderia algo com o seu silêncio” (MILL, 1968).
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C
onheci pessoalmente o acampamento Denis Gonçalves em setembro de 2012, por meio de uma pesquisa de Iniciação Científica subsidiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A partir de então, as minhas considerações acerca do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) puderam ser pautadas não apenas no conteúdo reproduzido pelos meios de comunicação e teorizado por estudiosos, mas também pela minha experiência junto aos acampados. A percepção de que o pré-conceito que eu tinha a respeito dos sem-terra era muito distante da realidade contemplada gerou em mim inquietação, ao me colocar no mesmo nível de vivência dos acampados da MG 353. Ao pesquisar sobre o tema, percebi que em âmbito nacional, a relação do Movimento com a mídia é bastante contraditória, sendo comuns abordagens tendenciosas, pró ou contra MST. Em contrapartida, verifiquei a insuficiência de vozes no discurso midiático que pudessem esclarecer os conflitos envolvendo a questão agrária que se iniciou na Zona da Mata, desde a primeira ocupação dos sem-terra na região, em 2005. Diante disso, aceitei o convite de viver 24 horas,
durante algumas semanas, para acompanhar a rotina do Denis Gonçalves. A experiência se transformou neste livro-reportagem, que contém as histórias de vida de nove acampados e um objetivo bastante específico: evidenciar a pessoalidade daqueles que, ao longo de dois anos e meio, permaneceram às margens do KM 48, entre as cidades de Coronel Pacheco e Goianá, sob intempéries diversas e decididas a lutar por um pedaço de terra. A seleção dos personagens se deu diante da verificação de que alguns acampados permaneciam continuamente embaixo das lonas, durante o tempo de espera pela decisão judicial que definisse o futuro da Fazenda Fortaleza de Sant`Anna. As demais famílias cadastradas cumpriam as determinações do movimento- pernoitar no local ao menos duas vezes em cada semana, participar das reuniões, executar as tarefas de manutenção do acampamento etc. Neste sentido, me senti instigada a saber os motivos que diferenciavam estes sujeitos dos outros sem-terra. É fundamental afirmar que não se pretende, nestas linhas que se seguem, problematizar o caráter apreciativo da legitimidade, ou não, do MST, muito menos de lançar mão dos relatos para propagar mais um conteúdo defensivo ou
Jornada Sem-Terrinha, outubro de 2012 contrário ao Movimento. Tentar superar esta visão reducionista de “bem” e “mal” foi um dos cuidados que desde o início busquei. Passado algum tempo, em que o vislumbre pelo desconhecido tende a esvaecer e o objeto de estudo é percebido sob a ótica de lentes mais realistas, restou-me a incerteza se haviam energias e preparo suficientes para levar adiante esta empreitada. Diante da complexidade das situações, por muitas vezes voltei para casa repleta de angústias, me
ocorrendo os mais diversos conflitos em relação à minha capacidade de reportar, de forma madura, as histórias dos acampados. Neste período, além das privações materiais evidentes às quais estes personagens estiveram sujeitos, uma das “faltas” que mais me marcou era de origem afetiva: a ausência de alguém com quem conversar. O “simples” fato de se sentir motivo de interesse para alguém, se sentir verdadeiramente ouvido, fez com que algumas entrevistas se transformassem em desabafos- que até mesmo dentro da própria família dos acampados jamais tinham sido feitos. Pelo teor das conversas, vários pontos de algumas histórias foram suprimidos, por terem sido falados em uma situação de intimidade gerada na entrevista, mas que os acampados não se sentiriam bem de verem reproduzidas. “Se a outra pessoa resolvesse responder com detalhes à nossa pergunta, ‘Como vai?’, ficaríamos embaraçados. - Paul Tournier. Administrar o conteúdo das conversas foi um desafio grande, uma vez que não me propus permanecer indiferente às dificuldades e alegrias das pessoas com quem dialoguei. Havia feito a seleção de me envolver com a realidade e, ainda que retornasse à “normalidade” da vida em Viçosa, por muitas vezes me questionei sobre as contribuições que eu poderia deixar para a comunidade. Exatamente por isso, para além dos questionamentos, trago comigo a certeza de que, muito antes da pretensão de arrogar reconhecimento ao trabalho desenvolvido diante dos leitores, o principal mérito destas páginas não está contido nelas mesmas, mas na riqueza imaterial que este 13
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livro proporcionou à minha formação, primeiro como ser humano e, por conseguinte, como jornalista. Foi preciso que eu saísse do conforto da minha república e buscasse experimentar, em profundidade, o que vive um acampado. Decerto, involuntariamente aos passos de aproximação, ficaram nítidas as diferenciações entre as realidades vivenciadas por mim e pelos sem-terra. Sobretudo evidente se mostrou a minha pequenez em apreender os sentimentos que cercam homens e mulheres tão marcados pela vida, enigmáticos em si mesmos. Em compensação, a dureza da cama sob o teto de bambu e amianto, alagado durante o período das chuvas e ardoroso sob o céu de verão; a dificuldade em dormir, por conta do medo e do barulho dos carros que trafegavam pela estrada escura; a comida por mim preparada em fogão de lenha, com boa vontade, mas com pouca experiência; o banho gelado de caneca, em um espaço de um metro quadrado cercado por bambu e lonas, ao lado de um vaso sanitário igualmente improvisado; a fartura dos insetos diante das lamparinas; a raridade de pertences de acomodação e de vaidades, e tantas outras particularidades deixaram impregnadas experiências únicas em mim. Com certeza, foi solidificada a certeza de que o jornalismo carece de prestar movimentar-se do senso comum ao conhecimento daquele de quem se almeja falar e alcançar. E para isso, é preciso abertura para conviver e para escutar os relatos que nem sempre são agradáveis de serem ouvidos. Portanto, este livro-reportagem, através de nove perfis autobiográficos, vem dar voz à Palavra de Acampado com
percepções que os personagens fazem de si próprios e da realidade que os cercam, anterior e posterior à entrada no MST. Dou vez aos protagonistas destas histórias, a razão deste trabalho, na esperança de que instigue no leitor, assim como em mim, o desejo de ir ao encontro do outro. Os olhos nos olhos tão indispensáveis a nós, humanos. Aqui, ninguém fica sem lar Minutos depois de ter sido abandonado no asfalto, veio se achegando o cachorro. Mais um entre tantos que, diariamente, são descartados às margens da MG 353, como coisa qualquer pela qual ninguém quer mais se responsabilizar. Sem titubeios, um acampado foi buscando uma coleira para ir-lhe ao encontro: “ninguém aqui fica sem lar. Se ele ficar solto, amanhã ele tá morto”. Todos ali sabiam que a coleira significaria muito além da proteção passageira, tratava-se de uma adoção que exigiria cuidados. Era certo que precisariam dividir com mais um a comida já escassa para os moradores. Ainda assim, nenhuma discussão a este respeito foi feita, a opção de abrigar o canino era inquestionável. Logo, a euforia em relação a que nome dar ao novo acampado tornou-se o assunto da conversa... Fiquei observando a cena que inicialmente parecia ilógica. Não demorou muito para perceber que não havia paradoxo encontrar tamanha solidariedade em meio a condições tão adversas. De fato, residiam ali pessoas que, por motivo ou por outro, ficaram para trás na estrada. E quem foi esquecido propositalmente ou relegado a qualquer destino sabe, mais do que ninguém, a importância
morrer, mas eu quero deixar essa saudade pra trás.” 1
No acampamento há abrigo até para os cães de mãos que acolhem independente da situação. “Eu não tenho nada, o que eu tenho é meu e dos outros. E eu acho que eu quero ser isso até o final. Vai chegar o dia de eu
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Palavras do acampado Sebastião Antonele.
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LUIZA MARGARIDA 16
“Tem que ter sangue de luta na veia”
“
E
Prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, e também no acampamento Denis Gonçalves... Bem-me-quer do Piorra, só mesmo por amor ao marido, Margarida virou acampada. Se antes tinha receios quanto ao Movimento, agora já fez jardim no MST e é um dos braços acolhedores do local. A barraca do casal é destino certo para quem vem conhecer o Denis. Nela, oferecem a receptividade da gente simples da roça, que além de um café bem preto, tem sempre uma prosa animada para compartilhar. Com um sorriso contagiante e o grito mais alto da comunidade, Margarida representa a mulher fortificada diante das situações de luta. Se ao final da reunião não se ouve o grito dela de “Pátria Livre”, já pode saber que tem algo errado...
u me chamo Luiza Margarida Cândida Antonele e tenho 44 anos. Nasci na roça de Goianá, na Fazenda da Bonança. Antigamente, quando os filhos nasciam, os pais registravam em Carlos Alves porque nós ainda não tínhamos cartório. E, naquela época, juntavam-se muitos filhos para depois registrar. A gente registrava quatro, cinco, de uma vez. Eu tive 17 irmãos, dez homens e sete mulheres. Nós fomos criados todos juntos na roça, onde sempre trabalhamos, desde os seis anos. Com essa idade, eu já capinava milho, arroz, fazia os viveiros para plantar arroz em muda, plantava feijão, batata-doce, inhame, abóbora... Tudo. Cheguei a ir para a escola, mas só estudei até a quarta série porque meus pais diziam que estudo não enchia barriga, então a gente tinha que trabalhar. Antigamente não dava tempo de brincar na roça porque os pais eram muito rígidos. O negócio deles era botar os filhos para trabalhar, não para brincar. Meu pai era muito bravo, muito bravo... Muito bravo mesmo! Mas era
um bom pai. Ele passou para nós, filhos, aquilo que viveu com os pais dele, que também eram muito rígidos. Então não tenho nem como culpá-lo, foi a maneira que ele foi educado. A companhia do meu pai foi muito sofrida. Ele batia na gente, em qualquer lugar. Andava com um arreio – um chicote, uma correia que se amarra na ponta de um pedaço de pau para puxar de longe – e a gente vivia cheio de “roxão” na perna. Naquela época não existia justiça, né? Só existia justiça do pai e da mãe. Eles que comandavam. E como eu era a mais quietinha, para não dizer safadinha, eu apanhava mais porque o enfrentava. Um dia ele me deu um soco na boca e quebrou meus dentes. Quando casei com o Piorra, eu não tinha dente na frente, não. Eu tinha um cabelo muito grande. Tive um problema muito sério na cabeça há pouco tempo e fiquei careca, pois, quando eu era menina, meu pai puxava muito os meus cabelos, me arrastava pelo chão afora. E não só eu, mas meus irmãos também. Faço uma aplicação na cabeça e todo mês 17
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irmão não tivesse chegado, meu irmão ficava amarrado, de castigo, ao pé da mesa. O castigo que ele nos dava muitas vezes era ficar ajoelhado em caroço de milho ou em cima de pedrinha de brita. Ou então ele ia ao quartinho – que hoje a gente fala despensa, mas antes era paiol – na tuia de arroz e misturava os sacos de milho, feijão e arroz limpo. E este era o nosso castigo: ficar o dia inteiro separando aqueles grãos. E não podia sair dali nem para beber água, porque se Luiza Margarida com seu marido Sebastião “Piorra” e sua filha Maria Luiza ele visse, surrava a gente. A mãe protegia as crias dela e apanhava também. Por isso, eu me emociono ao favou ao médico e levo 30, 40 agulhadas na cabeça para falar disso. Na asa dela não cabiam todos os filhos e aí ela zer o tratamento. Já nasceu o cabelo, graças a Deus, mas o apanhava para não deixá-los apanhar. Uma vez, meu pai sofrimento é muito grande. foi bater em um dos meus irmãos e minha mãe pulou na Meu pai bebia muito na época. A gente trabalhava frente, então ele a aleijou. E tudo por causa da bebida, que junto e, da roça mesmo, ele já ia para a venda, para os boo fazia ser ruim dentro de casa com a gente. tecos beber cachaça. Quando chegava em casa, ele nos boEu não concordava com as atitudes dele. Por ele ter tava para correr e nós tínhamos que dormir no mato. No sido criado daquela maneira, não precisava criar os filhos dia que ele inventava e falava que nós não íamos comer, a naquele mesmo regime. Imagina se eu fosse criar a minha gente não comia. Ele mandava meu irmão buscar pinga filha Maria no regime que eu fui criada? “Tadinha”, ela espara ele e cuspia no chão. Se aquele cuspe secasse e meu
taria toda arrebentada por aí, porque ela não é fácil. Então não tem como... Um feixe de luz nas trevas Morei com os meus pais na Fazenda Bonança até os dezenove anos. Foi quando me casei com o Piorra e fui morar na Fazenda Bom Jardim, que ainda existe. Quando eu morava na Fazenda Bonança, a gente fazia compra, na base dos embornais, na Fazenda Capoeirinha. A gente comprava tudo a granel: cinco de arroz, cinco de açúcar... Não era como hoje, que já vem tudo empacotado. Era pesado demais. Eu colocava os embornais do lado que o ombro ficava até “valetado”. Eu conheci meu marido nas estradas, nessas caminhadas de ir e vir fazer compra. Na época, o Piorra morava na Fazenda Bom Jardim e ia no fim de semana para Carlos Alves, que era onde a irmã dele morava. Nesse trajeto, ele passava e eu estava indo também. Aí ele passou a me ajudar a levar os embornais de compra. Nisso, a gente foi se conhecendo, passamos a namorar e meu pai descobriu. O Piorra pediu a minha mão e logo no outro ano a gente já se casou. Quando eu casei, o Piorra morava sozinho, pois a família dele já tinha vindo para a cidade de Goianá e, como ele tinha muita criação, ficou na Fazenda Bonança. Ele sempre foi um homem de fartura, um cara muito honesto e trabalhador. Tinha muitos porcos, galinhas, cachorros, passarinhos, coelhos... Quando eu fui para a companhia dele, falei: “meu Deus, será que eu vou dar conta?”, mas ele mesmo ajudava a tratar das criações e trabalhava na roça. O sonho dele era ter um filho e eu não engravidava
de jeito nenhum. Aí descobri que eu tinha um problema de saúde: tinha o útero anteverso. Fiz o tratamento e, graças a Deus, engravidei. Um ano depois de ter me casado, dei a luz ao meu primeiro filho, o Luiz Paulo, que está hoje com 23 anos. Mas fiquei entre a vida e a morte. O médico disse que era melhor eu não ter mais filho e daí, depois de três anos, estava grávida de novo, do Luiz Fernando, que vai fazer 19 anos agora. Fiquei novamente entre a vida e a morte, por conta de problema de pressão. Tive eclâmpsia, mas, graças a Deus, me salvei e aí não quis mais. Criei os meus meninos. E, quando o Fernando estava com 13 anos, engravidei outra vez, da Maria. Eu e o Piorra fizemos 25 anos de casado em junho de 2012. Vivemos muitos tombos, muita contagem de moedas de cinco centavos pra comprar leite para as crianças. Em uma época difícil, o Piorra teve paralisia facial, então o rosto dele entortou todinho. Com isso, ele ficou sem enxergar de uma vista. Antes podia contar o Piorra com três, quatro cachorros atrás e o assoviozinho; hoje ele não assovia mais por conta da paralisia. Como a gente não tinha condições de pagar uma fisioterapia, ele ficou deficiente. Essa época foi muito difícil, porque ele parou de trabalhar e as coisas apertaram. Ele tomava remédios caros que precisavam ser acompanhados com leite e também tinha que comer fruta. E essas coisas eu não tinha condições de comprar. Passamos a depender da ajuda de terceiros. Nós falamos “estranhos”, mas são os melhores amigos que temos – os vizinhos do lado. Isso porque ele nunca gostou que eu trabalhasse para fora, sempre quis que eu cuidasse mais dos meninos e da casa. Ele nunca deixou faltar nada para 19
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nós, graças a Deus, mas nunca permitiu que eu trabalhasse para fora. E eu fiquei numa situação assim: que eu não podia sair da varanda para a porta da sala que ele perguntava. Ele ficou agressivo demais porque não estava enxergando de uma vista, transformou-se numa outra pessoa e passou a descarregar tudo em mim. O Luiz Fernando também teve problema de saúde nessa época. Ele estava com o colesterol muito alto e tinha, então, que ter uma alimentação adequada e balanceada, que não tínhamos condição de dar. Eu tinha que levá-lo para fazer o controle. Estavam saindo as casas populares em Goianá. Coloquei o Luiz Paulo, ainda criança, para trabalhar. Ele chegava em casa com o ombro até descascado de tanto carregar lata de concreto para fazer as casas populares, porque o pai dele estava precisando. Então cada pessoa que estava ganhando a casa pagava a ele um dia de serviço para ajudar a comprar o remédio do pai, que custava noventa reais e não tinha no posto. E aí foi uma ajuda daqui, uma ajuda dali. Mas o Piorra precisava de mais sessões de fisioterapia e não conseguiu porque não tinha dinheiro. Um amigo pagou 11 sessões para ele, mas ainda precisava de mais 10. E essa foi uma fase muito difícil na vida da gente. Eu quase enlouqueci e tentava que a família do Piorra nos ajudasse um pouco, mas ele não aceitava. Se chegasse alguma coisa diferente lá em casa, ele perguntava onde eu tinha arrumado e queria que devolvesse. Para ele foi muito difícil, já que nunca precisou de ninguém, sempre teve uma vida ativa e, de repente, aconteceu isso com ele. Mas hoje está tranquilo, graças a Deus. Não voltou ao normal, não, mas
está tranquilo. Hoje nós vivemos bem, mas queremos uma vida mais sossegada, mais tranquila. Temos dois filhos que trabalham e moram em Juiz de fora, mas vivem sempre aqui, e nossa “baixotinha”, que ama isso aqui. Ela, a Maria Luiza, veio em um momento muito difícil da minha vida. Eu já tinha vindo embora da roça para morar na cidade e cuidava da minha sogra, que morava porta a porta comigo em Goianá. E, então, ela morreu. Quando fez seis meses que ela faleceu, minha mãe morreu também. E, assim, minha mãe era tudo para mim: minha mãe, minha amiga, minha companheira, minha confidente. Falar da minha mãe hoje para mim é... muito difícil! Porque minha mãe... (suspiro prolongado, engasgo) minha mãe foi, para mim, muito importante. E quando chegou lá em casa a notícia, eu não me conformei, eu não conseguia acreditar naquilo que estava acontecendo. Fui parar no hospital, quase não a vi indo embora, quase não deu tempo de me despedir dela. Eu tinha um casamento, eu tinha dois filhos, tinha uma casa, mas não tinha força para levar aquilo adiante. Coisa que eu não fazia era beber e então comecei. Um dia eu dormi e sonhei com a minha mãe dizendo que era para eu criar vergonha na cara, que sempre fui uma mulher lutadora, nunca deixei nada me abater e que ela não tinha me abandonado, que eu estava grávida de uma menina e ia realizar o sonho do Piorra de ter uma filha. Não acreditei naquilo e ela sempre vinha me avisando aquilo em sonho. Aí um dia eu passei mal dentro de casa e me levaram para o hospital. Chegando lá, o médico confirmou que eu estava grávida. Falei para ele que eu estava grávida de uma
menina e ele disse que não tinha como saber, pois tinha pouquíssimos meses de gestação. E quando foi chegando o tempo de fazer o ultrassom, comprovou que eu estava
Maria Luiza, filha da Margarida
grávida de uma menina mesmo. E a minha vida mudou. A estrela veio para brilhar de novo. Tive uma gravidez muito tranquila, graças a Deus. Lá em casa tudo transformou, tudo ficou cheio de luz. Todo mundo é apaixonado por ela. A entrada para o MST
E logo em seguida veio o Movimento Sem-Terra. Goianá virou um alvoroço. Todo mundo fechando portas e janelas porque os sem-terra haviam chegado. “Eles matam, eles fazem isso, eles fazem aquilo...”. Depois de três ou quatro dias, Piorra chegou lá em casa e deu a notícia. Ele me chama de Fia. “Fia, tô no sem terra”. Nossa Senhora, o pau quebrou lá em casa. “Cê tá doido, tá maluco!” Brigamos muito por causa disso. Meu casamento chegou ao final. No final mesmo! Eu falei com ele: “Então você vai viver sua vida com os sem-terra, que eu vou viver a vida com os meninos. Eu não quero participar dessa sua vida de sem-terra, não quero”. Logo que entrou no acampamento, ele pegou serviço de guarda, da meia-noite às seis da manhã. Ia embora, trabalhava e vinha à tarde. Era isso todo dia. Ele não tinha mais tempo para a família dele. E aí a gente começou a brigar muito. Até que um dia a Dona Cida, que era uma das dirigentes, ligou me fazendo o convite para vir conhecer o movimento. Muitas vezes a gente fala mal por não conhecer as coisas. Aí eu vim, até participei de um almoço de confraternização e, a partir dali, já gostei. Eu já conhecia a fazenda Fortaleza de Sant`Anna, pois os pais do meu marido foram criados lá. Teve um 21
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tempo em que os próprios moradores de lá compravam verdura da gente, eram os nossos melhores fregueses. Todo dia de manhã o pessoal comprava verdura, os meninos saíam, vendiam verdura na rua. Muita gente dentro da fazenda não quer trabalhar por conta própria, só receber o dinheiro. Eles acham que a gente entrando lá para dentro vai tirar essa mordomia deles. O meu marido já tinha uma barraquinha, muito cafona, e eu fui para a barraca dele. No outro dia, já fiz comida para nós, tudo num fogareiro, já que não tinha fogão. Dali, pronto... Todos os fins de semana a gente estava lá dentro. O despejo e a reerguida Até que um dia chegou uma liminar para nós e o advogado da Fazenda escondeu isso da gente. No dia em que a gente seria despejado, é que ele avisou. A reunião ia ser em Coronel Pacheco. Fomos para lá fazer pressão, mas não conseguimos quebrar a liminar. Voltamos tristes e frustrados porque já sabíamos o que ia acontecer com a gente. Aí o dirigente Edilei, que estava com a gente, e o Piorra, que já conhecia mais a região, descobriram este lugar aqui à beira da BR, que tinha muito mato, muita sujeira. Então eles vieram, olharam o lugar e decidiram que aqui seria onde a gente ia morar, porque era mais fácil furar um poço e ter água para a gente. Eles trabalharam quase a noite inteira desmanchando barraca. Eu fui à rua para fazer gelo e trazer água gelada para cá. Quando foi de manhã, eu cheguei aqui cedo, às seis horas. No portão de Sant’Anna já estava a polícia, que tinha chegado às cinco horas. Estava lotado de polícia: polícia a
cavalo, polícia com cachorro, o diabo a quatro. Estava eu, Maria Luíza e Lúcia, minha cunhada. Eles não queriam deixar a gente entrar. Eu falei que tínhamos que entrar sim, que só tínhamos ido buscar água para o povo acampado, que eu era mulher de acampado e que estávamos desmanchando nossas barracas. Aí liberaram a nossa passagem e a Maria até falou para eles assim: “A gente não é ladrão, não, vocês tão igual urubu na carniça, meu pai taí dentro”. Ela passou e eu passei também. Tinha um policial de Goianá que a gente conhecia e ele liberou pra gente passar. Quando chegamos lá dentro, as barracas já estavam quase todas no chão e as coisas ajuntadas. Muitos não chegaram a entrar porque os policiais tinham barrado o portão, mas os acampados já sabiam o lugar onde a gente ia ficar e já tinham vindo se esconder aqui. Eles ficaram de joelhos furando buraco. A primeira varanda feita foi a cozinha comunitária. Combinamos de encher um caminhão de madeira e telha, que saiu com um carro de polícia na frente e outro atrás. Quando o carro de polícia passou, o caminhão entrou aqui. O carro de polícia voltou e eles falaram que aqui a gente não podia ficar. O pessoal falou que então ia despejar na praça, acampar lá. Conversa com um, conversa com outro, liga para não sei quem, “não pode ficar, não pode ficar”... De acordo que eles já foram tirando um esteio do caminhão e o buraco já estava pronto. Tirando de um e colocando no outro lugar, um ia pregando o pau o outro jogando telha... Em meia hora, mais ou menos, a polícia da BR chegou. E a gente já estava com o varandão pronto. Se não tivesse nada pronto, eles tiravam a gente. Os meni-
nos foram muito espertos, usaram muito bem a cabeça. E aí ficamos ali e buscamos o resto das coisas. No final das contas, a gente perdeu manilha. O prefeito de Goianá foi “tão generoso” com o pessoal do sem-terra que mandou a máquina para passar em cima da nossa horta. A gente tinha uma horta muito bonita. Na época, tinha pepino, abobrinha, berinjela, jiló, quiabo, couve, repolho, mandioca quase no ponto de arrancar. A máquina enterrou o poço, com as nossas manilhas tudo. O cara da máquina ia passando e nem para deixar lá o que tínhamos para os outros aproveitarem, né? Ia passando com a máquina e dando risada. Isso foi muito difícil: saber que a gente veio para a beira de uma BR, onde a gente não tinha nada, e o que tinha pra comer o prefeito mandou entupir. Chegando aqui, o pessoal foi caçar logo o ponto certo para furar o poço. O primeiro foi dentro do galinheiro. Quando fura um poço, até no outro dia a água está tordada. E a gente sem água para beber, sem água para cozinhar, sem água para tomar um banho... Os meninos iam para o ribeirão tomar banho. Aí depois descobriu que a água do canil passava dentro desse ribeirão. Ficaram todos cheios de coceira no corpo. Era bosta e doença de cachorro. Na fazenda de Sant`Anna, a gente tinha um acampamento igual esse aqui mesmo, cada um tinha sua barraca. A única diferença é que lá o banheiro era tudo junto. Aqui não, fez um para os homens e outro para as mulheres. Na época, de mulher que ficava aqui no acampamento era só eu e a Brazilina. Eu joguei na coordenação e exigi um banheiro para nós. Durante uma semana a gente dormiu na varanda
aberta, sem lona, sem nada. E a polícia nos vigiou nesse período, com medo de que voltássemos para a fazenda. Fomos muito humilhados. O pessoal passava na rua e chamava a gente de vagabundo, de safado, sem vergonha, jogava bombinha como se fosse tiro, parava os carros lá embaixo e começava a acelerar, buzinar... A infernizar. Mas a gente estava com um objetivo, que era o sonho de conquistar a terra. Para quem era dona de casa, enfrentar um despejo como eu enfrentei e conseguir enfrentar de cabeça erguida, sem deixar a peteca cair... Quando chegamos, fizemos um resumo do que tinha acontecido. Foi só emoção! Porque o meu marido Piorra e mais um companheiro chamado Alemão foram chamados de vagabundos pelos policiais. Ele mostrou a mão e falou para o policial: “Mostra a do senhor, se o senhor tem coragem. Porque as minhas mãos estão calejadas do cabo da enxada, agora a do senhor tá lisa de passar a mão nesse cabo aí e soltar nas costas dos companheiros. O senhor é muito homem com essa arma na mão, mas na hora do senhor pegar uma arma de verdade, uma enxada, o senhor não sabe”. Tirou todo o jeito do policial. Um momento muito marcante envolveu o Zé Curubino. A gente tinha uma prancha, que cavalo puxa, e não tinha mais como trazê-la. Seu Zé Curubino saiu falando que ela não ia ficar para trás, saiu puxando aquilo, manco. E quando todo mundo já estava aqui, a gente olhou para trás e vinha ele, o último, puxando aquela prancha... A gente tinha uma porquinha chamada Filosofia e uma cachorra preta chamada Sem-Terra. A Sem-Terra foi atropelada, deu um “bololô danado” para o nosso lado, mas 23
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a gente conseguir contornar. A Filosofia ficava amarrada aqui. A situação foi ficando tão apertada que a gente teve que vendê-la, para repor as coisas que estavam faltando, um papel higiênico, um pó de café. Por isso que a gente cobra dez reais por mês, para poder comprar um sabonete, um papel higiênico, um pó de café, um açúcar ou até mesmo uma carne, pois ninguém merece todo dia comer arroz feijão e farinha, tem que ter uma verdurinha.
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O Denis Gonçalves O nome do nosso acampamento é em homenagem a Denis Gonçalves, que foi atropelado numa BR. O cara que atropelou não prestou socorro e aí o pessoal do Olga Benário falou que quando tivesse outro acampamento, daria esse nome e deu. Tem os acampados, os coordenadores de núcleo e os dirigentes. Depois tem os dirigentes estadual e regional. A brigada se organiza pra fazer ocupação. Quando eles ocuparam essa fazenda, tinham só jovem, só estudante, para dizer verdade tinha uns cinco ou seis sem-terra só. O pessoal da redondeza foi chegando e os jovens foram começando a caçar seu rumo, a se preparar para outra. Dirigi quatro ou cinco meses como coordenadora do acampamento e depois fui eleita coordenadora de frente diária. Tenho que olhar isso, olhar aquilo, ver o que está faltando, o que não está. Juntamente com o Batata, faço essa revisão do acampamento. E na última reunião que a gente teve em Juiz de Fora, o nosso dirigente disse que passamos a ser dirigentes do acampamento também. Aqui no MST eu cresci muito, eu aprendi muito, eu
mudei a maneira de pensar, por conviver com pessoas diferentes. Cada um tem uma cabeça, então você tem que saber, você não pode deixar que a picuinha atinja nem um nem outro, a gente não permite que tenha briga, nós não estamos aqui para brigar. Tem normas bem rígidas e é por isso que funciona. O acampamento Denis Gonçalves funciona por causa da organização. Se eu deixo a despensa aberta, você vai pegar na hora que você quiser qualquer coisa lá dentro e aí um pega demais, outro pega de menos. Tudo é dividido, tudo é de acordo com a necessidade. Tem a regra básica: se você faltou três vezes na reunião, é chamado na coordenação, mas se justificou o porquê, não é chamado. Se você está precisando de alguma coisa, no que a gente puder te ajudar, ajuda. Se adoeceu, se está precisando de remédio... Tem aquela regra básica também que a gente cobra dez reais por mês de cada acampado para comprar o que não vem na cesta. O dinheiro ajuda a organizar uma festa, a pagar carro para viagens e reuniões, por exemplo, para irmos ao Visconde do Rio Branco, no assentamento Olga Benário, em Brasília, em Belo Horizonte, em Juiz de Fora. O dinheiro também é usado para colocarmos gasolina no carro de um companheiro que, às vezes, não tem condições. Funciona desse jeito. E aqui no acampamento a gente vai vivendo assim dessa maneira que pode, né? Tem alguns sem-terra que precisam ficar lá fora para trabalhar, porque o acampamento não tem estrutura para manter as famílias, né? Recebemos uma cesta básica que não vem tudo. Na minha casa tem oito mil quilos de comida guardada. Eu tenho que ficar com a nota fiscal direto e reto porque se, de
repente, eu for denunciada, eu tenho como provar que a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) mandou para nós, que eu não saqueei de lugar nenhum. Porque, para policial, sem-terra é vagabundo. E aí a gente vive aqui do jeito que está. Quando um faz aniversário, a gente se reúne e faz festa. Sem-terra não tem tristeza, tem alegria. A gente joga nos núcleos, aí a pessoa contribui com um refrigerante, com cinquenta centavos, com o que pode. E aí organiza um bolo e canta parabéns. Vira e mexe, tem churrasco. E a gente vai vivendo da maneira que pode. Como eu sempre fui organizadora das festas do acampamento, eu preparei uma festa muito bonita no natal, com a contribuição daqui mesmo do acampamento. Tivemos leitoa e pernil assado que a gente ganhou. Jogamos para os núcleos. Quem tem mais e pode ajudar, ajuda, fora a contribuição da mensalidade de dez reais que eles já dão. Graças a Deus não tem faltado coisas, não temos dinheiro suficiente em caixa, mas a cozinha está suprida, os barraqueiros estão tendo as coisas direitinho, a dificuldade vai diminuindo a cada dia que passa. Hoje, o acampamento deve ter uma faixa de 67 famílias. Quarta vem um tanto, quinta vem outro tanto e sexta vem outro para as reuniões. A regra é passar os finais de semana. Nosso medo um pouco é de falar “nós vamos entrar hoje” e esses que já passaram por aqui voltar e aí não é justo com quem ficou, a gente não quer ser injusto com eles, mas não é justo com quem está aqui. Não adianta eu falar que eu estou acampada aqui se eu venho uma vez por mês, se não me preocupo com o pessoal, se está faltando isso ou
aquilo, se não venho aqui ajudar a carregar uma água. Isso é uma coisa que nós, coordenadores, já estamos combatendo. A gente tem uma corrente de segurança forte aqui, para quando eles falarem que está na hora da gente entrar, a gente partir para a luta. Mas com o coração doído daqueles que não conseguiram resistir aqui fora. É muito triste, vai ser muito doído, mas a gente não vai poder ceder porque se eu ceder para um, tenho que ceder para outro. São muitos que vieram e passaram por aqui, são muitos que chamaram a gente de bobo, que iam sair daqui para não ficar fazendo papel de bobo na beira da estrada e que na hora que falar que saiu a terra, vão vir. Eu sou dona de casa. O Piorra é pedreiro e pescador. Ele pega e eu viro noite limpando peixe, às vezes é a noite inteira. Ele tem horário certo para almoçar, horário certo de pegar no serviço, então para dormir aqui no acampamento todo dia e sair cedo, não dá. A Maria tem, além da escola, aula de balé, de natação, de catecismo – nós somos católicos –, então cada dia é uma coisa. Para ficar aqui e todo dia de manhã ir embora, para ela, é muito sacrificado, aí eu preferi organizar e ficar dessa maneira. Já vai fazer três anos que a gente está nessa ida e vinda. A luta: por eles e pelos outros Estar no movimento sem-terra, para mim, é uma lição de vida. Saber o que é a reforma agrária hoje é muito importante, porque é saber o direito que a minha filha vai ter. A minha primeira luta foi das mulheres, em Uberlândia. A gente pulava igual cabrita. A Maria Luiza se 25
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Encontro Sem Terrinha, 2012 sentiu muito bem, como se estivesse em casa. Enquanto estávamos fazendo o planejamento da luta do outro dia, ela estava brincando. Nunca tinha saído de Goianá e fui parar em Uberlândia por uma luta. Tudo indicava que ia ser uma palestra para mulheres. Quando chegamos lá, era uma parada em uma BR. Lotamos o ônibus de pneus e botamos fogo neles. Foi guerra. Foi adrenalina pura, emoção de ver que a gente tem força e pode fazer valer nossos direitos, graças a Deus. O pessoal de Uberlândia tinha sido despejado e aí a gente foi unir forças. Foram poucas mulheres, porque
o pessoal ainda tem muito medo. Muitos companheiros não dão a cara para bater igual a gente dá. Eu agora já dou a minha cara para bater mesmo. Lá fora, aqui dentro. Aqui eu estou apanhando e aprendendo a não bater porque lidar com o povo é muito difícil. Nessa luta de Uberlândia a gente passou por maus pedaços, mas a gente conseguiu trazer aquele objetivo. Depois tive outra viagem pra Belo Horizonte, onde fiquei por uma semana. Logo depois, em outubro, veio o encontro dos sem-terrinha. Eu consegui levar algumas companheiras com criança, igual a dos Anjos foi com as crianças dela. A Ana Márcia foi com as duas crianças também. As companheiras se uniram e ficaram lá. As crianças conheceram até o zoológico. Um momento muito importante que aconteceu na minha vida e na vida da minha filha Maria Luíza foi a nossa visita ao acampamento Dandara, que é da zona rural. Eles estavam para ser despejados e a gente fez um abraço de Dandara. As crianças todas, em volta do acampamento, de mãos dadas, tudo de camisa vermelha. E os aviões passando, as polícias por trás e as crianças todas ali fazendo uma corrente. Isso foi um momento muito importante que eu tenho certeza que marcou muito a vida da Maria Lui-
za. E, assim, ela sempre se comportou muito bem, sempre tirou muito bem de letra. No outro dia, fomos na cidade administrativa. As crianças foram levar uma carta para o governador Anastasia. Lá, como dizia a minha mãe, “só tinha cabeça de cuia”. E as crianças chegaram, empurraram o portão, o guarda e passaram. Só quem estava lá é que pode sentir a emoção que a gente sentiu. Foi bonito demais aquela turma de pequenininho chegando lá e botando banca, falando que os sem-terrinha chegaram. “Quem são vocês? Sem-terrinha outra vez”. Foi muito bonito, muito bonito mesmo. A gente já fez o Encontro de Sem-Terrinha aqui, da mesma maneira que eu fui no encontro de lá. Veio gente para o encontro daqui. A gente já foi capaz de organizar esse encontro, fora os cursos que a gente está aprendendo aqui: como fazer sabão, detergente, sabonete... Nós estamos fazendo um de plantas medicinais, o que é muito importante. Fizemos uma passeata contra o prefeito de Goianá, saímos daqui a pé e fomos parar lá. Eu em cima de um caminhão, gritando igual uma condenada. Eu e Michele ficamos no carro para agitar a galera. Foi tanta emoção e adrenalina pura que eu fiz xixi pelas pernas abaixo, não tem noção... Estava toda mijada e gritando como uma louca (gargalhadas). Estava tudo organizado, porque sem essa união, a gente não consegue nada, nada funciona. Tinha um carro com enfermeira e tudo, caso alguém passasse mal, tinha o pessoal da segurança, o pessoal da alimentação, o pessoal da água – porque estava um calor muito grande, o sol tava muito forte.
Servimos almoço na praça e teve uma comissão que foi falar com o prefeito, junto com o Calazans, superintendente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Ele tinha falado que ia dar assistência para nós, pois estávamos requerendo carro para as crianças ficarem aqui no acampamento e poderem ir para as escolas; latão de lixo, porque a gente estava queimando o lixo e isso causa poluição; saúde, porque além de termos tido um momento muito triste, que foi o dia do despejo, também tivemos uma perda muito dolorosa aqui, que foi a do companheiro Tico. O Tico precisou de atendimento médico e o povo o levou até o posto, onde ficou o dia inteiro sem ser atendido e foi liberado à tarde. Aí o Piorra o trouxe de volta para cá, pois viu que ele não estava bem, e pediu à prefeitura um carro, uma ambulância para levá-lo para o hospital João Penido. Mas eles não cederam o carro, disseram que não tinha carro para vagabundo. Aí o senhor Antônio ligou para o filho de Tico em Guarani, que veio de carro e o levou. No outro dia ele faleceu. O Tico foi muito importante na vida da Maria Luiza porque ela não sabia andar de bicicleta e era doida para aprender. Na época, só tinha ela e o Vilbert de criança no acampamento. O Tico arrumou a bicicleta velha que tinha lá e ficou com Maria até ela aprender andar. Primeiro ensinou nas duas rodinhas, depois tirou uma. No final das contas, ele tirou a última e ela já saiu andando... Uma paciência que ele teve. Gostava muito dela. A perda do Tico, para nós, foi um golpe muito forte. Ficamos muito baqueados mesmo. 27
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Tínhamos combinado uma ação no posto de saúde, só que a informação vazou e, como somos de Goianá, deram um toque na gente: “Não vem, pois o posto está lotado de polícia”. A nossa organização falhou. Se tivéssemos ido, teríamos nos “ferrado”, muitos de nós iam bater, mas iam apanhar também e ser preso. Graças a Deus teve essa pessoa bondosa que ajudou. E estamos nos preparando agora para nossa entrada triunfal na Fazenda. Se Deus quiser, vai dar tudo certo e a gente vai fazer barulho. Enquanto a terra não sai, a gente canta “Denis Gonçalves da terra não saiu. MST, guerreiros do Brasil”. Antes de começar cada reunião, a gente canta o hino do MST todinho e grita reforma agrária. No final a gente grita MST, geralmente quem grita sou eu e quando eu não grito, eles pedem. Estou aprendendo muito até lá na convivência lá fora. Está sendo muito importante para mim. Agora é só esperar mesmo o grito da vitória. A gente está se organizando, a coordenação com o pessoal da brigada, o dirigente do Sul de Minas, Silvinho, com a Michele, da Estadual. A gente senta, conversa, para ver até onde a gente pode ir, o que a gente pode fazer e o que não pode fazer para nada dar errado. Se essa terra não sair por esse período que foi falado, a gente vai para Belo Horizonte, para a luta, se Deus quiser. Maria vai como representante das crianças e eu vou como representante das companheiras daqui. Tomara que consiga levar mais companheiras. Ano passado foram só eu, a Brazilina e a Lúcia. Esse ano eu espero que a gente consiga ter mais gente, para fazer valer esse tempo nosso aqui na beira da BR. Se a gente não fizer barulho, eles não
vão mexer com a gente aqui porque nós não estamos incomodando, os carros passam lá, nós estamos para cá, então temos que fazer barulho. A atual prefeita frequenta aqui. Ela já cantou bingo pra gente. Já a chamamos para conversar, para ver qual a proposta que ela tinha para nós, no que poderia nos ajudar. Agora a gente está chegando numa reta final, de dar o grito de vitória, que pode ser não tão longe, mas também não tão perto. A gente chorou de tristeza e está para chorar só de alegria e mijar bastante pelas perna abaixo. Uma família Depois que eu cheguei aqui no movimento, conheci muitos companheiros e companheiras, fiz muitas amizades. E vem vindo mais gente, a gente vai conhecendo. Eu conheci gente da Índia, da Holanda, do Japão, tudo aqui no movimento sem-terra, e, assim, bota a gente para pensar, mudar as maneiras, querer aprender mais. Eu estava até com ideia de fazer um curso de inglês, porque o dia que a Bina veio aqui a gente não sabia entender o que ela estava falando. Sorte ela ter trazido uma tradutora para traduzir para nós. E assim, a convivência com o povo né... Tem a dona Brazilina, que é uma mulher que veio da rua, mas que tem muito para nos ensinar e muito para aprender também. Agora tem mais jovem que mora aqui no acampamento, mas o único jovem que tinha aqui era o Vilbert, filho da Brazilina, que ficava perdido porque não tinha colegas. Ele era atentado igual um doido, a gente conseguiu dominá-lo, trazê-lo para junto da gente, pois ele só ficava na rua e na
rua só se aprende coisa que não presta. Hoje Vilbert é um Pouco tempo atrás, eu estava aqui no acampamento dormindo e aí meu menino mais velho, Luiz Paulo, lirapaz já e garanto que ele tem novas ideias e uma visão gou perguntando: “Mãe a senhora tá onde?”. “Tô aqui no diferente. acampamento”. “Mãe, tenho uma notícia pra senhora”. Eu Dos antigos, de quando o movimento chegou, aintinha um irmão que eu não via há uns cinco anos e a noda restam a nossa família, a Lúcia, o Célio e a Aparecitícia é que ele tinha falecido. Então, à noite, meu cunhado da, que eu conheci aqui também. A Rosa, minha cunhada, me buscou. O pessoal do acampamento deu força, Tiquim saiu nessa semana. Gilberto, Genésio, Paquinha, Celinho foi um amigo exemplar, Aparecida mais o Célio ficaram Branco, Geraldo Bepe, João Vitor, Zé Curubino, Brazilina, comigo o tempo todo. E assim, o movimento é isso né, é esses são os que estão desde o começo, que não desistiram a cumplicidade, é apoiar, é dar força quando um compamesmo. Depois disto já chegou muito e muitos já foram porque não aguentaram a pressão, não aguentaram ficar aqui. Hoje já está aí a Inez morando com a família. O Tiquim já trouxe a irmã dele, Jhenifer veio com o pai dela, estão aí também. Todo mundo olha. Se Maria está lá embaixo, tem alguém olhando, porque a gente está na beira de uma BR, o que é muito perigoso. Há pouco tempo o Piorra achou uma bala de revólver aqui. À noite a gente escutou o tiro e achamos que era bombinha. Quando a gente veio para cá, muitas pessoas ficaram muito incomodadas. Margarida e algumas acampadas conferindo as doações recebidas 29
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nheiro está precisando. Teve muitos companheiros daqui que foram no velório, ficaram até certa hora e vieram embora, outros foram no enterro no outro dia. Eles estavam preocupados com a companheira que estava perdendo, que estava sofrendo. Então é nesses momentos é que a gente vê que a gente pode contar com esses companheiros que estão aqui. Brigas, intrigas entre companheiros sempre existe. Se não existir, não é família. Teve uma época que o povo trouxe para a coordenação que o pessoal não podia gemer nas barracas. Eu falei: “Ô meu Deus, nem fazer aquilo não pode mais. Ô pai...” (risos). Pintava de lá, um ou outro gritava: “Ó, não pode gemer, não, fulano” (risos). Nessa época a gente se divertiu bastante. Tudo é motivo né? E um faz fofoca do outro, aquilo leva na brincadeira. Tudo é motivo para começarmos a levar o caso na brincadeira e é assim que se distrai. É assim que se vive. Dos aprendizados e inspirações Meus familiares e amigos nos acharam bem idiotas quando viemos para o acampamento. A gente via que eles tinham até uma restrição de ficar meio afastados no começo, mas agora não, todo mundo já aceita, já vem e participa de algumas festas. Tem uns e outros ainda que estão com essa ideia doida, mas já mudou muito. Mas que tinha muito preconceito, isso tinha. Na escola de cima, eu já fui até dar palestra sobre o movimento sem-terra, acho que duas ou três vezes. Foi muito bom, muito proveitoso. Cada dia aqui no acampamento é um aprendizado, uma coisa nova e diferente que
a gente aprende. A terra a gente não consegue, a gente conquista, como se fosse conquistar uma mulher. E depois que for lá para dentro e conquistar o seu pedaço de terra,não é área de lazer. Nós estamos aqui para lutar pela terra, para tirar dela o nosso sustento, para tratá-la com carinho que ela vai nos dar o fruto. É para isso que nós estamos aqui. Eu não quero terra para fazer piscina, para fazer casa de final de semana. Eu quero terra para fazer o meu barraco e tirar da terra o meu sustento, é por isso que eu estou lutando pela reforma agrária, que era uma coisa que eu nem conhecia, só ouvia falar pela televisão e hoje estou vendo de perto, estou lutando por isso. Nisso, descobri que tenho força e que sou capaz, graças a Deus. Eu encontro força para continuar resistindo na minha filha, na coragem que ela teve de enfrentar o despejo. Dela eu tiro muita força, muita coragem. E tiro força também das maldades que os fazendeiros fazem com os trabalhadores, pego um pouco do sofrimento do pessoal lá do assentamento Terra Prometida, aquilo foi bárbaro demais. É de ver que a Brazilina não ter lugar pra morar, que se sair daqui vai voltar para rua... Dessas coisas é que a gente tira força. O Zé Curubino tem a família dele lá em Goianá, mas ele tem um motivo para estar aqui. A família dele talvez não o aceite e aqui ele encontrou a família dele. Então é disso tudo que a gente tira força para lutar. Para ter um lugar digno, decente para morar e dar para essas criançadas que estão aqui os seus direitos que foram corrompidos. Eu aprendi a gritar, sai de dentro, já não sai mais daqui (aponta para a boca) para fora. Sai é de den-
tro (aponta para o coração), um grito que quem está lá embaixo escuta. E toda terça-feira, na reunião, esse grito brota, de uma maneira que a gente não consegue nem explicar, mas ele sai. Outra mulher Eu não tinha esse espírito de liderança que eu tenho hoje; ele estava dormindo aqui dentro e acordou depois que o movimento sem-terra chegou. Antes eu era uma dona de casa sossegada. A minha saída era levar a criança no colégio e voltar para casa, entendeu? Eu não tinha esse costume nem de sentar do lado de fora do portão para bater um papo com o vizinho do lado. Às vezes, lá na rua os vizinhos achavam que eu nem morava lá porque praticamente eles não me viam. Na época que o Piorra falou que estava no movimen-
to sem-terra a gente quase se separou. Só conhecia aquilo que via pela televisão e a mídia só aumenta né? Aí, depois que eu vim e vi, não é nada disso. É só a gente lutar com todas as forças que a gente tem, por um direito comum, por igualdade. Essa sociedade hipócrita que tem aí só quer apertar, apertar, apertar a gente. É uma coisa que eu nunca imaginava que eu poderia viver, nunca imaginei que eu poderia vivenciar uma situação igual a um despejo, igual ir para uma luta, vestir a camisa do MST e partir para a briga, conhecer as pessoas que eu já conheci... Quer saber o que é o movimento? É viver o dia-a-dia. Viver na beira de uma BR vinte quatro horas, sem água direito, debaixo de uma barraca e sem uma luz decente não é para qualquer um... Tem que ter sangue de luta na veia, porque do contrário não consegue.
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BRAZILINA MARTINS
“Vem meu bem, vem viver aqui vinte quatro horas pra você ver o quê que é bão”
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“
Dona de uma espontaneidade singular, fala o quanto pode. Na verdade, se tem alguém que tem coragem para dizer, sem meias palavras, o que acontece no Denis Gonçalves é a dona Brazilina. Moradora fiel do acampamento, não arredou os pés do território. Unânime é a certeza, entre os acampados, de que foi ela e o Querubim quem seguraram o acampamento nos momentos mais delicados, quando ninguém mais podia ou se dispunha a permanecer às margens do asfalto. E ciente disso, quando surge alguma situação, não hesita em fazer jus da sua autoridade. Eleva o tom de voz e diz em alto e bom som o que pensa, na frente de quem quer que seja. Brazilina tem o hábito de juntar, na sua barraca, todo tipo de badulaque. Alguns brincam que ela tem tanta coisa que está até começando a expulsá-la de casa. “No dia que a gente for mudar, a gente tem que arrumar uma Mercedes pra levar as coisas dela”. Contraditoriamente à mania, revela desprendimento em relação ao que tem e distribui, com generosidade, aquilo que ganha. Como ela costuma dizer: “o que vem de graça é pra ser partilhado”. Bastante comunicativa quando fala de terceiros, por sua vez, quando o assunto é a sua própria vida, a dinâmica é outra... Desconversa, muda de foco e até se dá por desentendida quando precisa preservar alguns dos seus segredos. Prescinde de persistência para mostrar-se e não sem razão. Tendo a persistência arraigada em si, lhe é de direito exigi-la de quem ousa querer conhecê-la. E como vale a pena a ousadia!
S
ou nascida em Piraúba, aqui mesmo na Zona da Mata mineira. Meus irmãos são todos de lugares espalhados. Um é de Minas, mas é criado no Rio de Janeiro. Tem outro irmão e mais duas irmãs que são do Rio também. Eu puxei a cor do meu pai, minha mãe era uma escura clara. Eu morei com meus pais mesmo até os sete anos de idade. Eles se separaram por problemas financeiros. Meu pai era muito tranquilo. Se acabassem as coisas dentro de casa,
ele falava que ia arrumar serviço, mas não se preocupava de repor. Ele continuou na Zona da Mata, em Juiz de Fora e minha mãe meteu o pé para o lado do Rio de Janeiro, em Petrópolis, onde meus tios já moraram. Lá sempre existiu o projeto Sem-Teto, então ela foi direto para um lote. Para ela, não importava o lugar, desde que fosse sossegado e livre do aluguel. Lá se casou de novo, formou uma nova família e teve outros filhos. Eu fiquei de déu em déu, fui parar em cidades que eu nem conhecia. 33
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Na época que minha mãe foi embora, meu pai me levou para a casa de uma tia na roça, na região de Barbacena, aqui em Minas mesmo. A minha tia não tinha condição de cuidar da gente, passava muita falta das coisas, e o marido dela era alcoólatra, daí tinha bastante briga. Então ela me entregou para outras famílias. O pessoal chegava assim, agradava de mim, aí a minha tia deixava que eles me levassem para a casa deles. Eu não guardei mágoa nenhuma, não, nem do meu pai nem da minha mãe. Mas na época de criança, o povo judiava muito da gente. A gente apanhava bastante nas mãos dos outros. Fui parar em Ipatinga, na casa de uma mulher que tinha uma garota. Compravam merenda para a menina e para mim não. Todo dia ela dava merenda para a menina e como eu era pequena, eu sentia vontade. A mulher falava assim para mim: “Brazilina, isso aqui é para a Claudia, não mexe, não”. E na época, ela trabalhava no salão e o marido dela era bem empregado na rede ferroviária. Uma vez, quando ela saiu, eu peguei. “Brazilina, você comeu a bolacha da menina tudo, você mexeu na bolacha da menina”. E eu tinha mexido mesmo, comido umas lá. Quando ela chegou, me “sentou o coro”, me pegou com uma folhagem de piteira. Cheguei a estudar. Lembro como se fosse hoje que, nessa época em Ipatinga, o pessoal me colocou para fazer o primeiro ano fundamental. Aí fui para a escola e tive duas pessoas que tiveram boa intenção comigo. Mas eu vou te falar uma coisa. Você acredita que foi meu pai que me impediu de ter um estudo bom na vida? Porque eu hoje poderia estar, assim, tudo bem. Eu poderia estar quase aposentando, ter pegado
Brazilina da Silva Martins, 51
um cargo bom, uma profissão boa dentro de um latifúndio, às vezes ter feito um curso de secretária ou enfermagem, alguma coisa assim. Mas só que meu pai não teve cabeça na época. Fiquei um ano só nessa escola em Ipatinga, aí tiveram que me devolver porque, como eu não tinha documento e tinha que
ter um responsável, aquela família não podia ficar comigo. Aos dez anos de idade, essa família me entregou, então, para outra, com a qual fiquei até 13, 14 anos. Me lembro como se fosse hoje. Quando fiz 14 anos, essa outra família me devolveu para Juiz de Fora. Então fui criada assim: se acontecia alguma coisa errada, se eu fizesse algo que não agradasse os donos da casa, se cansassem de mim ou se não tinham mais que zelar pela minha pessoa, me entregavam para outros. E fui vivendo assim. Quando eu cheguei aqui em Juiz de Fora, contei com o apoio de uma tia, a dona Maria, que era de Barbacena, mas tinha 30 anos de Juiz de Fora, só trabalhando de doméstica. Ela foi empregada, depois empregada de confiança e depois passou a governar a família, a casa. Devido a esse tempo, para ela era mamão com açúcar conseguir emprego para Deus e o mundo, então todo mundo a procurava. Um dia eu bati na casa dela e ela arrumou um emprego de doméstica para mim, quando eu tinha mais ou menos 14 anos. Menino de 14 anos não dá conta de fazer nada, só para ajudar mesmo, fazer companhia e aprender. Minha tia arrumou uma mulher boa pra caramba, viúva. Essa mulher foi uma amigona e me queria muito bem, me ensinou a trabalhar. Eu comecei a tomar gosto pelo dinheiro. O filho dessa mulher fazia curso de aeronáutica e só tinha um campo de aeronáutica em Barbacena, então ele estudava lá. E ela trabalhava de enfermeira geral na Santa Casa, que era quase a única, pois tinham poucas clínicas. Eu devo muito a essa mulher, a Geraldina, porque no Colégio Central só entrava com encaminhamento e pedido
especial. Pedido especial assim: baixa renda não tem condição de entrar nesse colégio, pessoal da periferia não tem vez. Eu dei muita sorte porque eu fui passar uma temporada com essa mulher e, como era no centro, ela me encaixou rapidinho nesse colégio central. Para mim foi ótimo porque dentro de um ano aprendi tudo, mas tudo, tudo. Aí eu só cursei o segundo ano do fundamental para passar para os outros anos da alfabetização, para continuar os outros, terceiro, quarto, quinto. Ah, meu pai me travou os documentos. Pronto. Aí parou outra vez. A escola parou. Essa família não pôde cuidar de mim mais, aí parei nisso aí. Se não fosse o meu pai ter impedido de ter uma coisa boa na vida, um estabelecimento bom na vida, um emprego, essas coisas, eu já tinha conseguido coisa boa na vida quando era jovem. Eu estaria ganhando mais, não estava precisando de vir morar debaixo de lona preta, muito menos precisar ficar dependendo de “bico”, ganhando pouco. Porque eu teria um estabelecimento de vida melhor, mas quando pinta oportunidade, tem pai e mãe que não sabe aproveitar. Com o meu pai eu tive contato o tempo todo aqui em Juiz de Fora. Ele trabalhava de dia para comer de noite, pagava aluguel, então como é que ia cuidar de mim? Não tinha como cuidar. Eu ficava esperando meu pai aparecer no centro da cidade para ele me dar dinheiro, mas meu pai nunca tinha dinheiro. Nunca parava em emprego nenhum. A associação arrumava emprego bom para ele trabalhar na ferroviária, na prefeitura, mas o único emprego que ele parava e que gostava era na empresa da Kibon. Na época eu não tinha telefone também, só pessoas bem 35
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de vida que tinham telefone. A gente tinha contato assim: eu ia no bairro que meu pai morava ou ele encontrava comigo na rua. Só que ele não podia me ajudar. Quando ele tinha dinheiro, pagava o aluguel, e quando não tinha, dependia de uma madrasta minha. Meu pai não parava no emprego, não tinha carteira assinada. Minha madrasta que assumia o aluguel, porque ela tinha carteira assinada e emprego fixo. Na época, ela tinha dez anos de emprego. Casa de família, mas ela tinha garantia na carteira dela para bancar o aluguel. E lá com eles eu não podia morar. Também tive contato com a minha mãe, porque essa minha tia que morava aqui em Juiz de Fora chegou a me levar na casa da minha mãe quando eu ainda era criança. Aí quando eu fiquei de maior, eu mesma arrumei a passagem e passei a ir sozinha. Quando eu tinha dinheiro, eu ia, mas daí eu cheguei lá e não me adaptei com o clima né? Cidade serrana é um lugar frio. Ela ficava lá e eu cá, a via uma vez por ano, uma vez em cada dois anos. E foi assim. Sem endereço Quando eu fiz 16, 17 anos, tive de morar na rua. E foi o pior tempo da minha vida. Eu fiquei perambulando. Eu pedia as coisas para o povo na rua e eles me socorriam. Eu tive que ficar correndo dos outros, dos maus elementos, porque Juiz de Fora sempre foi uma cidade violenta. Corri muito risco na minha vida. Até de estuprador eu já corri. Por isso hoje agradeço muito a Deus porque ele não deixou que homem nenhum me usasse à força. Quando eu estava na rua e via um homem meio estranho, eu pegava e corria para a rodoviária.
Só Jesus mesmo. Era Deus que me alertava. Às vezes, em determinado lugar, se aparecesse uma pessoa olhando para mim com má intenção, eu levantava daquele banco, daquele espaço e não deixava a pessoa chegar perto de mim. Eu era uma pessoa sabida. E sempre tinham as pessoas boas. Durante o dia, os motoristas de táxi ficavam sempre atentos. Enquanto eles estavam lá, não chegava nenhum marginal naquela praça. Mas quando ia escurecendo e eles iam embora, no ponto iam acabando os carros, só diminuindo. Quando o último carro saía, eram, mais ou menos, umas 8 horas da noite, eu rapava fora para a rodoviária, junto com outras meninas. A minha casa era a rodoviária. Dormia na rodoviária, comia na rodoviária. O moço de lá era tão legal comigo! Falava assim: “Ô menina, entra lá pro restaurante. Quando chegar vai ter uma comida lá pra você”. Não precisava nem pedir. Quando eu cochilava, os donos dos restaurantes ficavam assim me olhando e diziam para eu entrar, me davam comida. Fui criada assim, sabe? No outro dia de manhã eu acordava, pulava a pista para a praça central de Juiz de Fora e ficava sentada lá. Às vezes me dava sede, ia pegar nos bares. O pessoal era legal comigo pra caramba, os donos dos estabelecimentos me davam café-com-leite. Não sei se eram donos, se eram empregados, mas doavam alimento para mim, ofereciam dois tipos de merenda pra mim: pão com margarina ou bolo. Aí eu comia o que eu queria. Geralmente eu tomava café-com-leite e era aqueles copão grandão assim: “Pode encher”. Eu dei tanta sorte, graças a Deus eu não cheguei passar
necessidade de tudo, não. Eu tinha uma amiga que também mexia com negócio de comida caseira (risos). O pessoal falava assim “Ó, você vai naquela mulher ali que ela mexe com comida caseira”. Eu tentei procurá-la um tempo atrás aqui em Juiz de Fora, mas eu acho que ela já até morreu. Ela era uma amigona minha. Ela não me deixava passar necessidade. “Você vai lá que ela é gente muito legal”. Aí eu chegava lá na casa dela e ela me dava. “Quando fiz 16, 17 anos, tive de morar na rua. Foi o pior tempo da minha vida” E foi assim, eu levei uma vida... Foi Deus que me guardou, tá? Deus que me guardou. Porque para eu sair “Experimenta isso aqui, experimenta isso ali”. sem mancha nenhuma não é fácil. Eu vivi no meio dos vânChegou uma vez um moço querendo vender fotos de dalos. Eu passei pelo meio dos vândalos. Não é fácil. Mas é o mim e de uma outra mulher, que depois acabou morrendo tal negócio, a gente tem que saber viver. Senão eu tinha morporque não me acompanhou. Ele ia ensinar as poses, eram rido, eu tinha morrido de bobeira. Me ofereceram muito álfotos sensuais. Era para tirar retrato nua para publicar. A cool na rua, mas sabe o que eu fazia? Eu falava assim: “Aqui, gente foi escutando a conversa dele... Mas a gente não aceivocê paga um pedaço de bolo para mim? Eu não bebo”. E a tou. A gente precisando e ele querendo nos explorar. Pessoa pessoa bebia na minha frente. Foi Deus! Bendizer, na minha passa muita coisa na rua. A gente tem muitas propostas, muimão tinha tudo. Geralmente vêm as maldições, as drogas. tos meios de arrecadar renda para sobreviver. Se está na rua 37
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da amargura, aparece alguma coisa para ajudar. Se eu tivesse feito uso das coisas que me apareceram, eu estaria na sarjeta, jogada nas marquises. Fiquei na rua mais ou menos uns dois, três anos, até completar 18, porque eu estava sem meus documentos. Eu ficava em cima do meu pai: “Pai, busca meu registro, pai”. E meu pai ficava... Meu pai era irresponsável. Recebia todo mês e em vez de comprar a passagem, eu não sei o que acontecia que ele gastava tudo, porque ele gostava de beber e fumar também. Com certeza o dinheiro ia naquilo. Nunca buscava o meu registro, nunca buscava. Aí eu pegava e comentava com as pessoas e elas falavam assim: “Ô Brazilina, o que o teu pai resolveu?”. “Meu pai até hoje não buscou”. “Ô pai, cadê meu registro?”. Nada. As famílias falavam que eu teria que esperar ficar de maior para tirar minha carteira de identidade. Aí quando eu fiz 18 anos, passaram seis meses e eu tinha esquecido. A minha valência é que não cobrou nada. As pessoas falavam que “se passasse muito tempo, eles cobrariam... pepepê pepepê papapá”. Aí eu descobri que negócio político não cobra nada. Depois que já tinha passado o tempo e que eu já tinha completado a idade, fui buscar. Estava com quase 19 anos, pensei que ia pagar multa. Quando eu fui nesse tal cartório, eu dei sorte que eles não me cobraram nada. E depois pronto. Então, uma moradia Como eu saí da rua? Deixa eu lembrar, meu Deus do Céu. Eu não fiquei só aqui, eu andei muito para o lado do Rio... Tem coisa que eu não gosto de lembrar. Quando a gen-
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te é garoto e passa necessidade, as coisas vêm como agasalho. Uma vez aconteceu um assalto em um estabelecimento no Rio de Janeiro, perto de mim. Aí eu fiquei cismada, me deparei com a violência, peguei um ônibus e casquei para a casa de uma colega, no bairro Coringa. De lá, fui para casa da minha mãe, onde fiquei morando um tempão para o lado do Rio. O pessoal arrumou trabalho para mim. Os meus parentes arrumavam emprego para mim em Petrópolis. Na época, como eu não era de lá mesmo, eles perguntavam se eu não trabalhava em nada e eu falei que se quisessem arrumar para mim, eu aceitava. E foi assim. E passei a sair da rua. Tinha meu irmão lá também. Por isso que eu falo que eu não ia para casa dos meus parentes porque eles me ofereciam casa. Eu ia para casa do meu primo, tinha onde morar. E eles deixavam eu ficar até quando eu quisesse. E assim fui. O meu irmão também, a mesma coisa. Mas eu não ligava para casa. Aí depois que eu caí na realidade e fui querer ter alguma coisa, ser independente. E agora eu estou na luta. De primeiro, se eu tivesse juízo, eu não teria coragem de ter feito tanta coisa. Depois disso tudo, eu arrumei casamento com 19 anos. Eu só pegava, namorava. Eu não queria compromisso com a vida, eu era louca. Eu só achava pessoas que queriam meu bem. Em parte de homem, não posso reclamar, não. Graças a Deus, lá para o lado do Rio de Janeiro eu achei um marido muito bom, que é o pai dos meus meninos. Fui morar com ele. Graças a Deus, ele me conheceu morando sozinha, não soube que eu tinha morado na rua, senão tinha sido pior, ia ficar jogando na minha cara, me cobrando.
Eu casei e não melhorei a minha vida. Já tenho experiência. Não amei ninguém, mas fui muito bem amada (risos). Só não correspondi a ninguém. Depois eu fui levar minha vida do jeito que tinha que levar. Achei bom o casamento. Fui morar junto e achei que não estava mais bom, então larguei. E foi assim. Em certa parte eu falo: eu sou convencida mesmo. E o pai dos meus meninos teve boas intenções, foi uma pessoa ótima para mim – melhor do que ele, não acho – mas eu achei que estava ruim, não quis compromisso. Larguei, fiquei sozinha, estou sozinha. Graças a Deus, sou solteira. Não sou boba, não. Minha sorte é que eu não casei. Eita mãe. Casar é fácil, até achei casamento para casar, mas eu fui ativa né? Eu ia no cartório registrar meu nome para casar? Casamento é loteria. Eu não quis. Quis morar com o pai dos meus meninos, se desse certo, muito bem, se não desse, a hora que eu achar que não estava bom, eu largava ele pra lá e eu pra cá. E foi assim. Eu tive quatro filhos. Um deles está em Goianá, na casa de um casal. O de 19 anos está morando perto do pai dele lá em Juiz de Fora. Se ele sentir uma dor de barriga, ele tem onde cair. Casa lá não falta pra ele, não. Falta é para mim, porque eu não casei. Meu pé de meia quem faz sou eu. Os meus outros filhos, graças a Deus, estão encaminhados. Um vive no Rio de Janeiro mesmo, uma vida de pobre, mas uma vida honesta, ótima, melhor que muitos pobres aí que eu vejo. O outro é casado, tem 31 anos, é de Piraúba, está bem, graças a Deus. A gente não pode reclamar da vida. E agora, um lar
Do MST mesmo, tem dois anos que nós participamos aqui. Eles fazem serviço de base escondido né? Eles trabalham no campo e na cidade. Onde eu estava morando, ele foi pela segunda vez. Eu morava na área do sem-teto da prefeitura. A área dos sem-teto não é só agora. A associação no Rio de Janeiro sempre me deu chance. Quando eu era mais nova, eu até tentei um lugar para morar, mas não tive oportunidade porque eu era de menor. Na periferia, com os lotes da prefeitura, a pessoa faz o barraco do jeito que achar melhor, do jeito que tiver condição. Tem gente que faz de alvenaria, tem gente que faz de cimento. Se não tivesse vindo para cá, correria o risco do meu filho Vi ter morrido cedo. Eu fiquei cismada de o Vi envolver com droga, com prostituição. Se eu não venho para cá pro acampamento, ele ia envolver mesmo, porque na cidade eu não ficava parada. Porque a corda arrebenta para o lado dos pobres. O pessoal vem e ensina o que não convém ensinar. Os filhos aprendem. Acontece muita coisa e a gente não pode entrar no meio. Tem facilidade das crianças, já com 10 anos, entrarem no meio de prostituição. Geralmente as mães têm que sair para trabalhar e só chegam de noite. As crianças não tem noção para ficarem lá sozinhas. É dramático. Eu trabalhava como catadora, como conservatória (limpeza nos ônibus da cidade) e também fazendo limpeza nos condomínios. Eu não quero trabalhar como empregada, por isso estou aqui. Eu perdi minha bolsa esmola. Já ajudava para inteirar para comprar as coisas de casa. Nem sei se eu estou dentro do programa por conta do Vi. O pessoal do MST apareceu lá pra fazer o serviço de 39
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Eu não posso reclamar de estar na beira da BR porque a possibilidade de melhorar é essa, mas temos que passar por um processo que é continuar trabalhando, continuar empregado, até conseguirmos realmente o espaço que precisamos: as terras. Porque na cidade, se a gente tivesse um espaço maior, a gente não viria pra cá, não ia procurar a reforma agrária. Porque a reforma agrária me oferece o espaço que eu preciso e que não tenho na cidade. Entre os dois espaços que posso escolher, entre o minúsculo e o maior, escolhi a reforma agrária. Por isso, temos que passar por um processo. EnBrazilina buscando água para o consumo da família quanto não chegamos dentro daquele espaço maior, fazer o quê? Trabalhar. Continuar trabalhando para fora até chegar dentro daquele base e eu pedi para eles me encaixarem. Eu cheguei tinha espaço. Realmente aqui a gente não tem muita opção de tra15 dias da ocupação. Foi tribulado, tá? Foi brinquedo, não. balho, só uns bicos que a gente faz. Porque emprego mesmo Nós tivemos ameaça de policial. Nós tivemos ameaça de faassina carteira, além das outras vantagens, né? Não é o que zendeiro. Ameaça, assim, de despejo, de dizer que ia mandar a gente faz. A gente trabalha na olaria, ganhando por dia de polícia por a gente para fora, pra gente não ficar lá. Eles trabalho. E assim a gente continua na luta. mandavam os empregados falarem que iam mandar dois mil Eu luto, mas não tenho momentos de fraqueza. Nunca homens do exército pra tirar a gente para fora. Eu ficava nertive. Eu não sou de chorar. Quando eu perdi a minha mãe, eu vosa. Só Jesus na causa. Jesus. Quando um pessoal veio para estava morando em Juiz de Fora. Como que eu ia chorar? Já ver nossa situação e se a fazenda era improdutiva ou não, nós tinham a enterrado há um ano quando eu soube do recado. ficamos preocupados. Nós passamos bastante afronta com Quando eu cheguei lá em Petrópolis que eu fiquei sabendo eles aí. Eles estavam perseguindo nossos coordenadores.
pelas vizinhas que ela tinha ficado doente e falecido. Eu acho que a oração, a bíblia, ir à igreja, tudo ajuda a fortalecer o espírito da gente. Eu encaro a vida natural. Se aconteceram essas coisas, é porque tinham que acontecer. Sinceramente, eu acredito que essa fortaleza está muito na igreja. Eu sou evangélica. Quero morrer evangélica. Eu sou da Deus é Amor. Eu visito todas, mas eu sou dessa. Eu passei a pertencer à igreja de crente com 35 anos. Antes eu era católica, até a igreja que me batizaram é a igreja São Sebastião. Barraca 59, a casa da Dona Brazilina Quando a gente entrar para as terras, eu vou guardar meu dinheiro e ninguém vai achar. Lá em Juiz de Fora, era cheio de tinham várias coisas do movimento e ninguém para olhar. ladrão e eu guardava meu dinheiro em cima da telha. Se “uns E a gente não conhece o coração de ninguém. Deus que me cinco dedos” entrassem na minha casa, eles não iam adiviperdoe, misericórdia, mas não quero morar nunca mais na nhar. Eu saía para trabalhar normalmente, eu comprava mibeira de estrada. Não há nenhum minuto de facilidade, não nhas coisinhas. Os troquinhos que sobravam, com o controle sinto nenhum momento de segurança, nem de dia, nem de que eu conseguia fazer, eu guardava entre as telhas de casa. noite. A única coisa que eu quero na vida é deixar alguma Não sumia. Eu trabalhei com uma economista no Rio de coisinha quando eu for. Meus pais, há 50 anos, não tiveram Janeiro e aprendi a economizar tudo, me ensinaram a econooportunidade de dar nada melhor para nós, como todo baimizar porque futuramente eu precisaria. xa-renda, mas eu quero. Teve vez de eu ficar sozinha no acampamento, porque 41
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MARIA DOS ANJOS 42
“Prefiro ficar aqui para esquecer um pouco”
“
Irmãos irreverentes, ‘dos Anjos’ e ‘Tiquim’, passaram juntos todo tipo de situação em suas vidas. Diante dos desafios, desenvolveram um vínculo de amizade que ultrapassa a herança sanguínea. Por conta dessa cumplicidade, hoje dividem a mesma barraca no acampamento. Dos Anjos faz as vezes de irmã mais velha, que zela por tudo o que envolve a família, chegando até a comprar briga quando o assunto é defender o irmão. Muito bem consigo mesma, quer tratar de forrozear a vida. Ele assume os sobrinhos com carinho e responsabilidade de tio, e corresponde com uma dose de ciúmes o cuidado recebido por ela. Mas, nem Tiquim, nem pai, nem ninguém... Dos Anjos tem alma de pássaro e, à vista da tentativa de controle, assegura: “homem nenhum manda em mim não”. Como eles se entendem muito bem, tudo acaba virando motivo para festa. Com direito a uma boa prosa e sorriso largo e branco.
N
ós nascemos em Rio Novo, mas a gente mora aqui em Goianá. A nossa infância foi média. Nós crescemos com a mãe até os oito anos, eu pelo menos, o meu irmão mais velho, Adenilson, com nove, o Tiquim com dois. Aí perdemos a nossa mãe e fomos morar cada um em um lugar. O Tiquim foi morar com a vizinha, eu fui morar com um tio e o meu outro irmão foi morar com a avó. E nós crescemos assim, até ficarmos maiores e aí depois, quando eu tinha uns doze, treze anos, eu voltei a morar com o meu pai. Meu pai arrumou uma mulher e nós voltamos a morar todo mundo junto. Eu fui para casa primeiro. Nesse meio tempo, meu pai trouxe o Tiquim, que morava do lado, com a vizinha. Depois veio o Adenilson. Aí nós crescemos todo mundo junto, com madrasta. Ela tinha uns seis ou
sete filhos na época, pequenos também e moramos todos juntos. Ela é uma madrasta boa, só que meu pai separou dela e nós continuamos morando com ele até hoje. Eu, com uns treze anos, saí para trabalhar em Belo Horizonte. Trabalhei na casa de um promotor de justiça. Ele tinha um sítio em Goianá e uma vizinha minha trabalhava para eles. No sítio geralmente só ele vinha e a família estava precisando de alguém para levar para Belo Horizonte. Na época, eu precisava de um trabalho e fui ser empregada na casa dele. Eu cozinhava, passava, arrumava tudo da casa dele. Trabalhei lá dois anos, aí voltei para Goianá e continuei trabalhando. Não é que foi ruim a nossa infância, mas vivemos sem mãe, estudei até a quintasérie e parei para trabalhar cedo, quando meu irmão era muito pequeno. Depois que eu vim de Belo Horizonte, eu comecei 43
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a trabalhar em uma fazenda, apanhando café muito tempo. Parei de apanhar o café, comecei a trabalhar em casa de família. Trabalhei uns três, quatro anos com a mesma patroa. Aí quanto eu estava com uns dezoito anos, engravidei do meu primeiro filho.
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Ana Carolina, filha de Maria dos Anjos Fui mãe solteira, durante um tempo; uns nove, dez meses. Depois o pai do meu filho quis assumi-lo, registrou e nós moramos juntos. Ele cresceu, eu tive uma outra menina, que é a Juliana. Aí quando a Juliana tinha um ano e oito meses, o pai dela veio a falecer. Ele tinha um problema de reumatismo, o reumatismo atacou o coração e ele veio a falecer. Eu fiquei sozinha durante um tempo, junto com os meus irmãos e meu pai. Depois de uns dois anos, eu arrumei outro companheiro, pois eu tinha 22 anos, mas vivi com meu pai
e os meus irmãos do mesmo jeito. Depois de cinco anos, eu tive outra filha. Grandes perdas Depois disso, minha avó adoeceu, ficou de cama. Ela ficou viúva e a família do senhor com quem ela morava queria colocá-la no asilo. Como ela é madrasta do meu pai, como o criou, ele não deixou e trouxe-a aqui para casa. Aí nós começamos a cuidar dela, tinha que dar banho porque ela não conseguia tomar banho sozinha. Ela viveu conosco uns seis anos. Nessa época, eu engravidei do João Pedro e continuei na mesma função: cuidava deles e da minha avó, porque eu não tinha condições de pagar alguém pra cuidar. Eu ganhei o João Pedro, passou uns dois anos, aí ela veio a falecer. E nós continuamos morando no mesmo lugar. Com muito sacrifício e com a ajuda dos meus irmãos, nós fizemos um barraco para mim no fundo da casa do meu pai. Era muita confusão, meu pai bebe, joga as coisas na cara da gente. Aí a gente optou por fazer um barraco para mim lá nos fundos. Então eu engravidei da Ana Júlia. Depois que eu tive a Ana Júlia, fiquei meio adoentada, pensei até que eu ia morrer e tudo, só que Deus me ajudou e eu melhorei. Mas aí com dois anos que eu tive a Ana Júlia, meu filho mais velho veio a falecer na barragem da Copasa. Um dia de manhã, a gente estava conversando, falando para não ir mais nadar porque esestava tendo problema ali, o pessoal da polícia esestava indo e falando que ia ter multa. O meu filho falou que não iria nadar naquele dia e acabou indo. O Tiquim esestava trabalhando; meu outro
irmão, Adenilson, já não morava mais em casa; o pai dele esestava pro campo jogando bola e eu, a Juliana e uma colega, em casa, do lado de fora. Comecei a me sentir mal era umas três e meia da tarde. Eu falei com a Juliana e ela disse “ô mãe, não está acontecendo nada”. “Está sim, porque eu não estou me sentindo bem”. Quando foi quatro e meia, eu sentei na rua na porta da minha casa, e vi o carro da polícia subindo. A polícia veio e falou Maria dos Anjos com três de seus filhos que tinha um menino sumido na água. Foi até ninguém. Meu pai arrumou um celular emprestado e um conhecido, o Divino, que falou e eu perguntei se era ligou para ele, porque ele esestava trabalhando, cuidando o meu filho. de cavalo. – Eu não sei, só sei que tem um menino que morreu Nesse meio tempo, os bombeiros chegaram. Eram afogado, só que a gente não sabe explicar quem é. quatro horas da tarde e só foram tirar o corpo do meu filho Demorou, demorou, e eu mandei chamar o Adenilson. nove e meia da noite. Tiraram o meu filho, o levaram para Chamou o corpo de bombeiro, mas demorou para chegar. Juiz de Fora, fizeram o que tem que fazer quando morre Todo mundo se mobilizando, porque ninguém queria alguém e o Adenilson ficou cuidando de tudo. falar para o Tiquim antes sem realmente saber o que E hoje eu vivo sozinha, eu e meus quatro filhos. tinha acontecido. Só que o meu pai ficou muito nervoso Sozinha no meu modo de dizer; não tenho companheiro, e, na época lá em casa só o Tiquim tinha celular, mais 45
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vivi doze anos com a mesma pessoa e depois eu me separei, eu vivo com os meus filhos. Tenho minha família, meu pai e meus irmãos. A gente sobrevive do que dá, do que tem. Se eu não tenho, meu irmão vai me ajudando no que pode, meu pai também. Nas férias passadas, eu vim aqui para o acampamento, para não ficar só lá dentro de casa, porque a mesma casa que eu moro até hoje é a casa em que morava meu filho que faleceu, então eu não gosto de morar lá. Eu prefiro vir para cá, para esquecer um pouco. Um refúgio Gosto de viver aqui no acampamento, penso que se um dia realmente der tudo certo e o meu irmão conseguir as terras aqui na fazenda, eu um dia vou poder morar lá dentro com ele. Eu e os meus filhos. A Juliana não pensa em vir para a fazenda, mas se um dia meu irmão realmente conseguir, eu pretendo estar com ele lá dentro, na luta. Aqui em cima, o único bom do acampamento é que não tem preconceito. Você está em uma comunidade e as pessoas não te olham com cara diferente. A gente se entrosa e vive melhor. Eu aprendi a viver aqui dentro assim, não tendo problema de conversar com ninguém. Vejo essa grande diferença pra nós. Quando eu morava em Belo Horizonte, eu sentia um preconceito grande. Não por parte do promotor, mas por parte da esposa dele sim. Água eu tinha que tomar em copo separado, meu prato era separado, porque empregado e negro não comia na mesma vasilha que eles. Hoje nós podemos falar que nós temos uma vida de rico. Só de a gente ter uma casa própria da gente, com tudo:
televisão, geladeira. Chegar ao final do mês, da semana, e saber que vai receber. Paga as suas contas, se sobrar você faz um churrasco, faz um almoço, chama a companheirada tudo para comer. Você pode ir à loja e comprar uma roupa nova, um sapato novo... Nossa! Hoje eu falo com a minha filha lá em casa, eu na idade dela, com quinze anos, se eu quisesse um chinelo, eu tinha que lutar, trabalhar para ter. Hoje eu falo com os meus filhos: graças a Deus, eles não podem reclamar de nada. Tem escola, mochila, roupa. Na minha casa, em Goianá, eu nem tenho rádio, dia de semana não faz muita diferença. Eu assisto televisão quando dá, porque com as crianças, acaba que eles veem mais desenho e uns filmes que eu não gosto. À noite, quando eu não vou à casa da minha vizinha conversar, aí eu assisto televisão. Mas eu gosto de ouvir música no sábado, que aí eu vou para o baile, e ali eu escuto, danço, brinco na festa de rua. Mas rádio dentro de casa eu não gosto, por isso eu não ligo de estar aqui em cima, porque eu não ligo nem para televisão, nem para rádio. Na minha infância eu não tinha nada disso... Sempre sabia das coisas quando alguém comentava “está acontecendo isso assim e assado”. Na minha casa, até quando a minha mãe era viva, a gente não tinha nem rádio, nem televisão. Anoitecia, era dormir. Eu me sinto feliz em partes, meus filhos estão crescendo, com saúde, mas a parte pior é de ter perdido meu filho. Quando bate a tristeza, a solidão, eu lembro do meu filho. É uma parte morta minha. Mas eu sou feliz também, graças a Deus. Ver os meus outros filhos grandes, cada dia desenvolvendo mais. Ver meus irmãos com saúde, meu pai aos trancos e barrancos.
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ADONIAS TEODORO - TIQUIM 48
“O povo vai ver o que é ficar no campo”
A
minha infância foi igual à dela mesmo. Criado na casa dos outros. Depois, com uns nove anos, eu fui para casa e vivo lá até hoje, com muita dificuldade. Meu pai nunca foi de dar as coisas para a gente: se a gente quisesse, tinha que correr atrás, tanto faz a Dos Anjos, eu ou o meu irmão. Com essas dificuldades eu fui crescendo. Com treze anos eu comecei a trabalhar, depois fiquei um tempo parado e eu acho que com uns dezoito anos eu fui trabalhar em uma fazenda aqui para baixo, no Silvestre. Eu fiquei na fazenda de 2002 até 2005. Primeiro, eu trabalhei de servente de pedreiro, aí acabou o serviço e me chamaram para trabalhar no curral. Como eu faço de tudo, eu fui mexer com gado, tirando leite. Em 2005, eu assinei a carteira com eles, enjoei dessa vida, fiquei lá mais uns seis, sete meses e saí desse serviço. Fui trabalhar na prefeitura, fazendo todo tipo de serviço geral, capinar, roçar, fazer serviço de pedreiro, junto com o meu pai. Fiquei um bom tempo, mas tive uns probleminhas de saúde. Tive problema de pressão e acabei saindo da prefeitura e ficando um tempo encostado por ela. Quando saí desse encostamento, arrumei um serviço para mexer com cavalo. Fiquei lá quase três anos e aí veio o Movimento Sem Terra. Conheci o movimento até meio perturbado. Eu esestava andando a cavalo e a minha irmã me ligou. Eu até falei que tinha que mandar esse povo aí embora, que os sem-terra não podiam ficar em Goianá porque é tudo sem juízo. Isso eu falando com ela por telefone. Dos Anjos: “Eu vi passando no MGTV, à noite,
que um pessoal do MST tinha invadido a fazenda de Sant`Anna. Um caminhão cheio de gente. Eu até falei com meu pai “Ih, pai, chegou o Movimento Sem Terra em Goianá”. “Ih, vai ter matança” e como o Tiquim não tinha chegado do trabalho ainda, eu liguei para ele. “Tem caminhão, tem um monte de gente, a polícia está toda lá” e o meu irmão falou comigo: “Deixa que a gente põe ordem nisso aí”. Aí passou dois dias, ele e um acampado chamado Paquinha vieram ver o que estava acontecendo na fazenda. Chegou, conversou com o pessoal e chegou lá em casa falando que ia participar do movimento. Eu falei “Ah, não vai não. Você vê o que acontece aí para fora? Nego mata nego à foiçada, é revólver, é tudo. Não vai para o movimento”. “Ah, eu vou”. Nessa época ele esestava com a cabeça quente por causa do sobrinho dele. O meu filho morreu em novembro, e em 25 de março movimento chegou. Ele continuou trabalhando na barra, parava do serviço, chegava em casa e voltava pra fazer escolta aqui. Porque lá dentro da fazenda tinha que fazer escolta. Aí juntou ele, o Genésio, Paquinha, Piorra e Geraldinho, que é o irmão do Piorra, são as pessoas que eu lembro que esestavam ali mesmo. Aí todo dia era a mesma coisa, chegava em casa cinco e meia, seis horas, tomava banho. Comia alguma coisa – o dia que comia – porque às vezes não dava tempo, e rapava fora. O pessoal do acampamento fazia comida, ele comia aqui. E ele está até hoje” Tiquim: O Paquinha me chamou. Viemos um dia de bicicleta, estava até chovendo, viemos de tarde, eram mais de cinco horas. Chegamos ali para conversar com o 49
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pessoal, aí Paquinha falou que eu podia entrar e tudo e fomos lá para a barraca do Edilei. Estava até chovendo na barraca, a gente começou a arrumar a barraca dele e ele conversando com a gente lá. E chuva, chuva... Estava difícil! A gente foi perguntando como era o movimento e ele foi explicando, explicando... Eu fui entendendo algumas coisas que ele foi explicando ali, né? E ele falou que se a gente quisesse entrar para o movimento que a gente poderia. Aí no outro dia eu já comecei a montar barraca e bendizer tem três anos que eu estou mexendo com esse movimento. Eu cheguei a estar acampado dentro da Fazenda e participei do despejo. Eu não vivia o dia inteiro na fazenda, eu trabalhava e vinha na parte da tarde, mas a realidade lá dentro era difícil. A concepção lá dentro era a seguinte: eles trouxeram muita gente que morava na rua e quase todo dia a gente tinha um problema com o pessoal que esestava lá. Quando eu cheguei, tinha bastante família, mais ou menos umas vinte. O povo foi indo embora, foi indo embora, chegaram a ficar duas famílias. A pessoa vai perdendo a esperança. A pessoa ficar vivendo embaixo de um barraco de lona é difícil, né? O pessoal foi perdendo a esperança e foi quase todo embora. Eu, Paquinha, Genésio, Fiinho, Piorra e uns outros que vinham quase todos os dias. Aí à noite o acampamento esestava cheio, mas durante o dia ficava só com a dona Brazilina, o menino dela e o Zé Curubino, que ficava o dia inteiro. Já teve dia de eu vir aqui, parar mais cedo do serviço e vir para cá e só estar a Brazilina, porque o Curubino tinha machucado o pé. Tinha dia de eu vir e só estar ela ali sozinha.
Passamos uma fase bem ruim, de achar que ia acabar o acampamento. Ocorreu a conversa que ia ter o despejo, duas vezes. Não conseguiram despejar. Na terceira vez, a gente foi despejado. Agora aqui do lado de fora da fazenda tem mais gente. Pode ver que todo dia tem um movimentozinho aqui dentro. Mas lá dentro era complicado de ficar. O povo correu mais porque eles ficaram com medo de polícia. Igual fala, quando tem esses outros despejos por aí, sempre dá uma confusão com polícia, né? Uma coisa e outra, e o pessoal ficou com medo. Falaram que iam despejar, aí o pessoal começou a ir embora. Só ficamos nós mesmo. Eu, Paquinha, Piorra, a dona Margarida, Genésio, Gilberto, mais uns outros aí. Depois que foi chegando gente para cá. E é essa vidinha que a gente leva aqui. Até então eu não tinha contado para o meu patrão que eu estava aqui. Não por medo, porque eu nunca tive medo de patrão. Patrão para mim se ele me mandar, eu largo o serviço. Começar a me encher o saco... Pode ser o serviço que for. O meu patrão é advogado do pessoal da fazenda. Ele e o filho dele são advogados dos donos. Aí um dia, foi preciso ir no fórum em Rio Novo, eu fui também. Nesse dia, acho que fui eu, mais uns três ou quatro. E chegou lá, ele esestava no fórum e me viu vestido com a camisa do sem-terra e já deu aquela olhada, né? Deu aquela balançada, mas não falou nada. E eu continuei. No outro dia ele falou “Mas, você está misturado com aquele povo?”; “Tô e eu não vou sair”. Aí nós começamos a discutir, porque a gente brigava muito. Era lá no serviço, em qualquer lugar que a gente se encontrasse e ele me enchesse o saco, a gente brigava. Aí ele me perguntou se eu não queria sair disso
aqui, porque não era vida. E eu falei com ele: “Olha, eu até saio; se o senhor me der um alqueire da terra que o senhor tem, eu saio de lá. Isso para mim não é o problema. Eu posso sair de lá, mas deixar de ajudá-los, não. Eu vou sempre ajudá-los.” E foi rolando isso, foi rolando. Aí o Edilei ficou sabendo também que eu trabalhava para o advogado e perdeu a confiança em mim. Se eles fossem fazer uma reunião e eu chegasse, eles paravam de falar. “Fulano chegou aí, está colhendo as coisas e levando para o advogado”. E um dia o Paquinha chegou para o Edilei e falou “Pode confiar no menino, porque ele não faz isso não. Dou certeza para você, dou a minha palavra que ele não faz isso.” E fui continuando igual estou até hoje, fui brigando até o patrão enfezar e me mandar embora. Mas depois disso eu ainda fiquei lá um ano. Até a minha irmã e todo mundo lá em casa costuma falar que eu entrar nesse movimento foi bom, porque eu era um moleque muito brigão. Se eu fosse pra rua, tinha que ter uma confusão toda vez que eu saísse. E depois que eu entrei no movimento, nem em rua mais eu vou. Fico mais aqui. Às vezes tem festa, eu não vou e a minha concepção é este movimento. É eu chegar um dia e ver um pedaço de terra, um lote que seja e poder falar “Não, isso aqui eu consegui através de luta no movimento.” Eu não tenho aquela ambição de ficar rico, eu tenho uma ambição de dizer assim, “Ah, hoje eu não vou levantar, eu não vou trabalhar.” A minha ambição é essa: de viver mais ou menos. Rico eu nunca pensei em ficar. Eu até ultimamente nem estou tendo muita ideia do que fazer quando receber a terra, porque eles não me
deixam parar aqui no acampamento. É uma luta aqui, outra ali, eu estou sempre viajando. Mas eu tenho a concepção assim, de que o dia que a gente receber o pedaço de terra, de mexer com uma porção de coisas, mesmo com vaca de leite. Plantar umas bananas, mandioca, plantar uns milhos, ter umas galinhas, uns porcos, uns boizinhos no pasto. É isso que eu quero ter. Conquistando confiança Eu faço parte da brigada. Eu costumo falar que pra ter a confiança dos outros é só mostrando o que a gente é, né? Em 2011, eles tinham um curso pra poder fazer no Sul de Minas, na Fazenda Arandinópolis, lá onde é o acampamento agora, o Primeiro do Sul. Não tinha ninguém para ir e eu ainda esestava trabalhando pro meu ex-patrão. Aí eles perguntaram quem ia fazer o curso e ninguém se prontificou de ir. Aí eu peguei e falei que se quisessem, eu ia fazer. Aí levaram até o Edilei e ele perguntou se não tinha outra pessoa. Aí o pessoal falou que não tinha problema, que eu poderia ir. Então o curso era assim: eu saía daqui na quarta-feira à noite, ficava quinta, sexta, sábado e domingo. E no domingo à noite eu retornava pra casa. E isso aí foi cinco meses direto. Então eu perdia esse monte de dia de serviço. E ali fui conquistando a confiança do Edilei. Esse curso foi sindical, a gente estudou de tudo um pouquinho. A gente foi estudar um pouco da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e outras coisas do movimento. Eu frequentei a escola até a terceira série, também era um moleque rebelde e não gosestava de escola. Nunca fui de gostar de escola não. Eu senti um pouco de dificuldade 51
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Adonias da Silva Teodoro (Tiquim), 29 no curso, mas com jeitinho a gente... porque esses cursos nosso aí, a gente quase num lê. São mais cursos assim, eles falar e dar os livros. Igual tem outros aí que eu trouxe de lá, umas pastas, apostilas que a gente faz em casa, estuda em casa. Os cursos são mais assim... Igual esse que eu fiz agora de dirigente, eu fiquei 45 dias em São Paulo, porque, no futuro, eu posso ser um dirigente. Não sei né? Às vezes, eu não vou querer, mas ir fazer o curso eu fui. A responsabilidade do dirigente é grande, é correr atrás de recurso pro acampamento, vistoria das terras junto com o IN-
CRA, o recurso pra terra e a responsabilidade de procurar latifúndio também. Vamos supor, teve essa fazenda aqui, aí veio o Tomás, veio o Edilei. Só que o Tomás ainda não era dirigente ainda. Eles vieram e acharam este latifúndio com os outros camaradas. A responsabilidade de um dirigente é essa. Coordenar o povo em geral, trazer notícia boa ou ruim, e a responsabilidade com o povo. Ultimamente não está tendo tanta responsabilidade com o povo, mas é isso aí que o dirigente faz.
O braço direito Eu era coordenador do núcleo de segunda que acabou mudando pra quarta. Mas como eu fui fazer esse curso, eu acabei largando. Eu era coordenador junto com o Genésio, então nas terças-feiras tinha reunião da coordenação geral. A gente passava os informes que tinha pra poder passar. E o nosso núcleo era o último núcleo a saber das informações porque o nosso núcleo era segunda, então a gente tinha que passar na outra segunda o que foi falado na reunião da terça anterior. Essa aí que é a função do coordenador, quando tiver uma informação, repassar. As notícias que têm, quem costuma
passar pra mim é a outra pessoa. Quando tem alguma coisa que ela acha que deve me falar, ela me fala. Porque nem tudo a gente pode passar. Tem coisa da fazenda que eu sei e eu não posso chegar no meio do povo aqui e falar que está acontecendo isso ou aquilo. Se você der uma notícia mais ou menos boa aqui, essa notícia corre o mundo, porque fala com um, que fala com o outro,que fala com outro... Então tem certas coisas aqui que ela não me fala. Aí eu fico sabendo quando vão todos os coordenadores pra reunião. Amanhã vai ter uma reunião em Juiz de Fora, aí lá eles falam tudo que tem que falar. Maria dos Anjos, irritada com o rumo da conversa, interrompe Tiquim... O meu irmão não gosta de falar não, mas para eles, querendo ou não, aqui dentro do acampamento ele é o braço direito. Se tem uma viagem, ele vai. Qualquer tipo de reunião fora do acampamento, eles fazem questão que ele esteja. Ele nem sabia que ele ia viajar amanhã, para essa reunião em Juiz de Fora. Chegaram na quarta-feira e falaram “ó, sábado nós temos reunião” “sábado eu não vou poder”, “você vai poder”. Tiquim: “é, eu não gosto muito de chegar nessas partes”. Costuma ser assim, eles tão fazendo as coisas meio forçadas, mas eu não gosto muito de falar. Maria dos Anjos: igual quando ele viajava pra Sul de Minas, eu não sabia. Fiquei sabendo depois, até discuti com uma companheira. Gosto muito dela, mas cheguei a falar com ela que “se acontecesse alguma coisa que, o que acontecer com ele, vai acontecer contigo também”. Porque chegaram em mim e falaram que a área que o meu irmão estava andando era uma área de risco, que não podia passar
porque o pessoal não gosestava do pessoal do sem-terra. Tiquim: É uma área de conflito. Não tem aquele conflito armado, mas pra chegar no Primeiro do Sul, nós temos que passar em frente a uma outra fazenda que estava em processo com o pessoal do Movimento Sem Terra porque eles ocuparam em uma época e ficaram só em uma parte dela. Essa fazenda é até de usina de açúcar e eles ocuparam. E eu fiquei fazendo esse curso e teve um dia que eu tive que ir a pé. Eu cheguei lá em Campo do Meio e não tinha condução pra me levar até lá. E ela fica 14 quilômetros longe do Campo do Meio. Eu fui a pé e já estava escurecendo. Com fome, com sede, cansado... Eu cheguei a comentar isso com a minha irmã depois, mas não falei o riso que eu corri. De ser morto, alguma coisa assim. Eu nem sei quem falou com ela. Ela não tá errada, mas, para mim, não tinha problema nenhum. Eu passei em frente a essa fazenda já estava escuro já, era umas seis e meia, quase sete horas da noite. E lá ficava uns guarda lá dentro pro pessoal não entrar de novo. Mas aí vieram trazer a picuinha pra minha irmã. Maria dos Anjos: Eu não discuti com ela, eu só falei, porque essa companheira que trazia as notícias da viagem. “Ô Dos Anjos, fala com Tiquim que tantas horas, a van vai pegar ele dentro de Belo Horizonte. Na praça da estação”. Tudo bem, eu dou o recado, tantas horas ele tem que estar lá. Tudo bem. E nesse dia ela me ligou falando que a van ia pegar ele às dez horas da manhã e acabou que a van pegou ele dez horas da noite. Ele foi sozinho. Foi aonde eu descobri. Comentei com uma acampada e descobri que ele estava andando sozinho e corria risco. Falei com ela “ó, só te 53
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falo uma coisa, o que acontecer com o meu irmão lá, se vier aqui na minha casa falar, vai ser pior. Porque se o meu irmão aparecer aqui dentro do caixão, você vai enterrar junto com ele, porque eu te mato também”. “Não, dos Anjos”. “Me falaram que ele corre risco sim e se acontecer isso... Eu já perdi mãe, já perdi marido, já perdi filho, já perdi avó, não quero perder meu irmão agora. Se eu perco o meu irmão nessas viagens aí, a que chegar pra me avisar, vai enterrar junto com ele que eu mato. “Não, não tem nada disso”. Hoje ela já conversa comigo, antes ela nem olhava na minha cara, ficou uns três meses. Agora não. ela engravidou, ligou falando que estava grávida de gêmeos, teve aqui no natal “olha dos Anjos, meu barrigão... Arruma as roupinha pra mim”. Hoje nós já conversamos, mas qualquer um dos maiorais aí, meu irmão faz viagem e eu falo “vai com Deus e Nossa Senhora te acompanha”, mas se acontecer qualquer coisa, isso aí ele tá ciente, qualquer uma delas que chegar na minha casa, ou que chegar no enterro, se for o caso, pra poder falar, vai enterrar uma junto com ele. Ele não tem medo, mas eu tenho “pô, vai acontecer alguma coisa”. Eu sou a irmã mais velha, nós não tivemos mãe, aprendemos a sobreviver, somos gente boa porque Deus quer que a gente seja, porque tudo que nós sabemos, quem ensinou foi a vida. Ser gente boa, ninguém lá em casa tem hábito de roubar, sabe, essa pessoa boa que nós somos, quem ensinou foi a vida. Então eu acho que ninguém tinha que esconder o que está acontecendo, tinha que falar a verdade e não fala. Tiquim: Elas não escondem as coisas de mim, mas
tem certas coisas que eu deixo morrer por ali, não falo pra minha irmã. Mas agora não, tudo que acontece no movimento eu falo. Eu ando explicando ela tudo que acontece. Olha, eu saio pra marcha, pode acontecer isso, pode acontecer aquilo. Posso ir preso... Eu fico mais na estrada do que em casa, pra falar verdade. No ano passado mesmo, em 2011 e 2012, eu comecei a viajar. Brasília, Belo Horizonte, pedágio em Perdões... Abrindo pedágio A história do pedágio ela foi meio perturbada. Porque assim, falaram que a gente ia pro INCRA, em Belo Horizonte. Eu já estava meio informado que a gente não ia pro INCRA, porque quando a gente vai pra lá, a gente não leva nada, não leva comida igual levou, não leva água... Quando saímos daqui, a gente levou água, comida, ferramenta, foi tudo levado. Eu achava que a gente ia fazer ocupação em fazenda. Quando a gente chegou na parada, eu vi que a gente não estava indo para Belo Horizonte. Eu coloquei o pescoço do lado de fora do ônibus e vi o carro da brigada. Então eu sabia que a gente ia ou pro Sul de Minas ou pra uma cidade mais perto. Aí um dirigente entrou no ônibus pra conversar com a companheirada. Foi a hora que deu a confusão dentro do ônibus. “Vocês tão disposto da lutar pela terra?” “Estamos”. “Então a gente não vai mais pro INCRA, a gente vai para Perdões, para abrir o pedágio”. Foi aquela perturbância do povo, que chamou o pessoal de mentiroso, porque falou que ia pro INCRA e chegou no meio do caminho e teve um desvio. E foi uma
brigaiada danada, a gente demorou quase uma hora pra sair desse lugar que ninguém queria ir. O Piorra foi lá no fundo perguntar quem estava de acordo de ir lá para o pedágio. E estava eu, o Paquinha e mais uns outros sentados assim. Eu peguei e falei “não, uai, se a gente veio até aqui, a gente vai se embora, der o que der daqui pra frente...” O Piorra falou assim “é porque você não trouxe os seus sobrinhos”. “Eu não trouxe eles, Piorra, por uma coisa, eles estão estudando, mas se eles não estivessem estudando, eles estavam comigo aqui. Eles e a minha irmã”. “E se der um tiroteio?”. “ Não, o negócio é o seguinte, se der um tiroteio, a sua filha, ela não morre, porque eu pego ela no colo e fico com ela. Eu ponho o peito na frente dela. Então, se vocês não quiserem ir, vocês arrumam um carro aqui e vocês voltam pra trás. E quem quer ir, segue o caminho. Nesse meio tempo, veio o Paquinha também falando que não tinha esse negócio de ninguém fazer isso ou fazer aquilo. E dali nós seguimos pra ir para o pedágio. Entrou outro dirigente falando que a gente ia fazer uma luta no pedágio porque bater no INCRA não estava adiantando. “Bater no INCRA é bater em cachorro morto”. Você vai ao INCRA, vai ao INCRA... e nada. E você ir para um abrir um pedágio, o prejuízo vai pra quem? Para o governo, não é isso? Porque você cobra uma taxa. A gente foi para um pedágio que passava muita carreta e mais caminhões. E até que foi uma luta bonita, não teve polícia. Lá esestavam com dois carros de polícia, depois ficou um carro só. A gente chegou oito horas da manhã, saímos de lá seis da noite. E o pedágio aberto esse horário
todo. Tiveram mais uns probleminhas, porque a polícia falou para a gente sair e não saímos, então eles foram multando os ônibus todinhos. Multa pesada. O povo falou que se a multa fosse seguir, que a gente ia abrir o outro lado do pedágio, porque a gente estava de um lado só, do outro lado não esestava aberto. Tinham mais pessoas do Movimento dos Sem Terra e o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) também, tinham alguns da Via Campesina, mas uns poucos. A massa maior mesmo foi a gente. E nisso nós viemos embora. Nas nossas lutas, a Globo é quem bate mais no semterra. Se for ali no asfalto e botar fogo em um pneu, dois pneus, pode ter três sem-terra que ela fala que tinha milhares. Então a Globo é contra o movimento semterra. A todo lugar que a gente vai eles estão, quando a gente acaba de chegar pra fazer uma ação dali uns cinco minutinhos a Globo está chegando. Sem arrependimentos Quando eu entrei para o movimento eu deixei tudo. Teve um tempo que eu estava cuidando só de movimento, não estava trabalhando para ninguém. Vendi tudo que eu tinha, vendi porco, vendi galinha, acabei com tudo que eu tinha porque não dava tempo de eu fazer as duas coisas. Eu tinha um sítio e eu não tinha tempo de cuidar do sítio, nem das criações. Quando eu tinha que viajar, eu tinha que pedir a minha irmã para ficar no sítio e estava ficando difícil para ela também, porque ficava longe de Goianá. E aí foi pesando, pesando, até o momento de acabar com 55
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tudo que eu tinha. A gente tinha uma vida até bem estabilizada, vendia um leitão, vendia uma galinha... Nunca faltava um dinheiro em casa, mas eu vendi tudo para morar aqui. Às vezes eu costumo querer desanimar. Porque a dificuldade que a gente passa, morar em uma barraca de lona, ficar aqui a gente não tem uma televisão, não tem um rádio, eu já tomo banho frio mesmo, mas se quiser tomar um banho quente, tem que esquentar uma água. Buscar água no poço. Hoje em dia que tem esse motor aí, mas a gente buscava água no braço. Depois que foram chegando os outros, mas no começo tudo que fazia aqui era eu, o Gilberto e o Celinho. Era uma dificuldade imensa que a gente tinha para fazer as coisas aqui. Todas as barracas que tem aí, eu, com a minha mão quebrada, ajudei fazer. A minha barraca foi a última a ser feita. Eu tenho essa barraca aqui não tem nem um ano. Eu dormia na barraca de um e de outro. Depois que a minha irmã falou que se tivesse uma barraca ela começava a vir que eu fiz essa barraca aqui. A minha vida hoje aqui no acampamento mudou de certa forma. Igual eu falo, eu era muito rebelde em rua. Eu vir para cá mudou a minha rebeldia. Nesse ponto foi bom. Agora dizer assim que a minha vida melhorou do que eu tinha para hoje, eu acho que ela deu uma caída. Porque eu nunca andei sem dinheiro, eu tinha um dinheiro guardado em casa e hoje é uma dificuldade tem hora, até pra comprar um chinelo pra mim. Para mim, não para os meus sobrinhos. De vez em quando eu fico na dificuldade porque, igual eu fiquei 45 dias em São Paulo, sem dinheiro.
O dinheiro meu estava contado. Se eu gastasse certa quantia, eu ia ficar sem dinheiro para comer na volta e tinha tudo isso. Mas não me arrependo. Igual todo mundo fala ai que eu deixei tudo pra entrar no movimento. Hoje está ruim, mas amanhã pode melhorar, eu dou uma balanceada, mas eu vou seguir até o final. Eu acho que eu vou conseguir conquistar essa terra, mas para eu trabalhar nela vai ser meio difícil; ou tem que ser minha irmã ou tem que ser meu outro irmão, porque eu não vou ter condições de tocar ela, por causa da militância. A militância não tem hora de sair de casa, nem hora de chegar. A experiência da militância é uma experiência boa porque a gente conhece muita gente. Gente do mundo inteiro. E eu consigo conviver fácil no meio do povo. Eu costumo sair daqui para ir para uma luta sozinho, raramente eu encontro com uma pessoa que eu já vi. Geralmente sou eu sozinho, mas aí a hora que chega, de repente, em questão de minutos você já fez uma amizade e através daquela amizade você faz outra e para mim é bom. Eu acho que eu vou me virando até a hora que der. Já pensei umas três ou quatro vezes desanimar, porque eu estava viajando de coração, de boa vontade, perdendo isso, perdendo aquilo. E o pessoal aqui no acampamento começou a falar que eu esestava ganhando dinheiro para viajar, que eu não ia largar tudo meu para poder viajar sem ganhar nada. E o militante não tem ajuda de custo; para ele chegar a ter uma ajuda de custo, demora. Eu já cansei de sair daqui para Belo Horizonte com dinheiro por conta da passagem, e ficar lá fazendo luta comendo apenas aqueles marmitex, bebendo a água que tinha, sem poder comer mais nada.
Já cansei de fazer isso. E não reclamo. Sempre fui rindo, brincando, naquela alegria, porque eu fico olhando a desigualdade que tem no mundo. Uns tem muito, outros não tem nada, outros muito menos. E latifundiário aí. A força da revolta Olha como é que está essa fazenda, mais de 4500 hectares, tudo aí e ninguém faz nada e a gente aqui na beira dessa BR. Isso vai revoltando a gente e vai dando mais Tiquim (ao centro), no Encontro Sem Terrinha de 2011 força para a gente lutar por uma coisa que a gente crê que vai dar certo, são esses os ideais de todo mundo. toda era plantada de café. Ela tinha muita produtividade, Eu conheço essa fazenda toda, desde essa porteira tinha pouco gado leiteiro, era mais café do que pastagem até a última. Eu e um colega meu que mora em Goianá, igual hoje. Eu já ajudei a limpar palha de milho aí dentro, porque o avô dele morava aí dentro, bendizer foi nascido mas mesmo assim era uma pessoa só que planestava e de aí dentro. Ele é até bisavô da minha sobrinha mais velha. meia com a fazenda. Eu a conheço desse jeito aí tem muitos Então a gente sempre vinha na fazenda, para a gente anos, sem produtividade nenhuma. O pessoal que mora andar. Realmente por esses anos todos que eu conheço dentro dessa fazenda vai fazer feira na rua. Eles compram essa fazenda ela é improdutiva. No tempo do avô desse couve, compram alface, tomate, cebolinha... Compram meu camarada, o senhor Marcos Bento, essa fazenda quase tudo na rua. Aí dentro nem leite direito eles tiram. 57
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Eu hoje não consigo mais trabalhar direito em uma fábrica. Eu trabalho, chego no serviço e gosto de trabalhar sem morcegar. Mas eu vou vendo aquele rendimento de serviço e a gente ganhar pouco e o dono do serviço ganhar demais. Eu trabalho na olaria, acordo seis, seis e meia. Mas eu não trabalho ali direto. Eu entrei lá segunda-feira de novo. Eles pagam a diária de 35 reais. A gente pega das 7h às 11h, 11h a gente almoça, e depois de 12h às 17h, isso de segunda a sexta. O milheiro de lajota 20 por 20 é R$380, o de 20 por 30 é R$620. São uns 11 trabalhadores. A gente faz 2000 a 3000 lajotas por hora. Lajota é uma coisa que vende todos os dias. Cada caminhão de lajota que sai ele ganha uns 30 mil reais. E a gente ganha muito pouco para isso. Meio dia de serviço que a gente faz está por conta. O resto da semana é lucro. Eu pretendo ver meus sobrinhos continuarem fazendo isso que venho fazendo. Pretendo que eles sigam o mesmo caminho no movimento. Não parem não. Eu acho que eu não abandono o movimento sem-terra. De vez em quando dá umas crises de querer ir embora, mas é só na hora. Chega um e conversa e nós vamos esquecendo daquilo. Igual eu falo com todo mundo: lute pelo povo, mas não
confie no povo. O povo gosta das coisas fáceis, as coisas difíceis são para poucos. Eu falo isso para esse pessoal e eles falam: “Não, tem que confiar nas pessoas.” Eu brigo por eles, marcho, luto o que for preciso, mas confiar... Eu não confio não. Porque eu sei que na hora que o bicho pegar, muitos correm. Eu não, eu vou até o final, qualquer coisa que mandar fazer, nós vamos nos virando e vamos andando e fazendo. Quando a gente entrar na Fazenda é que a gente vai ver quem é sem-terra e quem não é. Porque aí a corda da viola afina. É você começar a trabalhar no campo que você sabe quem quer e quem não quer. Isso aí eu sei direitinho. Só no conversar com as pessoas que você sabe quem vai ficar aqui e quem não vai. Na hora que a gente cair dentro da Fazenda para trabalhar, tem um pessoal que vai desanimar. A gente vai viver debaixo de barraca de lona lá dentro. Foi falado que o pessoal vai ter que passar a maior parte do tempo lá dentro. E lá que a gente vai ver quem é quem. Esses que estão morando aqui, eu sei que vão ficar, mas os que estão morando dentro da cidade... Na hora que a gente cair lá dentro, vai mudar a realidade da vida. Aí que o povo vai ver o que é ficar no campo.
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SEBASTIÃO ANTONELE
“Meu orgulho é isso: eu quero ajudar as pessoas”
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“
Seu Piorra é um autêntico homem da roça que mora na cidade. Vive e trabalha, por precisão, mas só se dá por satisfeito quando está no meio do mato. Se tivesse formas de sobreviver enquanto espera liberação das terras do acampamento, ficaria 24h no Denis Gonçalves, sem sentir saudade nenhuma do conforto urbano. Com o coração simples, abre as portas da sua casa e da sua vida para que a gente possa entrar. Mostra, com grande orgulho, tudo aquilo que construiu, com as próprias mãos e com a sabedoria de quem sabe tratar com respeito a terra que garante o sustento da família. Sem formalidades, transparece valores, vestimentas e modos de ser coerentes ao seu lugar de fala. Se tiver de ficar bravo fica, se tiver de ser gentil é também. Dono de um conhecimento adquirido pela experiência, Piorra transborda a riqueza popular, contando “causos” sob a perspectiva do homem do campo. Dá uma verdadeira aula tal como não se vê, muitas vezes, nos livros e nas salas de aula...
O
meu nome é Sebastião, mas todo mundo me conhece por Piorra. Sou da família dos Antonele. A minha avó, mãe do meu pai, era italiana. Eles vieram da Itália para o Alto da Fortaleza de Sant´Anna, no município de Chácara. A fazenda Fortaleza é muito grande, então cada lugar tem um nome, mas é tudo uma fazenda só. O meu pai encontrou a minha mãe e, de repente, eles se casaram e ficaram morando no Alto da Serra. Dali eles foram para a Fazenda Divisão, no sítio de um senhor chamado Inácio. Era muito grande o sítio do homem! Eles foram ficando lá e passaram muito aperto. Hoje ainda existe a casa que fizeram para eles em cima de uma laje de pedra. Minha mãe teve os dois primeiros filhos nessa casa e depois de sete anos ela perdeu os dois, porque eles apanharam muita friagem. Ela forrava o fundo do quintal com pedaço de tábua, mas mesmo assim eles pe-
gavam muita friagem. Aconteceram uns problemas e eles acabaram morrendo. Depois disso, ela teve mais quatro filhos e eles desceram, porque lá a dificuldade era demais. Meu pai veio caçar colocação aqui embaixo na Fazenda de Sant`Anna. O encarregado sabia a fama dos Antonele e falou com o dono da Fazenda, o Lair Tostes, que ele nem precisava conhecer a pessoa não. Se meu pai puxasse um só dedo do meu avô, ele nem precisava fazer mais nada, o seu Lair já podia dar colocação. O dono da fazenda falou que era então para ele arrumar casa lá nas lavouras, já que aqui antes tudo era lavoura. Eles explicaram para o meu pai que tinha um beco de café no meio de uma grota e meu pai saiu para procurar essa casa na parte de baixo, já que ele conhecia apenas a área da fazenda com divisão com Chácara. Quando meu pai veio procurar a casa, ele encontrou com o compadre dele, que perguntou o que ele estava fazendo por ali. 61
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– Eu estou caçando uma acomodação, eles me mandaram procurar uma casa aqui. – Ô, Beto, pelo amor de Deus, não vai nessa casa não. Não entre nessa casa porque era de uma família toda com tuberculose. Tudo doente! Essa casa está abandonada. Dali ele pegou o trilho e foi embora para casa no Alto da Serra, onde ele tava morando antes. Meu pai continuou passando muita dificuldade. Minha mãe chegou a levar um caldeirão de fubá quando ele trabalhava no beco de café, já que lá eles não tinham fartura e comiam muito era mingau de fubá. Ele estava morto de fome e muito fraco de saúde, precisou segurar no pé de café para não cair. Um Bom Jardim para florescer a família Um dia um encarregado da fazenda, que o conhecia, falou que ia arrumar uma colocação para ele na fazenda do Bom Jardim. Meu pai ficou muito grato com isso, porque ele sempre foi uma pessoa muito honesta, nunca gostou de mexer com nada de ninguém. Depois de três dias, chegou o carro de mudança lá. Ele entrou naquele carro com minha mãe e as crianças. Não coube tudo de mudança para a Fazenda Bom Jardim, ele trouxe um pouco dos cacarecos velhos dele e voltou para buscar um cado de madeira, mas já tinham catado as ferramentas dele tudo. Foi no Bom Jardim que eu fui nascido e criado. Meu pai já foi direto tocar jardim em volta da fazenda, porque lá era muito caprichoso. Foi lá que meu pai fez a família dele crescer: minha mãe foi mãe de quinze filhos. A gente ficou ali na fazenda lutando, todo mundo trabalhando, desde quando era criança. A filharada toda, mesmo sendo
criança, ajudava a fazer horta. O pai levava todos nós para trabalhar na roça. Ele entrava muito na mata para tirar taquara, porque ele mexia muito com tecido de balaio, cesta, esteira para carro. Fazia muito e eu o ajudava. Eu sempre vivi com ele dentro da mata... Tinha muita mata e ainda hoje tem muita mata. Na fazenda também tinha muita fartura, porque lá era liberado o plantio, não era lavoura de café como no lugar anterior. Plantava muito e tinha um pomar muito rico: era muita banana natural, muita fruta do pasto que a gente colhia, pé de tangerina, pé de goiaba. A gente não ficava sem uma fruta natural madurando no pé. Saudosismo Hoje a gente vai ao mercado e é tudo caro e tudo com veneno. A gente está comprando um tomate bonito, grande, mas cheio de veneno. Então nós já estamos trabalhando envenenados. “Ah, a pessoa está agitada”, mas está agitada de quê? É doença que está vindo. A gente fica doído de ver o tempo lá trás e ver hoje. Tinha muita dificuldade, mas era natural. O arrozal era plantado, colhido, secado. A gente socava arroz no pilão. Colhia e comia tudo natural. Hoje você compra um arroz, joga na panela e tem arroz aí que nem precisa lavar. Só jogar na panela e já quase comer. Isso é veneno que vem tudo cheio de tóxico. Hoje então é muita diferença do modo de 35 a 40 anos atrás. Toda vida na roça, a gente praticamente viveu no escuro, porque não podia ficar luz de lamparina até tarde acesa, senão a querosene acabava. Então a gente ficava ali naquela peleja. Quando ia fazer um baile, era tudo iluminado com tocha de bambu com querosene. O nosso
lampião era esse, o baile amanhecia o dia com aquelas tochas. Com isso, a gente foi apanhando o pique da roça. Se a gente não tivesse aguentando sentir dor de cabeça, a gente não ia ao médico, pois tinha um benzedor na roça e ele “virava” qualquer dor de cabeça. Se a gente destroncasse um dedo, não precisava ir a médico, tinha o benzedor que benzia, cozia e chegava ao lugar. Então a gente foi lidando dentro daquele escuro. E aquele escuro tira o medo da gente. Nossos filhos, se a gente contar o que a gente já passou dentro da roça, ficam rindo dos momentos. Porque hoje é tênis bonito no pé, roupa bonita no corpo, televisão, computador, celular... Na nossa época nós não tivemos nada disso. Eu me lembro que meu cunhado teve que vender seis sacos de feijão, fora o milho que ele plantou, para comprar o primeiro rádio dele. Era uma dificuldade danada para ver reportagem de fora. A gente também não caçava reportagem que dava no rádio, a gente caçava era música caipira. Ficava com aquele radinho lá, gastava as pilhas e era outro trabalho para buscar as pilhas! Quando dava um defeito, tinha que trazer em Goianá para consertar esse rádio. E a gente na roça ainda teve isso, mas televisão a gente não teve. Só quando eu estava vindo embora para a cidade é que chegou luz na fazenda e eu já podia ter uma televisão. Nesses altos desses sítios tudo tem luz hoje, mas na nossa época não tinha. Se naquela época, uns 40 anos atrás, tivesse luz, a roça não acabava, estava funcionando hoje. O povo veio para cidade para viver na claridade e também em busca de emprego.
A gente armava arapuca para pegar passarinho para comer. Nossa arapuca era feita com um tecido de taquara e com embira de bananeira, porque não havia esse arame cozido de hoje para a gente amarrar. Havia, mas a gente não tinha dinheiro para comprar. Como a gente também não tinha dinheiro para comprar uma carne, a gente pegava passarinho; a arapuca ficava armada até tarde. Hoje a gente tem alegria de ver o passarinho cantando: a gente levanta de manhã, um Merlo está cantando, um Canário está cantando, então é alegria. Mas nós já matamos passarinho para comer, era o nosso churrasquinho. Uma Pomba Juriti, uma Trocau, um Inhambu a gente pegava na arapuca. Até tinha galinha no terreiro, mas o problema era a dificuldade no trato das galinhas. A gente jogava uns carocinhos de milho lá, porque a gente não podia gastar o milho que era para despesa. Milho era para fazer o angu, já que era o que mais a gente gastava. O que enchia o nosso caldeirão era o angu. Se a gente passasse em um lado da estrada e viesse uma pessoa mais velha do outro, a gente atravessava e tomava a bênção. Tinha que tomar a bênção, respeitar as pessoas. Se uma filha engravidasse dentro de casa, os pais colocavam para fora de casa. Não ficava com ela dentro de casa porque estava quebrando a família, estava desobedecendo ao pai e à mãe. Então as coisas eram difíceis. Não havia droga naquela época nossa, a gente nem ouvia falar em droga. Não ouvia falar em homossexual, não via. Não ouvia falar disso lá na roça, se falasse a gente tomava tapa na boca. Hoje a gente vê aí, tudo para tudo quanto é lado. Então hoje as coisas são muito difíceis de lidar! Ficou uma 63
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parte boa, mas também uma parte ruim. E a gente vai cada vez mais vivendo e vai aprendendo. Hoje, em qualquer lugar você está correndo risco, a dificuldade está demais. Podem assaltar sua casa, mesmo você não tendo nada, nem dinheiro, nem nada. Eles chegam te bagunçando, atirando, amarrando. E na nossa época não tinha nada disso. Se chegasse um doido, o dono da fazenda tinha os capatazes dele e mandava tirar, sumir com ele. Amarrado, de um jeito ou de outro tinha que sair, mas não fazia bagunça dentro das fazendas. Virando gente grande Foi nessa criação que a gente foi vivendo. O seu Libério, dono da fazenda, morreu e ficou à frente do lugar o filho dele, um homem muito bom. Ele nos mudou de casa e ficamos mais perto da fazenda. Nessa época eu já era moleque, tinha sete anos e já ia buscar leite no curral. O dono da fazenda chamou meu pai e falou para ele dar um servicinho para mim, para eu ficar pastorando os bezerros, pois já era um troco ganho. Com oito anos, eu já estava no curral ajudando a amarrar um bezerro. Com onze anos, eu sabia o que era o peito de uma vaca. Fiz o acompanhamento com o retireiro e ele foi me ensinando. Então nós passamos a trabalhar em curral, só mexendo com vaca de leite. Depois fui com os campeiros para o pasto e foi só aumentando a quantidade de trabalho. E a minha família praticamente acabou de ser criada ali na Fazenda Bom Jardim, na divisão com a Fazenda Fortaleza de Sant`Anna. Eu cheguei ir para a escola na faixa de uns onze, doze
anos. Só que a dificuldade na roça era tanta que a gente via o pai e a mãe da gente buscando banana ou inhame naquelas grotas para cozinhar para filho... Ralando um milho na mão para fazer um angu ou um mingau... Quando a gente vai vendo a tristeza batendo, a gente vai vendo mãe e pai naquele sofrimento, a gente acaba largando tudo pro alto. E eu larguei a escola. Pai esforçando, mãe esforçando. Eu falei: “Não, eu vou ficar ajudando, vou plantar um inhame, vou plantar um milho, vou plantar um feijão, vou plantar alguma coisa. Eu não vou para a escola”. O dono da fazenda esforçou comigo para eu estudar, mas eu larguei o estudo e nunca mais voltei. Não cheguei a acabar o primeiro ano. Estou com 46 anos e nunca mais eu voltei à escola. Já me chamaram várias vezes aqui em Goianá para estudar à noite, mas eu falei não. Eu vou ficar com isso gravado para sempre na mente. Eu pude ajudar meu pai. Hoje eu não tenho mais pai, eu não tenho mais mãe, mas o que eu pude ajudar eles, as dificuldades que eles passaram, eu passei junto. Não tenho vergonha disso, sei entrar e sei sair em qualquer lugar. Só com a mente mesmo, respeitando. Com o tempo, meu pai foi cansando, cansando e a fazenda caindo, caindo. Os trabalhadores foram embora e o dono acabou indenizando meu pai para vir embora para Goianá. A indenização dos donos das fazendas, antigamente, não era em dinheiro, era dar um lote com uma casa pronta. Quando meu pai estava vindo embora, eu resolvi ficar na roça, porque estava entrando outro fazendeiro. Então meu pai resolveu ficar mais uns tempos, porque o dono queria que ele ficasse mais lá.
Depois de um tempo, eu fui para Carlos Alves arrumar um troco e saí de casa, porque na Fazenda a gente não ganhava praticamente nada. Fiquei uns dois anos trabalhando com uma turma: a gente plantava roça, plantava cana, capinava. Meus irmãos foram ajeitando a vida deles, um irmão casou, outra irmã foi embora para a cidade e meu pai ficou sofrendo na roça sozinho. Ele me disse que ele tava passando muito aperto com a roça, no mato, porque os filhos o tinham abandonado. Como eu já tinha melhorado um cadinho de vida, ganhando por conta própria e morando na casa da minha irmã, eu voltei para ajudar meu pai. Ajudei a fazer umas boas colheitas e só depois ele resolveu vir embora para a cidade, de vez, com a mãe. Eu fiquei lá, já era rapazinho. Tinha 17 anos e passei ir às festas em Carlos Alves. O dono da fazenda me deu uma casa para ficar mexendo com o gado dele. “Já que você não quer ir, eu vou te arrumar uma casa e você fica mexendo com meu gado”. Fiquei sendo um campeiro dele. Mochava boi, capava boi, olhava tudo. Nisso, eu conheci a minha esposa pelos caminhos. A Margarida fazia as compras e carregava nas costas pelas estradas e eu ia para Carlos Alves e nos encontramos. A gente foi batendo papo, batendo papo... Ela me perguntou o que eu ia fazer em Carlos Alves, porque lá mesmo ia ter uma festa, e eu falei que em outra oportunidade eu ficava. Depois teve uma festa na Fazenda da Capoeirinha, que faz divisa com o Bom Jardim. Eu fui à festa, a Margarida estava lá. A gente começou a namorar, casou e ficou morando no Bom Jardim.
Cadeira de bambu confeccionada por Piorra 65
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Mudando de paradeiro Nós tivemos o Luiz Paulo, nosso primeiro filho, depois veio Fernandinho. A gente cansou na fazenda. Eles não estavam mais deixando plantar, a gente já estava por conta do dono, plantando só capim, capim... Nós largamos a fazenda e viemos embora para Goianá. Eu peguei um sítio para tomar conta e a minha esposa ficou morando com a minha mãe. Mas você sabe que sogra e nora uma hora podem combinar e uma hora não, né? Então nós arrumamos uma casa de aluguel e ficamos morando nela muito
atrás de mim e fui trabalhar para ele. Depois resolvi, de uma hora para outra, vir embora para cidade, trabalhar como servente de novo. Não achava outro serviço e, de repente, veio na minha mente de trabalhar como pedreiro. O pedreiro que me ensinou a praticar me fez sofrer bastante e, hoje, eu já sou um pedreiro. Não tenho medo de obra, sozinho mesmo eu mexo com piso. A parte que eu gosto mais é acabamento de obra, é embolsar e assentar piso, assentar guarnição. E assim estou pelejando até hoje. Hoje eu faço essas partes de pedreiro, mas gosto do artesanato. Faço cadeira e outros móveis. Hoje está até proibido tirar taquara... Você vai lá no mato tirar taquara, leva uma merenda, come, passa nas aguadas, toma água natural...chega e já vai fazer balaio, cesto, esteira. Então aquilo ali está tudo distraindo, tudo trabalho da roça. Eu tive época de ficar um mês trabalhando com balaieiro, fazendo tecido em balaieiro para eles apanhar café. Mês mais mês. É isso que a gente colhe e lá vai passando para frente. Presença de cobras nos ambientes do Acampamento Mas a gente quase não tem tempo para isso. Depois que minha família entrou no Movimento, eu tenho que fazer o trabalho de pedreiro e tempo. Depois fomos morar em sítio, por um período de vir para cá, então não sobra tempo. Não tem jeito de ficar uns dois anos, mas o homem começou quebrar e querer em casa, pensando tranquilamente no povo que está aqui, não nos pagar, então fui trabalhar em uma granja. Larguei aguardando essa terra. a granja e fui ser servente de pedreiro. Depois um dono de uma fazenda foi quem me chaSem medo do mato mou para trabalhar de guarda. Aí fiquei mais um tempo No envolvimento da roça que a gente sempre teve, fazendo guarda. Dali o dono da Fazenda Bonança veio
a gente vai perdendo o medo de lidar, porque já tem experiência. Tem gente aí que tem medo de enfiar no meio duma capoeira, “esse mato está bem grande, tem cobra”. A cobra não te morde se você não esbarrar nela. Se você esbarrar nela, é claro que ela vai te morder, mas se você prestar atenção dentro da mata, vai ver que tem cobra empoleirada e tem cobra no chão. Para tudo quanto é lado tem cobra. EnPiorra, à direta, e os acampados do Denis Gonçalves, em reunião tão tem que estar com a atenção muito boa na hora de você entrar no mato. Em uma mata você não entra que quando a gente está em perigo, a gente se lembra do com o peito aberto, você pede licença. Porque no mato santo. A gente tem que se lembrar dele é todo dia. Eu já também tem dono. Não é o dono da fazenda, também tem passei dificuldade por estar dentro de mata enrolado em dono na mata. Se as plantas nasceram ali é porque tem cobra, eu já fui ofendido duas vezes e gritei Deus para me dono. Então a gente pede licença para entrar e para ver ajudar e Nossa Senhora e eles sempre me livraram daquele tudo isso. bicho mau. Sou católico, tenho muita fé porque eu fui nascido e Em pescaria, tudo, a gente corre risco. O perigo está criado na roça. Então eu gosto muito de pedir a Deus, porali de muitas formas, você pode tomar uma mordida de que se Deus não nos ajudar, mais ninguém ajuda. Eu tenho marimbondo... O meu pai, uma vez, quase ficou cego por fé em Nossa Senhora, padroeira do Brasil, porque costuma causa de marimbondo. Você pode tomar uma mordida de 67
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cobra e até que chega o socorro, você já morreu. Eu já vi gente morrer assim, porque não deu tempo para chegar na cidade. Tirando os perigos, é muito gostoso você passar momentos na beira do lago pescando, ninguém te amolando, é um lugar que não é proibido, então passa uns momentos felizes. Se passou pegando peixe, esquece... esquece do dia passar. Você está ali só distraindo... Tudo da roça vai acabando... Só o que eu conheço: a fazenda Bom Jardim acabou tudo, era uma fazenda para muito retiro de leite, muitos funcionários trabalhando na roça e hoje é uma fazenda que só tem gado de corte. Acabou. A fazenda Bonança, antes, tinha muitos moradores e muito retiro de leite, hoje ainda tira uns golinhos de leite, mas acabou. A fazenda da Capoeirinha, que eu conheci, eram muitos moradores, muita retirada de leite, tinha muito leite mesmo, muitos carros de boi trabalhando, buscando tora em mato para serraria e hoje acabou tudo. Não vê mais nada... Hoje tem retiro de leite lá, mas são poucos os funcionários que fazem. A fazenda do Géo acabou tudo e hoje nós estamos vendo a fazenda de Sant`Anna aqui, praticamente era tudo em lavoura, acabou. Eles não plantam um pé de nada mais e hoje nós já estamos aqui querendo fazer crescer essa fazenda com muitos moradores e muita produção dentro dela. Fazer aparecer uma Fazenda na nossa região de Zona da Mata. Coisa que a gente nunca pretendia ver De repente, eu estava trabalhando e falaram comigo que na Fazenda Fortaleza de Sant`Anna chegaram 68
os Sem-Terra. Chegaram e invadiram. Coisa que a gente nunca que pretendia ver na nossa região, aqui perto de nós, era o Movimento Sem Terra invadindo uma fazenda. E de três dias aquele boato correndo, que a polícia estava aqui, eu fui à rua e era verdade: estava cheio de polícia. Dentro de quatro dias, um amigo foi lá em casa, falou comigo pra nós irmos ver. No quinto dia, eu cheguei sozinho- eu e Deus-, entrei no portão da Fazenda Fortaleza, tinham três guardas para lá da porteira, pedi licença e fui lá onde o acampamento estava montado. Sentei com eles, bati um papo e eles falaram: “Ó, a fazenda esta aí e nós vamos precisar de gente para plantar, a gente vai ganhar esta terra, você está animado?” “Se é para ganhar terra, meu filho... Eu não tenho terra!”, “Então você já está na fita, pode fazer sua barraca”. Já fui em casa, já virei a cabeça todinha. Peguei as ferramentas e vim, no outro dia, fincar minha barraca. Eu não tinha dinheiro para comprar uma lona e nessa mesma hora já liguei para um amigo que comprou. Montei minha barraca e já comecei pegar guarda no mesmo dia. Conversando com a turma, fui a Goianá, chamei meus familiares todos. “O negócio lá é bom e a gente está lá. Já montei a minha barraca, se vocês quiserem montar também, vamos lá conversar com o pessoal”. Já trouxe quatro famílias. E a gente tudo começou a montar barraca, participar do movimento e pegar guarda, porque tinha que vigiar noite e dia. Eu pegava guarda da meia-noite às seis da manhã. Eu, seu Nenego, Arlindo e Ceará. Guarda ali a gente tinha que ter porque tinha muita gente idosa e muita criança. Ali
Piorra em companhia dos acampados do MST
não era fácil, porque a gente era muito criticado. O povo da fazenda de Fortaleza não acreditava que a gente ia ficar e vivia sempre querendo passar por cima da gente e a gente foi enfrentando aquilo ali tudo. A gente foi montando tudo, banheiro, água. O pessoal sempre nos criticando. Compramos cano, colocamos uma mina ligada com água na cozinha, eles cortaram nossos canos, levaram nossos canos à noite e ninguém viu. E nós fomos naquela peleja. Nós não tínhamos dinheiro, mas sempre tivemos parceiros da região de Juiz de Fora
que ajudavam comprando coisa para nós: pó de café, alho, papel higiênico. Resolvemos fazer uma horta comunitária e, com muito sacrifício, conseguimos um trator. O trator arou umas duas horas, gradeou, então nós fomos fazer os canteiros. Pedimos um dos primeiros fazendeiros daqui, o Horácio, e um funcionário dele que se chama Célio, para nos doar esterco. Conseguimos um caminhão de esterco e ficamos muito agradecidos, porque a gente não queria mexer com nada de agrotóxico. Nós queríamos comer uma verdura natural. Arrumamos uma água boa, encanada, para a gente encher as caixas e aguar a horta. E passamos a colher muita verdura. Nós tínhamos abóbora nova, abóbora madura, jiló, pimentão, berinjela, cebolinha, salsinha, alface. De tudo quanto é verdura nós tinhamos e muito! E passamos a vender na rua, para a gente fazer um troco e comprar as coisas que faltavam. De repente, o rapaz de feira de Goianá, o Clebinho, que comprava caixa fechada de berinjela e pimentão na nossa mão, falou que não podia mais comprar nossa verdura porque ele tava perdendo cliente. O povo estava largando de comprar na feira dele e falando que “a verdura dos sem-terra é suja”. Então foi mais sacrificado, arrumamos uma bicicleta de carga e passamos a oferecer as verduras de casa em casa. Negociar com quem? Quando ia muito bem nossa horta, veio a liminar e o despejo. Primeiro a gente conseguiu quebrar a liminar. Passado mais um mês, veio outra tentativa de despejo e a 69
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gente precisava negociar em Coronel Pacheco com o advogado e com os donos da fazenda. A brigada e o nosso povo foram para Coronel. Quando chegamos, a polícia já estava toda lá. Não tinha ninguém da fazenda, não tinha advogado, não tinha nada deles. Eles só falaram que tinha essa reunião. O tenente falou que a ordem de despejo seria dada no outro dia. Nós não tínhamos mais como negociar com ninguém, porque esse despejo já estava na mão da juíza. A juíza tinha dado o decreto que era para nós esvaziarmos a fazenda. Não tinha como quebrar o decreto. Então naquele sofrimento, nós viemos de Coronel, chegamos dentro do acampamento e começamos uma reunião para decidirmos o que íamos fazer. Nós não podemos enfrentar a polícia. Nós somos obrigado a sair... Sair para onde? Nós não tínhamos um lugar ideal para ir. Então, de repente, encaixando as cabeças, começamos a desmanchar as barracas e a jogar tudo para o chão de tarde. Ainda, nessa peleja, um amigo nosso estrepou em um prego e tivemos que levá-lo para o hospital. Tomamos descanso, sem saber para onde a gente ia. “Nós vamos para a BR, estudar um lugar para onde iremos”. Acordamos cinco horas da manhã e começamos a desmanchar barraca. A polícia chegou seis horas. Polícia mais polícia. Corpo de bombeiro, cachorro, muita polícia. Tinha mais polícia do que tudo! Nosso povo era pequeno e nós já desmanchando as barracas e eles ficaram ali, acompanhando tudo. Nós trabalhando e eles assistindo. Saiu o primeiro caminhão carregado com nossas coisas e lotado de polícia acompanhando para ver aonde que
nós íamos. Quando chegou ao primeiro ponto, a gente sabia que ia encostar e entornar as coisas nesse mataréu doido que era essa BR. Os policiais vieram acompanhando o caminhão e falaram que aqui não podia encostar. O Edilei estava junto, virou pra eles e falou: “Não vai encostar aqui não? É o único lugar que nós temos para encostar esse povo. Nós estamos com criança, com idoso, têm várias famílias aqui. Então nós vamos levar o povo para a Praça de Goianá. Vamos jogar lá na praça e vamos ver o que o povo faz com a gente”. E daí que veio o coronel e falou para a gente se virar aqui. E nós entornamos nesse lugar e estamos aqui nessa peleja, nessa BR aqui. Com esse sofrimento todo que nós tivemos de despejo, a gente pensou que o prefeito seria quem mais nos apoiaria, porque a maioria que corria atrás de um pedacinho de terra era de Goianá, mas ele mandou até caminhão para ajudar a despejar e uma máquina para soterrar a nossa horta. Antes de a gente sair de lá, a máquina já estava aterrando a nossa horta, arrancando tudo e entupindo tudo. Podiam ter apanhado nosso arame e deixado cercado para o povo de Sant`Anna aproveitar a horta, porque os moradores compravam verdura nossa. Mas não, a gente viu a máquina entupindo tudo e a polícia só acompanhando. Se não tivesse dado tempo da gente arrancar as barracas, a máquina ia arrancar e entupir tudo. Inclusive, ficou muita coisa nossa para trás. Ficou uma manilha enterrada na mina, manilha enterrada em poço, cano, arame. Conseguimos trazer um pouco de arame, mas nós tomamos prejuízo. E nós viemos pra cá e estamos aqui até hoje com essa força de Deus, que ele tem dado pra nós.
Gente da Família Depois que entramos no Movimento, mudou muito a nossa vida. É uma mudança muito grande, por a gente ter esse povo bacana aqui dentro. Não dá uma briga, só uma ladainha que dá, mas isso a gente conserta. Então se eu pudesse ficar aqui 24 horas por dia... Mas a gente não pode confiar só no acampamento, explorar só do acampamento. Na sexta-feira a gente vem para cá e fica até no domingo, depois volta para trabalhar. É uma dificuldade, mas vale a pena ter uma família tão grande igual a gente tem aqui. Paga a pena você ter tantos amigos. E hoje eu não tenho a mãe mais, não tenho pai, nós temos onze irmãos só. Vários cunhados, vários sobrinhos, então se a gente colocar dentro de uma casa não cabe todo mundo. Mas hoje se a gente fizer um galpão grande não cabe a família da gente, em um galpão
grande não cabe. Porque a gente já conta a nossa família com as outras famílias todas aqui. Então isso foi uma mudança muito grande que teve na vida da gente. Porque se tiver 60 famílias aqui, para mim é tudo meu amigos. Tudo! Não quero jogar nenhum para trás. Eu moro em um barraco, mas eu acolho lá “Deus e todo mundo”. É o sistema que aprendi com meu pai na roça. Passou um mendigo com fome, cagado, ele vai sair vestido, limpo e bem tratado. Porque já aconteceu de um cara se sujar na roupa, de ele ficar fedido e o pessoal debochar dele na rua. Eu dei a mão a ele, levei para minha casa, dei um banho, dei roupa. Então meu orgulho é isso: eu quero ajudar as pessoas. Eu não tenho nada, o que eu tenho é meu e dos outros. E eu acho que eu quero ser isso até o final. Vai chegar o dia de eu morrer, mas eu quero deixar essa saudade para trás.
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ZÉ QUERUBIM 72
“Se demorar mais um pouco, eu morro e não vejo mais nada disso aqui”
“
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Durante as 24h de todos os santos dias, um Querubim sintoniza na Rádio Globo. Sabe de cor a programação da emissora e aguarda, com fidelidade e atenção, as orações do padre Marcelo Rossi, para se fortalecer nas batalhas cotidianas e diminuir as dores físicas, mentais e espirituais. Uma pena que nem o padre, nem o locutor, nem mesmo sua grande musa, Paula Fernandes, possam ouvi-lo do lado de lá... Por essas ironias da vida, apesar de acompanhá-los religiosamente, eles nem se dão conta da existência deste acampado no interior das Gerais. Se o conhecessem, se pudessem ver nos seus olhos o brilho, e o sorriso que se abre quando os escuta, talvez até mandassem um “alô especial” de vez em quando... Quem sabe pudessem falar das informações que ele tanto prescinde e tão pouco recebe nessas fases duras de espera às margens da MG 353... Muitas vezes, sozinho embaixo das lonas, dialoga consigo mesmo diante do amontoado de palavras e canções que ouve. Bom seria se os desabafos tão secretos deste Querubim pudessem um dia ser captados por estes a quem tanto empresta os ouvidos.
lguém botou apelido no meu pai e ficou na família inteira. Tinha um cara que passava lá na Embrapa atentando, gritando: “Ô João Querubim”. A minha mãe não gostava, não, e retrucava: “Dá resposta pra ele, rapaz. Seu pai tem nome! É João Ângelo Batista, não tem nada de Querubim aqui não”. Mas não teve jeito, o apelido continuou. Eu vim para Goianá e, olha, se falar meu nome ali, ninguém acha. José Alexandre Batista é o meu nome e ninguém conhece, mas se falar Zé Querubim até um cachorro sabe quem é. Dizem que tem na Bíblia, né? Querubim ou Curubim... Eu acho que tem a ver com um negócio assim e que também tem a ver comigo: por exemplo, às vezes aqui no acampamento eu fico nervoso com alguma coisa, mas, de repente, eu sou o tipo da pessoa que acaba encaixando um punhado de coisa no lugar. “Ah, eu tô precisando disto (...)”, eu sei onde é que está. Vou lá, me viro e arrumo, entendeu?
Querubim é da Bíblia, tem uns que falam. E eu encaixei nisso aí e vai acabar sendo. Eu ouço muito as orações do padre Marcelo pelo rádio. Passa muita coisa e eu vou só me encartando. Brigar eu não brigo com ninguém, mas, às vezes, eu falo umas verdades, eles não gostam e a gente vai tocando o barco. Eu sou o segundo mais velho da minha casa. Nós somos cinco irmãos. Minha mãe ainda é viva, fez 86 anos no dia 4 de dezembro, mas meu pai morreu há 18 anos. Meu pai mexia com bezerro, na Experimental, antiga Embrapa. Ele tratava de bezerro desmamado, levando o leite na boca dele. Minha mãe sempre foi dedicada em casa, nunca trabalhou fora, não. Ela, com os seus irmãos, é cria aqui do fundo da fazenda também, na divisa. Eu vivi na Embrapa até a idade de 11 anos. E com oito eu já ajudava meu pai, capinava e ia para a roça. Ele me perguntava ainda se o que eu preferia era estudar ou 73
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encarar a enxada. Eu preferia encarar a enxada. Antes me tinham como burro da família, hoje os meus irmãos me elogiam, eu faço as contas mais rápido que todo mundo. Eu tirei até a terceira série e eles, quarta, oitava. Minha terceira série é reforçada também. Eu não tenho vergonha de
Filhas do Querubim
falar, não. Eu repeti o primeiro ano três vezes, o segundo e o terceiro três vezes também, aí na quarta série eu desisti. A escola onde eu estudava era longe da Embrapa. Teve época que o estudo foi de manhã e teve época que foi de tarde. Aí na quarta série, eu já estava querendo namorar as professoras. Aí eu saí fora. 74
Não sei se eu fui burro... Só que eu fiquei mais entendido nessa repetência, né? Já teve professora aqui que, para se promover, crescer nos trabalhos, dependeu dos meus cadernos antigos da Embrapa. Meus cadernos ficaram mais de mês emprestados com ela lá. Ninguém tinha caderno, todo mundo joga fora, mas eu sempre guardei. Hoje que estou mais relaxado, larguei as coisas para o lado, mas eu tinha tudo guardado. Nós plantávamos roça, meus pais, meus irmãos. A gente trabalhava plantando milho na divisa da Fazenda. Eu estudava e trabalhava. Aqui em Goianá, a gente tinha uma etapa de serviço, trabalhava num horário e estudava no outro. Depois que eu saí da escola, eu trabalhei de servente, de pedreiro, carreiro, em curral tirando leite e também tomei conta de granja em 2004. Foi o último serviço que eu trabalhei de compromisso. Aí tive problema de visão e parei de trabalhar. Eu tinha uns dezesseis anos quando comecei a beber. Eu estava acompanhando futebol e tinha um cara que mexia em negócio de bateria e eu me infiltrei, comecei tocando tarol. Eu fui para o jogo e lá eles me ofereceram. A primeira cachaça que eu botei na boca foi a Velho Barreiro. E daí para cá foi multiplicando. No primeiro dia eu tomei uma, depois passei a beber duas, três. Você vai se enturmando com o pessoal...
Eu ainda estava junto com a minha família quando vim para Goianá, só saí de casa por volta dos 20 anos porque eu casei. Namorei seis anos e vivemos alguns anos casados. Aí veio a separação. Em 1991, eu fui para Juiz de Fora, depois eu fui para o bairro São Pedro tomar conta de granja. Aí conheci uma mulher separada, com três filhos, com quem me casei. Fui viver com ela e tive duas filhas. Hoje a gente não se vê com frequência. Falei para as minhas filhas estudarem para não precisarem de homem. Uma delas agora veio me falar que está grávida! Quando eu era casado e sabia que eu tinha que chegar em casa e tomar banho para descansar e ir trabalhar no outro dia, eu parava no boteco do João Calango e tomava. Enquanto eu não chegava a sete pingas, eu não ia embora para casa. Ia para casa, tomava banho, jantava e no outro dia às 6h já estava no serviço. Em 2004, parecia que eu estava me despedindo do mundo. Mexia com bateria de clube. Eu era o responsável, afinava a bateria todinha, botava na avenida. Botava na mão do mestre e saía junto, batendo também (chorando). Quando escuto o rádio ligado ali, falando da bateria das escolas de samba, é muito difícil. A hora que dá a saída... (voz embargada) Era eu que dava a partida para os outros componentes entrarem. Esses dias eu estava aqui sozinho e chorei. O que eu já fui e hoje estou aqui, lutando pela terra. Eu ficava pensando: “Isso aqui eu não podia ter conseguido quando eu tinha os meus 20, 25 anos para lutar por essas terras? Hoje eu estou fazendo 50, se demorar mais um pouco, eu morro e não vejo mais nada disso aqui”. Por conta da bebida, eu estava perdendo o amor da
minha mãe (chorando), o amor da mãe das minhas filhas e o amor das filhas. Eu já não era um homem de pegar um saco de cimento, vivia naquela tremedeira danada. Precisava de álcool para parar com a tremedeira. Então eu fiz o propósito de parar de beber. Eu aceitei a separação porque a minha mulher cuidou das meninas enquanto eu trabalhei no clube. Eu chegava à noite, eu acabava até dançando, mas era mais trabalhando. Eu saía do clube, chegava em casa de manhã, porque enquanto não fazia a faxina de lá, nós não íamos embora para casa. Sabendo que os meus amigos precisavam da minha ajuda para encher laje, eu chegava em casa, trocava de roupa e ia ajudar. Nisso, eu só voltava em casa de noite, porque tampava na bebida. Eu tomava um banho, deitava, dormia e no outro dia ia trabalhar. Chegava do serviço, ia pro bar, chegava em casa, tomava um banho, jantava e dormia. No outro dia começa tudo de novo. A minha enteada foi apanhando idade e começou a freqüentar o clube, onde hoje é o supermercado Super Minas. Nesse clube tinha um amigo meu que bebia comigo. Botaram uma roleta na portaria que, se acontecesse uma briga, ficava difícil de sair. Eu falei com a minha mulher, “Ó, as suas meninas tão indo ao baile, eu não vou levá-las. Você vai levar? Porque se der algum problema, o negócio lá pega fogo.” A menina até pulava janela para poder ir ao baile. Ela descobriu que eu estava fazendo a cabeça da mãe dela para não poder ir aos bailes... Um arrependimento que eu tenho na vida... Discutindo com a minha ex-mulher, eu entrei no banheiro para escovar os dentes. Ela abriu a porta e bateu no meu rosto. E deu sangue. Quando eu olhei 75
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no espelho e vi o sangue escorrendo, eu não aguentei. Eu já estava alterado, porque eu já tinha bebido, eu dei dois tapaços na cara dela. E a criança mais nova, então com quatro para cinco anos, viu. “Você nunca mais faz isso e pá”. Isso é meu arrependimento. A gente não bate na cara de ninguém, muito menos de uma mulher. Ela pegou tudo que era meu e me pôs para fora do barraco dela e jogou para casa da minha mãe, porque as casas eram vizinhas. No outro dia eu fui lá para buscar o resto das minhas coisas. Ela disse que era para eu sentar lá pra gente conversar. Disse que não queria que eu fosse embora, que queria que eu continuasse. Só que a filha dela tinha falado que se eu entrasse numa porta, ela saía na outra. Eu falei que quando fui para a companhia dela, os filhos dela já existiam e que eu queria manter contato com ela fora de lá, que eu não queria atrapalhar a vida deles. “Se amanhã sua filha estiver até numa prostituição da vida, eu não quero ser culpado”. Eu ia para os bailes e minha mulher cuidava das crianças, mas depois ela me deu o troco. Ela largava uma das minhas filhas com a minha mãe e a menor com uma pessoa de confiança e passou a ir a bailes em Juiz de Fora. Aí eu fiquei nervoso com isso e vi que não podia cobrar. E só depois eu fui para o Alcóolicos Anônimos e conheci uma pessoa que se tornou minha nova companheira. Numa quarta-feira chegou um aviso na minha casa, pensei que era serviço, porque era da prefeitura. Quando eu cheguei lá, estava o assistente social. Ele falou assim comigo: “Você tem problema com bebida?”. “Tenho e muito sério. E preciso parar de beber porque já estou tendo pro-
blema”. Aí ele me perguntou se eu queria participar do Alcóolicos Anônimos e eu disse que fazia qualquer coisa para sair daquele sofrimento. Ele arrumou um carro para me levar ao AA em Rio Novo, toda quarta, sábado e domingo. E nisso eu passei a ir. Eu comecei a participar das reuniões. Antes eu ia sozinho em uma Kombi. Chegava lá, via as pessoas dando testemunho do que já tinha feito por conta do alcoolismo. Porque lá combatia o alcoolismo e o tabaco. Eu comecei a ir com frequência e a levar mais gente. Eu me empenhei, eu dediquei mesmo ao AA. Mas eu me aborreci e voltei a beber. Fizemos um Simpósio, tenho até retrato, só que manchou... Deu o dia do Simpósio, eu estava trabalhando na funerária, tinha gente de sobra que poderia fazer o que eu precisava fazer. Foi dando à tarde, eu estava no serviço, saí correndo para ver o que estava precisando. Ninguém correu atrás dos equipamentos. Eu enfezei com aquilo! E afastei. E quando você afasta, para você voltar, é difícil. Eu parei de ir para Rio Novo. E recomecei a beber colocando pinga no leite gelado, como se fosse uma batida. Em 2006, fui preso por causa de pensão. Eu fiquei 30 dias preso e no dia 7 de fevereiro eu fui solto. Essa experiência acabou comigo, nunca mais fui o mesmo. Dois anos antes, eu tinha começado com um problema de visão. A mãe das minhas filhas sabia que eu estava doente e não conversou nada comigo. Quando eu vi, me chegou uma carta falando que ela tinha me colocado na Justiça. Então o patrão me mandou embora para não ter problema na Justiça por conta da carteira assinada e, para mim, foi bem pior porque eu não entrei no INSS. Duas vezes já me
foi negado o auxílio doença e eu não tenho condições de trabalhar no pesado mais, é muito difícil. Então eu acabei largando para lá, mas agora estou com a ideia de tentar de novo o auxílio. Fiquei os 30 dias preso e exigiram que eu pagasse a pensão. A minha sogra foi contra, minha mãe adoeceu na época. No dia em que eu fui visitá-la, ela estava no CTI toda entubada. Deu problema de isquemia, teve que operar. Ela se lembra de coisa de criança, mas esquece tudo que a gente fala com ela. É mais fácil minha mãe me ver que eu ir lá ver ela, mas sabendo que ela está bem, eu fico tranquilo. Minha saída hoje é difícil, a minha saúde está desse jeito, as juntas não ajudam, depois que eu quebrei o pé então piorou mais ainda. Já pedi a Deus para tirar essas ziquiziras que tenho no corpo, porque, às vezes, dá até inveja dos companheiros. Hérnia, má circulação na perna que causa ferida, coceira e inchaço nas pernas. Meu pé é todo dolorido. Quando ameaça chuva, é um Deus nos acuda. O caramba do calo dói. Uma bicharada danada que dá no meu pé. Mas quanto mais reclamar, pior fica. Hoje tem mais gente no acampamento, mas antes não ficava ninguém. Era a Brazilina, a Marly e eu. Eu conheci o acampamento porque eu andei prestando um serviço para um amigo da rua, fazendo caldo de cana, apanhando fruta, rachando lenha... Ele me disse que os sem-terra ocuparam a fazenda de Sant`Anna e que estava precisando de alguém igual a mim, porque eu era muito trabalhador. Aí eu vim para cá junto com ele e eu fui conversando com o pessoal, com o Edilei e depois a dona Cida.
José Alexandre Batista, 48 O Edilei me explicou como funcionava tudo aqui, como eram as normas. Eu não estava trabalhando de empregado para ninguém. Eu agradei do pessoal e comecei a ajudar aqui dentro. No começo a gente catava feixe de bambu. Trazia, na média, de uns 30 bambus nas costas. Nós estamos numa luta até hoje. Eu sou católico, só não sou praticante e falo isso para qualquer um. Não estou todo dia dentro da igreja, se eu puder, nem na igreja eu não vou, mas onde eu estou, estou sempre pensando em Deus. Sou devoto de Nossa Senhora Aparecida e para falar a verdade, às vezes, alguém aqui não acredita, mas o dia que está passando temporal eu é que seguro a barra. A partir do momento que eu tirar o boné, na hora que está armando a chuva pesada, ela vai embora. 77
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Eles não acreditam, aí eu falo “sabe por que está passando a chuva? Porque ela desviou? Eu não benzo chuva, mas eu faço as minhas orações que é para não vir”. Já pensou uma chuva vir arrancando tudo aqui? Teve uma vez, lá dentro da fazenda, que veio uma chuva de baixo e eu estava sozinho lá dentro da cozinha. O barracão na cozinha balançava e eu sozinho lá dentro. A chuva veio de frente assim, veio arrancando o telhado todinho até perto de um tambor velho que a gente fazia de forno. O forno estava todo montadinho e eu me escondi perto dele e só telha voando. E eu falei que era só Nossa Senhora Aparecida mesmo para tomar conta. Só a parte de lá, com as telhas galvanizadas, onde eu estava, é que ficou. O resto todo foi. Mas olha, o acampamento ficava embaixo do eucalipto e dava medo. Às vezes, eu estava no banheiro tomando banho, sentindo o eucalipto daquela altura toda balançar, com medo de um galho daquele soltar de lá, cair em cima da gente e matar um. Mas graças a Deus, nunca aconteceu nada. Então, para ser sincero, eu me sinto um herói aqui dentro. Não gosto de falar isso não, mas eu me sinto um herói aqui dentro. Hoje todo mundo fala aí, quem está segurando este acampamento aqui sou eu e a Brazilina. Já vivi muita coisa neste acampamento. No dia 11 de abril de 2010, eu quebrei o pé aqui dentro. Eu vinha para cá e fazia de tudo, tinha dia que não dava tempo de voltar para a rua. O pessoal fez uma portaria fechada de bambu para fazer a identificação na entrada do acampamento, toda noite nós fazíamos uma vigília que ficava na responsabilidade de duas pessoas. Eu e outro companheiro ficá-
vamos na portaria de nove até meia-noite. Nesse dia, um cara da charrete, lá de dentro da fazenda, passou na estrada e eu acordei com aquele barulho, já pensando que tinha algo de errado acontecendo. Mais tarde a gente estava com um garrote amarrado para matar e fazer um churrasco. Descemos o garrote do caminhão e o amarramos lá. Aí passou a noite e um companheiro veio me falar: – Ô companheiro, me falaram aí que o boi fugiu. – O boi não fugiu não. – Uai, me falaram aí que o boi fugiu. – O boi não fugiu não. – Como é que você sabe? – Eu sei, rapaz. Eu já fui lá e vi. A corda está do mesmo jeito que nós deixamos amarrada lá. Aquela corda foi cortada. Esses meninos encheram o pandu de bebida e não viram o cara passar de charrete e cortar a corda dele, rapaz. – Como é que você sabe disso? – Você me acompanha, vamos até lá na fazenda, você vai ver se o garrote não está lá... Porque ele pega o cheiro das vaca e ele vai pra lá. Ele tá lá. Nós fomos pra lá, era umas quatro e meia da manhã. Eles já estavam tirando o leite. O companheiro viu o garrote primeiro que eu. Ele estava em pé assim, pareado junto com as vacas, com um pedaço de corda no pescoço. “Eu te falei que foi cortado”. Ele chegou lá e falou assim: “Ô companheirada, nós estamos para sacrificar um garrote ali, ele fugiu pra cá, tem como nós matarmos ele aqui? Porque se a gente fizer isso lá vai ter muita curiosidade, vai até atrapalhar de nós mexermos com isso lá”. “Não tem problema não, o curral aí tá vazio”.
Arrumamos o lugar para matar e viemos buscar as ferramentas. Pegamos a corda que tinha sido cortada e levamos também. Chegou lá, um tal de seu Lair foi laçar o garrote. “Ô, seu Lair, se eu fosse você, eu não laçava esse garrote aí não, porque o pessoal tá tirando leite, ele vai sair e acabar machucando os meninos”. “Não, não, já tá laçado”. Ele já tinha errado, mas no segundo laço pegou o garrote e nós demos nele três tombos. A história que eles contam sobre mim é totalmente diferente... Eu calçado de sapato, na neblina, escorreguei e pisei com o pé virado e quebrei o tornozelo. Na hora eu gritei “quebrei o pé, quebrei o pé”. Eu senti ele quebrando. E eles com o garrote já pego. Ele passou correndo. Eles falam que ele pisou em cima de mim, mas não pisou não. Quase que ele pisou. E eu deitado assim no chão. O boi passou correndo, já laçado, jogando esterco em cima de mim, mijada, sei lá... Um monte de coisa. E eu gritando. Aí uma acampada encontrou o carro dela lá, ela tava num gol, e eles me pegaram. Eu ainda passei na cozinha, balancei o pé e ele tava molinho assim. Só na pele. Vim embora pra rua. Quando foi oito horas, mais ou menos, eu tava lá no HPS internado. Aí a advogada do movimento, Adília, e uma colega dela foram lá me ver. A gente acaba sentindo solidão. Uma das coisas que eu gostaria de ter falado aqui no acampamento e que eu nunca falei... Só a Adília do movimento é que foi lá e me deu apoio. Ninguém foi lá nem me visitar. Por isso eu tenho esse sentimento com eles aqui. Às vezes eles cobram certas coisas da gente aqui, mas não se lembram disso não. Tiveram outras pessoas que ado-
eceram e fizeram caravana para poder ir lá visitar. Se eu for relatar isso numa reunião, vai dar a impressão de que eu estou com ciúmes, mas não é isso. Só onze dias depois que eles entraram em contato com a minha família, eu fiquei até o dia 21 de abril e só depois me removeram pra Santa Casa. Por isso, eu tenho a Adília como irmã, porque até eu achar minha família foi ela e a colega dela que me ajudaram... Eu fui comentando até elas acharem a minha irmã e a minha cunhada. Eu não tinha telefone e eu fui falando onde meus irmãos moravam e de acordo com o que eu fui falando, eles descobriram minha família. Eu já tinha comido uma marmita, tava indo para a segunda quando eles me tiraram. Quando foi dia 23 de abril, consegui a operação. Fui pra sala da internação lá para meio-dia. Dia 28, me levaram para casa. Por incrível que pareça, o mesmo cara que me levou para internar foi me buscar. Quando foi dia 27 de maio, eu retornei pra Goianá para a casa da companheira que eu tava me relacionando. Chegou lá, eu comentei com a minha companheira que a Adília e a colega dela tinham ido me visitar e elogiei, porque tinham levado pasta de dente, sabonete, essas coisas. Eu estava dormindo no sofá e ela queria que eu fosse lá dormir com ela. “Não, eu não posso dormir contigo lá, porque eu estou com o pé machucado, só na tala. Vai que você mexe ou esbarra. O negócio não vai ficar bom, eu vou ficar no sofá, lá na sala”. Quando foi de noite, ela já tungada, parece que o bicho a atacou. Ela vinha e jogava água gelada na minha cara, me chamava para ir pra lá para o quarto e eu falava que não ia. E aí, deu uma hora que ela passou a mão em um 79
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machado. Aí eu levantei a muleta assim: “Nossa Senhora da Aparecida que me defenda, que me socorre”, porque ela podia me bater na cabeça. Eu escondendo o pé que já estava machucado, ela foi e bateu o machado perto e quase que pegou o outro pé. “Ô mulher, cê tá doida? Eu tô com um pé quebrado e você ta querendo me cortar o outro?”. Eu sabia que não ia dar pra dormir mesmo e disse que no outro dia eu conversaria com o tio dela. Eu sai, sentei do lado de fora porque ela tava bêbada e eu fiquei com medo dela fazer alguma coisa comigo. Quando foi no outro dia, de manhã, o tio dela passou e eu conversei com ele. “Olha, se eu fosse você, eu ia pra casa da sua mãe”. Eu tava sentado em um banco que tinha em frente da cerca e ela me botou para correr, juntou tijolo atrás de mim e eu saí correndo escorando em um pedaço de pau. Eu fui pra casa de uma dona de uma seita, joh-rei. “Cê é doido, Zé, de ficar ali. Parece que tem uma cabeça de boi enterrada, que ali só rola bebida. Uma brigaiada danada entre eles.”. “Eu tenho muita fé em Deus, é por isso que eu fico”. Aprendendo a cozinhar No dia primeiro de junho, essa companheira passou mal de cirrose e tiveram de levá-la e interná-la. Ficou oito dias internada. O irmão dela ficou na maior briga comigo. Nisso eu já tinha vindo pra casa da minha mãe. No dia 9 voltei lá para tirar minhas coisas que estavam na casa dela, chego lá e tenho a notícia de que ela tinha morrido. Morreu seis horas da manhã e estava dependendo de alguém para ir lá tirar o corpo e eu não podia ir porque eu estava
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de muleta. Eu recebi a notícia que o irmão dela roubou um monte de coisa minha e jogou o resto do que era meu tudo na rua. As ferramentas todas que eu tinha, tudo. Minha irmã apanhou um táxi e me perguntou se eu queria ficar com eles ou vir para o movimento. Ela veio e conversou no acampamento e disseram que eu podia voltar sim. Então nós fomos junto com a polícia ver o que tava acontecendo na casa da minha companheira. Tudo que eu consegui tirar de lá, eu levei embora. Eu passei um perrengue. Aí fui ficar na casa da minha mãe e só no dia 19 de junho que eu voltei para o Denis. No tempo que a gente estava acampado lá dentro, quando os passarinhos começavam a cantar eu já estava fazendo café. Sete horas de manhã entregava o café para cada um caçar seu rumo, onze horas da manhã saía a comida e às duas tinha o café da tarde. No fim do ano eu falei que não estava aguentando, estava estressado. Então achei um compromisso de fazer cerca e saí um pouco da rotina. Eu fiz quatro barracas deste acampamento, sozinho, eu e Deus. Serrando bambu, arrastando bambu. Eu antes cozinhava para mim e mais duas pessoas. Não tinha costume de preparar para muita gente. A Dona Cida, que é culpada disso, foi me ensinando como fazia. Cheguei a fazer café para 70 pessoas, tudo nessa vida você vai aprendendo conforme você vai fazendo. Quando foi dia 26 de janeiro de 2011, nós fomos despejados e viemos para a beira da BR. Vai fazer quase dois anos que nós estamos aqui. Então assim, eu posso dizer que esse tempo todo eu estou aqui. Tirando o tempo que fiquei internado, estou aqui direto sem sair para lado ne-
Zé Querubim, criança e cachorro na cozinha coletiva do acampamento
nhum, Natal, Carnaval, festa de Santo Antônio... Eu fico aqui direto, então estou contando três anos que eu estou aqui. Eu cheguei três dias após a entrada. Aqui no acampamento tem momento bom, tem momento ruim. Mas esses a gente larga de lado. Foi uma terapia ter vindo aqui para dentro. Eu vivo uma vida tranquila
aqui. Às vezes a gente rasga d’água, bebe bastante, mas sem confusão com ninguém. Às vezes tem momento de raiva, mas do contrário é muita alegria. É muita coisa que passa aqui. Todo dia eu escuto rádio, direto. Antes não tinha não, agora ele fala 24 horas, direto. Tem hora que eu me esque81
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ço dele, nem estou ouvindo e ele fica ligado para lá. Notícia eles dão quase toda hora e música também. Sempre gostei de dormir com rádio ligado. Aqui eu estranhei muito porque antes não tinha rádio, não tinha meio de comunicação, não tinha nada. Quando chegava alguém é que fazia comentário e a gente ficava sabendo das coisas. Nem aqui da região a gente ficava sabendo, se não fosse alguém que comentasse. De um tempo para cá, arrumaram um rádio que veio na doação e eu até levei para arrumar. Esse aqui o meu primo deixou comigo e eu troquei com o companheiro Batata. O Batata levou o que é elétrico e deixou esse à pilha comigo. Esse aí é duas pilhas e fala 24 horas (risos). O rádio, onde eu for eu o carrego. Ponho uma alçazinha e onde eu for eu o levo. Gosto de pegar mais o padre Marcelo na parte da manhã. Reforça muito a gente. Eu tinha costume de televisão, mas não sinto tanta falta. Sei ler, só que as vistas não ajudam. Tenho que forçar muito para ver as letrinhas. Pego os jornais que chegam ali e leio só as letras maiores. Chegam jornais do movimento. Eu não falo com minha família por telefone. A não ser que, por exemplo, eu tenho o número da minha irmã, se eu pedir a alguém aqui eles ligam e eu costumo falar. Já falei com as minhas meninas em Astolfo Dutra, já ligamos em Juiz de Fora. Em companhia da solidão Uns tempos atrás, ficávamos a Brazilina e eu sozinhos aqui. E tinha dia que ela começou a trabalhar lá embaixo e ficava só eu aqui. Olhava para um lado, olhava para o outro: nada. Agora como é mês de férias, já vem a irmã do Tiquinho, vem para cá com os meninos. Está ficando ali o seu Luiz e a família.
Para estar aqui três anos, eu só posso estar gostando né? Porque senão, eu já tinha rapado fora já. Só que agora está demorando muito entrar lá para as terras. Tem hora que você estressa, dá vontade de sair. Viver uma vida assim, lá fora, porque aqui a gente passa Natal, Ano Novo, Carnaval, coisa que eu me envolvia nisso tudo. Aqui não, colei, acabou. Teve uma mudança grande. A idade vai chegando também, a gente vai perdendo o intuito das coisas. Apesar de que tem pessoas aqui dentro que querem dar aquele outro intuito pra gente, entendeu? O senhor Mundinho está doido para formar uma banda aqui dentro e ele conta comigo para ajudar. E ele olhando assim, ele sabe de um a um o que cada um toca. Muito bom mesmo. Um senhor de idade que conforta a gente aqui, além de vocês que chegam aqui e conversam com a gente. Confortam a gente, porque às vezes a gente fica agitado aqui por falta de comunicar com as pessoas, conversar. Eu fui tão apegado ao clube (chorando)... queria fazer uma escola de samba mirim. Hoje os meninos são motoristas de ambulância e eu me perdi no tempo. Fiz uma lista e levei para a prefeita, pedi os instrumentos todinhos. Não saiu do papel. Me perdi no tempo. Hoje o senhor Mundinho conta comigo, o que eu já fui e perdi tudo! Médico nunca me proibiu de beber. Se algum dia algum médico me falar para parar com a bebida, eu paro com facilidade. Quando eu tenho que parar, eu sei que eu tenho que parar. Não falem em internação comigo porque vão me deixar chateado, angustiado. Eu sei a hora que eu tenho que parar. Eu sei que eu tenho bebido bem. Tinha período aqui no acampamento que eu estava fazendo uma
faixa de uma garrafinha de 600 ml, das sete da manhã até na hora do almoço. A gente fala “meiota”, porque é metade de um litro. E da hora do almoço até de tarde, eu dobrava a quantidade. Depois que refrescava, à tarde até a noite, perdia a quantia. Era o que rolasse. Eu estava bebendo direto. Sempre aparece alguém que abona a gente. A gente já não saía para lado nenhum, mas eu não vou falar que o problema era esse. Eu já estava carimbado na bebida antes. Você bebe hoje para às vezes esquecer os problemas. Às vezes eu estou de boa, vem alguém e fala alguma coisa que me deixa nervoso e eu não estou para discussão, então na mesma hora eu bebo. A bebida faz o seguinte: hoje eu tomo todas, a bebida vem e me faz esquecer por aquele momento. No outro dia vem a dor de cabeça e o problema de novo... E vai indo... Eu já tinha frequentado o clube do Flamengo e eu falo que o movimento aqui não faz diferença dos problemas que a gente enfrenta porque eu frequentei o clube e eu tiro base por ele. No acampamento tem 12 coordenadores, no clube a gente tinha 12 pessoas que faziam parte da dirigência, o presidente, aí vem um diretor social, que eu já fui. Se você combina aqui, por exemplo, na coordenação, o que vai ser feito dia tal, com tantas pessoas, chega na hora, aquela quantia de pessoas não aparece e, no clube, era a
mesma coisa. Tem uma diferença de clube, de igreja e do MST: aqui a gente está lutando por terra, lá por festa e a igreja por religião. Mas eu falo que não foge, não muda a conversa. Eu estou acostumado com isso. A gente combina, são dez pessoas? Chega na hora, quem encara mesmo são três, meia dúzia ou não vai ninguém. Um dá desculpa de uma coisa, outro dá desculpa de outra. Eu costumo falar que é melhor mexer com criação que mexer com ser humano. O ser humano pensa. Eu lido com esse cachorro que está aí, o primeiro parabéns que eu recebi aqui hoje foi do Negão e da Futrica. Eu falei: “Puxa vida, recebi os parabéns dos cachorros que moram com a gente”. Já me perguntaram se não está na hora de eu ajuntar a minha família. Eu falei que está bom do jeito que está. Ninguém me procura para nada, é porque não estão precisando de mim. Eu prefiro ficar assim, eu pra cá e eles pra lá. Eu acho que eu vou ficar um velho muito enjoado. Tem coisa que você precisa engolir, passar por cima, sujeitar. Há isso tudo aqui dentro do movimento e é questão de momento, eu volto atrás e passo a tratar a pessoa melhor ainda do que até aquele momento de discussão. É um desabafo. Mas, em relação à bebida, eu bebo de sem-vergonhice. Eu acho que tem 100% de chance de parar. Com a fé que eu tenho em Deus e com os meus protetores eu tenho chance de parar.
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ZÉ ROBERTO 84
“Nos dias mais tristes da minha vida, eu estou sorrindo”
“
Zé Roberto é um homem avantajado no sorriso. Tem uma facilidade imensa para preencher com felicidade o vazio das amarguras, na sua vida e na daqueles com quem convive. Por isso, não é muito íntimo das reclamações. É decidido por esbanjar seus dentes brancos sem demoras ou muitos motivos. Sofre o que precisa sofrer, sem muito drama e, quando o assunto é romance, muda de destino tanto quanto o coração pede.
Atinado para o comércio, corre sempre atrás de novidades e estratégias inusitadas de vendas. Aposta em uma boa comunicação e para isso procura se informar. De vez em quando, está dependurado ao telefone, buscando sinal para suas ligações ou para acessar a internet. Discorre sobre os planos que tem para quando conseguir pisar no pedacinho de chão pelo qual luta na reforma agrária. Se depender dele, ainda vai realizar em vida aquilo que o pai dele não conseguiu fazer. E, claro, perpetuar uma história de sorriso também na vida das suas filhas.
E
u sou confiante, eu penso que se a pessoa não acreditar nela mesma, ninguém vai acreditar. Eu acredito muito no que eu posso fazer. Sou bem quieto, em partes, eu não gosto de baile, porque sempre quando tem bebida tem discussão; mas para outras coisas, eu sou pior que menino, perturbo todo mundo. Tem gente que entra em depressão por ficar triste e se fechar na tristeza. Não conversa, não dá um sorriso. Eu brinco com todo mundo. Sou nascido em São João Nepomuceno, mas eu me criei em um sítio perto de Rio Novo. A minha infância foi na zona rural, junto com os meus quatro irmãos: três homens e uma mulher. O momento mais difícil da minha vida foi aos meus onze anos, quando meu pai faleceu. Eu estudava de manhã e comecei a trabalhar de tarde porque a minha mãe não conseguia receber a pensão do meu pai.
Meu irmão mais velho tinha casado, minha irmã mais velha estava para o Espírito Santo e eu tinha dois irmãos abaixo de mim. Então, eu comecei a trabalhar meio período para ajudar minha mãe no básico da casa. Eu estudei até a quarta série, na época a gente morava na roça e era difícil de estudar. Ali onde a gente morava ficava longe de São João e também ficava longe de Rio Novo. E para você fazer quinta série você teria que estudar em São João. Então eu preferi trabalhar e não estudei mais. Lembro que eu tinha caderno e livros, a gente tinha quase tudo, mas, de primeiro, um caderno era dividido pra duas, três matérias, não é que nem hoje que é um caderno para cada matéria. Antigamente a gente ia descalço, levava os cadernos no embornal. Era uma luta, mas foi bom, minha infância não foi ruim não. A casa onde a gente morava era da prefeitura, lá é 85
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chamada “ponte da represa”, de onde vinha a água que abastecia Rio Novo. Nesse lugar tinha uma caixa d’água e, naquela época, essa água abastecia a cidade inteira. Mas, um tempo atrás, minha mãe saiu de lá porque a água acabou, secou de uma hora pra outra, então ela teve que sair e morar em Rio Novo. Eu trabalhava em curral na Fazenda Bela Vista, que ficava cinco quilômetros da minha casa. Eu pegava uma mulinha da fazenda, para ajudar na locomoção. Todo dia eu pegava serviço às seis da manhã e parava às quatro da tarde. Eu tirava leite e amarrava vaca. Com treze anos, eu já tirava leite de quinze vacas sozinho. Eu tirei a quarta série e peguei o curral, tirava leite sozinho, mas eu nem conseguia colocar a lata de leite em cima da carroça, por isso, o moço fez uma banquinha na altura da carroça e era só puxar a lata. Tirava o leite lá nessa fazenda e o resto do dia ia fazer outras coisas, cortar capim ou cuidar de criação, tipo assim, o trabalho da roça mesmo. Camelô no Rio de Janeiro Depois, aos 18 anos, eu fui embora, saí de casa e fui para o Rio de Janeiro. Eu fui embora porque eu sempre fui desse jeito, muito decidido nas coisas. Um dia eu estava roçando um pasto lá perto de Rio Novo e um rapaz, brincando, passou a foice no cupim e como ele estava solto, rolou. O cupim estava cheio de abelha, a abelha desceu atrás de mim e me mordeu. Eu joguei a foice fora e falei que nunca mais eu ia pegar a foice. Só que esse “nunca mais” não durou muito tempo não (risos). Tinha um parque de diversões que estava em Rio
Jhenifer, filha de Zé Roberto
Novo e eu falei que ia embora com o parque pro Rio de Janeiro. Eu cheguei lá e pedi serviço para um cara, ele aceitou e eu fui embora com eles. Trabalhando nesse parque de diversões, eu vim a uma festa de exposição aqui em Rio Pomba e conheci minha ex-esposa. Eu fiquei com ela uma semana e a chamei para ir embora comigo, ela topou. Portanto eu morei com ela 16 anos, mas não conheci a mãe
dela, nem ninguém da família dela... Não foi por falta de eu não querer, até chamei ela para a gente vir pra eu conhecer, mas ela não quis. Com ela eu tenho duas filhas, a Jhenifer, de nove anos, e a Thaís, de quinze. Durante um tempo, eu morei no parque mesmo, eu dormi em barraca, só que as barracas de parque eram de chapa galvanizada. Com o tempo, eu consegui comprar um barraquinho lá em Corumbá, em Nova Iguaçu, e fiquei lá. Depois eu fui trabalhar de camelô no Maracanã. Trabalhei de camelô, depois eu fui trabalhar no depósito de gelo, que eu não sei se ainda existe em frente ao portão 19 do Maracanã, o depósito chamado Gelo Maraca. Tinha um casarão abandonado onde as pessoas iam ficar, se eu não me engano porque já tem um tempo, na Rua Visconde do Itamarati. Se, por exemplo, uma pessoa comprasse um barraco na favela, esta pessoa ia e passava aquele lugar no casarão por coisa de 200 reais. E você ficava com um quarto lá no casarão, que era em frente ao portão 18 do Maracanãzinho. Um lugar privilegiado, porém numa casa antiga. Eu fui morar nessa casa, a Thaís já tinha dois anos e eu fiquei um bom tempo desse jeito assim. Trabalhava no Gelo Maraca e também trabalhava de camelô vendendo cerveja, refrigerante e cachorro-quente lá em frente mesmo do Maracanã. Cheguei a vender bala no sinal também, era complicado trabalhar por conta dos guardas. Corri diversas vezes de policial para não perder as mercadorias. De volta para a roça Em 2000, eu decidi voltar para cá por causa da vio-
lência do Rio de Janeiro. Lá é um lugar muito violento, escapei um dia de morrer, assim de bobeira. A Thaís estava com dois para três anos, eu via a minha filha crescendo naquele lugar. A gente morava em frente para a Mangueira e era tiro toda hora. A gente cá embaixo via os tiros traçantes do Morro da Mangueira para o Morro do Macaco e isso foi me desanimando. No Maracanã, no ano de 1999, uma vez teve um tiroteio na saída do jogo do Flamengo e do Fluminense e não deu tempo de fazer nada. Saiu um monte de gente correndo na frente dos carros. Eu peguei a Thaís, coloquei o corpo dela rente a mim, ela era pequenininha, e eu fiquei atrás do poste. Só meus ombros ficaram de fora, porque se caso algo acertasse a gente, ela estava protegida e não ia pegar nenhum órgão vital meu. Com essa situação toda, eu fui desanimando porque não era bom para mim, nem para a minha família. Quando eu voltei pra cá, eu fui trabalhar num sítio lá em São João, na roça. Depois desse sítio, eu consegui trabalhar em uma fazenda em Goianá, onde eu comprei um terreninho e fiz uma casa. Nesse meio período, a Jhenifer já estava grande e depois eu larguei de trabalhar na fazenda e fui trabalhar com carroça na rua. De vez em quando tem umas coisas meio doidas na minha vida... Só que trabalhar com carroça estava ruim e eu deixei de trabalhar. Eu resolvi virar camelô, arrumei um dinheiro e fui pra São Paulo. Eu comprei mercadoria e comecei a trabalhar na praça de Goianá. Com o tempo, larguei de trabalhar de camelô porque eu estava tomando muito prejuízo e comecei a trabalhar em um sítio ali. Um dia eu comecei a 87
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conversar com um amigo, o Paquinha, e vim para cá para o acampamento. Uma reforma agrária diferente Eu sempre quis conhecer o MST por um motivo: eu sempre quis ter um terreno, uma propriedade para ter minha criação. Quando meu pai era vivo, falava na reforma agrária. Ele dizia que quando ela chegasse, que quando a reforma agrária viesse, o país, o mundo, iria mudar. E eu sempre acreditei muito no que meu pai dizia. Pena que ele morreu eu estava com 11 anos, mas a gente andava muito junto. Quando ele saía de charrete, eu ia com ele e o pai sempre dizia da reforma agrária. Só que ele falava de outro jeito, não do modo como nós vivemos. Ele falava assim que viria o pessoal da reforma agrária, chegaria numa fazenda e dividiria assim para as famílias que precisavam e queriam terra, mas ele não tava errado também, porque ele não sabia que precisava dessa luta toda de hoje. A gente não consegue conquistar uma terra sem luta, né, na cabeça do meu pai ele achava que seria diferente. Hoje eu vivo isso, eu digo com todas as letras que, se meu pai fosse vivo, ele estaria aqui hoje, lutando junto com a gente aqui. No começo eles estavam acampados dentro da fazenda. Eu cheguei até ir lá umas duas vezes, mas tinha um rapaz aqui que estava falando umas coisas meio que absurdas. Não era a realidade. Este moço que tinha lá dentro, e que está preso hoje, falava assim no meio da reunião que queria 150 reais de cada um pra arar essa fazenda toda. Não tinha saído a fazenda, não tinha decreto, nem terra, nem nada. Como que ele ia arar, plantar? Ia ser meio complicado. Aí eu peguei e desanimei. Foi só depois que eu conversei com
o Paquinha, um amigo que estava acampado, é que comecei a vir pra cá e a participar das lutas, viajar. Fui coordenador, fiquei aqui, gostei e estou aqui até hoje. No dente do palhaço A minha filha Jhenifer me deu uma força muito grande, logo quando eu separei. Ela veio pra cá, ficou aqui comigo uns cinco, seis meses morando direto aqui no acampamento. Os companheiros aqui ajudaram em muita coisa, igual no momento assim que eu passei um tempo atrás... Você sabe o que é ficar no dente do palhaço? (Risos). O pessoal aqui fica de piadinha, dizendo que eu tava apaixonadinho com uma mulher e ela me endireitou... Mas foi o seguinte que aconteceu: eu bebia uns tempos atrás e namorava uma mulher em um bairro de Juiz de Fora que chama Filgueiras. Eu terminei o namoro e vim pro acampamento. Daí eu inventei de pegar uma bicicleta de motor emprestado e falei que ia lá em Goianá comprar uma cachaça, porque tinha vez que eu cismava de ficar bêbado. Eu fui pra cidade, tomei umas cachaças e umas cervejas. Na volta, fazendo a curva que tem atrás da Igreja Católica de Goianá, eu acelerei demais perto do quebra-mola e como tinha uma areinha lá, a bicicleta rodou comigo e me quebrou todinho. Tinha uma árvore e também um muro e eu bati nele. Eu acordei com um o povo me abanando e uns falando. Me colocaram na ambulância e me levaram pra Rio Novo. Eu cheguei aqui no acampamento de ambulância, porque machuquei tudo, muito mesmo. Eu já tinha bebido, ainda bati com a cabeça. Eu deitei na cama, ama-
nheci e acordei no outro dia deitado no chão. Quando foi no outro dia de manhã cedo, ah gente, não consegui levantar não. Eu estava dando passos arrastando no chão, todo duro. Eu pedi Querubim pra pegar um copo de suco e eu comecei a desmaiar aqui, então me colocaram no sofá. Me levaram arrastando. Anotei naquela folhinha o dia que eu caí de bicicleta e disse que nunca mais bebia. Nunca mais coloco cachaça na boca (risos), quando dá vontade, eu me lembro da folhinha. Sofri José Roberto Pereira Paulino (Zé Roberto), 38 anos muito. Como que doía o esfolado! Eu só conseguia deique a gente vive, a gente divide o tudo. Divide as alegrias, tar de lado. Eu deitava na cama, para colocar a perna era divide as tristezas. Eu hoje eu não conseguiria viver sem aquele trem devagarzinho. A Jhenifer falava que eu podia movimento. deixar que ela me cobria, porque estava frio demais. Ela Eu acampei aqui para fora, depois do despejo. A épocolocava o cobertor em cima de mim, me ajudou muito. ca que eu vim pra cá tava com pouca gente. Depois de uns Eu fiquei arrebentado! quatro meses é que veio o decreto e aí aumentou um pouco o povo, mas na época que eu vim pra cá tinha umas 30 e Aqui está melhor tantas famílias, se eu não me engano. Que eu já estou aqui Hoje, graças a Deus, pra mim, falar de movimento tem uma média de um ano e oito meses, por aí. Muitas das sem-terra é falar de família, é falar de amor ao próximo. vezes, tem hora que a gente se sente triste. Em matéria dos Comigo não tem tristeza, detesto confusão e briga. Há picompanheiros que não vêm nos compromissos e afazeres cuinhas e isso há em todos os lugares, mas aqui a realidade 89
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Jhenifer, durante o Encontro Sem Terrinha 90
do acampamento. Que nem na virada do ano, que fizeram a ceia de Natal para os companheiros passarem tudo aqui e a maioria não passou. Naquela hora que está tudo bonito na ceia, a gente fica todo feliz, mas a gente tem a tristeza dos companheiros que não estão vindo, não estão contribuindo nessas partes. Aqui tristeza são poucas, alegrias são mais. Você não me vê ficar triste quase hora nenhuma, difícil eu estar triste. Esses dias eu estou até meio calado porque a minha filha está ficando com a mãe dela, eu sou muito agarrado com ela e fico mais calado, mas geralmente a gente é bem feliz. Se tiver alguém triste aqui, eu faço a pessoa ficar feliz, não tem como (risos). Eu já dancei até “na boquinha da garrafa” pra fazer esse pessoal rir. Eu imitava a Vera Verão, imitava até a Gisele Bündchen. Eu desfilava aqui. Talvez estava todo mundo calado, eu gritava igual Vera Verão e todo mundo ria. É ótimo. Vesti uma calcinha outro dia (gargalhada). Aqui é muito diferente. Eu andei bastante, viajei bastante, eu gosto de sempre estar saindo. O que não atrapalha a gente de não estar pensando “nossa, eu devia estar no Rio de Janeiro uma hora dessas” é o fato de estar em um ambiente que a gente gosta e ter um objetivo a ser cumprido, que é ser assentado. Então você esquece o que poderia ser na cidade grande e vê que aqui está melhor. Você vê hoje na TV ou na internet tantos problemas: assassinato, acidente. Você estando aqui, você fala: “eu não vivia, eu vegetava”. Aqui nesse acampamento, debaixo de lona, de um barraco de telha de amianto, cercado de bambu, eu estou vivendo no céu. Aqui assim você não tem problema, você
deita e dorme tranquilo. Conectado ao mundo Eu mexo na internet no celular, mas a Thaís, minha filha, me passou a perna esses dias (risos). Eu estava com meu celular, ela pegou e falou “ô pai, você me empresta seu celular, eu fico com ele esses dias, o meu tem internet também”. Eu falei que trocava por uma semana, que não tinha problema não. Na hora de pegar o celular ela falou pra eu ficar com o dela que ela ficava com o meu. E no dela eu não estou conseguindo conectar internet. Mas deixa ela, o importante é ela estar feliz. Depois eu compro outro. Daqui mesmo do acampamento a gente consegue entrar na internet, dentro da barraca, em qualquer lugar. Aqui é bom de acessar. Eu fico sabendo de tudo, inclusive procurando saber alguma notícia a respeito da Fortaleza de Sant´Anna. Através da internet é que eu fiquei assim, mais por dentro de como foi. Porque talvez assim, por exemplo, o Querubim, o Piorra, eles viveram o momento do despejo e tudo. Eles falaram como foi. Eu puxei na internet e a gente fica mais inteirado de como foi o processo. Sobre o andamento do processo é uma coisa que a gente não acha muito, mas sobre a Fortaleza de Sant´Anna a gente acha muito. Até do decreto, coisa nova, é bem difícil. Todas as duas minhas filhas eu converso com elas por telefone, todo dia. Quando a gente não se fala por ligação, a gente manda mensagem. No fim de semana eu desço pra Igreja Ministério Nova Maanaim, elas descem comigo. A gente sempre está em contato. Sempre tem preconceito na
rua, gente que debocha e zoa, mas quando você tem um objetivo, quando você está focado na terra e tem na cabeça que quer ser assentado, receber zombaria é um peso pequeno, nem atinge. Na minha família, a minha mãe gosta e é doida pra vir aqui. Mas ela é meio agarrada, ela é muito de ficar em casa. Ela falou que se ela aguentasse e se eu já tivesse dentro da terra, ela viria para me ajudar na terra. Visão para trabalhar Primeiramente o meu sonho é o seguinte: um dos meus maiores objetivos dentro do MST é o futuro das minhas filhas, estudá-las. E estar ali produzindo pra conseguir dar um futuro melhor pra elas. Melhorar a vida das minhas filhas, porque as duas estão lutando. Uma vez que você for assentado e você souber exatamente o que você vai fazer dentro da terra, você consegue melhorar em algum aspecto alguma coisa. Já tenho mais ou menos em mente o que vou fazer, tipo mexer com fruta. É uma das coisas que eu mais penso. Eu tenho várias sementes, mudas. Eu vou fazendo mudas na hora que eu estou com tempo, pra daqui algum tempo eu fazer enxerto. Tirar um leite talvez, mas fruta sempre tem saída, a banana, o limão Taiti... Você tem que estar com a cabeça muito focada no que você vai fazer, porque você está deixando de ter um emprego pra fazer seu próprio sustento dentro da terra, então você tem que plantar uma quantidade ideal pra você se manter quando tiver colhendo em época boa ou quando você não tiver nada pra colher. Porque o ano todo não é bom pra tudo, tem época que você vai fracassar em vender, 91
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então a gente não pode errar muito na plantação. O Zagallo está chegando Eu hoje trabalho na olaria. A motivação de estar ali é o acampamento. Eu cheguei à conclusão que ali eu ganho bem menos que se eu tivesse trabalhando de pedreiro na rua. Se eu tivesse trabalhando de pedreiro, em Goianá, eu estaria ganhando em média 70 reais por dia. Em Juiz de Fora eu estaria ganhando até mais. Aqui a gente ganha 40 reais, mas pelo menos eu estou perto do acampamento. Para mim não é muita vantagem por um lado, mas por outro eu fico aqui o tempo todo, só vou pra casa no fim de semana. Então eu estou contribuindo com os companheiros, qualquer coisa que acontece, eu estou perto. Outro dia nós fizemos tanta festa lá na olaria com o negócio do décimo terceiro... A Jhenifer chegou lá na olaria e viu lá escrito na internet um negócio do décimo terceiro. “Olha aqui, pai, governo paga treze salário”. “Não é treze salário não, minha filha, é décimo terceiro”. Aí começaram a chamar décimo terceiro de Zagallo. “O Zagallo tá chegando, o Zagallo tá chegando”. Só que a gente estava desconfiado que o décimo terceiro ia melar. Teve um dia que eu falei que para reivindicar o Zagallo que eu ia de saia e de blusinha trabalhar. Depois do almoço, eu vesti uma saia vermelha, curtinha e apertada, e fiz até peito com laranjas. E fui trabalhar. Cheguei lá, tirei aquela roupa, outro moço que também trabalhava lá colocou. Ele era baixinho, com uma bundinha empinadinha. Empurrando carrinho, com aquela sainha... (risos) Mas acabou que, na época do décimo terceiro, eu tinha uns seis a sete meses de trabalho só. Eu sei que eu teria direito a 6/12 ou 7/12, porque o
direito é relativo ao tempo de serviço que você tem, mas só que o patrão não me pagou. Tinha gente de oito a nove meses que recebeu 120 reais de décimo terceiro porque estava faltando muito e disseram que tinham descontado as faltas no décimo terceiro. Eu pedi foi só pro patrão comprar um botijão de gás, com a mangueira. Ficou em 145 reais. E isso foi o meu décimo terceiro. Aqui no acampamento, eu já fui coordenador do núcleo de quinta-feira. A responsabilidade do coordenador é estar bem atendo a tudo que acontece no acampamento e viajar também. Eu já fui pra Perdões, Sul de Minas, Juiz de Fora, Visconde do Rio Branco, Belo Horizonte, em reunião com vários movimentos sociais, sempre procurando aprender mais, porque o coordenador precisa saber responder às perguntas dos acampados. Eu viajava, ia pras místicas, passava as coisas certas pros companheiros. Agarrado ao MST A gente tem que saber conversar com os companheiros, saber colocar as palavras no lugar pra não falar coisa errada. Tem hora que é complicado ser coordenador, já me chamaram de volta, mas tem hora que eu não sei se quero não. Hoje a gente vê muitas das vezes, o movimento ficar agarrado para ser assentado, muito por falta de incentivo do governo. A realidade do campo é outra realidade, mas quando você está morando no campo você vê que a vida é muito melhor que está na cidade. Algumas pessoas saem do campo por falta de oportunidade de trabalho e chegam na cidade e não têm onde morar. Comprar uma casa é caro,
não tem como pagar aluguel. Vão pras favelas, vão pras encostas de morro. Vê aquele povo em Petrópolis. O custo de vida na cidade é muito alto. Para mim que já morei em cidade, eu acho que morar no campo é bom demais. Até as frutas que a gente tem aqui é diferente. Você vai ao pé de manga, chupa uma manga, ela está docinha. O tempo da natureza é completamente diferente. A gente passa umas dificuldades tem hora, mas você quer muito aquilo que deseja e as coisas vão se tornando mais fáceis. Tem hora que dá vontade de desistir, mas você para e pensa e volta atrás. Eu hoje voltaria a estudar, com tudo organizado. Um tempo atrás ia fazer a Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas tava complicado. Eu não morava aqui ainda, trabalha-
va de vigia patrimonial de uma firma que desaterrava o morro do aeroporto em Goianá, mas eu voltaria estudar sim. Então eu também quero muito ver minhas filhas estudadas, não quero vê-las fazendo só o primeiro grau. Quando meu pai faleceu, ele deixou pra mim uma charrete, com um cavalo. Eu quero o melhor pras minhas filhas. Um tempo atrás, eu consegui fazer uma casa, com ajuda de uns amigos meus, para as minhas filhas terem alguma coisa. Eu hoje estou aqui porque não quero deixar uma simples casa pras minhas filhas, não. Eu quero vê-las caminhando com as próprias pernas, eu quero vê-las podendo estudar. Serem o que elas pretendem ser um dia na vida, escolhendo o melhor caminho. O que eu puder fazer, eu vou fazer. Por isso eu estou agarrado aqui e só quero sair daqui pra entrar na Fazenda!
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GILBERTO AZEVEDO 94
“Eu não concordo com o que eu passei não”
“
Onde o Gilberto está pode saber que a meninada aglomera. Com alma de criança, brinca com todo mundo e de tudo: baralho, futebol, corda e o que mais aparecer. Com direito a ficar nervoso no meio do caminho, “pegar no verde” e parar de brincar... Ensina os menores a ajudarem nas tarefas também: leva para cortar galhos e fazer vassouras artesanais, para buscar balde de água e até deixa os mais curiosos o espiarem fazer limonada e broa de fubá no fogão de lenha. Brinca tanto para superar o fel da vida, que insiste em amargar alguns dos seus dias, superlotando seus pensamentos de ocasiões más.
E
u falo as coisas assim com as pessoas e elas não acreditam. Se o inferno existiu, eu estive dentro dele várias vezes. Eu não tenho medo de mais nada. Passei dentro dele e levantei sozinho. Sem ninguém me dar a mão. Ninguém nunca chegou e me deu a mão na hora que eu estava passando aperto. Com coisa que só eu sei. Passei sozinho. Meu pai morava na Capoeirinha. Ele levantava três horas da manhã e não tinha hora de parar. O patrão o explorava demais. Não tinha hora de parar. Dava roça para ele plantar e ele plantava roça. O patrão falava que a roça seria a meia. O pai entrava com o serviço e ele dava o terreno. Aí o pai pegava toda a colheita, levava para o paiol dele e ficava sem nada dentro de casa. Nós passando aperto dentro de casa. Nós moramos lá, mais ou menos, uns quinze anos. Até que o pai largou de trabalhar nessa fazenda e foi trabalhar na Coca-Cola. Ele sofreu um acidente lá e morreu. Nisso a mãe ficou sozinha com os sete filhos. A minha mãe saiu da fazenda sem nada, porque o encarregado falou que ela já não servia para mais nada. Eu estava com mais ou menos uns cinco anos, meu irmão estava com sete e a
minha irmã com três. O outro tinha oito e o outro dois. Aí começou a luta porque a minha mãe foi morar com a minha avó, que nos colocou num cantinho lá, no fundo do quintal dela. Meus tios começaram a falar que a gente estava perturbando demais. Nós éramos crianças, nós estávamos atrapalhando-os a dormir. Aí a avó nos expulsou de casa. Fomos morar de aluguel. A gente buscava osso no açougue para fazer uma sopa de macarrão, uma sopa de fubá para a gente comer, porque era o que tinha para comer. Aí eles não davam serviço pra ninguém. Eu não tive oportunidade nenhuma de estudar. Eu não tenho estudo. Não sei ler nem escrever. Eu fui até a terceira série só, mas mesmo assim empurrado. Eu não conseguia ler porque eu ficava pensando no sofrimento da minha mãe. Minha mãe ia trabalhar, levantava três horas da manhã para colocar comida dentro de casa, para sete filhos. Minha mãe enchia silo, apanhava lenha de metro, capinava quintal, fazia de tudo. De um jeito ou outro ela arrumava uma coisinha para colocar comida dentro de casa. Eu fui crescendo. Com doze anos eu fiquei independente e saí de casa. Fui cuidar da minha vida sozinho. Fui morar com minha irmã e trabalhar na Fazenda da Géo. 95
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Nessa época, como eu era menor de idade, eu ganhava só meio salário para fazer isso tudo. Fiquei trabalhando três anos nessa fazenda. Eu ganhava meio salário, e desse meio salário eu ainda tinha que tirar metade para pagar pensão, almoço e janta. Ainda tinha isso. Eu tinha que sobreviver com a metade desse meio salário.
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Muitos empecilhos Aí pronto: eu arrumei um emprego ganhando um salário. Levantando três horas da manhã e parando seis horas. Segunda a segunda. Não tinha folga para nada. Esse patrão falou que ia me dar um aumento quando eu fiz um ano, porque eu tava trabalhando pra caramba lá. Um encarregado falou assim para não me aumentar porque senão teria que aumentar para todo mundo. Eu falei para então aumentar porque todo mundo ali merecia aumento. O encarregado era meu parente e me ameaçou mandar embora; eu fiquei chateado com isso e comecei a juntar um dinheirinho para fazer o que eu tenho hoje. Eu comecei a esconder, a guardar esse dinheiro. Eu já estava nessa época com uns dezenove anos. Fui guardando dinheiro, guardando dinheiro e cheguei a 600 reais. Na época 600 reais era bastante coisa. O rapaz que eu morava com ele achou esse dinheiro debaixo do meu colchão, pegou ele e gastou. Voltei à estaca zero de novo. Eu ia comprar um lote para mim. Eu perguntei quem tinha mexido lá e ele falou que era ele. Eu perguntei por que e ele disse que eu morava na casa dele e ainda queria saber o porquê? Só que eu pagava a pensão para ele. Ele comprou uma bicicleta na época, que
era caro. Esse cara era o meu próprio irmão. Meu próprio irmão pegou meu dinheiro, acabou com ele e não me pagou. Ele me questionou o porquê de eu estar guardando dinheiro, se eu não ia arrumar namorada, se não ia fazer nada. “Um dia eu quero casar, eu quero ter família, eu quero ter um lote, não quero morar debaixo de fazenda porque eu estou vendo o tempo todo que eu estou sendo explorado”. Ele falou que se dependesse dele eu não ia ter nada na minha vida, que eu ia ser um “João Ninguém”. Passados uns três, quatro anos, eu já estava juntando dinheiro de novo. Eu escondia numa parede fora da casa e tampava com barro. Colocava dentro de um saquinho plástico, amarrava e tampava lá. E continuei pagando pensão. Ele falou comigo: – Uai, Gilberto, você está juntando dinheiro de novo, né? E eu falava, de mentira, que eu estava gastando tudo na rua agora. Eu fazia questão de vir para a rua, para falar que eu estava gastando dinheiro. Ele falava que sabia que eu estava guardando e um dia ele descobriria. E fui juntando, até que consegui chegar de novo aos 600 reais, 600 e poucos. O Genésio, que até está aqui no acampamento, falou que tinha um lote muito bom em Goianá e que se nós nos juntássemos, dava para comprar nós dois e rachar ele no meio. Eu falei que nós íamos lá dar uma olhada e eu entrava com ele. Meu irmão descobriu que eu ia comprar o lote. E falou comigo assim: – Eu sei que você vai comprar o lote com o Genésio. Se você comprar o lote hoje, amanhã eu te mando embora
da fazenda sem direito a um centavo. – Pois então, você pode mandar, porque eu vou entrar agora. – Mas como é que você vai entrar com ele? – Eu vou pegar com o Zé do Pedro mil reais emprestado. Sendo que eu ia pegar só 400. – Eu vou chegar no Zé do Pedro agora e falar com ele que se ele te emprestar o dinheiro você não tem como pagar ele, porque eu vou te mandar embora da fazenda, sem direito a nada. – Então vai lá, fala com ele. E um encarregado comandava a fazenda. Ele contrata e manda embora quem ele quiser, na hora que ele quiser, mas nessa época eu já estava começando a enfrentá-lo. E acredita que ele foi lá falar com o Zé do Pedro? Eu fui lá e falei com o Zé do Pedro que eu queria um dinheiro emprestado dele e ele me disse que dependia de quanto que eu queria emprestado, porque talvez ele não teria para me emprestar. Eu falei que queria 400. “Mas 400?” “400”. “O seu irmão disse que era mil”. “Não, eu tenho 600. Estou guardando, mas ninguém sabe onde está”. “400 você pode pegar lá em casa. E você paga do jeito que você puder, sem juros”. Passei na casa dele, peguei o dinheiro e entrei com o Genésio. Quando foi no mês seguinte, meu irmão me mandou embora da fazenda e sem direito a nada de acerto. Eu queria levar meu irmão na justiça e ele chegou chorando no meu pé pra eu não mandar ele na justiça não. E eu deixei por isso mesmo. Para falar a verdade, eu não sei até hoje porque ele fez isso comigo, se ele tem uma birra por-
Gilberto se diverte jogando carteado que eu fiz alguma coisa com ele, eu mesmo não sei. Nunca fiz coisa para prejudicar ele. Pelo contrário, eu ficava até nove horas da noite carregando pedra para ajudar a construir a casa dele. Já fui sofrer no Rio, estive quase morrendo para ganhar dinheiro e emprestei para ele, porque ele disse que estava com filha doente e depois descobri que ele estava 97
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pois dos 35 anos, que eu viva uma vida feliz. Que eu consiga aquilo que eu quero na minha vida, e ser feliz, principalmente”. E agora, depois dos 35 anos, eu com certeza sou um homem feliz. Mas eu já nasci sofrendo, com sete meses. Diz a mãe que com os primeiros dias que me pegou no colo, já falaram para ela preparar o caixão, que eu já tinha morrido. Eu fui andar direito, eu já tava com No meio das crianças, Gilberto revive a meninice quase onze anos. Eu andava uma semana e a outra era dando entrada num carro. E ele não quis me pagar o eu não andava. Eu tinha um problema na perna e não condinheiro. Ganhei um boi de um patrão para fazer festa no seguia andar. E, naquela época, quando eu consegui andar meu casamento, mas como nem namorada eu tinha, ele eu tinha que arrumar um serviço para eu poder trabalhar. E mandou eu vender o boi e colocar o dinheiro no banco. na outra semana já não andava. E o tempo todo eu tomaMeu irmão vendeu o boi para mim e ficou com o dinheiro, va nome de vagabundo, de que eu estava fazendo manha. nunca me devolveu. Quando eu tava com dor no estômago, para os outros, eu estava fazendo manha, porque eu não queria trabalhar. Eu Uma vida feliz ia trabalhar assim mesmo. Uma coisa que eu acredito é em Deus. Esse sim exisEu já passei muito aperto na minha vida e hoje em te. Quando eu tinha 23 anos eu falei “ô meu Deus, se o sedia eu não esquento mais a cabeça, eu não preocupo em nhor achar, meu Deus, que eu mereço sofrer, me dê forças trabalhar mais. Eu também tive problema psiquiátrico, por para sofrer, meu Pai. Ou o senhor me tira esse sofrimenconta de tanto problema na minha vida, que eu venho trato agora, ou o senhor me faz sofrer até os 35 anos. De-
zendo lá do fundo até hoje, eu fui pro hospital amarrado, de doideira. Eu nunca fumei, nunca bebi bebida alcoólica nenhuma, num tenho vício na minha vida. Eu domino a mim mesmo. Com muito sacrifício eu construí a minha casinha. Eu lutei, construí a minha casinha. Meu lotezinho são 400m². Pra você ver como eu sempre tomei na cara: chamei cinco pedreiros para poder esquadrejar lá para mim, não foi nenhum, porque achou que eu não tinha dinheiro para pagar. Eu peguei, eu mesmo e um companheiro lá da rua, para esquadrejar. Eu não sei ler e nem escrever, eu mesmo desenhei minha casa no papel. Esquadrejei ela todinha, fiz o alicerce da minha casa, levantei ela até no meio. Aí depois eu fui trabalhar para fora. E as pessoas sempre criticando “tá fazendo porcaria aí”. Poxa, se eu estou fazendo porcaria, me ajuda, me ensina. O tempo todo me criticando, meus irmãos não me ajudavam “Ah, Gilberto, não vou te ajudar não porque eu tenho que jogar bola”, “eu tenho que fazer isso ou aquilo”. Coisas bobas para fazer e eu lá. Trabalhava a semana inteira e sábado e domingo mexia na minha casa. O primeiro cimento que eu fui comprar para minha casa foi decepção de novo. Pedi o moço pra ele me vender um saco de cimento pra pagar na outra semana, porque eu recebia no fim do mês. – Pobre é uma desgraça, quando não vem comprar fiado, vem pedir de graça. Pobre não devia de nem por o pé na minha loja. Eu desci triste, fui lá na outra casa de material, pedi o Cardoso o saco de cimento para poder começar a minha casa. “Mas um saco de cimento? Pega 20 sacos de ci-
mento, rapaz, e paga do jeito que você puder”. Peguei um saco de cimento dele, fiz o que tinha de fazer e na semana seguinte paguei. “você vai querer algum?” Eu fiquei com tanta vergonha com o que tinha acontecido, que decidi que não. “Não, eu vou pagar o material e depois eu faço a minha casa”. Fui pagando o material e pegando as notinha. Quando chegou em um tanto que dava para eu levantá-la, eu peguei o material e meti bronca, comecei. Faz daqui, faz dali, consegui levantar minha casa. Hoje, graças a Deus, num é uma casinha ruim e, graças a Deus, eu sou feliz. O MST eu conheci numa época de desespero, eu estava passando um problema psiquiátrico muito forte. Eu estava em Goianá e, de repente, anuncia no rádio “a fazenda Fortaleza de Sant`Anna foi invadida pelo Movimento dos Sem-Terra”. Eu pensei “poxa vida, né, rapaz. Eu acho que essa é uma oportunidade para mim, mas como que eu chego lá?”. Porque na televisão mostra que o MST é violento. Eles fazem isso, eles fazem aquilo. “Seja o que Deus quiser, eu sou pobre igual eles, não é possível que eles vão me fazer de besta lá”. E eu vim embora. Vinha um doido junto comigo ver o movimento, por aqui. Mas na curva ele decidiu voltar e eu não ia desistir. Cheguei lá, aquele bando de homem sentado na porteira lá. Na hora que me viram, levantaram. “Opa!” “Opa!”. “O que que você está querendo aí?” “Eu queria ver como é o movimento aí, porque eu conheço só pela televisão”. Me falaram para entrar e procurar a Dona Cida. Conversei com o pessoal lá e perguntei se dava para eu ficar no movimento. E eu expliquei para eles os problemas que eu tava passando. Eles disseram que, com os meus 99
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problemas, eles não sabiam se eu podia ficar. Eu insisti que eu queria ficar, mesmo que não desse nada para mim. Me mandaram voltar outro dia e eu voltei no outro dia. Já era outra pessoa que tava dirigindo o acampamento, o Edilei. Peguei uma mentirinha, falando que a dona Cida tinha falado para eu ficar. Um companheiro disse que sabia que eu tinha uns probleminhas, que lá já estava cheio de doido. Eita ferro, acho que não vai dar para ficar... Falei os remédios que eu tomava e ele mandou eu voltar no outro dia. “Eu vou voltar de novo!” Fui embora pra Goianá, fiquei lá triste. Minha mulher disse que ia me largar. “Então você vai me largar, mulher, porque eu vou pra lá.” Voltei no outro dia de bicicleta. “Você está aqui de novo?”, “Tô”. “Então vai ficando aí”. E nesse vai ficando, já tem três anos que estou aqui (risos). Graças a Deus, já melhorou muito, já trouxe a família aqui. Eles já dormiram aqui, vêm no natal, ano novo... Dormiram lá dentro da fazenda também. Lá dentro da fazenda era muito bonito, tinha uma horta bem grande. Tudo plantado: jiló, alface, berinjela, tinha tudo, mandioca. Tinha fartura lá dentro. A gente vinha na rua, vendia. Trazia o dinheiro para lá. Aqui demos sorte porque está mais confortável. A pior parte já passamos. Era só lona, as águas eram carregadas no balde. Vendíamos muita muda, a gente tinha um horto, com alface, almeirão, tudo quanto é verdura. O despejo foi uma tristeza só. Primeiro porque a gente tava com aquela intenção de não sair, e a gente fica triste porque as pessoas chegam perto da gente, como chegou a polícia, chamando a gente de vagabundo. Isso dói. Não
conhecem o passado da gente e julgam o presente, falando que “a gente é vagabundo, porque está ali tomando terra dos outros”. Eu acho que quem luta por justiça não está tomando nada de ninguém, né? Quem toma as coisas dos outros é quem faz coisa errada e nós não estamos fazendo as coisas erradas. Riqueza não me interessa, mas a terra todo mundo precisa dela. O interessante da vida é você ter de onde tirar o sustento sem ter que depender de muita coisa. Se você tem a sua terra, você pode não ter dinheiro, mas você pode tirar uma mandioca e tomar um café, você pode plantar um feijão e comer um almoço. Dá para criar um bicho, dá para plantar. Um Gilberto muito melhor Aprendi muita coisa aqui dentro. A gente vai aprendendo a apanhar e a se defender. Cada dia de dificuldade que a gente passa a gente aprende. A gente pensa no passado e vive o presente de olho no futuro. A gente tem que fazer as três coisas. Se você errou lá atrás, você pode consertar agora. Você aprende a se defender com o passado. Se você tem um passado só bom, você não aprende. Eu venho todo dia aqui e durmo na minha casa lá em Goianá. Eu propus assim e eles aceitaram. Quando a gente for lá para dentro eu fico direto. Só não vim nos dias que eu perdi um dentinho, porque eu já sofri preconceito com isso, né? Quando eu era pequeno, eu chegava perto das meninas, com os dentes todos estragados, e elas me mandavam chegar para lá. “Sai pra lá, ô sem dente”. Eu era sem dente, magrelo, esqueleto, sarnento. Eram os quatro apelidos. Ainda viravam para mim e falavam que se fos-
se o meu irmão elas ficavam, porque meu irmão tinha uma aparência boa. Eu me sentia ruim com isso. Eu falo para os meninos todos aqui cuidarem do dente, porque é muito ruim. Meus dentes foram assim não é porque eu sou porco, mas porque eu não tive oportunidade. Quando eu comecei a ganhar meu dinheiro e ter oportunidade, eu cuidei dos meus dentes. E consegui arrumar mais ou menos. O pai mais maravilhoso Minha esposa eu conheSobrinhos, filho (sem camisa), mãe e esposa de Gilberto ci em Goianá mesmo. Cheguei perto dela e falei que queria namorá-la. Ela disse que queria ser só minha amiga. mais velha que eu, ela tinha 25 anos e eu 22, mas a mãe “Tá bom, bom começo para quem está gostando”. O temdela nunca tinha deixado ela sair sozinha. Ela nunca tinha po é que ia dizer se eu tinha chance ou não. Porque eu sou viajado assim. bem persistente. E eu arrumei uma outra moça porque eu Eu terminei com a outra. Deu um bafafá danado... No não ia ficar a vida toda esperando, mas era só ela falar que dia de ir para Aparecida nós brigamos. Eu não ia voltar queria, que o lugarzinho dela tava reservado. Ela reclamou atrás, eu sou homem, uai. Paguei a passagem, só não ia sair que eu não conversava mais com ela e tudo. Minha vida do meu lugar. Se ela quisesse, ela que mudasse de assentinha que andar. Nisso eu a chamei para gente ir junto para to. Chegou um outro rapaz lá que era afim dela, pedindo Aparecida do Norte, porque ela sempre teve fé em Nossa para eu trocar de lugar com ele. E eu não aceitei trocar Senhora e eu ia pagar as passagens, ia pagar tudo. Ela era a passagem. Eu não ia sair do meu lugar; se ela quises101
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se sentar com ele, ela que levantasse e trocava de poltrona. Nisso, chegamos a Aparecida do Norte, ficamos tranquilos lá. Ela me falou para chegar bem perto dela e eu já cheguei falando “eu sei que eu não tenho nada contigo, eu não devia brigar por sua causa, você me desculpe”. Ela me mandou esperá-la falar! E ela me mandou beijá-la. E estamos juntos até hoje, disso já virou casamento. Hoje a gente tem um filho de nove anos. A minha vida, a minha família é Fatinha, esposa do Gilberto, bordando tudo para mim. Meu filho foi presente de Deus para nós. Ele me diz que eu sou o pai mais maravilhoso, que ele com nove anos, ajuda a olhar uma granjinha lá perto de não sabe o que faria sem mim. À noite eu faço de propócasa, ajuda o tio dele olhando o serviço de pedreiro. Já está sito, finjo que estou indo direto para minha cama e ele diz no terceiro ano e é o orgulho da família. Minha esposa fica assim: “É, o pai da gente nem abraça a gente mais, nem na cidade, ela borda, tira o dinheirinho dela. Eu ganho um beija a gente. Eu fico tão triste...”. E eu falo “vem cá, rasalário mínimo, porque eu aposentei pelo governo, eu tive paz!” Ele vem, a gente conversa, abraça, ele conversa igual esquizofrenia. Eu quase fiquei doido mesmo, eu andava adulto comigo. no meio do mato, eles tiveram que me levar amarrado. Eu Meu filho é compreensivo quando eu não posso dar fiquei internado, porque é muita pressão. Vinha na minha alguma coisa para ele. Ele comprou uma bicicleta de 150 cabeça toda a pressão, toda a falta de valor das pessoas. As reais e um celular de 100 reais com o dinheiro dele. Ele, vozes na minha cabeça.
Sem obrigação Eu já passei por tanta dificuldade, que hoje eu estou bem em relação ao que eu passei. Eu imagino a minha vida daqui em diante numa coisa que eu sempre sonhei: trabalhar para mim mesmo. Eu não gosto de trabalhar, mas quando eu entrar na minha terra eu vou fazer aquilo que eu gosto, eu vou estar me divertindo. Fazer o que a gente ama não é obrigação. Trabalhar é você ser obrigado a estar no horário que o patrão está mandando, é receber uma mixaria no final do mês, é você ser obrigado a fazer aquilo que os outros mandam mesmo você não querendo. Agora, a terra sendo minha, eu vou plantar aquilo que eu quero e fazer aquilo que eu quero. A pessoa tem que olhar a justiça. Essa terra da fazenda foi roubada. Se a pessoa nasceu em berço de ouro não pode julgar quem é trabalhador. Quer falar do movimento? Venha aqui, conheça a realidade e fale do que aconte-
ce. Já perdi amizade por conta disso, por interferirem na minha decisão, por julgarem, por não conhecerem. Eu sou um cara que não tenho ganância, já levei muito tombo na vida. Eu fico chateado com as pessoas que só pensam no seu próprio umbigo, que só pensam nelas. E isso é em todo lugar, na minha família é assim. As pessoas me perguntam a minha história. Eu falo que eu não tenho uma história, eu tenho um pesadelo dos 35 anos para trás para contar. Se me perguntarem se eu quero morrer agora ou se eu quero voltar minha vida lá trás, para vivê-la toda de novo, eu prefiro morrer agora. Se for para passar o que eu já passei, eu não tenho interesse de viver mais. Agora se fosse para mudar ela todinha, com certeza, eu ia querer viver. Às vezes eu lembro o que aconteceu e ainda fico triste pelo que eu passei. Não precisava disso tudo, a pessoa passar tanto sacrifício por falta de apoio, sabe? E a própria família, o tempo todo, te atrapalhando. O tempo todo, pisando na gente. Eu não concordo com o que eu passei não.
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“É uma luta grande e, se Deus quiser, chegando lá dentro vamos ser mais felizes ainda”
“
Mulher de pele negra, lábios fartos e olhar profundo. Transparece, inicialmente, quietude em suas ações, o que pode enganar aqueles que se convencem diante da sua aparente fragilidade. Um pouco mais de convivência com esta acampada nascida em Piau- município miúdo que surpreende pela quantidade de bananas cultivadas-, para verificar a fortaleza de sua personalidade. Dessas pessoas intensas que, ao se colocarem no diálogo, fazem as palavras como que ressoarem no interior da gente, nos negando o direito à indiferença. Sem perceber, nos é impelida reação, seja qual for a natureza dela. Observadora minuciosamente atenta, é capaz de captar as cenas que, no geral, passam despercebidas aos olhares apressados. Encara, percebe e descreve-as de maneira tão reais e completas que nos projeta para o meio da situação. Quando fala da sua história, exige de si mesma coragem não somente para se expor diante do desconhecido, mas, sobretudo, para trazer à tona lugares que muitas vezes preferiria não revisitar, contextos facilmente desejáveis de permanecerem invisíveis. Ainda assim, não se faz inóspita diante do convite de mostrar-se. Opta por não dizer sua identidade, mas desvela realidades complexas, difíceis de serem esquecidas.
S
ou a terceira de sete filhos, três mulheres e quatro homens. Eu nasci em Piau, na mesma casa que mora a minha mãe hoje, porém era uma casa de barro com cobertura de sapé. Minha mãe ganhou seis filhos dentro da mesma casa, somente o último, que está com 19 anos, que nasceu na maternidade. Depois minha mãe fez a laqueadura, senão ela teria muito mais. Hoje tem quatro anos que eu não tenho o meu pai, ele bebia muito, a minha mãe também bebia muito. Eu morei em vários lugares quando era pequena. Morei em Coronel Pacheco, por perto aqui numa região que chama Tião; depois fomos para Piau, na casa onde morava a mãe da minha mãe. No dia de São Sebastião teve uma enchente muito forte, a casa era muito velha e caiu. Nós
perdemos tudo. Minha avó já era muito idosa, então descemos com ela e a deixamos na casa de uma tia. Nisso nós ficamos sem nada e o prefeito na época não era bom, não deu assistência nenhuma para a gente. Eu estava com oito anos, os meus irmãos eram um pouco mais velhos porque nós somos diferença de um ano, um atrás do outro. E não encontramos outra solução. Em Piau existem duas pontes; a famosa “ponte do Valdir” e a famosa “ponte da rua de cima”. Nós moramos nessa ponte que é do Valdir. Lá por baixo nós fechamos de bambu uma parte, fizemos um fogãozinho de lenha e por lá nós ficamos. Todos os que conheciam meu pai e minha mãe passavam e davam alguma coisa pra gente. Não era bom, principalmente quando a gente ia para o colégio, porque 105
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Piau, MG eles riam. “Eles moram debaixo da ponte”. E com aquilo, eles riam e faziam piadinha. Lá a gente tentava manter assim entre nós irmãos porque minha mãe bebia muito, ela vivia deitada. Ela bebia dia e noite! Durante essa moradia debaixo da ponte foi muito sofrido. Tinha morcego e tinha que usar aquela água do rio. Lá eles jogavam osso, jogavam lixo, a sujeira toda eles jogavam ali! Os maiores pegavam água, passavam em cima de um pano, que era nossa roupa mesmo, e colocavam pra ferver. E quando estava fria a gente tomava. Enquanto não esfriasse, a gente não tomava. Tinha dia que tinha comida, tinha dia que não tinha. Com isso, venceu o tempo do prefeito, entrou outro e fez uma casinha menor pra gente. Nós saímos de debaixo da ponte e voltamos para a casa que o prefeito construiu. Nesse meio tempo minha avó faleceu, então entramos pra casa nova, mas já entramos sem ela. E continuamos, não
desistimos não. A mãe foi com a gente. Eu tinha a minha irmã depois de mim, um ano mais nova, a gente que tirava o peito da minha mãe, dava de mamar pra ela e depois guardava de novo. Ia pra escola no dia que a gente queria. Não tinha ninguém pra falar nada pra gente. A mãe bebia, o pai bebia. Nós mesmos que tínhamos que nos virar com as comidas e tudo, mas nunca tiramos nada de ninguém. Pedíamos as vizinhas: “você pode arrumar uma caneca de arroz ou de açúcar?”, mas nunca tiramos nada de ninguém não. Quando não tinha nada, quando a gente não encontrava nada, a gente ia ao bananal que era da vizinha. Às vezes tava meio verde a banana, a gente comia assim mesmo. Quando a mãe acordava a gente falava pra ela “o mãe, você não vai parar de beber não?”, era sempre assim “para de beber, mãe”, “para de beber, pai” e aquilo não dava certo. Desengano Quando eu estava com nove anos, encontrei uma família que me acolheu e que é de lá também da região. O meu irmão, que era o mais velho, foi o primeiro a ir embora de casa. Uma família que também mora em Piau, por ele ser o mais velho e já conseguir trazer o leite da fazenda pra rua, levou ele pra trabalhar. E ficamos, minha irmã mais velha e eu, tomando conta dos outros. Nós sentimos muito porque a fazenda em que ele trabalhava era muito distante. A gente confiava nele pra poder sair na rua à noite... Depois que ele se mudou, a gente não saía mais nem à tardinha. Nem se quisesse jogar bola, não saía mais. A minha irmã também arrumou um serviço com uma prima
por parte de mãe em Juiz de Fora e foi embora. Eu fiquei sozinha com a minha irmã mais nova, de sete anos. Eu falei ‘poxa, ficou só eu, eu não posso deixá-la, não posso deixar minha irmã sozinha’. Antes de eu ir para essa família, eu saí para uma rua que tem em Piau e um rapaz perguntou pra mim e pra minha irmã se nós queríamos cigarro. Eu falei pra ele que a gente não queria, que a gente só estava procurando nosso pai e tinha errado o caminho. Ele falou que nosso pai tava na venda do Tito e nos deu a indicação de passar por ali. Nós passamos pelo caminho que ele falou. Só que por ali, tinha que passar no quintal de dois vizinhos para dar acesso ao bar em que meu pai estava. E nesse caminho, nós subimos uma rua de pedra. Quando chegamos lá em cima, eu passei pela primeira cerca e ele veio atrás. Eu passei pela cerca e ele me agarrou pelas pernas. Minha perna é toda cortada próximo à coxa por conta do arame. Ainda tenho as cicatrizes. Ele me puxou pela perna e eu agarrei nesses arames farpados, nisso ele rasgou a minha blusa. Rasgou tudo. Eu meti a mão no rosto dele, minha irmã pegou uma pedra cristal e também jogou nele. Ele me soltou, mas pegou ela. Nas costas dela tem uma cicatriz enorme. Nós ficamos sem blusa, mas ele não conseguiu nos estuprar porque eu dei duas pedradas na cabeça dele. Uma acertou no olho, ele tem uma cicatriz até hoje, e outra na cabeça dele. Ficamos sem roupa e corremos muito para chegar onde meu pai estava. E quando nós chegamos lá- ainda éramos novas, com os peitinhos de fora, só tampamos um pedacinho com o que sobrou da blusa-, falamos com ele: “pai, o fulano tentou nos estuprar”. Mas ele tava muito bêbado,
caído lá no chão e não respondeu nada. Dali a gente foi pra casa. Sentamos lá, contamos pra mãe, mas ela tava deitada no chão. Nós sentamos, choramos, tomamos um banho e colocamos outra roupa. E não saía na rua porque a gente tinha muito medo dele. Não ia mais pra escola. Eu só fiz o primeiro ano. Foi aí que resolvi ir embora com essa família que me chamou para morar no Rio de Janeiro. Eu falei “eu vou deixar minha irmãzinha, mas vai ser bom”, ainda falei com ela “vou te levar comigo, porque a nossa mãe não vai melhorar”. Nesse meio tempo, um dia antes da minha viagem, eu e minha irmã fomos sair para procurar uma gordura para fazer o arroz. Minha mãe estava sentada em um banco no terreiro, com um garrafão de cachaça vazio. Ela bateu o pé do garrafão e acabou quebrando a beirada da boca. Enquanto a gente estava na descida da casa da minha tia, um lugar que tinha muito pé de café de um lado e de outro, minha mãe não viu a gente e jogou o garrafão pra baixo. O garrafão caiu na cabeça da minha irmã. Quando eu olhei para trás, ela estava chorando e tinha muito sangue na cabeça dela. Nós fomos voltar pra casa para mostrar a mãe, mas quando nós fomos atravessar a rua, um carro atropelou a minha irmã. A condutora do veículo achou que tinha sido devido à pancada que a cabeça dela tava sangrando muito. E na hora eu não falei que o galão é que tinha machucado minha irmã, porque eu pensei que minha irmã tinha morrido. Essa mesma mulher que a socorreu é com quem minha irmã mora hoje. Ela socorreu, fez o atendimento, levou pra Juiz de Fora, deu os pontos. Eu tive notícia que minha 107
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irmã estava bem e que a senhora pediu para ficar com ela até o machucado melhorar. A condutora ficou sabendo que eu ia pro Rio e as condições da minha mãe, que ela não ia cuidar da minha irmã. Nessa minha ida pro Rio, minha irmã não voltou pra minha mãe, continuou com essa mulher até hoje. Hoje ela tem vinte e cinco anos e é formada em direito. A senhora que me levou pro Rio teve interesse em mim por causa da neta dela. A gente fez amizade no colégio, ela me chamou pra ir à casa dela e eu fui. A senhora falou que gostou de mim porque viu que a gente lá de casa não tinha o defeito que muitos tinham: o hábito de tirar as coisas dos outros. Porque sempre entramos na casa dela e víamos dinheiro em cima de alguma coisa e falávamos “o vento vai carregar o dinheiro da senhora”. Andávamos sim na rua, mas nunca tiramos nada de ninguém. Ela falou que foi por isso que gostou de mim, mas não era isso. Ela queria uma empregada. Ela era mais velha e o marido também, ele tinha Alzheimer e tinham dez filhos. Na minha chegada no Rio de Janeiro, eu pensei que fosse igual a patroa falou comigo. Ela me chamava de Pretinha, dizia que eu ia estudar e que eu ia ganhar meu dinheirinho para poder vir ver minha mãe. Eu falei que eu queria ver meus pais todo mês, ela disse que viria todo mês, mas não foi isso que aconteceu. Eu, com nove anos, fui pensando que eu ia estudar, só que chegando lá não foi isso que aconteceu. Eu limpava parede, eu torrava arroz, eu limpava cozinha, eu lavava roupa, eu lavava vidro, eu fazia tudo. Era isso que eu fazia! Eu nunca fui à escola. Além disso, ela não me deixava vir
a Piau ver a minha mãe nem o meu pai. Eu falava que queria vê-los e ela dizia “hoje você não pode ir porque nós não vamos pra lá. Nós vamos pra Saquarema... Nós vamos pra Iguaba”, porque eles tinham casa por todo lado. Às vezes, eu ia com ela pra Iguaba, mas chegava lá era pra limpar a casa da filha dela. Eu ia limpando na frente e os meninos iam rabiscando com esses gizes de cera colorido. Eles agarravam assim o meu cabelo, balançavam pra todo lado “tem que limpar, Pretinha, tem que limpar”. Minha cabeça é toda dolorida, eles me sacudiam pelo cabelo pra todo lado. Assim, eu fui apanhando idade, 10, 11 anos e nunca fui à escola. Quando meu pai e minha mãe perguntavam, essa senhora dizia “ah, a Pretinha está estudando e não pôde vir não”. Então eu fiquei esse tempo todo sem ter notícia deles, porque meus pais não sabem nem ler nem escrever. Para eles eu tava com uma família boa, eu ia voltar. Às vezes, meu pai ia bêbado, gritar lá na casa dela “cadê minha filha?” e ela falava que eu tinha mandado dinheiro e entregava uma mixaria para ele. “Pretinha está trabalhando, não pôde vir”, outra hora dizia que eu “tava estudando”, que eu não podia vir porque eu “estava viajando pra Saquarema”, “saiu com as minhas filhas, de férias, por isso que não pode vir”... Eu sempre dizia que o dia que ela me levasse pra visitar a minha mãe eu não voltava mais... A gota d’água Nisso eu fiz 11 anos, 12 anos, mas eu dei tanta sorte que eu não formei moça dentro da casa dela. Quando ela me trouxe de volta para visitar minha mãe, em Piau, eu ti-
nha 14 anos. Durante todo esse tempo eu fiquei lá sem receber nenhum dinheiro. Quando eu retornei, meu pai já estava muito doente, porque ele deu cirrose e tuberculose, mas ele estava vivo. Assim que eu cheguei, minha mãe falou “minha filha, você sumiu”. Eu falei que não tinha sumido, mas também não contei nada para ela que dentro da casa dessa mulher, o filho dela... Quando eu tinha 12 anos, eu fiquei uma noite sozinha com ele, porque ela foi pra Ponte do Valdir, abrigo de acampada por um ano e seis meses Piau e eu fiquei no Rio. Eu tinha costume de descer Eu o vi chegar. Ele entrou e eu o vi mexendo na minha perpara a casa da filha dela que é no apartamento de baixo, no na, perto do meu joelho. Eu o vi mexendo na minha perna! mesmo prédio em Copacabana. Eu descia para o primeiro Aí eu abri o olho depressa e falei alto “o que você quer andar para dormir, porque lá tinha uma neta dela que eu comigo?” e ele falou “você está muito nervosa, não precisar adorava. Nesta noite eu não desci porque achei que o filho ser assim não, eu vou só te ensinar umas coisinhas” “eu não da senhora não fosse dormir no apartamento, já que ele quero aprender não”. Ele continuou me alisando. Eu corri saía muito e também porque, de manhã, ela tinha deixado dentro do apartamento e entrei no quarto do casal, o único muita tarefa para eu fazer. Eu precisava ficar, senão eu não que tinha chave. Corri e me tranquei lá. Pela janela não ia conseguir dar conta. tinha jeito dele passar porque era no sexto andar... E fiquei Naquela noite que eu dormi no apartamento, eu colotrancada lá dentro, foi assim que eu dormi... Não dormi, quei meu colchãozinho no chão debaixo da janela da sala. 109
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claro, porque já tinha acontecido isso comigo quando eu tinha nove anos. No outro dia eu abri a porta devagarzinho, com muito medo. Eu tremia muito. Eu olhei, ele não estava no quarto dele, estava deitado na sala. Eu pensei “como é que eu vou descer para o apartamento de baixo pra falar com a irmã dele?”. Eu fui devagarzinho, na hora que eu consegui abrir a porta, ele continuou dormindo no sofá. Eu cheguei no apartamento dela e ela Local onde acampada relata ter sofrido tentativa de estupro questionou “Mas, você está aqui cedo...” Aí eu falei que o irmão dela queria me estuprar e que eu tinha muito medo porque um rapaz já tiparou em Piau eu nem entrei na casa dela, eu fui correndo nha feito isso comigo uma vez. “Eu não vou lá mais não, eu para a casa da minha mãe. Abriu a porta do carro, eu já quero ir embora para minha casa”. estava com a mochila e voltei para a casa da minha mãe. “Eu vou lá falar com a mamãe, vou lá conversar com Cheguei lá meu pai estava internado por causa da tubercuele”. Ela foi. “Essa menina está doida, inventando coisa”. lose. Não contei pra minha mãe, mas também não adianNinguém estava acreditando no que eu estava falando. tava porque ela estava bêbada. Depois disso, eu fiquei na casa dela até a patroa chegar. “Agora aqui eu estou bem, vou arrumar um serviço pra Ela falou pra mãe dela me levar para casa de volta. Eu pemim”... Eu arrumei um emprego em uma horta em Piau. dia todo dia, mas a minha intenção não era voltar. Quando Eu capinava pimentão e apanhava abobrinha nova para ela enfim me levou pra ver minha mãe, na hora que o carro a feira. Tinha uma mulher de um homem, ela trabalhava
junto lá na roça. Durante esse tempo que eu trabalhei nessa horta apanhando, eu não sabia direito e ela me ensinava. Capinar, ela que me ensinava porque eu não sabia direito. Nesse meio tempo a minha irmã mais velha voltou para casa. Ela teve uma queimadura nas mãos muito feia, chegou chorando. “Por que você voltou?” “Por que você está aqui? No meu pensamento você estava bem...”, “Eu também estava pensando isso de você, para mim você estava ganhando seu dinheiro...” Porque durante esses anos a gente não se encontrou mais, eu não tive contato nenhum com a minha família. Nisso retornou nós duas em casa. Ela sofreu muito onde ela esteve, porque lá eles mexiam com coisa de centro. E quando ela saiu de casa ela achou que o emprego fosse em casa de família. E não era, ela limpava o local que eles faziam benzeção, aqueles santos todos. Era um terreiro. E com isso ela pegou uma coisa na mão e nós ficamos juntas de novo. Trabalhamos juntas e assim a gente levava a vida. Despropósito Nessas idas e vindas, meu pai saiu do hospital, minha mãe era a mesma coisa, não mudava. Eu conheci o pai das minhas duas filhas quando eu estava com 14 anos. Meu pai bebia muito, minha mãe bebia muito e eu nem formada moça eu não tinha, que quando eu formei moça eu estava com 15 anos. Nós saímos para buscar lenha e a vizinhança sempre foi fofoqueira, chegaram lá na minha casa e falaram que um moço tinha feito mal a mim. Eu nem sabia o que dizer, eu não sabia o que era, com 14 anos, ser uma moça formada. Para mim era ter o seio grande. Olhava as meni-
nas da rua e falava “oh, meu Deus, tomara que o meu cresça também, para eu ficar moça formada”. Eu achava que era isso. Aí a vizinha falou pra minha mãe “É, você fica bêbada, você e seu marido. Ele fez mal à sua filha”. Quando eu cheguei em casa do serviço, meu pai tinha pego uma vara de ferrão que eles usam para guiar os bois. Ele me chamou, muito bêbado, me pôs do lado assim desse moço e falou com ele que não me queria mais em casa, que ele teria que me levar porque ele tinha me feito mal. Meu pai me mandou embora e disse que ele teria que assumir. Eu falei que só via ele na rua, falava oi e pronto. Ele não acreditou. Hoje eu sei o que ele tava querendo dizer, mas na época eu não entendi o que estava acontecendo. Tive de ir embora para a casa da mãe dele. Ele me levou dizendo que era homem, mas que não tinha feito nada comigo. Cheguei lá e a mãe dele me colocou em um quarto separado dele. Ela me perguntou se eu era moça formada e eu nem sabia o que era isso. Ela sentou comigo e me explicou que as pessoas estavam achando que a gente tinha passado a noite junto, que a gente tinha tido relação sexual. Aí que eu comecei a cair a ficha. Ela me explicou como as coisas se davam e sobre o que acontecia no corpo da mulher, a menstruação e tal. “Eu não tenho isso não”. Ela tinha duas moças e eu perguntei se elas tinham aquilo e elas que me contaram o que acontecia. Quando eu formei moça, eu estava quase com quinze anos. Foi quando eu engravidei da minha primeira filha. Naquela formação eu dormi um tempo separado, depois eu saia na rua e todo mundo falava que a gente estava morando junto e eu pensando o que seria da minha vida... 111
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Todo mundo falando que eu era casada. Eu não tinha mais nada o que fazer da vida, então aceitei dormir com ele. Passamos a viver na mesma casa, ele tirou um quarto para gente, aí que eu tive relação sexual. Mas assim, eu nunca, como posso dizer, eu não fui apaixonada por ele, entendeu? Ele teve muito carinho comigo, ele gosta muito de mim até hoje. Mas eu nunca senti amor por ele. Eu tive relação com ele, mas porque não tinha mais nada a fazer da minha vida. Depois de nove meses, ganhei a minha filha e continuei morando com ele. Morei com ele 12 anos, tive outra filha com um ano e sete meses de diferença da outra. Vivi em uma casa que é um horror. Minha luta não parou, para criá-las eu trabalhei na roça, plantei inhame, milho, colhi nas colheitas. Ele vendia as colheitas e eu achava que ele ia arrumar a casa para a gente morar. Ele ia pra Rochedo de Minas, gastava o dinheiro, depois do mês ele voltava sem nada e deixava para nós um pacote de macarrão e uma lata de óleo. E assim, sabe, vivi com ele, mas todo dia pedia a Deus, que se Deus existisse, pra ele me dar uma companhia boa, mas que me aceitasse com as minhas duas filhas, que eu não as abandonava não. Uma nova história Foi assim que apareceu o meu companheiro de hoje. Ele é pedreiro. Conheci assim sentada em uma beirada lá na rua, tava pensando “meu Deus, o que eu vou fazer da minha vida? Eu não tenho nada. Como que eu vim parar aqui desse jeito? Vivo com muita vergonha de sair na rua. O que eu tenho que fazer?”. Eu estava sentada, ele chegou
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e botou a mão em cima do meu ombro e me perguntou o que estava fazendo ali, eu disse que pensando na vida. Ele contou muitas coisas dele, que não estava bem com a esposa. Daí todo dia que ele vinha do serviço, a gente conversava um pouquinho. Ele me perguntava “você sofre muito, não sofre?”. Então eu falei assim que eu sofria porque eu pedia a Deus para mostrar qual caminho seguir. Foi aí que eu decidi. Ele me chamou para morar com ele, mas eu disse que não estava preparada ainda porque ele bebia muito. “Já vivi isso com pai, já vivi com mãe, sabe, eu não quero isso pra mim”. Ele me perguntou “e se eu parar?”. “Aí se você parar e me aceitar com as minhas duas filhas, eu vou, mas depois que você sair também da casa que você vive”. Porque eles viviam na mesma casa, mas o corpo era separado. Assim fiquei um ano conversando com ele, ele separou, alugou uma casinha na mesma rua, mas um pouco acima. E eu resolvi tentar. Eu saí dessa casa que eu vivi com o pai das minhas filhas e a única coisa que levei foi a televisão, não quis mais nada. Eu falei com ele, não saí escondido não. “Eu estou indo embora, arrumei uma pessoa pra mim. Estou levando minhas duas filhas e não vou voltar”. “Mas por quê?” Porque são vários pontos: nós nos conhecemos de uma maneira tão difícil e depois que surgiu minha filha mais nova, tentaram abusar da minha bebezinha e ele não tomou nenhuma atitude. Eu me decepcionei muito com ele porque mesmo a gente passando dificuldades, trabalhar na roça, ter que levar o neném pra roça e colher, meu ex-marido levava tudo embora. Eu me agarrava naquela casa. “Meu Deus, eu não posso voltar pra casa da minha mãe com
as minhas filhas. Agora eu tenho duas filhas, não posso voltar”. Eu estava ali ainda, mas depois que aconteceu isso com a minha menina, ele não tomou nenhuma atitude. Eu falei então “eu vou-me embora, porque aqui uma é mais velha e a outra é mais nova. O que vai acontecer? Vai acontecer quase o que aconteceu comigo, vão estuprar minha filha aqui e ninguém vai fazer nada!” Eu fiquei sabendo do abuso, porque o pai dela tava para este Rochedo de Minas, eu fui atender o orelhão que tinha por cima da casa, num barzinho que tinha em frente- e ainda tem até hoje. E deixei minhas filhas com a avó delas e pedi para ela dar uma olhadinha nelas por mim. Eu pus o neném na cama e a mais velha no berço. E saí pra atender o telefone e voltava rapidinho. Eu nunca soube ficar no meio da rua. Eu ia e voltava rápido, com medo delas chorarem. Ela disse que ia olhar. Do lado tem a casa de uns vizinhos que bebiam e fumavam no meio do mato. A casa era cheia de homem, eles fumavam muita droga lá. Nisso um rapaz passou a cerca da minha sogra. Ele estava acostumado na casa dela, era colega do pai das meninas e também do meu irmão. Estava sempre ali com a gente. Ele pulou a cerca e a minha sogra falou pra ele dar uma olhadinha nas meninas, pra ver se estavam dormindo ou acordadas, porque eu estava no telefone. Ele desceu e ela disse que estava mexendo na panela de arroz, torrando arroz, coisa rápida. Quando eu cheguei, eu olhei assim, passei nela e perguntei se ela olhou as meninas para mim. Ela falou que sim, que estava tudo bem, que tinha mandado esse moço olhar. Quando eu olhei para a minha filha, estava tudo no
meio das pernas dela. Aí tirei a roupa dela, tirei a fralda. “Não! Ele estuprou minha filha!” Minha preocupação era aquela. Tirei a roupa dela e chamei minha sogra pra ver o que ele tinha feito. No desespero chamei a polícia e também o Conselho Tutelar. Peguei minha filha e levei em Juiz de Fora para ver se ele tinha feito mal com ela mesmo. Nesses intervalos, a polícia veio para casa da minha sogra e o prendeu. Eu lutei muito na justiça para provar que o esperma que estava no meio das pernas da minha filha era do rapaz. Dei muita sorte porque o lençol era novo, eu tinha colocado na cama naquele dia, não tinha usado com o meu marido ainda... A conselheira me aconselhou a recortar o lençol, que tinha espermatozóide, aí eu falei com ela que o lençol era novo, que tinha colocado naquele dia. A minha sorte foi essa. Eu coloquei a fralda e o lençol e entreguei. Na justiça ele colocou dois advogados particulares, como eu só tinha o do Estado, eu não ia ganhar nunca. Mas ele sabe, ele sabe que o espermatozóide era dele. Não tinha possibilidade de ser do meu marido. Eu não consegui falar com meu marido em Rochedo de Minas. Se eu tivesse esperando por ele, não teria jeito. Só no outro dia consegui falar o que tinha acontecido. Ele não voltou e aí, quando ele veio, eu falei com ele que nós não íamos viver mais juntos. Ele ainda brigou comigo. “Você tinha que ter levado a menina”, “ela tava dormindo”. Graças a Deus, ele não chegou a estuprar a minha filha, só jogou por fora. E assim eu saí dessa casa. Vivi muito tempo com o meu novo companheiro na casa da mãe dele. Ele parou de beber. Nós estamos juntos 113
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já tem 10 anos. Graças a Deus, não tenho o que reclamar não. E foi com ele que eu vim pro acampamento... Eu já tinha ouvido falar do MST na televisão, de como é que era, mas assim, na nossa cidade não. Eu via o pessoal comentando “os sem-terra invadiu a Fazenda Fortaleza de Sant`Anna”. “Cambada de vagabundo foram lá e ocuparam”. E meu marido falou assim: “Vamos lá conhecer?” Eu falei, “vamos”. Só que ele veio na frente ver como era, como tinha de fazer pra entrar. Tinha 20 dias que eles tinham ocupado. Aí eu comecei a vir, mas assim, aos pouquinhos. Meu marido montou uma barraca pra ele. Eu vim aos pouquinhos, fiz amizade e comecei a frequentar. Eu pedia coisas os outros de fora, porque eu via a dificuldade que era. “Vocês não querem doar nada lá para o Movimento não? Tem muita criança lá.” Eu sempre tive um carrinho, sabe? Vinha em uma Kombi das vizinhas, a gente pedia quando era muita coisa, muita roupa. E assim fui chegando no MST. “Poxa, lá passa muita necessidade, mas eu nem me espanto com isso, porque eu já passei também”... Fogão de lenha, não é nada espantoso pra mim. Muitas vezes as pessoas do Movimento olhavam para a gente, falavam que eu não sabia fazer nada. Eu ficava ouvindo... “Eu sei. Eu sei plantar, eu sei cozinhar, tudo que vocês fazem aqui eu sei. Carregar água eu sei também, pode até não parecer, mas eu sei também”. Fiquei um ano lá dentro com eles. Depois que eu tive um problema com um filho do meu marido. Ele tem muitos filhos, são onze ao todo. Um deles se perdeu no caminho das drogas em Juiz de Fora e ele tem três menininhas.
Nós tivemos que afastar do Movimento, porque tava muito difícil. Precisamos interná-lo porque ele usava o crack e todo tipo de droga que aparecia. Ele tinha sido despejado, as meninas estavam no meio da rua, então dividimos um espaço na nossa casa para eles. Juntaram-se os irmãos, fizeram dois quartos pra ele e afastamos do MST. Nesse afastamento nosso, eu falei que eu queria que a coordenadora dessa nossa barraca para quem ela achasse que merecia, que a gente não ia levar nada dela. Ela falou que ia ficar aguardando a gente, porque sabia que a gente ia voltar. “Assim que tiver tudo bem, nós vamos voltar”. E saímos, acho que ficamos seis meses fora. Foi onde eu conheci o despejo. Nós vimos na televisão, eu falei com o meu marido “os nossos companheiro foram despejados”, ele não acreditou. Ele estava chegando do serviço. Estava passando no jornal, então nós viemos para cá. Quando chegamos, estava todo mundo já aqui, porque ninguém esperava o despejo. Muitos foram embora, quem ficou foi o Gilberto, o Querubim e a Brazilina, e nós que viemos com eles. E nós estamos até hoje. Não é fácil, não é fácil não. Nós temos os adolescentes e eles querem as coisas. Nós trabalhamos no fogão, nós ajudamos na cozinha. Até lenha a gente trabalha nesse mato. Os novatos criticam a gente, porque olha para a gente, pensa que é uma coisa que não é. Discutem, debatem. Nem tudo que vê pode se comentar, que é um comentário maldoso, errado, machuca a gente. Humilhação atrás de humilhação Nós mulheres fazemos tudo que o homem faz, porém
que o homem tem mais força. Vou eu, vão minhas vizinhas, nós arrumamos uma bota, vestimos uma calça e limpamos o banheiro. Enchemos caixa d’água, tudo isso nós fazemos. A dificuldade que nós encontramos é porque hoje em Piau as portas fecharam pra nós. Essa é a nossa dificuldade: por saber que nós participamos de Movimento, se fecharam as portas porque o pessoal é contra. Na área de trabalho e na escola nós estamos com muita dificuldade. Nunca antes tive problema com colégio, no final do ano nós tivemos. Uma aluna disse que ia matar minhas duas filhas por elas participarem do MST. Já tinha procurado a escola quatro vezes por causa de ameaça. Eu pedi à coordenação que convidasse todo mundo, outras escolas, pra vir conhecer como é que é o acampamento, para passar para eles que nós não somos ladrão, explicar melhor o que é o Movimento. Em novembro de 2013, nós fomos para a promotoria de Rio Novo, porque lá atende a Piau. Em uma quarta-feira, uma aluna negra, companheira das minhas meninas, foi agredida. Eles arrancaram o cabelo dela, na frente assim, porque a diretora simplesmente disse “resolve para lá, com
Antiga casa da acampada ela lá fora”. Eu falei com minhas filhas para não brigarem em sala porque eu ia conversar na escola. Quando eu fui lá e conversei com o diretor ele riu. “Olha, vocês estão nisso? É por isso que elas ficam excluídas na escola. Vocês estão naquele lugar?” ”Nós participamos do MST porque pra nós lá é uma lição de vida. Sabe, você deveria nos visitar lá pra você ver como é bom.” “Ah, tá, pode deixar que eu vou falar com a aluna”, mas não deu a mínima. Eu não ia deixar fazer com as minhas meninas o que tinham feito com a outra, no dia anterior. Eu fui lá quatro vezes. Decidi sair só com a polícia, porque elas es115
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outros”. Não existe isso! Dividiram a sala do nono ano, fizeram um bonde. “Este aqui é o bonde, se você não entrar na turma do bonde, o coro come. Lá fora nós vamos resolver contigo”. Falaram com as minhas filhas que se elas contassem pra mim e eu fosse lá que depois da aula elas iam matá-las. Eu não sabia se a aluna estava com alguma faca, com alguma coisa na mochila. Levou o irmão para ficar na porta da escola esperando minhas meninas. Chamaram a polícia. Chamei a mãe Cópia de denúncia no Conselho Tutelar da aluna, ela disse que “o grau de preocupação dela era desse tamanhozinho, tavam maltratando as minhas filhas. Chamando de “piporque ela era uma pessoa que trabalhava.” Eu também ranha, nega vagabunda, cabelo de chapinha, lagartixa de trabalho, eu não tenho tempo de ficar na porta da escola parede...”. A diretora sabia que minha filha tem depressão resolvendo problema porque eu luto pra criar meus filhos. por causa disso. Ela tem problema de tireóide. Chamam Saindo de lá, do Conselho Tutelar, falei pras meninas a minha filha de adotada, de anão de jardim, porque ela é saírem de cabeça erguida. Elas saíram chorando e eu falei baixinha. Na hora do lanche, ficavam falando que os sem“não chora”. Todo mundo olhando. Com as férias, estamos -terra tinham que apanhar mesmo na boca, porque “não aguardando a Promotoria nos chamar. Nós vamos enfrenvalem nada, são uma turma de ladrão. Só sabem roubar os tar muito isso ainda. A gente passa as dificuldades, mas
está sempre lutando para mudar. Nós vamos continuar, nós queremos continuar. Meus próprios familiares acham que é loucura a gente estar aqui. Minha mãe veio aqui e se espantou, falou que eu não precisava disso. Eu vivo na minha casa, mas eu não tenho terra... – Não tem luz não? (Risos). – A gente esquenta água, faz as coisas aqui direitinho. – Mas, minha filha, você já sofreu tanto. – Já, mas depois que eu cheguei aqui no Movimento, a minha cabeça funciona de outro jeito. Eu já tive depressão, qualquer barulhinho eu tinha medo. Hoje eu não tenho medo. Eu só não consigo ver uma pessoa assim agarrada na outra. Eu não tenho controle. Eu faço psicóloga, para tratar disso. Meus filhos aprenderam a dividir as coisas com as outras crianças, estão aí junto com os coleguinhas. Lutam capoeira, fazem oficinas. Meu filho uma vez tomou uma facada na escola de um coleguinha e ficou traumatizado, hoje, aqui no acampamento, ele não é depressivo mais. Quando eu o coloquei na escola da Prefeitura, com cinco anos, trabalhei com ele o ano todo que a escola era boa. No finalzinho do ano o coleguinha o atingiu com uma faca por uma simples bobeira. Um menino perguntou para ele se ele já tinha visto a mãe dele pelada, ele respondeu que não, e ele disse então que ele ia aprender a ver. As professoras não deram falta dele, quando o encontraram, ele tava cheio de sangue no banheiro. Quando ele chegou em casa, de cabeça baixa, percebi que tinha algo diferente. A roupa tava cheia de sangue, os dentinhos caindo... Ele sentou e me contou. A escola
estava fechada à noite. Ele urinou a noite inteira, achando que os coleguinhas estavam dentro de casa. Demorei três dias para achar o diretor. Peguei um laudo médico, peguei o laudo do dentista e fui diretamente ao Conselho Tutelar, porque não encontrei ninguém na escola. O dentinho dele teve que ser arrancado e ele precisaria fazer seis anos para o outro dente crescer. Tivemos que passar por tudo isso. As coisas ficaram arquivadas no Conselho Tutelar sem levar para a Promotoria. Humilhação atrás de humilhação. Eu consegui provar tudo, achei o aluno que tinha levado a faca. Encontramos testemunha. O mesmo menino, que queria bater no meu filho, tinha sido estuprado na semana anterior. Meu filho não era filho de soldado como ele, era filho de trabalhador. E não merecia nem a facada, nem o sorriso do jeito que estava. No Conselho Tutelar, durante a entrevista ele contou tudo. – A andorinha tirou o seu dentinho?. – Não, não foi a andorinha não. Bateram em mim. Os meninos envolvidos foram transferidos para outros colégios. Continuei indo ao Colégio, continuo indo. A Promotora me autorizou a gravar como eles nos atendem, o que nossos filhos passam. O meu filho toma remédio porque ele é muito nervoso. Ele participa do Movimento e tem tentado vencer os complexos, os medos. Hoje eu luto com ele. Ele estuda não é porque ele quer, é porque eu mando ele ir. Minha filha mais nova também toma remédio, ela não chegou a gerar o estômago todo, os remédios que ela toma são muito caros. A alimentação dela não é barata, a gente pede os amigos pra doarem. A sustagem, o 117
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leite, e o tratamento em Juiz de Fora são muito caros. – Que isso, você é magrinha assim porque vai ser jogadora de vôlei. Eu não os deixo afundar, mas tem momentos que a gente que é mãe e que é pai é que acaba afundando. Eles dormem e eu sempre digo. É aí que a gente senta, chora um cadim. “Ô meu Deus, está tão difícil agora! Mas eu tenho esperança que vai melhorar”. Entre familiares A gente continua a vida e Moradia da mãe e dos irmãos da acampada só minha irmã mais nova que se deu bem. Estudou, formou, mas patrão dele, ficou na cama, precisou de empregado quase esqueceu de nós. Só a vi quando meu pai faleceu, tem quacomo um enfermeiro, ele a trocava e tudo. tro anos. Eu consigo falar com ela por telefone, mas ela Quando foi pra fazer o acerto, ele não conseguiu pornunca tem tempo pra visitar a gente. Ela subiu na vida e se que ele é hipertenso. Eles o pegaram, levaram pra fazer esqueceu de nós. o acerto no Ministério do Trabalho. Não sei o que eles E assim foi. O meu irmão seguiu a vida dele, trabaarrumaram, ele assinou uma folha que deram e já não tilhou muitos anos, o patrão dele morreu tem uns dois anos. nha direito a nada. Passou a beber, beber e deu um surto. Por esses anos todos trabalhados na fazenda, ele não reFicou 80 dias no hospital psiquiátrico e hoje toma muito cebeu nem um centavo e, por isso, ele passou a dedicar remédio. Está lá com a gente, mas nunca mais é a mesma totalmente à bebida. Ele bebe todos os dias, ele fala para a pessoa. Tem mês que ele vai muito bem, tem mês que ele gente que todos os dias ele pensa que ele trabalhava geral, dá recaída. Dana chorar, tenta suicídio. Faz acompanhamexia com vaca, cavalo, fazia de tudo. Até a comadre do mento psicológico, mas não é o mesmo mais.
Hoje minha mãe não bebe mais. Hoje não bebe mais, porque tá com 52 anos e também é vítima do câncer. Está lutando contra o câncer que atingiu a cabeça, a nuca e afetou o útero. Já retirou o útero, o ovário, a mama esquerda; além de ser hipertensa, é diabética. E meu pai não resistiu e devido à bebida também, ele deu infarto agudo. E assim nós vivemos hoje. Temos uma casa, mas ela está precisando de reforma urgente, porque ela foi condenada pela Defesa Civil, porque choveu e ela rachou no meio. Foi aprovada três vezes na Câmara, mas o prefeito ainda não mexeu. A luta pela felicidade Estamos aguardando entrar lá para a Fazenda. Eu acredito que todo mundo vai conseguir. Eu tenho muita disposição de plantar uma horta. De vender na rua. De cuidar de galinha, de tirar ovo. Eu não tenho estudo, mas eu sou inteligente. Já mexi com comércio. Já tive trailer, só fechei pra cuidar das minhas crianças. Eu fiz só a primeira série, o resto eu sei porque meus filhos estudam e eu acompanho eles. Eu fiz praticamente o ensino com eles. Quando chegou na quinta-série é que eu agarrei. Eu falei com as meninas que a mãe agarrou e vai repetir (risos). Elas foram para frente e eu estou junto com elas tentando acompanhar. Tem os momentos que eu sou amiga, tem a hora que eu tenho que apertar um pouco e tem a hora que nós somos todos crianças (risos). Eu justifico que o médico é quem mandou. Tem que fazer caminhada, não pode ficar parado, tem que fazer exercício! Juntamos as mulheres e vamos jogar peteca, jogar futebol,
fazer uma caminhada. Se ficar todo mundo reclamando, a gente acaba ficando doente. Então, espera aí, vamos fazer alguma coisa para distrair a cabeça. Convidamos os homens contra as mulheres, vamos jogar uma peteca ou andar de bicicleta... É um sonho meu estudar e me casar, porque eu não sou casada. Eu gostaria de casar aqui. Meus amigos estão tudo aqui. A minha família está toda aqui. Depois que passar esta dificuldade grande, tenho certeza que muita gente vai ter vergonha de ter desprezado a gente, de ter fechado as portas pra gente. Estamos esperando! Antes eu era muito triste, não tinha vaidade nenhuma, ficava pra baixo. Incentivava meus filhos, mas eu mesma era muito dependente do meu esposo, tinha uma estima-baixa, sem ânimo para nada. Tinha uma mágoa muito grande da minha mãe, falava que se meus pais morressem nunca perdoaria por ter transformado minha vida em um inferno. Fui me fechando totalmente. Depois que cheguei aqui, me apeguei aos acampados. É um apoio a mais. Hoje eu gosto de cuidar de mim, de me arrumar mais. Nunca desisti e quero estudar! Eu me recuperei, graças a Deus. Hoje eu posso falar: “a mulher de hoje está recuperada”. O que está faltando para minha alegria é só eu me casar. Nos momentos que eu mais precisei, o meu marido esteve comigo, lutamos juntos. Nós estamos ali sempre. Estamos juntos tem onze anos. Só falta o nosso casamento mesmo, vai demorar um pouco, mas vai sair. Juntas comigo, são mais três querendo casar, vamos estrear a Igreja lá dentro da Fazenda. É uma luta grande e, se Deus quiser, chegando lá dentro vamos ser mais felizes ainda!”. 119
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A REOCUPAÇÃO 120
“O dia em que a viola afinou a corda”
A
campamento Denis Gonçalves, 3 de setembro de 2013. Seria a última noite em que dormiria na MG 353. Providencialmente, havia visitado o acampamento no sábado (31/08) e obtido a informação sigilosa de que o MST adentraria, por definitivo, a Fazenda Fortaleza de Sant`Anna. Abandonar as últimas atividades do semestre, às pressas, foi o ônus que a participação na reocupação exigira de mim. Consegui uma carona com um militante do assentamento Olga Benário que estava em Viçosa. Fizemos uma parada na cidade de Visconde do Rio Branco e, às 22h, chegamos ao Denis Gonçalves. Ao pisar no acampamento, era nítido o clima de comemoração. Somavam-se à comunidade local, acampados vindos de outras regiões do estado- Vale do Rio Doce, da região metropolitana de Belo Horizonte e do sul de Minas-, parceiros do MST de cidades vizinhas, militantes e dirigentes. Pandeiro, viola e instrumentos de percussão embalavam as músicas do sertanejo raiz, entoadas pelos quase 40 homens e 10 mulheres que acompanhavam, com palmas, a cantoria. No rosto dos acampados a alegria prenunciava que, a qualquer momento, poderiam ser ditas as palavras de ordem para a reocupação. Embora poucos fossem os sem-terra que sabiam que a alvorada seguinte seria a ocasião exata, a expectativa era grande. Verdade que estavam desinibidos não somente pela esperança, mas pela fartura da cachaça que circulava na roda... A reunião de alguns dirigentes resultou na tática de ocupação, o que fixou aos acampados o horário das 23h30
como momento de término das atividades. Hora piamente cumprida com o “estímulo” do desligamento do gerador, o que fez com que as luzes do acampamento se apagassem. Na ânsia de conseguir descansar, o meu caminho até a barraca foi percorrido com os olhos fitando o céu, abismados com tamanha beleza e excesso de estrelas. Da fresta acima da cama em que dormi, ainda podia contemplar os astros, que pareciam iluminados mais que o comum. Muitos latidos de cachorros e o barulho dos carros que trafegavam noturnamente ocupavam o ambiente, como que intencionando desviar o foco do estado de ansiedade em que me encontrava. O frio, por fim, acabou sobrepondo a todas as outras distrações, o que culminou em despertares contínuos ao longo da noite. Às 4h13 da manhã, os fogos anunciavam um dia histórico para o Denis Gonçalves. Militantes com flauta e pandeiro solicitavam que o acampamento acordasse. Os acampados agitavam-se às pressas, incentivados pelas palavras que há tanto aguardavam. Após a higiene pessoal rápida dos sem-terra, todos se concentraram na entrada do acampamento. Era o grande dia de ocupar, por definitivo, a Fortaleza de Sant`Anna. Uma retrospectiva foi feita do que significava tal manifestação. “Companheirada, hoje é o dia. E não é o dia porque a justiça determinou não. Hoje vai ter, lá em Belo Horizonte, uma audiência de conciliação. Vão reunir o INCRA, os proprietários da Fazenda e o Ministério Público e lá eles vão decidir o destino dessa fazenda. Nós estamos entendendo que temos a vitória na mão. Mas essa vitória não dependeu da justiça e nem do INCRA. Ela dependeu da luta dos trabalhadores. Da organização das famílias que fi121
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caram resistindo na beira dessa BR. Então a gente entende que essa reocupação de hoje também vai simbolizar isso. Que isso é fruto da luta do MST e da luta dessas famílias.” O povo, atento, ouvia os direcionamentos dados. “Então passando as últimas orientações, precisamos tomar muito cuidado, porque apesar de este horário não passar muito veículo, a gente tem muita criança aqui no acampamento. Então a gente tem que se manter organizado para garantir que ocorra tudo bem e que a gente faça uma ocupação pacífica. Estamos com a idéia de formar duas filas, uma bem dentro do acostamento, com crianças para evitar que elas vão para o asfalto e a segunda fila com nós, adultos. A coordenação do acampamento vai ficar por conta da segurança, entendo que já possam ir à frente para avisar os carros que passarem. Nós vamos fazer uma assembléia lá dentro. Vamos dividir novamente as equipes. Quem ficar na equipe de barraca e de segurança vai voltar para cá, então podemos ficar tranqüilos de caminhar com o que nós temos agora aqui, não carregar nada, até para facilitar a caminhada. Depois vamos voltar para cá para buscar as coisas. Pátria Livre! Venceremos!” Já que “era dia de festa e não de procissão”, os poucos metros de asfalto que separavam o acampamento e a porteira da Fazenda foram preenchidos com vários hinos. Aliás, ao longo de quase todo o percurso- quase uma hora de caminhada na estrada de chão-, os sem-terra balançavam as bandeiras e puxavam gritos e músicas conhecidos do movimento: “Esse é o nosso país. Essa é a nossa bandeira
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É por amor a essa pátria Brasil Que a gente segue em fileira (...)”. “Reforma agrária quando? Já!”. “Só, só, só, só sai reforma agrária, com a aliança camponesa e operária” “MST: a luta é pra valer!”. “A mulher largou o fogão, pra fazer revolução!”. “Enquanto o latifúndio quer guerra, nós queremos terra!” Gerações unidas por luta e pelo desejo de verem seus anseios respondidos. Crianças com pouco mais de um mês tiveram suas histórias pessoais marcadas nesta madrugada. Em certo ponto do trajeto, no qual as casas dos colonos se localizam, houve um silêncio respeitoso. Por fim, brados e gritos de “vitória” se fizeram o despertador da população do local. “Denis Gonçalves a terra não saiu, MST, guerreiros do Brasil”. “Eu já falei pra você não mexer com o sem-terra, o sem-terra é valente, luta pela liberdade”. “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com o sem-terra, não assanha o companheiro”. “Ocupar, resistir, produzir” A chegada ao terreiro de café, local tradicionalmente ocupado por escravos em tempos passados, foi o espaço em que a mística do movimento foi feita. No “terreiro onde negro apanhou, sem-terra joga capoeira!”. Várias falas emotivas foram feitas pelos dirigentes e coordenadores do movimento. “Então companheirada, nós estamos fincando a bandeira dos sem-terra aqui hoje e vamos fincar bem fundo essa bandeira, porque é aqui que nós vamos viver, aqui
que n贸s vamos produzir e 茅 aqui que n贸s vamos socializar. Vou pedir pros companheiros abrirem as bandeira do movimento, deixarem elas bem abertas porque n贸s vamos
cantar o nosso hino:
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Hino do MST
PALAVRA DE ACAMPADO
Letra: Ademar Bogo Música: Willy C. de Oliveira
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Vem teçamos a nossa liberdade braços fortes que rasgam o chão sob a sombra de nossa valentia desfraldemos a nossa rebeldia e plantemos nesta terra como irmãos! Vem, lutemos punho erguido Nossa Força nos leva a edificar Nossa Pátria livre e forte
Construída pelo poder popular Braços Erguidos ditemos nossa história sufocando com força os opressores hasteemos a bandeira colorida despertemos esta pátria adormecida o amanhã pertence a nós trabalhadores ! “Bom dia, sem-terra! Bom dia, companheiros! Bom dia, companheiras! Nós estamos aqui na luta do MST Minas Gerais, na luta do MST na Zona da Mata. Há muito tempo começou essa luta. Há mais de 30 anos que a gente carrega essa bandeira, conquistando terra, conquistando latifúndio e devolvendo a terra aos trabalhadores. O MST na Zona da Mata chega em 2005 e começa a construir uma história de luta, de força, de resistência, e da liberdade dos trabalhadores. Em 2005, a gente conquistou o primeiro latifúndio da Zona da Mata, que hoje chama assentamento Olga Benário. Onde mais de 30 famílias atingiram o seu sonho, com muita luta, de ter a terra. Depois dele, nós ocupamos outra fazenda, na qual a gente resistiu por muito tempo e foi o maior acampamento que produzia para a reforma agrária. Esse acampamento foi despejado, tem mais de quatro anos, que foi o Francisco Julião. E muitas famílias que estão lá, vão vir pra cá, porque continuam acreditando na luta e continuam resistindo. Depois do Francisco Julião, nós trabalhamos muito tempo, tem três anos e meio... No dia 25 de março de 2010, entramos nessa fazenda e ficamos aqui durante um ano. Depois de um ano, as famílias que estavam aqui dentro sofreram um despejo truculento, onde tinha para cada sem-terra, mais
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REOCUPAÇÃO
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ESTRUTURA
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ÁGUA
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COMIDA
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BANHEIROS
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Esta obra evidencia as histórias de vida de nove pessoas que foram atraídas por um projeto de Reforma Agrária proposto pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Em janeiro de 2011, as famílias acampadas na fazenda Fortaleza de Sant`Anna foram despejadas e passaram a morar às margens da rodovia MG-353, em Goianá.
Por dois anos e meio, os acampados fizeram resistência para acessar as terras decretadas como improdutivas pelo INCRA. O processo foi lento e envolveu diversas privações materiais e imateriais. Palavra de Acampado é a tentativa de suprir uma delas: a de ser escutado sem julgamentos.
PALAVRA DE ACAMPADO
Partindo do exercício do diálogo, este livro-reportagem contém perfis autobiográficos, que explicitam a realidade complexa vivenciada pelos sem-terra do Denis Gonçalves e revelam os anseios e lutas de homens e mulheres do campo.
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