Revista de Direito // DEZ`15

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Universidade Federal de Viçosa Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Departamento de Direito

Revista de Direito

Volume 7 - Número 2 - Jul/Dez 2015 Viçosa - Minas Gerais 2015


Universidade Federal de Viçosa centro de ciências humanas, letras e artes departamento de direito Av. Peter Henry Rolfs, s/n - Campus Universitário - 36570-900 Viçosa - MG (31) 3899-1158 | www.dpd.ufv.br/revista | revistadir@ufv.br

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Ficha catalográfica preparada pela Seção de Catalogação e Classificação da Biblioteca Central da UFV REVISTA DE DIREITO/Universidade Federal de Viçosa. Departamento de Direito, Vol. 7, n0 2 (2015) Viçosa UFV, DPD, 2015. v.; 22cm. 340p. : i1; 22cm . Semestral. ISSN : 1806- 8790 Texto em português, espanhol, inglês e francês. 1.Direito - Periódicos . 1. Universidade Federal de Viçosa. Departamento de Direito . CDD 20.ed. 340.05 Nota: a periodicidade da revista foi interrompida no período de 2005/2009.

Direitos de permissão de utilização Os artigos são de total responsabilidade de seus/suas autores/ras e os direitos reservados ao DPD/UFV. É permitida a publicação de trechos de artigos com identificação da fonte.


CONSELHO EDITORIAL

Prof. Alejandro Miguel Garro (Columbia University – EUA) Prof. Antonio Álvares da Silva (Universidade Federal de Minas Gerais) Prof. Bruno Camilloto Arantes (Universidade Federal de Ouro Preto) Profa. Cláudia Lima Marques (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Prof. Fernando Antônio Nogueira Galvão da Rocha (Universidade Federal de Minas Gerais) Prof. Fredie Souza Didier Júnior (Universidade Federal da Bahia) Prof. Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves (Universidade Federal de Minas Gerais) Profa. Iacyr de Aguilar Vieira (Universidade Federal de Viçosa) Prof. Igor Sporch da Costa (Universidade Estadual de Ponta Grossa) Prof. Jair Aparecido Cardoso (Universidade de São Paulo) Prof. Jochen Bauerreis (Université Strasbourg - França) Prof. Léo Ferreira Leoncy (Universidade Federal de Minas Gerais) Prof. Luís Roberto Barroso (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) Prof. Luiz Otávio Linhares Renault (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) Profa. Manoela Carneiro Rolland (Universidade Federal de Juiz de Fora) Profa. Mariah Brochado Ferreira (Universidade Federal de Minas Gerais) Prof. Marlon Tomazette (UNICEUB – Brasília) Prof. Paulo Roberto Roque Antônio Khouri (Instituto Brasiliense de Direito Público) Profa. Silma Mendes Berti (Universidade Federal de Minas Gerais) Prof. Vitor Salino de Moura Eça (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais)



CONSELHO DE PARECERISTAS AD HOC Prof. Adriano Fernandes Ferreira (Universidade Federal do Amazonas) Prof. Alexandre Gustavo M. F. de Moraes Bahia (Universidade Federal de Ouro Preto) Prof. Alexandre Morais da Rosa (Universidade Federal de Santa Catatina) Profa. Aline Martins Coelho (Centro Universitário Luterano de Palmas) Prof. Augusto César Leite de Resende (Faculdade de Administração e Negócios de Sergipe) Prof. Carlos Alberto Esteves (Universidade Federal de Viçosa) Prof. Fernando Laércio Alves da Silva (Universidade Federal de Viçosa) Prof. Francivaldo Gomes Moura (Universidade Federal de Campina Grande) Prof. Jair Aparecido Cardoso (Universidade de São Paulo) Prof. Jailton Macena de Araujo (Universidade Federal da Paraíba) Prof. Leonio José Alves da Silva (Universidade Federal de Pernambuco) Profa. Lucimara Andréia Moreira Raddatz (Universidade Federal do Tocantins) Prof. Luiz Carlos Goiabeira Rosa (Universidade Federal de Uberlândia) Profa. Marise Costa de Souza Duarte (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) Prof. Marcellus Polastri Lima (Universidade Federal do Espirito Santo) Prof. Paulo Roberto Roque Khouri (Instituto Brasiliense de Direito Público) Profa. Renata Barbosa de Almeida (Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira) Prof. Ricardo Lemos Maia Leite de Carvalho (Universidade Federal de Viçosa) Profa. Silma Mendes Berti (Universidade Federal de Minas Gerais) Prof. Vinício Carrilho Martinez (Universidade Federal de São Carlos)



Sumário / Contents 11 13 17 19

Normas Editoriais / Editorial Standards Sobre os Autores / About the Authors Editorial / Editorial Artigos / Articles Os artigos estão dispostos em ordem alfabética dos nomes dos autores. The articles are arranged in alphabetical order of author’s names.

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O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MÉRITO EO SEU CUMPRIMENTO PROVISÓRIO NO NOVO CPC: APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA AO DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO THE SUMMARY JUDGMENT ON MERITAND ITSINTERIM INJUNCTIONIN THE NEW CODE OF CIVIL PROCEDURE: SUBSIDIARY APPLICATION OF THE PROCEDURAL LABOR LAW Aline Carneiro Magalhães Vitor Salino de Moura Eça

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AS TEORIAS DO ESTADO E A MODERNIDADE TARDIA THE THEORIES OF THE STATE AND THE TARDY MODERNITY Antenor Alves Silva Vinício Carrilho Martinez

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Fundamentos históricos e legais da tutela da dignidade sexual de crianças e adolescentes no ordenamento jurídico brasileiro historical and legal fundaments of guardianship of children and adolescents’ sexual dignity on the Brazilian legal order Cláudia Gomes de Castro Fernando Laércio Alves da Silva

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OS INSTRUMENTOS LEGAIS DE URBANIZAÇÃO PRESENTES NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: As Leis n. 6.766/79 e 10.257/01 e sua capacidade para dirimir os problemas relacionados ao uso da propriedade privada THE LEGAL INSTRUMENTS OF URBANIZATION PRESENT IN THE BRAZILIAN LEGAL ORDER: The laws n. 6.766/79 and 10.257/01 and their capacity to solve the problems related to the use of private property Italo Fernando Costa


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O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO MEIO PROTETIVO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS THE PROHIBITION PRINCIPLE OF SOCIAL REGRESSION AS PROTECTIVE MEAN OF FUNDAMENTAL RIGHTS João Paulo Reis de Deus

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DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS: A DIFICULDADE DE EFETIVAÇÃO SOCIAL RIGHTS AND PUBLIC POLICIES: A DIFFICULTY OF REALIZATION Jorge Irajá Louro Sodré

255

ALIMENTOS E PRESTAÇÃO DE CONTAS: UMA ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DO PEDIDO DAS CONTAS PELO ALIMENTANTE AO GUARDIÃO DO ALIMENTADO FOOD AND PROVISION OF ACCOUNTS: AN ANALYSIS OF THE POSSIBILITY TO PROVISION OF ACCOUNTS REQUIREMENT BY THE NON-CUSTODIAL PARENT TO THE CHILD’S GUARDIA Marina Alice Souza Santos

293

Direito AO Esquecimento Right to Forgetfulness Poliana Bozégia Moreira

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JURISPRUDÊNCIA COMENTADA / Commented Jurisprudence


NORMAS EDITORIAIS EDITORIAL STANDARDS A Revista de Direito é uma publicação semestral do Departamento de Direito da Universidade Federal de Viçosa e incentiva trabalhos teóricos e práticos desenvolvidos na área. Qualquer pessoa, seja ela vinculada ou não à Universidade Federal de Viçosa, pode submeter artigos para publicação na Revista do Curso de Direito. Eles devem ser, preferencialmente, inéditos. Os Trabalhos devem ser enviados através do portal da Revista, disponível no endereço www.dpd.ufv.br/revista. As normas para publicação estão disponíveis no mencionado portal, no menu “SOBRE”, no link “DIRETRIZES PARA AUTORES”. A seleção dos trabalhos para publicação é de competência do Conselho Editorial da Revista. Não serão devidos direitos autorais ou qualquer remuneração pela publicação dos trabalhos na Revista. O(s) autor(es) receberá(ão) gratuitamente três exemplares da Revista em cujo número seu trabalho tenha sido publicado.

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SOBRE OS AUTORES ABOUT THE AUTHORS Dispostos em Ordem Alfabética / Arranged in alphabetical order

Aline Carneiro Magalhães

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Avenida Santos Dumont, 210/210, Bairro Jardim Glória Ubá, MG – Brasil CEP: 36500-000 alinecmagalhaes@gmail.com

Antenor Alves Silva

Universidade Federal de Rondônia Rua Padre Moretti, 3298, Bairro Liberdade Porto Velho, RO – Brasil CEP: 76803-854 antenorsilva@email.com

Cláudia Gomes de Castro

Universidade Federal de Viçosa Rua Pedra do Anta, 45, Bairro João Braz Viçosa, MG – Brasil CEP: 36570-000 claudiagomesdecastro@yahoo.com.br

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Fernando Laércio Alves da Silva

Universidade Federal de Viçosa Avenida PH Rols, s/n, Campus Universitário Viçosa, MG – Brasil CEP: 36570-900 fernando.laercio@ufv.br

Italo Fernando Costa

Universidade Federal de Viçosa Rua Marquês de Tamandaré, 1191, Bairro Cidade Nobre Ipatinga, MG – Brasil CEP: 35162-563 italofc21@hotmail.com

João Paulo Reis de Deus

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Rua Justina, 62, Bairro Maria Marcelina de Jesus Bela Vista de Minas, MG – Brasil CEP: 35938-000 joaopauloreis86@gmail.com

Jorge Irajá Louro Sodré

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Rua Tito Livio Zambecari, 359/501 – Bairro Mont Serrat Porto Alegre, RS – Brasil CEP: 90450-231 jisodre@gmail.com

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Marina Alice Souza Santos

Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira Rua Antônio Saturnino, 390/301 – Centro Rio Piracicaba, MG – Brasil CEP: 35940-000 marinaalices@hotmail.com

Poliana Bozégia Moreira

Fundação Presidente Antônio Carlos - Ubá Rua João Guilhermino, 14/101, Centro Ubá, MG - Brasil CEP: 36500-000 pbmoreira20@gmail.com

Vinício Carrilho Martinez

Universidade Federal de São Carlos Avenida Santo Antônio, 1994, Bairro Somenzari Marília, SP – Brasil CEP: 17506-040 prof.vinicio@ig.com.br

Vitor Salino de Moura Eça

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Rua Gentios, 50/1002, Bairro Cidade Jardim Belo Horizonte, MG – Brasil CEP: 30380-490 profvitorsalino@gmail.com

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EDITORIAL É com grande satisfação que apresentamos à comunidade acadêmica e jurídica mais uma edição da Revista de Direito da Universidade Federal de Viçosa. Após o lançamento de mais uma chamada pública de artigos, conforme edital publicado a cada semestre, a Revista recebeu trabalhos provenientes das mais diversas regiões do país, que foram submetidos ao crivo dos integrantes do Conselho Editorial e do Conselho de Pareceristas ad hoc, pessoas que, diga-se de passagem, em razão do exemplar engajamento, prestam inestimável contribuição para o êxito de nosso periódico, e não podemos, por consectário, deixar mais uma vez de registrar nossos agradecimentos e tecer nossos encômios. Nesta edição, com o advento do Novo Código de Processo Civil, em março próximo, motivou o trabalho de Aline Carneiro Magalhães e Vitor Salino de Moura Eça, que abordaram o tema “O julgamento antecipado parcial do mérito e o seu cumprimento provisório no Novo CPC: aplicação subsidiária ao direito processual do trabalho”. Na sequência, é apresentado o artigo dos autores Antenor Alves Silva e Vinício Carrilho Martinez, enfrentando aspectos do pluralismo politicojurídico que atuam como elementos fundantes do Estado Democrático do Direito Internacional, no artigo “As teorias do Estado e a modernidade tardia”. A obra conjunta “Fundamentos históricos e legais da tutela da dignidade sexual de crianças e adolescentes no ordenamento jurídico brasileiro”, de Cláudia Gomes de Castro e Fernando Laércio Alves da Silva, aborda as garantias dadas pelo ordenamento brasileiro, destacadamente pelo Código Penal e Estatuto da Criança e Adolescente, para se assegurar a dignidade sexual dos menores. O autor Ítalo Fernando Costa apresenta o trabalho: “Os instrumentos

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legais de urbanização presentes no ordenamento jurídico brasileiro: as leis 6766/79 e 10.257/01 e sua capacidade para dirimir os problemas relacionados ao uso da propriedade privada”, analisando a efetividade das citadas leis como mecanismos de regulamentação das transformações urbanísticas, apresentando, por fim, sugestões para o aprimoramento. O leitor verá também no artigo “O princípio da proibição do retrocesso social como meio protetivo dos direitos fundamentais”, de João Paulo Reis de Deus, em que se destaca a importância deste princípio diante das limitações que o Estado possui para garantir a concretização dos direitos fundamentais sociais. O autor Jorge Irajá Louro Sodré aponta os desafios da superação de obstáculos econômicos, sociais e políticos para efetivação estatal dos direitos sociais prestacionais no artigo “Direitos sociais e políticas públicas: a dificuldade de efetivação”. A polêmica legitimidade ativa do alimentante na ação de prestação de contas é enfrentada por Marina Alice Souza Santos no artigo “Alimentos e prestação de contas: uma análise da possibilidade do pedido das contas pelo alimentante ao guardião do alimentado”. Em “Direito ao Esquecimento”, da lavra de Poliana Bozégia Moreira, a autora discute a ponderação entre este direito da personalidade e os direitos de liberdade de expressão e informação. Por fim, na seção destinada à analise jurisprudencial, a autora Sofia Duarte Fialho comenta um acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo discutindo um dos novos desafios do Direito de Família, qual seja, a admissibilidade da plurimaternidade. Esperamos que todos possam ter uma profícua leitura.

Gabriel Pires Coordenador 18


ARTIGOS ARTICLES

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O JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL DO MÉRITO EO SEU CUMPRIMENTO PROVISÓRIO NO NOVO CPC: APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA AO DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO THE SUMMARY JUDGMENT ON MERITAND ITSINTERIM INJUNCTIONIN THE NEW CODE OF CIVIL PROCEDURE: SUBSIDIARY APPLICATION OF THE PROCEDURAL LABOR LAW Aline Carneiro Magalhães1 Vitor Salino de Moura Eça2

1 Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestrado e graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora do Ensino Superior. Advogada. E-mail: alinecmagalhaes@gmail.com 2 Prof. Permanente PPGD - PUC-Minas. Pós-doutor UCLM-Espanha. Doutor pela PUC-Minas. Mestre e Especialista. Área. Direito Processual do Trabalho. E-mail: profvitorsalino@ gmail.com

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Resumo: O presente trabalho tem como propósito analisar o julgamento antecipado parcial do mérito e o cumprimento provisório desta decisão, previstos no novo Código de Processo Civil, e a sua aplicação subsidiária ao Direito Processual do Trabalho, como instrumento de promoção do acesso à justiça na perspectiva contemporânea, que pressupõe uma prestação jurisdicional tempestiva e efetiva. A pesquisa inicia-se pela abordagem da denominada “crise da justiça”, que gerou a busca por uma prestação jurisdicional mais célere e que produza efeitos concretos no mundo dos fatos, nos moldes do que fora garantido na lei. Para o alcance deste desiderato foram realizadas, nas últimas décadas, diversas reformas no processo civil comum, o que fomentou a análise da heterointegração normativa, especificamente do processo comum ao processo do trabalho, com a finalidade de valorizar a decisão de primeira instância e buscar a concretização dos direitos fundamentais trabalhistas. Palavras-chave: julgamento antecipado parcial do mérito; cumprimento provisório de sentença; processo civil; processo do trabalho.

Abstract: This study aims at analyzing the summary judgment on merits and the interim injunction of this decision provided for by the New Code of Civil Procedure and its subsidiary application to the Procedural Labor Law as a tool to promote the access to justice according to the contemporary perspective that presupposes a timely and effective adjudication. The search begins by approachingthe so-called “legal crisis” that led to the search for a faster adjudication that produces real effects in the world of facts according to what was assured by law. Toreach this goal several reforms in the ordinary civil procedure were made in the last decades, which fostered the analysis

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of a normative hetero-integration, specifically the common process and the labor process, in order to value the lower court decision and seek the achievement of fundamental labor rights. Keywords: summary judgment; interim injunction; civil procedure; procedural labor law.

1. Introdução

A

busca por uma prestação jurisdicional tempestiva e efetiva vem permeando as discussões e estudos dos operadores do Direito e a atuação do legislativo há algumas décadas, estando estes atores sociais preocupados com a concretização do

direito fundamental de acesso à justiça que, na perspectiva contemporânea, é entendido como aquele que permite à parte gozar do bem da vida, objeto do litígio, a tempo e a modo. Neste contexto, a legislação processual civil, nos últimos anos, foi objeto de inúmeras reformas, em especial porque estava em descompasso com as características e anseios dos jurisdicionados na atualidade. Esta desarmonia acabou gerando a denominada “crise da justiça”. Como fruto destas alterações, estudos e exigências, foi apresentada proposta de um novo Código de Processo Civil (CPC – convertido na Lei nº13.105, sancionada em 16 de março de 2015), pautado exatamente na efetividade e na celeridade da prestação jurisdicional. Dentre as inovações, chama-se a atenção para aquela que passa a permitir o julgamento antecipado parcial do mérito em face de pedido incontroverso.

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A nova norma representa significativa alteração no sistema processual baseado na unicidade da decisão e vai ao encontro da busca por uma resposta rápida ao conflito em relação ao pedido que já possa ser julgado de plano e não necessita da fase de instrução probatória essencial para o esclarecimento daqueles controvertidos. A tempestividade da resposta dada pelo Judiciário implica efetividade, em especial quando este pedido incontroverso julgado antecipadamente puder ser objeto de execução, definitiva ou provisória, segundo o modelo trazido pelo novo CPC, que segue a mesma linha do disposto no art. 475-O, § 2o do CPC de 1973 (BRASIL, 1973). Na seara laboral, em face da natureza existencial do crédito trabalhista, a alteração pode ser fonte de muitos benefícios para o obreiro que não tem condições de esperar o tempo do processo para gozar de seus direitos sem que isto lhe cause prejuízo. O tempo do processo para o hipossuficiente que pleiteia uma verba essencial à sua subsistência pode representar um ônus excessivo e, na seara laboral, ele, em regra, é exclusivamente suportado pelo obreiro reclamante. A aplicação subsidiária do julgamento antecipado parcial do mérito e do cumprimento desta decisão nos moldes do novo CPC ao Direito Processual do Trabalho (art. 769 da CLT) pode representar a valorização da decisão de primeira instância, em que o magistrado, em contato direto com as partes, pode analisar com mais profundidade as nuances e especificidades do caso concreto, permitindo que o demandante usufrua imediatamente de parte do bem da vida objeto do litígio. Ainda, o uso subsidiário destas normas de processo civil na seara laboral pode representar a concretização de direitos fundamentais dos trabalhadores, que são imprescindíveis para a manutenção de uma vida digna. Neste contexto, no presente trabalho, falar-se-á sobre o acesso à justiça

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na perspectiva contemporânea e os fatores que geraram a “crise da justiça”. Em seguida, falar-se-á brevemente sobre o novo CPC e sua aplicação subsidiária ao Direito Processual do Trabalho. No tópico subsequente, analisar-se-á o pedido incontroverso objeto de julgamento antecipado parcial do mérito e, em seguida, a efetivação desta decisão, especificamente por meio da execução provisória também prevista no novo CPC. Na sequência, tratar-se-á da aplicação subsidiária de ambas as normas na seara laboral, como instrumento de valorização da decisão de primeiro grau e de concretização tempestiva e efetiva dos direitos fundamentais dos trabalhadores.

2. Notas sobre a crise da justiça e a concepção contemporânea do direito previsto no art. 5º, XXXV da CR/88 Analisando o contexto atual, pode-se dizer que ele é caracterizado como um momento de crise.3 Não raro, depara-se com as expressões “crise econômica”, “crise política”, “crise da família”, “crise de valores”, “crise de legitimidade”, “crise de identidade” e, também, “crise da justiça”. A justiça, ou melhor, o modelo processual (civil) posto,4 construído a partir de outro contexto sociopolítico e econômico, entrou em crise,5 dentre 3 Segundo o vernáculo, dentre as várias acepções possíveis, o termo crise pode ser associado aos seguintes significados: “manifestação violenta e repentina de ruptura de equilíbrio”; “estado de dúvidas e incertezas”; “fase difícil, grave, na evolução das coisas, dos fatos, das ideias”; “momento perigoso ou decisivo”; “tensão, conflito”; “situação grave em que os acontecimentos da vida social, rompendo padrões tradicionais, perturbam a organização de alguns ou de todos os grupos integrados na sociedade” (FERREIRA, 2009, p. 576). 4 Ou seja, o Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL, 1973). 5  Para Bedaque (2003), a Justiça entrou em crise, não só no Brasil, como na maioria dos países. E crise na Justiça implica, necessariamente, crise de justiça. Para ele, os fatores que contribuem para esse estado de verdadeira calamidade podem ser resumidos basicamente na exagerada demora e no alto custo do processo.

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outros fatores, exatamente porque não acompanhou as diversas mudanças ocorridas na sociedade. Algumas dicotomias foram observadas: celeridade e instantaneidade no mundo dos fatos versus morosidade processual; anseio por aquilo que a lei prometeu versus tutela pelo equivalente pecuniário; conflitos de massa versus processo predominantemente individual; necessidades urgentes versus cognição plena e exauriente. Os jurisdicionados passaram a questionar o modelo processual (civil) posto, pugnando, especificamente, por uma prestação jurisdicional mais tempestiva e efetiva: a sociedade em geral clama por uma justiça rápida e eficaz, pois a sua morosidade se tornou fator principal de injustiça […]. Em consequência do clamor da sociedade, busca-se incessantemente, em matéria processual, a celeridade da prestação jurisdicional sob o fundamento da necessidade de efetividade do processo como verdadeiro corolário e implementação do acesso à justiça (FREITAS, 2008, p. 165-166).

A ausência daquelas características, resultado de um modelo processual baseado no tecnicismo e formalismo exacerbados, foi responsável pela chamada “crise da justiça”, “caracterizada basicamente pela excessiva e intolerável demora com que os processos concluem os provimentos destinados a realizar a definitiva composição dos litígios” (THEODORO JUNIOR, 2008). Além destes, outros fatores foram identificados6 como responsáveis por este estado de coisas, a exemplo do alto custo do processo, aumento da litigiosidade diante do maior dinamismo e complexidade das relações sociais, inadequação da legislação para responder às novas necessidades da sociedade, baixo uso dos meios alternativos de resolução de conflitos e a 6 Neste sentido, José Roberto dos Santos Bedaque (2003) e Érico Andrade (2010).

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deficiente forma de utilização das novas tecnologias da informática. O modelo processual e a prestação jurisdicional foram objeto de inúmeras críticas, que culminaram em uma onda de reformas legislativas focadas na adequação da norma instrumental às características da sociedade atual e aos anseios dos jurisdicionados e operadores do direito, com vistas a “abandonar a preocupação exclusiva com conceitos e formas, para dedicar-se à busca de mecanismos destinados a conferir à tutela jurisdicional o grau de efetividade que dela se espera” (THEORORO JUNIOR, 2006, p.19). Neste contexto, foi desenvolvida uma nova concepção, denominada contemporânea, do direito e garantia fundamental de acesso à Justiça. Este, além de estar positivado e de pressupor meios legais para o seu real exercício, deve proporcionar uma tutela jurisdicional efetiva e tempestiva, com observância do princípio constitucional do devido processo legal e seus consectários – contraditório, ampla defesa, motivação das decisões, duplo grau. Neste sentido, Marinoni aduz que: O direito de ação, na sua concepção clássica e ainda presente em grande parte da doutrina do processo, não é mais do que o direito à solução do litígio ou o direito a uma sentença de mérito, seja ela de procedência ou de improcedência do pedido. Nesta dimensão, não há dúvida de que o direito de ação fica muito distante do direito à duração razoável do processo. Porém, quando o direito de ação é compreendido como o direito às técnicas processuais idôneas à viabilidade da obtenção das tutelas prometidas pelo direito material, ele se aproxima do direito à duração razoável do processo. Isto porque quando se considera o direito à obtenção da tutela do direito material se toma em conta a sua “efetividade” que também reclama a sua “tempestividade”. Ao se deixar de lado a concepção clássica do direito de ação, atribui-se a ele significado de direito à tutela jurisdicional efetiva, inserindo-se no direito de ação o direito à tempestividade da prestação jurisdicional (MARINONI, 2009, p.83).

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Comungando do mesmo entendimento, Zavascki entende que o acesso à justiça não se resume ao direito de provocar o Poder Judiciário, mas compreende também a necessidade de que a tutela jurisdicional seja prestada em prazo razoável e produza reais efeitos no mundo dos fatos: o dever imposto ao indivíduo de submeter-se obrigatoriamente à jurisdição estatal não pode representar um castigo. Pelo contrário: deve ter como contrapartida necessária o dever do Estado de garantir a utilidade da sentença, a aptidão de garantir, em caso de vitória, a efetiva e prática concretização da tutela. E não basta à prestação jurisdicional do Estado ser eficaz. Impõe-se seja também expedita, pois é inerente ao princípio da efetividade da jurisdição que o julgamento da demanda se dê em prazo razoável, “sem dilações indevidas”. O direito fundamental à efetividade do processo – que se denomina também, genericamente, direito de acesso à justiça ou direito à ordem jurídica justa – compreende, em suma, não apenas o direito de provocar a atuação do Estado, mas também e principalmente o de obter, em prazo adequado, uma decisão justa e com potencial de atuar eficazmente no plano dos fatos (ZAVASCKI , 2009, p. 26, grifo nosso).

No que tange à tempestividade, vale ressaltar o importante e dicotômico papel que o tempo exerce no processo. Isto porque, se, por um lado, a decisão, para ser proferida, demanda tempo para que o magistrado, com auxílio das partes, por meio do exercício do contraditório e da ampla defesa, forme o seu convencimento, de outro, “o tempo pode tornar o processo inócuo, tendo em vista que a resposta jurídica pode advir quando ela já nada mais pode resolver” (GONÇALVES, 2011, p. 285). A morosidade é capaz de gerar descrença no Estado como pacificador de conflitos sociais, inibir o acesso à justiça e levar à ineficácia da tutela tardiamente concedida, por prolongar o estado de insatisfação do direito.

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Nas palavras de Marinoni: A morosidade não só significa um peso muito grande para o litigante, como também inibe o acesso à justiça. A lentidão leva o cidadão a desacreditar no Poder Judiciário, o que é altamente nocivo aos fins de pacificação social da jurisdição, podendo até mesmo conduzir à deslegitimação do poder. Portanto, é tarefa da dogmática, preocupada com a construção do processo justo e isonômico – pensar em técnicas que justifiquem, racionalmente, a distribuição do tempo do processo. Floresce hoje uma tendência atenta à temática do acesso à justiça e, nesta perspectiva, podemos dizer que uma das questões mais preocupantes se revela no binômio “custo-morosidade”, a demonstrar a falência do processo civil tradiciona (MARINONI, 1994, p. 27).

Sobre a importância da tempestividade da tutela jurisdicional como meio de promover o acesso à justiça sob a perspectiva contemporânea, aduz Bedaque que: O fator tempo é, sem dúvida, muito importante para a efetividade do processo. A tutela jurisdicional tempestiva constitui valor amparado em sede constitucional. A garantia de acesso à justiça não se limita a assegurar a todos o mero poder de invocar a tutela jurisdicional do Estado. Representa, na verdade, a existência de instrumento adequado à realização do direito material em favor do seu titular, em tempo razoável, a fim de que ele possa realmente usufruir dos efeitos práticos daí decorrentes. E a demora excessiva normalmente compromete de forma definitiva esse escopo jurídico e social do processo (BEDAQUE, 2003, p. 386).

Já no que concerne à efetividade, esta diz respeito ao resultado alcançado por meio da prestação jurisdicional, que deve ser capaz de proporcionar uma tutela que se aproxime ao máximo daquilo que a parte

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obteria caso a norma tivesse sido cumprida a tempo e a modo por seu destinatário. Segundo Bueno, por efetividade do processo deve ser entendida, fundamentalmente: 1) busca pela efetividade da jurisdição e por um processo civil de resultados (assim, p.ex., o chamado “estatuto da tutela específica” dos arts. 461 e 461-A); 2) correlato fortalecimento dos poderes do juiz em busca dessa efetividade; 3) técnicas de aceleração da prestação da tutela jurisdicional (julgamento antecipado da lide; antecipação da tutela; execução por títulos extrajudiciais e processo monitório, p. ex.); 4) técnicas de compatibilização entre a cognição judicial e as diversas situações de direito material para melhor realizar o direito material; 5) ampliação à legitimidade ativa para a tutela de direitos e interesses coletivos (especialmente a correlação entre LACP e o CDC). (BUENO, 2004, p.11). Na busca pela efetividade e tempestividade da prestação jurisdicional, o legislador passou a realizar diversas reformas no processo civil, como resposta à “crise da justiça” e aos anseios dos jurisdicionados. O direito processual, bem como a ciência do direito, de um modo geral, está diante do desafio de repensar seus próprios conceitos, práticas, valores e paradigmas.7 Neste contexto de crise, inerente à pós-modernidade, que se traduz em um momento de reflexão, de crítica e de busca por novos paradigmas, que gerou reflexos no âmbito jurídico, especificamente processual, foi proposta 7 Neste sentido,ver Eduardo Carlos Bianca Bittar (2008).

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a reforma do CPC de 1973, cuja aplicação subsidiária ao Direito Processual do Trabalho, em alguns aspectos, é importante meio de concretização tempestiva e efetiva de direitos trabalhistas fundamentais.

3. Notas sobre o novo CPC e sua aplicação subsidiária ao direito processual do trabalho O direito material estabelece normas destinadas a regular as relações na vida em sociedade, cuja observância é essencial para a paz social. Apesar de o ideal ser o cumprimento espontâneo das normas, exatamente para haver uma convivência harmônica, nem sempre isto acontece. No momento em que há ameaça ou lesão à norma, nasce, para aquele que se sente ofendido, o direito de buscar a atuação da regra violada, o que é feito pelo Estado,8 que impediu a autotutela e avocou para si o monopólio da jurisdição. A parte, por meio do exercício do direito de ação, materializado no processo, busca uma prestação jurisdicional do Estado, que, uma vez provocado, tem o poder-dever de dizer o direito no caso concreto. Neste contexto, o processo passa a ter uma importância majorada, na medida em que é o instrumento de concretização do direito material. Por este motivo, ganham relevo as discussões acerca do direito processual civil posto (CPC de 1973), caracterizado, como ressaltado, pelo formalismo e tecnicismo exacerbados, o que se justificou em um dado momento histórico,9 mas que acabou por gerar a morosidade e a baixa 8 Cumpre ressaltar a existência dos meios alternativos de resolução de conflitos, a exemplo da conciliação, a arbitragem e a mediação. 9 De acordo com Érico Andrade (2010, p. 18), “a saga do direito processual, como direito autônomo e desvinculado, teoricamente, do direito material, começou no século XIX – principalmente em torno da temática da teorização do direito de ação – e até hoje se encontra em plena

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efetividade da prestação jurisdicional, não respondendo mais aos anseios da sociedade atual, marcada pelo signo da instantaneidade e rapidez, globalização, incremento da tecnologia e massificação dos conflitos. Essas características do século XXI influenciaram diretamente o direito processual, como expressão da relação dialética existente entre ambos. Isto porque, da mesma forma que o Direito destina-se a pautar a conduta humana, esta também propicia a modificação, a criação e a revogação da norma, no intuito de atualizá-la e não afastá-la da realidade. Para tanto, em meados da década de 1990, o legislador, como já citado, passou a realizar diversas reformas esparsas na lei processual civil, visando tornar a tutela jurisdicional mais efetiva e tempestiva, pois o processo, com estas características, responde, não somente ao interesse privado das partes, mas gera mais confiança do jurisdicionado no Estado como pacificador de conflitos. De acordo com Watanabe: Do conceitualismo e das abstrações dogmáticas que caracterizaram a ciência processual e que lhe deram foros de ciência autônoma, partem hoje os processualistas para a busca de um instrumentalismo mais efetivo do processo, dentro de uma ótica mais abrangente e mais penetrante de toda a problemática sócio-jurídica (WATANABE, 2000, p. 20).

Como fruto deste período de mudanças legislativas (e axiológicas), evolução. A primeira preocupação da doutrina processual foi dar foros de disciplina autônoma ao processo, daí a necessidade de desvinculá-lo do direito material, entendê-lo em separado do direito material. Essa preocupação ou objetivo, justificável à época, levou a certa dose de exagero. O processo perde quase que totalmente a perspectiva de atuar o direito material e passa a ser pensado apenas em termos de técnica ou de instrumento técnico em si mesmo, desatento às necessidades próprias do direito material violado, que se pretende atuar por meio do processo. Com isso, perdura uma espécie de orientação tecnicista – também denominada, pela doutrina italiana, “burocratização do processo e do juiz” – em que os institutos processuais, abstratamente considerados, se sofisticaram ao extremo e acabaram por perder, cada vez mais, o contato com a realidade do direito material e com suas necessidades de atuação”.

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em 2010, instituiu-se uma comissão externa de juristas responsável pela elaboração de um anteprojeto para um novo CPC, que, elaborado, foi subscrito, na íntegra, pelo Senador José Sarney, que figurou como autor do Projeto de Lei (PL) de nº 166/10 de iniciativa do Senado. Por força do disposto no art. 374 do Regimento Interno do Senado, foi instituída uma comissão temporária destinada a examinar o PL apresentado, que realizou, dentro das suas atribuições, audiências públicas para ampliar o debate acerca da reforma, ouvindo, não só operadores do direito, mas a sociedade como um todo. De acordo com o texto do anteprojeto do novo CPC: A Comissão de Juristas encarregada de elaborar o anteprojeto de novo Código do Processo Civil, nomeada no final do mês de setembro de 2009 e presidida com brilho pelo Ministro Luiz Fux, do Superior Tribunal de Justiça, trabalhou arduamente para atender aos anseios dos cidadãos no sentido de garantir um novo Código de Processo Civil que privilegie a simplicidade da linguagem e da ação processual, a celeridade do processo e a efetividade do resultado da ação, além do estímulo à inovação e à modernização de procedimentos, garantindo o respeito ao devido processo legal. Esse o desafio da comissão: resgatar a crença no Judiciário e tornar realidade a promessa constitucional de uma justiça pronta e célere (BRASIL, 2010, grifo nosso).

Concluídos os trabalhos da Comissão e aprovado o PL do Senado nº166/2010, este foi enviado à Câmara dos Deputados, para revisão (art. 65 da CR/88) em dezembro de 2010 (PL 8.046/2010). Nesta também foi constituída Comissão Especial para emitir parecer sobre o projeto, que foi objeto de inúmeras emendas, sendo discutido através de outras audiências públicas em diversos Estados. Em março de

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2014, a Câmara dos Deputados108 concluiu a votação do projeto do novo CPC com aprovação da redação final que foi enviada ao Senado. A votação do PL foi encerrada no Senado em novembro de 2014, sendo o texto aprovado enviado à sanção presidencial, que ocorreu em 16 de março de 2015 (Lei nº 13.105). Dentre as reformas que objetivam uma prestação jurisdicional mais efetiva e tempestiva, citamos a previsão do julgamento antecipado parcial do mérito cabível em face de pedido incontroverso, 119 in verbis: Do julgamento antecipado parcial do mérito Art. 356.O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: I - mostrar-se incontroverso; II - estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355. § 1o A decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de obrigação líquida ou ilíquida. § 2o A parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução, ainda que haja recurso contra essa interposto. § 3o Na hipótese do § 2o, se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva. § 4o A liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério do juiz.

10 Versão aprovada na Câmara dos Deputados em março de 2014 (BRASIL, 2005). Versão aprovada no Senado em dezembro de 2014 (BRASIL, 2010). 11 É importante salientar que o texto do projeto do novo CPC sofreu diversas mudanças no decorrer das votações. O pedido incontroverso foi objeto de Tutela da Evidência e agora de Julgamento Antecipado Parcial do Mérito. No atual Código, o assunto é tratado no art. 273, §6º, como espécie de antecipação de tutela. Sobre o tema, vide Moura Eça e Magalhães (2014).

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Aline Carneiro Magalhães, Vitor Salino de Moura Eça § 5o A decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento (BRASIL, 2015).

Esta alteração modifica de forma expressiva a sistemática processual atual de unicidade da decisão. O julgamento antecipado parcial do mérito deve ocorrer quando existente no processo um ou mais pedidos ou parcela dele incontroverso. A decisão apreciará apenas esta espécie de pedido, que já se encontra em condições de ser julgado e, após a instrução processual, haverá o julgamento dos demais pleitos. A nova dinâmica permite uma separação dos pedidos, levando-se em consideração a necessidade, ou não, da fase de instrução, que serve exatamente para esclarecer os pedidos controvertidos. Hoje, se presentes pedidos com ambas as características na mesma ação, não lhes é dispensado um tratamento diferenciado, devendo todos eles seguir a mesma marcha processual até o momento destinado à prolação da sentença. Se, por um lado, o processo, em nome dos princípios da economia e da celeridade, permite à parte cumular pedidos, ele também deve oferecer um tratamento diferenciado em relação aos pedidos que necessitem da instrução probatória e àqueles que dela prescindem, por serem incontroversos. Em alguns casos, as provas juntadas com a inicial e com a defesa já são suficientes para demonstrar que não há mais necessidade da fase de instrução, pois o direito já está robustamente comprovado, não havendo mais controvérsia, restando claro quem é o seu titular. De acordo com Doria:

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REVISTA DE DIREITO a controvérsia – que nada mais é que a situação decorrente da tomada de posições antagônicas pelas partes a respeito de determinado fato ou assunto – gera a necessidade de instrução e, consequentemente, de uma maior duração do processo civil. A conclusão acima deveria levar a outra, igualmente lógica: quanto menor fosse a controvérsia, menos tempo se faria necessário para o processo chegar ao seu final. Entretanto, nem sempre isso corresponde à verdade. (DORIA, 2004, p. 80).

E complementa a autora dizendo que: O processo civil brasileiro, em função de determinadas formalidades e procedimentos já consagrados, acaba impondo às partes o ônus de aguardar o mesmo tempo para a apreciação das questões controversas e incontroversas. Com isso, faz aumentar a insatisfação dos jurisdicionados e surgir a sensação de descrédito. Esta crise, sem dúvida alguma, seria atenuada caso se considerasse que a controvérsia é a única razão para a duração do processo. (DORIA, 2004, p. 80).

Dentro da dinâmica do CPC de 1973, em regra é sempre o autor que suporta o ônus da espera, pois, independentemente de ter razão ou não, de seu pedido ser controverso ou incontroverso, é ele quem se vê privado do bem da vida objeto do litígio, enquanto o réu o mantém no seu patrimônio, deixando de satisfazer o direito do demandante. O texto do art. 356 do novo CPC representa um progresso e a quebra do dogma da unicidade da decisão, tão caro à tempestividade e à efetividade da prestação jurisdicional, em especial quando o objeto do conflito diz respeito a direitos fundamentais como os trabalhistas.

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4. O pedido incontroverso objeto do julgamento antecipado parcial do mérito A demora na prestação jurisdicional oferece prejuízo para aqueles direitos que, de plano, já se mostram devidos, representando a espera um ônus excessivo para o demandante. Isto porque “o simples fato de o direito permanecer insatisfeito durante todo o tempo necessário ao desenvolvimento do processo cognitivo já configura dano ao seu titular” (BEDAQUE, 2003, p. 22). O tempo necessário para que se encontre o titular do direito dito lesado ou ameaçado de lesão por si só pode ser fonte de dano para aquele que o suporta,especialmente quando a instrução probatória mostra-se desnecessária diante de pleitos que dela não necessitam. O tempo também pode ser extremamente prejudicial quando o crédito que se busca judicialmente tem natureza existencial (direito fundamental) e o demandante é hipossuficiente. Quanto antes o autor puder usufruir o bem da vida, objeto do litígio, maior correspondência haverá entre a solução dada pelo órgão jurisdicional e o disposto na lei material, como se o destinatário da norma a houvesse espontaneamente cumprido. Quanto maior a equivalência entre ambos, mais o processo será efetivo. Em face da inexistência de controvérsia de determinado pedido, o tempo necessário para a discussão e análise das demais questões que necessitam ser comprovadas acaba impondo uma espécie de castigo ao demandante e ferindo o princípio da igualdade, pois trata da mesma maneira situações diferentes. Como ressaltado, em regra é sempre o autor que suporta o ônus da espera, independentemente de seu pedido ser ou não controvertido,

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sistemática que beneficia o réu e é alheia à necessidade de tratamento diferenciado para situações desiguais (princípio da igualdade). Neste contexto, emerge o julgamento antecipado parcial do mérito, instrumento de promoção de uma tutela jurisdicional diferenciada, tempestiva e efetiva, para os pedidos incontroversos, que “exigem procedimentos que com eles sejam compatíveis, e não procedimentos neutros e indiferentes a estas situações” (MARINONI, 2002, p. 9). Por meio da antecipação do momento de julgamento do pedido que não necessita da fase de instrução, porque incontroverso, é possível adaptar a dinâmica processual a esta realidade. Nas palavras de Marinoni (2002, p. 139), “o autor que evidencia parcela do direito que postula em juízo não pode ser prejudicado pelo tempo necessário à cognição do restante” e o princípio chiovendiano della unità e unicità della decisione há muito não se concilia com a leitura contemporânea do princípio que determina que o processo não pode prejudicar o autor que tem razão. Assim: Se um dos pedidos apresentados pelo autor está maduro para julgamento, seja porque diz respeito apenas à matéria de direito, seja porque independe de instrução dilatória, a necessidade, cada vez mais premente, de uma prestação jurisdicional célere e efetiva, justifica a quebra do velho princípio da “unità e unicità della decisione”. (MARINONI, 2002, p. 139).

O pedido incontroverso, nos termos do texto do novo CPC, passaria a ser objeto de um julgamento antecipado parcial fundado em cognição plena e exauriente porque não haveria mais necessidade de produção de provas em relação a ele. A decisão é impugnável via agravo de instrumento. O julgamento antecipado parcial do mérito seria um meio de promoção dos princípios da efetividade e da tempestividade da prestação

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jurisdicional, repartindo entre as partes o tempo do processo, sendo uma forma de atenuar o “dano marginal” que é acarretado a todo autor que tem razão. O pressuposto do julgamento antecipado parcial do mérito é a existência de um (ou mais) pedido em condições de ser imediatamente julgado e outro (ou outros) que necessite da fase de instrução probatória. Sobre o julgamento antecipado da lide, Bedaque assevera que: Tais situações indicam ser dispensável a produção de novas provas, pois a matéria fática é incontroversa em decorrência da revelia ou já existem elementos suficientes para a formação do convencimento do juiz. A cognição, nesses casos, é exauriente e implica entrega da tutela jurisdicional inicialmente pleiteada e de natureza satisfativa, destinada a produzir efeitos irreversíveis no plano material. (BEDAQUE, 2003, p. 366).

Nas palavras de Theodoro Junior: se a questão de fato gira em torno apenas de interpretação de documentos já produzidos pelas partes; se não há requerimento de provas orais; se os fatos arrolados pelas partes são incontroversos; e ainda se não houve contestação, o que também leva à incontrovérsia dos fatos da inicial e à sua admissão como verdadeiros (art. 319); o juiz não pode promover a audiência de instrução e julgamento, porque estaria determinando a realização de ato inútil e, até mesmo, contrário ao espírito do Código. Observe-se que o art. 334 expressamente dispõe que não dependem de prova os fatos “admitidos, no processo, como incontroversos” e aqueles “em cujo favor milita a presunção legal de existência ou de veracidade” (n. III e IV). Por outro lado, harmoniza-se com a preocupação de celeridade que deve presidir à prestação jurisdicional, e que encontra regra pertinente no art. 125, II, que manda o juiz “velar pela rápida solução do litígio”, e no art. 130 que recomenda indeferir “as

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REVISTA DE DIREITO diligências inúteis ou meramente protelatórias”. (THEODORO JÚNIOR, 2006, p. 447).

O julgamento antecipado parcial do mérito pressupõe a existência de um pedido, ou parcela dele, incontroverso, ostentando esta qualidade “não apenas o que não foi contestado ou foi reconhecido, mas o pedido (ou sua parte) que estiver maduro para julgamento” (MARINONI, 2002, p. 159), devendo seu significado […] ser buscado no art. 331, §2º. Ao tratar da audiência preliminar, diz esse artigo que, se não for obtida a conciliação, o juiz “fixará os pontos controvertidos”, decidirá as eventuais questões pendentes, e determinará as provas a serem produzidas, designando, se necessário, audiência de instrução e julgamento. Na audiência preliminar, o juiz pode chegar à conclusão que parcela da demanda, apesar de contestada, não precisa ser esclarecida mediante prova testemunhal ou pericial. Nesse caso, apenas a outra parte da demanda deverá ser fixada como controvertida e somente sobre ela deverá ser determinada a produção de prova. (MARINONI, 2009, p.286).

Incontroverso, para Zavascki, é o pedido indiscutível, ou seja, aquele sobre o qual não é possível travar qualquer discussão; mesmo que se tente, a defesa será infundada, pois não há argumentos capazes de infirmar o pleito. “Além da ausência de controvérsia entre as partes, somente poderá ser tido como incontroverso o pedido que, na convicção do juiz, for verossímil. ‘Incontroverso’, em suma, não é ‘indiscutido’, mas sim o indiscutível” (ZAVASCKI, 2009, p.111). O autor complementa dizendo que: pode-se dar ao conceito de pedido incontroverso um sentido ampliado,mais afinado com uma interpretação teleológica da norma: será considerado incontroverso

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Aline Carneiro Magalhães, Vitor Salino de Moura Eça o pedido, mesmo contestado, quando os fundamentos da contestação sejam evidentemente descabidos ou improcedentes. Em outras palavras: quando não haja contestação séria. Essa ausência de seriedade ou razoabilidade, todavia, há de ser medida, não apenas a partir da convicção pessoal do juiz, mas à luz de critérios objetivos fornecidos pelo próprio sistema de processo. (ZAVASCKI, 2009, p. 111).

Bueno, a seu turno, entende que incontroverso é o que não precisa de prova complementar, ficando demonstrado, de plano: Pedido incontroverso tem sentido bem claro na dinâmica probatória do processo civil: é aquele que não depende de prova complementar. De fato, a “incontrovérsia” de um ou mais dos pedidos dispensa a parte contrária do ônus da prova (art.334, II e III, c/c o art. 330, I). Trata-se, pois, daquele que foi já suficientemente comprovado. Não se trata aqui de uma suficiência probatória momentânea (verossimilhança), mas definitiva (incontrovérsia). A análise desse pressuposto revela que a lei exige mais do que o caput para a concessão da “tutela antecipada”. Fosse mera verossimilhança, como no caput, e seria lícita a produção ulterior de prova para infirmar o grau de convicção já formado no espírito do magistrado. Não no § 6º, entretanto. (BUENO, 2004, p. 49).

Ele ainda questiona se a incontrovérsia em questão diz respeito aos pedidos cumulados (ou parte deles) ou, bem diferentemente, à causa de pedir, concluindo que são os fatos subjacentes aos pedidos que lhe dão embasamento, que independem de prova ulterior, e não propriamente o pedido (em si mesmo considerado), que deve ser incontroverso. Entende-se, seguindo esta linha de raciocínio, que a incontrovérsia diz respeito aos fatos que embasam o pedido formulado pelo demandante, que se mostram, de plano e do cotejo da inicial com a defesa, compro-

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vados, fazendo o pedido maduro para julgamento. Em relação a ele, não há controvérsia séria, mas apenas uma contestação sem fundamento que visa tão somente protelar a demanda. Neste sentido, também o art. 334 do CPC de 1973 (art. 374 do novo CPC), que elenca hipóteses de fatos que não dependem de provas, dentre os quais inclui os incontroversos, ao lado dos notórios, dos afirmados por uma parte e confessados pela outra e daqueles em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade. Paralelamente aos conceitos formulados por parte da doutrina, sucintamente demonstrados, a noção do que seja incontroverso pode ser buscada em outras ações ou procedimentos, a exemplo do direito líquido e certo do mandado de segurança e da prova pré-constituída exigida nas ações monitória, possessória e de alimentos. A despeito da ausência de uma conceituação pacífica sobre o que seja o pedido incontroverso, paulatinamente, doutrina e jurisprudência incumbir-se-ão de traçar os seus limites, permitindo, assim, que o juiz possa entregar à parte, de maneira tempestiva e efetiva, a tutela deste direito por meio do julgamento antecipado parcial do mérito. Para que esta decisão possa gerar efeitos concretos no mundo dos fatos, pode ser utilizada a execução provisória (artigos 520, 521 e 522 do novo CPC,1210semelhantes ao art. 475-O, § 2º do CPC de 1973), denomi12 Art. 520. O cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso desprovido de efeito suspensivo será realizado da mesma forma que o cumprimento definitivo, sujeitando-se ao seguinte regime:I - corre por iniciativa e responsabilidade do exequente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido;II - fica sem efeito, sobrevindo decisão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidando-se eventuais prejuízos nos mesmos autos;III - se a sentença objeto de cumprimento provisório for modificada ou anulada apenas em parte, somente nesta ficará sem efeito a execução;IV - o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem transferência de posse ou alienação de propriedade ou de outro direito real, ou dos quais possa resultar grave dano ao executado, dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos.§ 1o No cumprimento provisório da

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nada cumprimento provisório de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa. Neste contexto, defende-se a aplicação subsidiária destes dois institutos à seara laboral, nos termos do art. 769 da CLT, como forma de valorização da decisão de primeira instância e promoção do acesso a tempo e a modo dos direitos fundamentais trabalhistas.

sentença, o executado poderá apresentar impugnação, se quiser, nos termos do art. 525.§ 2o A multa e os honorários a que se refere o § 1o do art. 523 são devidos no cumprimento provisório de sentença condenatória ao pagamento de quantia certa.§ 3o Se o executado comparecer tempestivamente e depositar o valor, com a finalidade de isentar-se da multa, o ato não será havido como incompatível com o recurso por ele interposto.§ 4o A restituição ao estado anterior a que se refere o inciso II não implica o desfazimento da transferência de posse ou da alienação de propriedade ou de outro direito real eventualmente já realizada, ressalvado, sempre, o direito à reparação dos prejuízos causados ao executado.§ 5o Ao cumprimento provisório de sentença que reconheça obrigação de fazer, de não fazer ou de dar coisa aplica-se, no que couber, o disposto neste Capítulo. Art. 521.A caução prevista no inciso IV do art. 520 poderá ser dispensada nos casos em que:I o crédito for de natureza alimentar, independentemente de sua origem;II - o credor demonstrar situação de necessidade;III - pender o agravo fundado nos incisos II e III do art. 1.042;IV - a sentença a ser provisoriamente cumprida estiver em consonância com súmula da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou em conformidade com acórdão proferido no julgamento de casos repetitivos.Parágrafo único.A exigência de caução será mantida quando da dispensa possa resultar manifesto risco de grave dano de difícil ou incerta reparação. Art. 522.O cumprimento provisório da sentença será requerido por petição dirigida ao juízo competente.Parágrafo único.Não sendo eletrônicos os autos, a petição será acompanhada de cópias das seguintes peças do processo, cuja autenticidade poderá ser certificada pelo próprio advogado, sob sua responsabilidade pessoal:I - decisão exequenda;II - certidão de interposição do recurso não dotado de efeito suspensivo;III - procurações outorgadas pelas partes;IV - decisão de habilitação, se for o caso;V - facultativamente, outras peças processuais consideradas necessárias para demonstrar a existência do crédito.

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5. Sobre o cumprimento provisório do julgamento antecipado parcial do mérito e sua aplicação subsidiária ao Direito Processual do Trabalho O julgamento antecipado parcial do mérito representa, conforme buscou-se demonstrar, uma forma de promover uma prestação jurisdicional tempestiva e efetiva, representando uma resposta do legislador às peculiaridades do pedido objeto da ação, pois, com o passar do tempo, percebeu-se que não se justificava fazer a parte esperar para gozar de um direito decorrente de pedido incontroverso, que, como tal, não necessitava da fase de instrução probatória. A decisão que permite à parte gozar antecipadamente do seu direito deve ser capaz de promover resultado útil no mundo dos fatos, sob pena de tornar-se inócua. A parte deve, efetivamente, poder usufruir, de maneira antecipada, da decisão que, de outro modo, só seria prolatada ao final da fase de conhecimento. E, “se a tutela depende de atos executivos, ela somente é efetivamente entregue ao seu destinatário no momento em que é ‘executada’” (MARINONI, 2002, p. 202). Sobre a execução, vale a pena transcrever as palavras de Bueno: O termo “execução” deve ser entendido de forma mais ampla do que, tradicionalmente, lhe empresta a doutrina tradicional. Não há por que, com os olhos voltados ao sistema processual civil hoje vigente, atrelar-se efeitos executivos a uma determinada e específica classe de decisões jurisdicionais, qual seja, a de sentenças ou acórdãos de mérito condenatórios. Penso que também uma decisão declaratória, constitutiva, mandamental ou executiva, ao lado das decisões condenatórias, possam ser também objeto de uma “execu-

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Aline Carneiro Magalhães, Vitor Salino de Moura Eça ção” e, se ainda pender algum recurso de exame, ser esta execução “provisória”. (BUENO, 2006, p.40).

Em regra, o julgamento antecipado da lide extingue o processo com resolução de mérito (art. 355 do novo CPCe art. 330 do CPCde 1973), e esta decisão pode ser objeto de apelação e de execução.1311 Já o julgamento antecipado parcial do mérito, segundo o novo CPC, é impugnável via agravo de instrumento, o que faz crer tratar-se de decisão interlocutória, mas o texto permite a execução provisória ou definitiva desta decisão. Em se tratando de prestação de pagar a quantia certa, e havendo recurso pendente contra a decisão que julgou antecipada e parcialmente o mérito, aplica-se o procedimento da execução provisória, antecedido, se for o caso,da liquidação. De acordo com Pimenta: o juiz do trabalho, diante da incontrovérsia (decorrente dos termos da defesa apresentada pelo reclamado) do direito do reclamante a determinado valor líquido a título de verbas rescisórias, mesmo que ainda persista controvérsia entre as partes a respeito dos demais pedidos iniciais formulados pelo autor (versando, por exemplo, sobre horas extras não pagas e suas incidências), conceda desde logo, na inauguração da audiência, a antecipação da tutela de mérito relativa ao primeiro daqueles pedidos iniciais (ou até mesmo da parcela incontroversa deste pedido), mediante decisão mandamental e executiva lato sensu que veicule ordem ao demandado para que desde logo pague, no prazo razoável que então fixar, sob pena de incidência das medidas coercitivas que fixar (e à luz do que estabelecem o inciso V e o parágrafo único do art. 14 do CPC, introduzidos pela Lei n. 10.358/01) ou de imediata execução provisória daquela quantia, através 13 Joel Dias Figueira Júnior, Flávio Cheim Jorge, Marcelo Abelha Rodrigues e Fredie Didier Júnior, citados por José Henrique Mouta Araújo (2004), discorrem sobre o julgamento antecipado parcial da lide, decorrente de pedido incontroverso, que desafia execução imediata.

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O julgamento antecipado parcial do mérito é instrumento de combate da morosidade da prestação jurisdicional e de promoção do princípio da efetividade e, para realmente alcançar seu desiderato, deve ser passível de execução. Dado o potencial do instituto em análise, defende-se a transferência de toda esta dinâmica para o processo do trabalho, o que encontra guarida no art. 769 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) (BRASIL, 1943) e no artigo 15 do novo CPC (BRASIL, 2015),1412 pois não há norma específica sobre julgamento antecipado parcial da lide nas normas celetistas e o seu regramento sobre execução provisória é menos efetivo do que aquele do processo civil comum, havendo, no caso, uma lacuna ontológica.1513 Insta salientar que, como se sabe, as decisões interlocutórias na seara laboral não são impugnáveis de plano, devendo a parte registrar seu protesto nos autos e, quando da sentença, recorrer daquela decisão.1614 14 Art. 15.Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente. 15 De acordo com Bezerra Leite (2007) “a heterointegração dos dois subsistemas (processo civil e trabalhista) pressupõe a interpretação evolutiva do art. 769 da CLT, para permitir a aplicação subsidiária do CPC não somente na hipótese (tradicional) de lacuna normativa do processo laboral, mas também quando a norma do processo trabalhista apresentar manifesto envelhecimento que, na prática, impede ou dificulta a prestação jurisdicional justa e efetiva deste processo especializado. […] são três as principais espécies de lacunas: 1ª) normativa, quando há ausência de norma sobre determinado caso; 2ª) ontológica, há norma, mas ela não corresponde aos fatos sociais. É o que ocorre, v. g., quando o grande desenvolvimento das relações sociais e o progresso acarretarem o ancilosamento da norma positiva; 3ª) axiológica, existe a norma, mas ela se revela injusta, isto é, existe um preceito normativo, mas se for aplicado, a solução do caso será insatisfatória ou injusta. […] Para colmatar as lacunas ontológica e axiológica do art. 769 da CLT torna-se necessária uma nova hermenêutica que propicie um novo sentido ao seu conteúdo devido ao peso dos princípios constitucionais do acesso efetivo à justiça que determinam a utilização dos meios necessários para abreviar a duração do processo”. 16 Art. 893 da CLT - Das decisões são admissíveis os seguintes recursos:§ 1º - Os incidentes do processo são resolvidos pelo próprio Juízo ou Tribunal, admitindo-se a apreciação do mereci-

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Entretanto, tal fato não exclui a possibilidade de julgar-se antecipada e parcialmente o mérito e executar-se tal decisão, em especial porque proferida com base em cognição plena e exauriente. Mas registre-se que esta execução provisória no âmbito do processo do trabalho não seguiria a norma do art. 899 da CLT, que a limita à penhora. Entende-se, na linha do que defende Carlos Henrique Bezerra Leite, que deve ser feita uma “interpretação evolutiva do art. 899 da CLT, pois este, no particular, apresenta nítido envelhecimento em relação ao processo civil” (2008, p.935), ou seja, deve ser aplicada a norma processual civil a partir da compreensão do conceito da citada lacuna ontológica. O contexto histórico deve ser apreendido pelo aplicador da norma, que se torna sensível ao fato de que muitas disposições legais não correspondem mais à realidade. Assim, ainda que a CLT contemple a execução provisória, a aplicação desta norma pode acabar sendo prejudicial àquele que teve o seu direito reconhecido, sendo necessária a busca no ordenamento jurídico de outro preceito que ofereça uma resposta melhor, dentro da perspectiva de efetividade e da tempestividade da tutela jurisdicional. Nas palavras de Marinoni: O juiz, por sua vez, ao interpretar as normas processuais, deve estar ciente de que sua função é comprometida com o conteúdo do direito do seu momento histórico. Não cabe a ele, assim, aplicar friamente a lei, quando esta possa conduzir a resultados desvirtuados, seja porque não foi adequadamente elaborada, seja porque não mais corresponde às necessidades sociais. O juiz apreende o conteúdo do direito do momento em que vive sabe reconhecer o texto de lei que não corresponde às expectativas sociais e extrair da Constituição os elementos que lhe permitem decidir de modo a fazer valer o conteúdo do direito do seu tempo. (MARINONI, 2002, p.20).

mento das decisões interlocutórias somente em recursos da decisão definitiva.

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Tendo em vista o descompasso do art. 899 da CLT com a realidade extraprocessual contemporânea e os escopos da jurisdição, entende-se pela aplicabilidade da execução provisória (cumprimento provisório de sentença) prevista no processo comum ao processo do trabalho, pois: […] a atual disciplina da execução provisória no processo civil é mais avançada do que aquela prevista na CLT. Com isso, por meio de interpretação sistemática e teleológica, fundada nos valores e princípios constitucionais, defende-se a aplicabilidade das disposições sobre o tema, prevista no CPC, que estejam em consonância com a efetividade da tutela jurisdicional. (GARCIA, 2012, p. 674).

Ainda que não haja lacuna normativa na CLT no que tange à execução provisória, argumento de parte da doutrina que nega a aplicação subsidiária do processo civil comum, entende-se que a análise do assunto deve ser ampliada, considerando as outras espécies de lacuna, especificamente a lacuna ontológica. Quer parecer que a norma celetista encontra-se ultrapassada em relação à norma processual civil, posto que esta, como se buscou demonstrar, sofreu inúmeras reformas nos últimos tempos, com o escopo de promover uma prestação jurisdicional mais tempestiva e efetiva. Reformas que culminaram no novo CPC. O art. 769 da CLT, neste contexto, deve ser lido, não só sob o prisma da ausência de norma, mas das outras espécies de lacunas, o que reforça a idéia de aplicação subsidiária da execução provisória do processo civil ao processo do trabalho. Nas palavras de Chaves: A heterointegração faz-se necessária por uma questão de simetria e paralelismo, até mesmo porque o objetivo do instituto em foco se prende à celeridade e economia

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Aline Carneiro Magalhães, Vitor Salino de Moura Eça processuais, postulados ainda mais presentes na principiologia do Direito Processual do Trabalho, intimamente ligada com a sua matriz material, que envolve direitos e créditos socialmente em destaque, considerados, estes últimos, privilegiadíssimos pela ordem jurídica vigente. (CHAVES, 2007b, p. 213).

Com entendimento convergente, assevera Schiavi: Não pode o Juiz do Trabalho fechar os olhos para normas de Direito Processual Civil mais efetivas que a CLT e se omitir sob o argumento deque a legislação processual do trabalho não é omissa, pois estão em jogo interesses muito maiores que a aplicação da legislação processual trabalhista mas, sim a importância do Direito Processual do Trabalho, como sendo um instrumento célere, efetivo, confiável, que garanta, acima de tudo, a efetividade da legislação processual trabalhista e a dignidade da pessoa humana. (SCHIAVI, 2010, p. 1056-1057).

No mesmo sentido, o enunciado 69 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, ocorrida em Brasília em 2007, que, apesar de não ser fonte do direito, expressa o pensamento dos operadores do Direito do Trabalho.1715 Partindo da premissa da aplicabilidade subsidiária da execução provisória do processo comum à seara laboral, defende-se o cabimento 17  EXECUÇÃO PROVISÓRIA. APLICABILIDADE DO ART. 475-O DO CPC NO PROCESSO DO TRABALHO. I – A expressão “…até a penhora…” constante da Consolidação das Leis do Trabalho, art. 899, é meramente referencial e não limita a execução provisória no âmbito do direito processual do trabalho, sendo plenamente aplicável o disposto no Código de Processo Civil, art. 475-O. II – Na execução provisória trabalhista é admissível a penhora de dinheiro, mesmo que indicados outros bens. Adequação do postulado da execução menos gravosa ao executado aos princípios da razoável duração do processo e da efetividade. III – É possível a liberação de valores em execução provisória, desde que verificada alguma das hipóteses do artigo 475-O, § 2º, do Código de Processo Civil, sempre que o recurso interposto esteja em contrariedade com Súmula ou Orientação Jurisprudencial, bem como na pendência de agravo de instrumento no TST. (BRASIL, 2007).

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completo da norma, segundo a qual se dispensa a caução – o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem transferência de posse ou alienação de propriedade ou de outro direito real, ou dos quais possa resultar grave dano ao executado – nas hipóteses de crédito de natureza alimentar, independente da sua origem, e o credor demonstrar situação de necessidade.1816 De acordo com a norma processual civil, o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem alienação de propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado, dependem de caução suficiente e idônea, pois,por meio desta garantia, protege-se o réu caso, eventualmente, ao final da ação, conclua-se que ele tem razão. Isto porque, se o demandante for hipossuficiente, caso seja permitida a execução provisória que importe levantamento de depósito em dinheiro ou atos de expropriação dos bens do executado e, posteriormente, o resultado final do processo lhe seja desfavorável, este poderia não ter meios de restituir o que lhe fora entregue ou ressarcir os prejuízos eventualmente sofridos pelo réu. A forma de contrabalancear os interesses das partes é exigindo a caução; assim, tanto autor quanto réu ficariam resguardados, mesmo diante de levantamento de depósito em dinheiro ou expropriação de bens. Entretanto, a própria norma mitiga a obrigatoriedade de se exigir a garantia,conforme citado, quando o crédito for de natureza alimentar e a parte demonstrar situação de necessidade. Como se sabe, o crédito trabalhista possui natureza alimentar (existencial) nos termos do art. 100, § 1º, da CR/88, destinando-se o salário às necessidades essenciais do ser humano. Logo, estaria preenchido o primeiro 18 Ressalte-se que, neste aspecto, o novo CPC exclui a limitação de “até 60 salários mínimos” prevista no art. 475-0 do CPC de 1973.

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requisito. O requisito da situação de necessidade, por ser um conceito aberto, vai depender do caso concreto, ou seja, da prova produzida sobre as reais condições econômicas da parte. O fato de o reclamante estar desempregado e não ter fonte de sustento pode ser um indicativo desta situação. A liberação de certo valor para o reclamante, logo no início do processo, decorrente da execução provisória de decisão que julgou parcial e antecipadamente o mérito, representa um passo importante no caminho da efetividade e tempestividade da tutela jurisdicional. A parte que puder contar, de plano, com uma quantia em dinheiro (parte do pleiteado) tem mais condições de aguardar o desenvolvimento do processo sem sofrer tanto com a demora e com as pressões decorrentes da necessidade financeira. Nas palavras de Dalazen: óbvio que se há um processo em que a morosidade é absolutamente intolerável tal se dá no trabalhista. Nenhum outro convive tão de perto com a pobreza, quando não com a miséria. Logo, retardar a prestação jurisdicional no processo do trabalho pode significar o comprometimento da fonte única de subsistência de uma pessoa e sua família. É denegação de justiça qualificada! (DALAZEN, 1997, p. 39).

O ex adverso, por sua vez, que também de plano tiver que cumprir com sua obrigação, pagando parte do que deve, não contará tanto com a demora do processo como seu aliado. Conforme afirma Marinoni: A lentidão da justiça […] é de interesse de alguns. […] Na realidade, a demora do processo é um benefício para o economicamente mais forte, que se torna, no Brasil, um litigante habitual em homenagem à inefetividade da justiça. Basta lembrarmos o que se verifica na Justiça do Trabalho, onde os economicamente mais fortes, desdenhando da justiça, apostam na lentidão da prestação ju-

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REVISTA DE DIREITO risdicional, obrigando aos trabalhadores realizar acordos quase sempre dês razoáveis. Será que alguém ainda acredita que a justiça é efetiva ou inefetiva, ou será que ela é sempre efetiva para alguns? (MARINONI, 1994, p. 2).

Quer parecer que, quanto mais a tutela jurisdicional for tempestiva e efetiva, menos o direito material será descumprido, e, em última análise, mais efetivo ele também será, em uma espécie de círculo virtuoso de ações. Assim, quanto mais efetiva a máquina jurisdicional, menos ela vai ter que atuar concretamente, no futuro ou a médio prazo. Simetricamente, quanto mais os destinatários das normas jurídicas souberem que só lhes resta cumprir a lei, por absoluta falta de melhor alternativa, menos será necessário o acionamento da máquina jurisdicional e maiores eficácia e efetividade terão as normas jurídicas materiais. (PIMENTA, 2004, p. 342).

Neste contexto, reitera-se o entendimento acerca do potencial das citadas normas do processo civil para promover o direito fundamental de acesso à justiça na perspectiva contemporânea que pressupõe efetividade e tempestividade da prestação jurisdicional, especialmente na seara laboral, em face da natureza existencial do crédito trabalhista, no qual aquelas devem ser subsidiariamente aplicadas.

6. Conclusão O descompasso entre o modelo processual (CPC 1973), os anseios dos jurisdicionados e as características da sociedade contemporânea foram alguns dos fatores que geraram a crise da justiça, combatida por meio de

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reformas processuais baseadas na busca pela efetividade e tempestividade da prestação jurisdicional. Esta função estatal, realizada com as citadas características, traduz a concepção moderna do direito e garantia fundamental de acesso à justiça, ou seja, não basta o reconhecimento legal do referido direito e a disponibilização de meios para que a parte, de fato, possa ir à justiça, devendo a prestação jurisdicional ser efetiva e tempestiva. Visando harmonizar as alterações esparsas e dotar o processo civil de instrumentos para que ele ostente os atributos acima referidos, foi proposto um projeto de lei para a edição de um novo Código de Processo Civil que, em dezembro de 2014, foi aprovado pelo Senado e, em março de 2015, sancionado pela Presidenta (Lei nº 13.105). Dentre as novidades propostas, chama-se a atenção para aquela que permite o julgamento antecipado parcial do mérito, por ser capaz de repartir entre as partes o ônus do tempo do processo, dando tratamento diferenciado e condizente com as características de cada pedido, ou seja, só se submete à fase de instrução o pedido controvertido, podendo ser julgado de plano aquele incontroverso. De acordo com a nova sistemática, esta decisão seria interlocutória, impugnável por meio do agravo de instrumento, e representaria a quebra do dogma da unicidade da decisão. Transportando esta dinâmica para o Direito Processual do Trabalho, face a sua compatibilidade nos termos do art. 769 da CLT e 15 do novo CPC, vê-se o julgamento antecipado parcial como instrumento com enorme potencial para proporcionar a entrega tempestiva da prestação jurisdicional trabalhista e, consequentemente, efetiva, qualidades tão caras à seara laboral, em face da natureza alimentar (existencial) do crédito trabalhista. A concretização e a maximização dos resultados deste julgamento

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antecipado parcial são passíveis de serem alcançadas por meio do procedimento da execução provisória previsto no processo civil comum, que também pode ser aplicado subsidiariamente ao processo do trabalho por meio de uma interpretação normativa a partir do conceito de lacuna ontológica (heterointegração). O uso conjugado dos referidos institutos vai ao encontro da valorização da decisão de primeiro grau, na medida em que permite ao juiz, de plano, entregar ao jurisdicionado a tutela referente ao pedido incontroverso, permitindo o gozo célere de parte de seu direito. O tempo do processo, caracterizado como um ônus, dentro desta nova dinâmica, passa a ser repartido entre as partes, e aquela que já usufrui de pelo menos parcela de seu direito logo no início da lide tem melhores condições de aguardar o desenvolvimento do processo. O magistrado de primeira instância, neste contexto, atua de forma mais ativa e é favorecido pelos benefícios decorrentes do contato direto com as partes, podendo agir em prol de uma mudança de cultura na seara laboral e da promoção de direitos fundamentais trabalhistas.

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Recebido em 02/08/2015 - Aprovado em 11/09/2015.

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AS TEORIAS DO ESTADO E A MODERNIDADE TARDIA THE THEORIES OF THE STATE AND THE TARDY MODERNITY

Antenor Alves Silva1 Vinício Carrilho Martinez2

1 Mestre em Geografia pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Especializado em Docência do Ensino Superior pela Universidade Castelo Branco. Licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Roraima. Técnico em Assuntos Educacionais na UNIR. E-mail: antenor@email.com 2 Professor Adjunto IV da Universidade Federal de São Carlos. Pós-Doutor em Educação e em Ciências Políticas. Doutor em Ciências Sociais pela UNESP e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito e em Educação. Bacharel em Ciências Sociais e em Direito. E-mail: prof.vinicio@ig.com.br

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Resumo: O artigo tem por objetivo geral indicar alguns aspectos do pluralismo político-jurídico enumerados como essenciais à formação do Estado Democrático de Direito Internacional. O texto que se segue se alinha às Teorias do Estado em sua contemporaneidade – aqui denominada Modernidade Tardia. O desafio posto exige a superação do individualismo jurídico e o revigoramento das concepções sociais do direito. Uma conclusão geral indica a necessidade de superação dos padrões atuais do pragmatismo, do formalismo e do monismo jurídico. Trata-se, portanto, de rearticular o debate epistemológico da firmação e do reconhecimento do outro, sobretudo, diante de alguns institutos jurídicos da exceção. Palavras-chave: Estado Democrático de Direito Internacional; Monismo Jurídico; Teorias do Estado.

Abstract: The article aims to indicate some aspects of the political and legal pluralism listed as essential to the formation of the Democratic State of International Law. The following text is aligned with the Theories of the State in its contemporary – here called Tardy Modernity. The challenge requires the overcoming of legal individualism and the strengthening of the social conceptions of law. A general conclusion is the need to overcome the current standards of pragmatism, formalism and the Legal Monism. Therefore, it is rearticulate the epistemological debate about the establishment and the recognition of the other, especially, in front of some legal institutions of the exception. Keywords: Democratic State of International Law; Legal Monism; Theories of the State.

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1. Introdução

O

pluralismo político-jurídico, diante da temática soberana às Teorias do Estado – a Luta por Conservação da Razão de Estado –, congrega a luta por reconhecimento e, especialmente, a reflexão sobre a existência no mundo da vida3. Portanto,

trata-se de recompor o direito à vida. Por isso, o pluralismo político-jurídico requer um redimensionamento das Teorias do Estado habituadas à análise limitada à soberania da Razão de Estado. Esse é um dos desafios colocados nesta atual fase da Modernidade Tardia, também denominada crise de civilização, quando a reformulação do Estado de Direito exige a recomposição da cultura como elemento social integrador. No Brasil, o embate entre o individualismo jurídico e a chama-

da coletivização dos conflitos foi precedido por uma reviravolta política: a politização das lides. A sensação da crise, amplamente reconhecida por quem ainda se indigna com a injustiça social, no plano jurídico, remete à certeza de que vigora uma apreensão alienada, niilista e limitada do direito. A compreensão social do direito requer, sem dúvida, uma (re)abertura ontológica do ser para o mundo da vida, superando-se as desigualdades jurídicas. Assim, mais próximo de Arendt, do que de Weber, em Habermas 3 O medium-direito precisa ser entendido como parte da luta do “mundo da vida” ao requerer/ enfrentar o monopólio legislativo e coercitivo, em benefício da globalidade dos interesses sociais, exigindo-se muito mais legitimidade do que mera legalização: “Por isso, tanto as regras morais, como as leis jurídicas, são ‘gerais’, em pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar, na medida em que se dirigem a muitos destinatários, não permitindo, pois, exceções (a não ser, obviamente, que essas regras gerais sejam as próprias leis de exceção); em segundo lugar, porque excluem privilégios ou discriminações na aplicação” (Habermas, 1997, p. 194) [grifos nossos]. Sob o aspecto legal, há um duplo movimento nas sociedades atuais: a “judicialização da política” e a “politização do judiciário”. Se por um lado é benéfico como dinâmica da sociedade moderna, é péssimo por outro, porque leva ao esgotamento das perspectivas: o anseio popular não traduz e nem se resume no enfrentamento jurídico da política e suas quimeras.

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(2002) o “poder comunicativo” exige uma legitimação democrática, consensual e constante, quando ocorre um encontro real e legítimo entre a “normatização discursiva do direito” e a própria “formação comunicativa do poder”. Se isso de fato ocorre, é porque aí se verifica a síntese do princípio democrático, de acordo com Habermas (1997, p. 191): “o procedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do direito”. Trata-se de reestruturar o espaço público, agora não mais como extensão da esfera privada (HABERMAS, 2003). Nesse contexto, parece lógico inferir que a resistência à injustiça é um direito tanto do Estado quando, por exemplo, defende-se de atentados reais às igualmente reais e legítimas “instituições democráticas” quanto é do povo, como direito pertencente ao mundo da vida. Verdú (2000, p. 153) complementa essa premissa quando afirma que É um direito do Estado – comunidade – frente ao uso injusto, em não conformidade aos poderes públicos. Sua finalidade consiste em restabelecer o ordenamento fundamentado em um Estado social e democrático de Direito. É um direito que corresponde ao povo não como entidade inorgânica senão estruturada em virtude do pluralismo político (tradução nossa).

No entanto, pensando como sociedade civil, resta pensar o processo de universalização do medium-direito no contexto e alcance do Estado de Exceção, porque aí a exceção já foi devidamente (legalmente) incluída (AGAMBEN, 2004). O Estado de Exceção remete ao uso excessivo da força e, ainda que legalizado, tem por objetivo mais amplo o controle4 social (diante dos interesses hegemônicos dos grupos de poder dominantes) por 4 Ou “ordem”, em favor da manutenção de determinado status quo (establishment vigente) ou agenda (novo establishment, “nova ordem”), de acordo com Silva (2013).

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meio da desabilitação de direitos fundamentais. Com o objetivo de organizar as ideias da melhor forma possível, este texto está dividido em quatro partes: 1) As Teorias do Estado e o Pluralismo Político-Jurídico; 2) O Direito se desvencilha da liberdade e da política; 3) Há muito mais entre o certo e o errado; 4) Concluindo: Häberle, Direito e Reciprocidade Intercultural.

2. As Teorias do Estado e o Pluralismo Político-Jurídico A história do Estado-Nação não ultrapassou, até o momento, este liame/limite restrito entre os cidadãos e a Razão de Estado: o indivíduo se identifica política e juridicamente por meio do Estado. Para o objetivo maior esperado à identidade cultural, política e jurídica, inerente ao Estado Democrático de Direito Internacional, é preciso que se considere a cultura comum, a consciência alongada para o outro e o reconhecimento5. No sentido tradicional, os paradigmas positivistas do Estado impedem uma concepção cosmopolita para o direito – o que também restringe o pluralismo político-jurídico requerido pelas relações internacionais. A consciência pública internacional permite a percepção global de que o Estado e o direito têm, obviamente, uma dimensão político-jurídica, Mas, igualmente fundamental, é necessário frisar sua dimensão histórico-cultural. Desse modo, requer-se um sistema político-jurídico multinível, mul5 É certo que a política faz parte da cultura. Porém, quando se refere a essa ampla articulação entre direito, grupos de poder, sociedade civil (onde é inserido o mundo da vida), e sempre com objetivo de “dominar o poder”, é natural que se verifique no Político uma forma especial de se manifestarem as relações humanas. Em relação ao Estado de Exceção, pode-se, por exemplo, distinguir cultura, a que seria própria ao fascismo, e política, se por essa for observada a inerente Razão de Estado como ultima ratio ou “última vontade dos reis” (RIBEIRO, 1993).

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tiator, cooperativo – com lastro na perspectiva do Estado Democrático de Direito Internacional –, que seja referência aos Estados nacionais quanto à vinculação regional, cultural e antropológica (TEIXEIRA, 2011). Esse “novo contexto” deverá se abastecer da diversidade cultural, a fim de que a concepção de cultura política seja apropriada pelos agentes públicos (juristas em especial). Isso depende da posição, do status, da inserção do sujeito de direitos e do seu desejo de se distinguir de si mesmo e assim afirmar sua identidade cultural6. O Estado Democrático de Direito Internacional requer a criação de instâncias, instituições, estruturas administrativas e político-participativas que se referendem por meio do reconhecimento das diversidades7 culturais e do pluralismo político-jurídico. Este reconhecimento pode/deve ser obtido por meio da criação de mecanismos de mediação. Os mecanismos de mediação entre o institucional (político-jurídico) e a cidadania (cultura e sociedade) precisam ser implementados/agilizados. O reconhecimento do outro – para além do em-si-mesmo, ensimesmado, provinciano, caipira – impõe-se como verbo de voz ativa e passiva: reconhecer e ser reconhecido. Desse modo, o reconhecimento pautado no pluralismo ainda seria um desafio posto à globalização. A reciprocidade, como princípio jurídico e ação prática da cultura política, professa valores-direitos iguais em termos de dignidade, liberdade e autonomia. A autonomia que é inerente à ação política agora se ocupa da cultura, na formação de uma consciência pública internacional8. 6 Sem isso, a concepção de Humanidade não será mais do que uma abstração, sem algum constructo político em que se baseie o mundo da cultura e capaz de dialogar com a diversidade imposta pelo pluralismo político-jurídico. 7 E adversidades. 8 Afinal, guardadas as proporções, as limitações impostas pela alegada sobrevivência da Razão de Estado são sentidas em todo o globo e, ao reverso, nem sempre se faz atuante na mesma medida a intervenção do pluralismo vertido pelas relações culturais.

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O pluralismo político-jurídico ainda traz o desafio de uma síntese integradora entre identidade, cultura, direito e instituições políticas e estatais. Por fim, o reconhecimento cultural tem implicação distinta na formulação do pluralismo político-jurídico, ao promover uma “visão cognitiva da igualdade universal” entre sujeitos de direito9. O tema reflete uma mudança profunda, radical, na raiz do problema cultural, jurídico e político. Nesse caso, pode-se falar com acerto que seria uma mudança de paradigma, pois as principais instituições não trocariam apenas de roupa, mas sim de pele. Aliás, diz-se que a cultura é a segunda pele de cada indivíduo. Portanto, mudar a pele da instituição é modificar sua base de inserção cultural10. Trata-se de fundar um Estado de Direito que considere a cultura em sua base de legalidade, pois do contrário, o legalismo instrumentalizado por um Poder Judiciário seletivo e demasiadamente intransigente, não alcança a legitimidade mínima. Sem o reconhecimento óbvio de que a cultura faz o direito ser o que é, a lei continua distante/indiferente ao maior objetivo do próprio direito – e que deveria ser a Justiça. É curioso, mas é preciso dizer com letras claras que não há legalidade sem a observação do pluralismo político-jurídico. Trata-se de um reconhecimento muito além do formal, institucional, ou seja, de um reconhecimento cognitivo, epistemológico. Afinal, sem reconhecer o pluralismo jurídico há, na melhor definição, um conjunto legal, um ordenamento frio, classista, excludente e, exatamente por isso, injusto11.

9 Zoon politikon. 10 Com isso, nota-se que a pele jurídico-institucional do indivíduo está longe dos objetivos maiores traçados ao longo da Luta pelo Direito. Os desafios são enormes, mas de resultados gratificantes para o povo, se, e somente se, for construída essa concepção republicana do direito. 11 Hoje se reconhece apenas fragmentos da modernidade e dos seus postulados tidos como naturais à sociabilidade e integridade da cidadania – esta sendo assegurada pelo direito.

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3. O Direito se desvencilha da liberdade e da política Na Modernidade Tardia, que pode ser compreendida desde a formação da Razão de Estado e do direito moderno, no Renascimento, o mundo da cultura está distante do direito. Nada parece mais estranho. Porém, ao contrário do que se aprende nos manuais, de modo realista, há uma seletividade que opõe cultura e direito. Como exemplo, basta verificar que os direitos humanos não fazem parte da realidade e nem do imaginário da maioria das pessoas. O individualismo, ao separar homem e natureza, também resultou na separação entre o bem, a verdade e a justiça, produzindo-se um abismo entre o ser e o dever-ser. Em certo sentido, parece uma contradição, pois há um apego grande à liberdade. Contudo, só parece contraditório porque a liberdade posta em cena se resume ao indivíduo, a seu individualismo. Liberdade sexual, para consumir e uma estranha requisição para ser livre de tudo e de todos: uma suposta liberdade para não contrair responsabilidades e cumprir obrigações. A história demonstra que isto é impossível, mas as próprias lições da história estão em xeque, desde a crise de civilização anunciada pela pós-modernidade. O “sujeito de direitos” alega ser livre (e luta) para não ter responsabilidades coletivas. Invoca-se o direito de não se responsabilizar pelo outro. Mais curioso é que se apregoa uma liberdade sem real amparo no direito, porque o direito – como norma ou regra – é social por definição. O direito é social porque é motivado pelas demandas sociais e não apenas em razão de ter seus efeitos generalizados – como efeito erga omnes.

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Pela lógica, o direito não pode negar a si mesmo ou, mais obviamente, negar o social. Logo, o indivíduo não pode se apoiar no alegado “direito de não ter responsabilidades sociais”. Todavia, o individualismo jurídico opõe-se em contradição indissolúvel direito e liberdade12. Há uma nova cidadania em surgimento e que não se dá a compreender em profundidade, ao negar postulados milenares como o de que o direito não pode se voltar contra a sociedade. Contudo, e aqui há outra faceta da contradição, observa-se que isso é possível por meio da criação de uma lógica da exceção, geradora de um direito de exceção, que celebra privilégios13 com força de lei (MARTINEZ, 2010). O que deveria ser excepcional, como último recurso de regulação, acaba por ser regularizado, tido como “normal”, e assim se “normaliza” (impõe-se como norma e regra) a normativa que, desde a origem, é de uso irregular, extemporâneo. É essa normalização do excepcional, da exceção, que irá justificar a liberdade liberal expedida pelo individualismo jurídico. Por isso, nada mais contrário à sociabilidade. De todo modo, é óbvio que não pode haver garantia social para esta noção liberal de liberdade. Seria o equivalente ao Estado – por meio de regras jurídicas do direito – atestar concessão ao indivíduo para não ser sociável. É como se o indivíduo não mais fosse responsável pela política – lembrando-se de que é por iniciativa da política que se matura o direito, dentro e fora do Poder Legislativo. Entretanto, também na relação entre direito e política há uma reviravolta no senso que abriga o homem médio. De fato, com a política, ocorre algo semelhante ao “direito de se desobrigar dos outros”, uma vez que o 12 O direito que obriga à socialização e a liberdade de se furtar dos compromissos e das responsabilidades comuns. Nessa estranha lógica da exceção, em que vigora o eu-mesmo, direito e política andam dissociados, divorciando-se a ação política da deliberação jurídica. 13 Do latim, privi legem: leis privadas.

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indivíduo só reconhece a obrigação de pagar impostos e de votar (esta questionável, pois eminentemente política). Em troca, esperar poder abster-se da reflexão e da ação política, pelo simples fato de que pensar/agir implica responsabilidades. Ao abandonar o espaço público, o “sujeito de direitos” troca de lugar com os tecnocratas da política. O resultado é que o indivíduo abdica de si mesmo; por força do individualismo jurídico, o suposto “sujeito de direitos” não é mais o protagonista da política e, por via direta, repudia o fórum do direito, uma vez que o direito é resultado imediato do embate das forças políticas. O “sujeito de direitos” acredita, ingenuamente, que não precisa ser o zoon politikon. Para se sentir livre das obrigações e responsabilidades sociais, o indivíduo negocia, barganha com seu algoz e relega sua essência a um segundo plano. Como faz o Zé Ninguém (Reich), mantendo a vã expectativa do direito, sem se responsabilizar politicamente na Luta pelo Direito. Neste sentido, pode-se dizer que não se pode ver os outros onde só vigora o nada, ou quase-nada. De tal modo que, com a política estranhamente indiferente ao indivíduo, o espaço público – tradicional fórum de mediação e de produção jurídica – produz direitos que não são sociais na sua origem. Portanto, este direito é excludente (do próprio sujeito que se julgava detentor) e assim se flagra uma evidente exceção. Desconectando-se do outro, o indivíduo não se afirma como sujeito de direitos, uma vez que, para ser sujeito e não ser sujeitado, não pode abdicar do direito à política, do direito de fazer política, do Direito a ter direitos. Nessa estranha lógica, o individualismo jurídico forja uma noção de liberdade em que o direito se revela como produto de excepcionalidade, dado que apenas excepcionalmente o direito seria produto social e resultado da ação política dos sujeitos de direitos.

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Opondo-se a liberdade individual à responsabilidade social, o individualismo jurídico retira direitos do indivíduo, garante privilégios como direitos de exceção, restringe a liberdade política e anula o espaço público como fermento social inerente ao sujeito político. Adentra-se, em suma, ao contexto do pós-modernismo jurídico, com suas críticas ao estado de injustiças e promessas descumpridas pelo direito iluminista. Contudo, além das críticas bem-formuladas, herdamos as excepcionalidades e a indiferença que crescem como voçoroca jurídica incontrolável. Entre outros tantos desperdícios, abdica-se da prudência política apregoada pelos clássicos – visto que a velocidade requerida às soluções imediatistas não se compraz com o tempo de repouso requerido pela prudência (MARTINEZ, 2011).

4. Há muito mais entre o certo e o errado Mas o pós-moderno estaria limitado ao individualismo jurídico? Parece que a resposta é mais complexa do que um simples sim ou não. Conforme Sevcenko (1987, p. 54 e 55): O pós-moderno sem dúvida traz ambigüidades — aliás é feito delas e deve ser criticado e superado. É isso que ele propõe: a prudência como método14, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite [...] O anseio de uma justiça que possa ser sensível ao pequeno, ao incompleto, ao múltiplo, à condição de irredutível diferença que marca a materialidade de cada elemento da natureza, de cada ser humano, de cada comunidade, de cada circunstância, ao contrário dos que 14 É evidente que nossa investigação vai à contramão do que apregoa Sevcenko, no que se refere ao fato da pós-modernidade adotar a “prudência como método” (SEVCENKO, 1987).

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REVISTA DE DIREITO nos ensinam a metafísica e o positivismo oficiais [...] Creio que já seria uma vantagem e um alívio que o pós-moderno se apresente como um castelo de areia e não mais como uma nova Bastilha, um novo Reichstag, um novo Kremlin, um novo Capitólio. Apenas um castelo de areia, frágil, inconsistente, provisório, tal como todo ser humano. Um enigma que não merece a violência de ser decifrado (grifo nosso).

O projeto arquitetônico da pós-modernidade, ao expor a estrutura e o interior, as amarrações, o liame do “eixo central” de sustentação, revelando aos observadores, as armações em aço e o conteúdo mais simples e operacional15, como é o caso do elevador panorâmico, na verdade, promoveu uma revolução em termos de leitura do real — não era, portanto, um mero efeito de embelezamento. Ao revelar a estrutura de suporte das construções, o projeto pós-moderno dizia ao leitor do real que a essência (assim como a estrutura) pode e deve ser vista, revista, revirada. É interessante notar como forma e conteúdo devem vir associados a partir de então, bem como outrora, na modernidade clássica apareciam em destaque os primos gêmeos da essência e da aparência. Na configuração atual da sociedade moderna, entretanto, a sociedade de controle impõe ao cidadão cada vez mais o toque de recolher16 que o obriga a ver-se cada vez mais longe de sua liberdade. Na prática, ao revés do Estado de Bem-Estar, edificou-se um Estado Penal (WACQUANT, 2003), com a crescente militarização das relações sociais – além de revelar que o direito não ultrapassa as barreiras pré-humanistas da punibilidade como mero controle social (MARTINEZ E SANTOS, 2009). Certamente, não como criação pós-moderna (no fundo é mais uma 15 Os nós marcados pela cola do aço e do concreto. 16 Da alma ou do corpo.

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das muitas criações do liberalismo burguês), o Estado de Exceção17 tem sido constantemente agilizado (contra a liberdade) como arma para se opor aos crescentes atos de rebeldia e/ou ao terrorismo (sem que ninguém fale de terrorismo de Estado). De outro modo, a guerrilha virtual leva um número crescente de países livres a adotarem formas de controle do mundo virtual18, isto é, na sociedade de controle, mudam-se as formas de ação, mas o controle sobre o mundo real/virtual é muito intenso. O que ainda nos permite concluir que as características centrais da pós-modernidade – a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite – têm sido cada vez mais compelidas para fora da realidade observável. Portanto, o entorno desta pós-modernidade se revela recrudescido, empedernido, emparedado, embrutecido: é incrível, mas talvez a pós-modernidade esteja mais sob ameaça do que a própria segurança e regularidade (ordem e progresso) do mundo moderno e de suas utopias. Por essas razões, pretende-se entender como o entorno desse quadro sócio-metabólico desafia os antigos paradigmas da sociedade capitalista e as tradições da modernidade19, além da própria pós-modernidade – em parte, ao menos inicialmente, essa série de desafios teve inicio com a própria pós-modernidade, mas também há a somatória de outro perfil, agora da sociedade de controle, de seus entraves, “entranhamentos” e estranhamentos. Outro ponto curioso nessa relação entre a irracionalidade moderna 17 Esse Estado de Exceção, figurando como último capítulo da tese, servirá apenas como um dos possíveis exemplos disto que chamamos de “modernidade tardia” e de sua ação vingativa contra o “passado liberal-burguês”, que se formou na segunda fase do projeto da modernidade (séculos XVII e XVIII). 18 Exercem um enorme controle sobre sistemas de busca, como o Google, na China, por exemplo. 19 Não é muito confortador que, além da espada do desemprego estrutural, agora o trabalho formal seja substituído pelo trabalho imaterial.

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(as contradições inerentes ao capitalismo) e a irracionalidade descontínua da pós-modernidade (como vimos, o castelo de areia) advém da própria compreensão que Weber realizava da racionalidade moderna (a previsibilidade de fatores previsíveis da vida social). De acordo com Giddens (1998, p. 52 a 53): A conduta humana, afirmava Weber, era tão previsível quanto os eventos do mundo natural: “A previsibilidade’ (Berenchnenbarkeit) dos ‘processos da natureza’, tal qual na esfera das previsões meteorológicas, é muito menos acertada do que o cálculo das ações de alguém conhecido por nós”. Essa “irracionalidade” (no sentido de que a “vontade livre” = “incalculabilidade”) não era de forma alguma um componente específico da conduta humana: pelo contrário, essa irracionalidade, concluiu Weber, era “anormal”, na medida em que se constituía em propriedade do comportamento daqueles indivíduos que eram designados como “insanos”. Era, portanto, uma falácia supor que as ações humanas não pudessem ser tratadas por generalizações; na verdade, a vida social dependia de regularidades na conduta humana, de tal forma que um indivíduo pudesse calcular as respostas prováveis de outro em relação à sua própria ação [...] isso não implicava que as ações humanas pudessem ser tratadas [...] como fenômenos objetivos [...] A ação teria um conteúdo “subjetivo” não compartilhado pelo mundo da natureza, e a apreensão do sentido das ações de um ator era essencial para a explicação das regularidades discerníveis na conduta humana.

Como diria Weber (1979, p. 153), notadamente em A Política como Vocação, a descrença só não abate aqueles que perduram no caminho clássico de sua própria vocação: Somente quem tem a vocação da política terá certeza de não desmoronar quando o mundo, do seu ponto de vista, for demasiado estúpido ou demasiado mesquinho para o que ele lhe deseja oferecer. Somente quem, frente a tudo

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Antenor Alves Silva, Vinício Carrilho Martinez isso, pode dizer “Apesar de tudo!” tem a vocação para a política.

Nesse sentido, essa angústia que é sentida, por se estar em meio à indefinição entre o moderno e o pós-moderno – entre a certeza e o indesejável, entre a leveza e a sofreguidão, entre o cristal e a fumaça, entre o robusto e o que se desmancha no ar (MARX E ENGELS, 1993) –, é que se diz que só sobreviverão os que têm vocação (não como predestinados), mas como persistentes e esforçados. Esses tais teriam vocação para a vida social. Porém, é em meio a esta profusão de dados, de sentimentos, de sensações, de emoções, de estranhamento sócio-ambiental, que ainda se movimenta o homem social de hoje, um homem social e muitas vezes não-político, no sentido da ágora dos gregos antigos. O Homem-político de hoje perdeu seu ethos e seu utopos (portanto, sem parâmetros e sem lugar), em virtude de ter-se ampliado para além dos burgos, das cidades de sua origem, do seu enraizamento natural. Sennett (1988, p. 31 e 32) explica que Há um termo logicamente associado a um público urbano diverso: “cosmopolita”. De acordo com o emprego francês registrado em 1738, cosmopolita é um homem que se movimenta despreocupadamente em meio à diversidade, que está à vontade em situações sem nenhum vínculo nem paralelo com aquilo que lhe é familiar [...] Por causa dos novos hábitos de se estar em público, o cosmopolita tornou-se o homem público perfeito.

Mas é cosmopolita apolítico, antipolítico. Aliás, este sentido de homem cosmopolita atual, em oposição ao homem que trabalhava para construir o mundo social ou, então, anteposto ao homem político (da urbanidade, da civilidade antiga) é outro fator curioso, emblemático desta fase em que nos

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encontramos, entre o moderno e o pós-moderno. De certo modo, esse fluxo também expressa a incontinência entre o social e o político, entre as contradições sociais agudas (Marx) e a desejada “previsibilidade político-administrativa” (Weber). Entretanto, há o desafio certo de reverter o processo que transformou o outro no mesmo, nesta mesmice atroz e que vilipendia a própria individualidade. Em meio às críticas da moda, enfim, é preciso retomar exaustivamente os clássicos e não subestimar suas categorias. Assim, ainda diríamos que o homem é o resultado de suas circunstâncias modificadas pela ação social20 e pelo trabalho, inclusive. Afinal, o trabalho modifica o “mundo natural”, o ambiente, o entorno humano, e este movimento e/ou fluxo contínuo transforma o homem (a sua subjetividade, individualidade), e, assim, em convívio com os demais, “o homem que trabalha” passa a constituir o mundo social, como se a natureza, enfim, fosse a partir de então “o mundo natural modificado pela ação humana”. A sociedade, portanto, é moldada pelo trabalho que está na base da

20 Entendida a Ação Social (a realidade objetiva que se expressa na subjetividade) no conjunto definido por Weber (WEBER, 1979), como: a) ação tradicional: processa-se de acordo com as tradições seculares, usos e costumes sagrados. b) ação carismática: inova e não só observa tradições. Funda-se na crença do autor ser dotado de poderes sobre-humanos e sobrenaturais que agem, livremente, sem se reduzir às normas estabelecidas ou tradicionais, mas sim por novas formas, normas e tradições.

c) ação afetiva: orientada pelas emoções e sentimentos (sentimentalidade).

d) ação social racional: é causal ou logicamente compatível com os fins propostos.

e) ação política: A finalidade ideal da ação política é a instituição ou a perpetuação do poder. A ação política exerce três tipos de dominação: i) Dominação carismática: legitimada pela fé e pelas qualidades sobrenaturais do chefe. ii) Dominação tradicional: legitimada pela crença na tradição. iii) Dominação legal: legitimada pelas leis a partir dos costumes, tornando-se possível pela burocracia e pelo direito: organização racional e legal das funções.

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sua teleologia21 (um projeto que tem claras intenções) e que orientaria a práxis humana (a ação humana em meio à profusão de relações sociais)22. Por isso, o homem é indubitavelmente um animal social, na sua gênese e formação, e ainda que seja político na verificação dos resultados seguintes. Enfim, o homem conhecerá as relações de poder – disputará o “mundo natural” em prol de sua subsistência – e isto se dará muito antes de se tornar um “animal político”, a partir da Polis grega. O mito de Prometeu (o Patrono do Trabalho) foi entendido pelos gregos como anterior ao mito da política. O Homo sociologicus, do trabalho e da sociabilidade imposta pela sobrevivência (2,5 milhões de anos atrás)23, foi constituído muito antes do Homo politicus (a partir da ágora grega: há não mais do que cinco mil anos)24. Nesse sentido, serve a observação de que a própria política (ou o poder25) antecede ou até se configura independente dos aparelhos de Estado. Giddens afirma que As concepções “substantivas” pressupõem diferenciação institucional concreta dessas várias ordens. Quer dizer, sustenta-se, por exemplo, que a “política” só existe em 21 Entendida a expressão como um “projeto bem sucedido, aquele que começa e que tem uma finalidade, um objetivo traçado”. Mas igualmente como “estudo da finalidade” ou “doutrina filosófica que considera o mundo como um sistema de relações entre meios e fins”, de acordo com Lalande (1999, p. 1112). 22 Se a cada ação corresponde uma reação de iguais proporções, nesse caso, então, esta reação social deverá a substância da ação inicial. Não há inércia social. 23 Há 2,5 milhões de anos, o Homo habilis (“humano habilidoso”) teria desenvolvido as primeiras ferramentas (pois era capaz de trabalhar a pedra); e há 2 milhões de anos teria surgido o Australopithecus robustus, que tinha um formato das mãos que lhe permitiu a construção de novas ferramentas. O Homem de Java ou Homo erectus (humano ereto) seria aquele quem dominaria o fogo prontamente, há cerca de 1,8 milhão de anos – isso permitiu-lhe a vida em comunidade. 24 E mesmo a chamada “Revolução do Neolítico” – quando o Homo sapiens sapiens combinou definitivamente a técnica, a política e a arte no mesmo contexto social e de produção da vida social – é anterior à ágora antiga em outros cinco mil anos. 25 Na prática do poder – muitas vezes entendido como cesarismo, em que novamente se reparte e distribui os matizes para a cultura fascista (GRAMSCI, 2000) – os direitos fundamentais são observados como impedimento ao poder e, desse modo, são consumidos pelo poder.

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REVISTA DE DIREITO sociedades que possuem formas distintas de aparelho de Estado, e assim por diante. Mas o trabalho de antropólogos demonstra de modo bastante efetivo que existem fenômenos “políticos” — relacionados com a ordenação das relações de autoridade — em todas as sociedades (GIDDEENS, (1989, p. 27).

A Antropologia Política, portanto, faz uma crítica substantiva e estrutural ao classicismo, a exemplo da máxima de que a política nasceu na Grécia antiga. Mais do que nunca é preciso revalorizar a perspectiva sociológica da própria vida social – é preciso insistir na Sociologia do Mundo da vida social, pois é aí que estão as chances de revigorar toda forma de sociabilidade. Vive-se numa verdadeira janela do tempo, presos ao presente, mas procurando olhar para o mais longínquo (ou simplesmente para-o-ali, mas indiferentes ao acolá) a partir das mudanças e das transformações de toda sorte que surgem do olho do furacão. Hoje se procura abrir esta janela do tempo para ver se, em meio à crise, é possível visualizar algum lampejo do presente-futuro: não apenas como telespectadores passivos das novelas do presente, mas como atores26. No entanto, haverá alguma certeza disso? De todo esse projeto de humanização (hominização) o que, de fato, ainda está em vigor? O que ainda oferece conteúdo de esperança para o futuro transformado? Desse modo, pensando em confrontar, mas sem agredir, passado e presente, cabe refletir: a) O que trouxe racionalidade para a vida moderna, a própria “racionalidade” (institucionalização da violência e da política), o direito de regulação dos conflitos em torno da conquista e da sucessão da propriedade privada (desde o Código Civil Napoleônico)? b) Em que sentido terá contribuído a evolução do mesmo Estado 26 Por isso, abrir a janela do tempo, como maior desafio, no presente, ainda exigirá que se coloque a cabeça para fora, na tentativa de ver, ao menos, um palmo à frente do nariz.

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Moderno que, gradativamente, passou a reconhecer o pluralismo jurídico (dado o pluralismo social e político), despertando-se do monismo jurídico hobbesiano? c) Essa mudança coincidiria com a transformação histórica do binômio direitos/deveres para a articulação direito/liberdades/garantias? Como foi visto, o individualismo jurídico é a negação do que se acreditava, por óbvio, há muitos séculos: o direito, como construção eminentemente social, foi o médium e amálgama dos mais variados interesses e demandas individuais e partidárias. O que evitou a desconstrução dos já-precários vínculos sociais – em virtude de os interesses particulares poderem converter-se em conflitos abertos – seria o médium-direito, sinalizando por meio de regras jurídicas e normas sociais os limites suportáveis frente aos interesses imediatistas. Nessa esteira, claro recurso quanto a este influxo das garantias jurídicas inclusivas, socializadoras, securitárias do bem-estar e do direito à vida, acima dos privilégios individuais, é o pluralismo jurídico que é visto em Häberle.

5. Concluindo: Häberle, Direito e Reciprocidade Intercultural Como ensina Häberle, é preciso ler a Constituição e o Direito como fomento cultural (HÄBERLE, 2008). Assim, pode-se ter o pluralismo como uma ideia luminar e a cultura como um conceito aberto. No caso brasileiro, seria necessário ver como se arranjaram reciprocidade e multiculturalismo na ordem jurídica ou, em outras palavras, cidadania e garantias constitucionais.

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Esse marco analítico constituiria um verdadeiro pluralismo constitucional: a cultura na Constituição. Também seria terreno fértil à elaboração teórica e prática do que se convencionou chamar de Estado Social na Sociedade Aberta. Esse conjunto de defesas constitucionais alicerçado pela ordem da cultura ainda serviria ao combate das formas fascistas e totalitárias de Estado que se tem anunciado – como em torno do Estado Penal27. Portanto, Häberle intenta constituir um modelo jusfilosófico (axiológico) da cultura, notadamente nas sociedades modernas altamente racionalizadas. Evidentemente que sob um escrupuloso respeito à diversidade cultural, este culturalismo jurídico seria como um ideário a constituir uma sociedade multicultural e multiétnica. Certamente um desafio ao Estado Social que, além das dificuldades inerentes à ordem da cultura, ainda debela-se frente ao neoliberalismo. Juridicamente, equivaleria a ter o pluralismo como pressuposto jurídico-filosófico da Democracia Constitucional – equivalente a uma dimensão intercultural e jurídica da democracia social. Essa forma de ver o multiculturalismo – ou respeito às mais variadas intersecções culturais – empresta ao direito uma generosidade constitucional ao mesmo tempo em que busca uma articulação jusfilosófica da cultura. Häberle incorporou ao contexto jurídico a música, a literatura, a arquitetura, as artes cênicas e a pintura. Este esforço lhe valeu uma visão policrômica, multifacetada, democrática, transdisciplinar e, queria o autor, transcultural. Seu intento é verificar na cultura os laços próprios à legitimação constitucional, como um processo político no interior de um amplo conceito de pluralismo (como axiologia e hermenêutica). Trata-se, portanto, de um 27 Na verdade, uma forma de poder e de soberania que cabe ao detentor dos meios de exceção (SCHMITT, 2006).

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pluralismo constitucional não-dogmático. Politicamente, esta hermenêutica constitucional traz o Princípio da Dignidade Humana e é receptiva a pontos de vista angulares e até opostos ou contraditórios. Sua perspectiva prima pela inclusão não-excludente, combatente da lógica dos meios jurídicos de exceção, em que se inclui a exclusão. A Constituição axiológica e deontológica é pluralista, opondo-se ao modelo constitucional totalitário, integrista e fundamentalista; em que não fiquem à sombra valores como: diversidade; cidadania ativa; soberania autonômica. Desse modo, sua obra acaba por se converter em um gigantesco poema-sinfônico do constitucionalismo democrático (uma “reserva teoricamente possível”). Como seguidor de K. Hesse28, Häberle vê o vigor ou a força normativa subjacente à Constituição, como se fora sua síntese cultural. De onde também transborda o eixo de sua base conceitual: “realidade; possibilidade; necessidade”. Há um nítido esforço por resultar em uma mescla entre cultura e direito (Justiça Constitucional), informando as formas e os limites em que atuam, realisticamente, a normatividade jurídica constitucional concernente ao Estado Social e à cidadania inclusiva – própria do Direito a ter direitos. Acresce dizer que, na base do culturalismo jurídico, as demandas coletivas pela instituição de direitos coletivos motivaram o surgimento de processos coletivos. Entretanto, talvez, pela primeira vez na história, seja possível dizer que se vive a experiência de ter em parte do direito posto a expressão de uma realidade social e coletiva; como um sistema realmente composto por demandas, direitos, garantias e processos coletivos. 28 “Estado Constitucional” indica um tipo de Estado, cuja Constituição, nos âmbitos dos direitos fundamentais e da construção estatal, mostra princípios gerais e, com isso, comunidades que no desenvolvimento europeu recente ganharam significado crescente; nesse aspecto, o conceito circunscreve pontos de referência para a compreensão e o desenvolvimento da Constituição (HESSE, 1998, p. 26).

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Mais do que expressão da realidade social, o direito coletivo (movido pela coletivização dos conflitos) verdadeiramente pode transformar esta mesma realidade que lhe deu origem, reestruturando as vias de expressão popular e a consequente estrutura jurídica, quanto ao processo e seus procedimentos. Por fim, podemos indagar: a) Quais são os sujeitos coletivos do Direito? b) Aqui, com a vigência desta nova ótica – em que importam mais os resultados do processo para os consumidores da justiça –, as principais mudanças são afetas a algumas estruturas ou atingem o sistema do Direito como um todo? c) Pode-se dizer que a sociedade alcançou o status de sujeito de direitos? d) Quais as diferenças essenciais entre os direitos sociais tradicionais (saúde, educação) e esta geração de direitos chamada de direitos coletivos? Para o caso brasileiro, inspirando-se no autor alemão, há muito a que se fazer a fim de visualizarmos a cultura como direito fundamental: Estado Democrático de Terceira Geração29. O esforço desta análise ainda prevê uma crítica étnica e ética do Estado Social que, no Brasil, mal formado em bases jurídicas, vê-se desarticulado politicamente. Como se trata de um esforço por visualizar o que esta doutrina jurídica tem de melhor, e a ser pensada de modo ajustado à realidade brasileira, é de extrema necessidade fomentar o debate político-constitucional acerca das 29 Os direitos de terceira geração (sobretudo, se vistos como propriamente Direitos da Humanidade) sofrem hoje de restrições veladas ou com mais afronta pelo mundo todo – no que é, certamente, mais um sério golpe contra o mundo da vida. Entenda-se aqui, que uma geração de direitos não digere as anteriores, mas subsume-se assim como os filhos, incorporando a carga genética dos pais. No direito, isto é claro quando se observa que os direitos individuais (de primeira geração) são transformados, ampliados (dialeticamente) e ressurgem, subsumidos, na forma de direitos individuais homogêneos.

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garantias constitucionais devidas ao/pelo Estado Democrático de Direito Social. A cultura, a diversidade, a multiplicidade são por demais evidentes para serem ignoradas pelos juristas – pois seriam potenciais fatores de aproximação e de aporte transcultural. A Constituição Democrática deveria permitir que se tecesse uma axiologia básica do Princípio da Dignidade Humana; em que se constituísse uma reserva de valor democrático, ao invés de uma possível reserva de valor político. A limitação de recursos oficiais e tradicionais acaba por servir de restrição (uma modalidade de desculpa política) ao favorecimento/fomento da cultura. A política segue sendo a justificativa para o não cumprimento integral dos direitos fundamentais. Mas, é de se frisar que este tipo de alegação política – distante do controle de toda a cidadania democrática – pode aniquilar a determinação constitucional, sobretudo sem que haja consulta e convencimento popular. Sabe-se, no momento, que historicamente a política sempre impediu a procedimentalização dos direitos fundamentais. Entretanto, o drama ético não demarca seu epílogo, especialmente porque vale a luta pelo Estado do Bem Estar Cultural. Por fim, cabe dizer que Häberle não vê a dogmática como um fim em si mesmo; antes, toma-a como instrumento de análise da realidade subjacente. Se “o direito é fruto da cultura”, é preciso ter em contraste as cristalizações e as objetivações culturais como meio de desenvolvimento constitucional.

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Recebido em 07/07/2015 - Aprovado em 01/10/2015.

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fundamentos históricos e legais da tutela da dignidade sexual de crianças e adolescentes no ordenamento jurídico brasileiro Historical and legal fundaments of guardianship of children and adolescents’ sexual dignity on the Brazilian legal order Cláudia Gomes de Castro1 Fernando Laércio Alves da Silva2

1 Mestre em História e Culturas Políticas pela UFMG, Bacharela em Direito pela UFV e em Comunicação Social/Jornalismo pela UNI-BH. Servidora Pública Federal da UFV. E-mail: claudiagomesdecastro@yahoo.com.br. 2 Doutorando em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito, área de concentração Políticas Públicas e Processo, pela Faculdade de Direito de Campos do Centro Universitário Fluminense. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Viçosa. Professor Adjunto I do Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Viçosa. Bolsista Capes. E-mail: fernando.laercio@ufv.br.

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RESUMO: O presente artigo aborda a questão das garantias dadas pela legislação brasileira à dignidade sexual de crianças e adolescentes e intenciona comprovar que são sujeitos detentores de direitos e deveres. Dessa forma, procura discutir os vários argumentos que podem surgir em torno da questão, inclusive de natureza constitucional e histórica. Portanto, trata-se da tutela jurisdicional brasileira à dignidade sexual de crianças e adolescentes tendo o Código Penal Brasileiro e o Estatuto da Criança e do Adolescente como principais objetos de estudo. Palavras-chave: crimes sexuais, vulneráveis, pedofilia.

ABSTRACT: This article addresses the issue of guarantees given by Brazilian law to the sexual dignity of children and adolescents, and intends to demonstrate that they are subject to rights and duties. Thus, discusses the various arguments that can arise around the issue, including those of constitutional and historical nature. Therefore, the main object of study is the Brazilian judicial protection tof the sexual dignity of children and adolescents, specially concerning the Brazilian Penal Code and the Children and Adolescents Statute Keywords: sex crimes, vulnerable, pedophilia.

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1. Introdução

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o se falar em crimes sexuais, de uma forma geral, desperta-se uma aversão na sociedade e a leva a discutir o seu contexto. O abuso sexual contra crianças e adolescentes, especificamente, constitui a maior parte das ocorrências policiais referentes a

crimes sexuais no Brasil nos últimos anos. Em âmbito global, calcula-se que 10% da população mundial pode ter sofrido abuso sexual antes dos 18 anos, sendo que 90% dos casos têm o sexo feminino como vítima preferencial, principalmente dentro da própria família. A maior parte dos casos permanece como segredo de família até que a vítima procure ajuda terapêutica (RIBEIRO; FERRIANI, 2004). O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro divulgou que, no ano de 2011, 23,2% das vítimas da violência sexual foram crianças de 0 a 9 anos, e outros 30,3% crianças e adolescentes na faixa etária entre 10 e 14 anos. Os abusadores geralmente são homens e raramente surgem casos de crimes sexuais praticados por mulheres sendo que, destes, um número significativo delas participa como cúmplice do criminoso do sexo masculino (Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2011). Diante dos fatos apresentados e da realidade social na qual estamos inseridos, faremos uma análise dos tipos legais que tornam criminosas as condutas envolvendo a violação da dignidade sexual de crianças e adolescentes e demonstraremos o momento em que a dignidade sexual de crianças e adolescentes tornou-se uma preocupação do legislador e objeto de legalidade. Dessa forma, em primeiro lugar, trataremos da tutela dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil promovendo um resgate histórico com a finalidade de demonstrar o tratamento dado à dignidade sexual das

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crianças e adolescentes no ordenamento jurídico brasileiro no decorrer dos anos. Apresentaremos também alguns conceitos que são fundamentais para nos orientar sobre as atuais normas jurídicas referentes ao tema. Por fim, faremos uma análise dos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código Penal que se referem aos crimes sexuais contra crianças e adolescentes buscando demonstrar como o atual ordenamento jurídico do Brasil trabalhou a questão da dignidade infanto-juvenil.

2. Breve histórico dos direitos das crianças e dos adolescentes do Brasil Colonial à Constituição de 1988 Os crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes somente foram assim entendidos depois de anos de evolução social e histórica. Durante o período colonial, entre o século XVI até meados do século XIX, sabe-se que as crianças indígenas foram escravizadas da mesma forma que os adultos, mesmo depois que as leis indigenistas proibiram o trabalho escravo dos nativos. Em um relato de viagem, Thomas Ewbank escreveu: [...] no Rio de Janeiro muitos deles têm sido negociados. Antes era muito difícil conseguir um indiozinho por menos de setenta mil réis, mas agora os seus pais, não tendo nada o que comer, oferecem-nos de bom gosto por dez (2009, p. 12).

Pelas palavras do viajante inglês, é possível visualizar que o comércio de crianças indígenas era um episódio comum do cotidiano das cidades coloniais e até mesmo impulsionado pelos próprios pais. Em condições ainda mais degradantes, viviam as crianças escravizadas

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trazidas da África por navios negreiros. De acordo com Del Priori (1991), aproximadamente 4% dos escravos que desembarcavam no Rio de Janeiro no século XVIII eram crianças menores de 10 anos. Os comerciantes que viviam do tráfico negreiro capturavam ou barganhavam essas crianças nas diversas tribos africanas e, após uma travessia marítima em condições subumanas, vendiam-nas para senhores de engenho em condições de sustentá-las até a idade adulta. Enquanto não adquiriam a força necessária para o trabalho agrícola, as crianças realizavam pequenos trabalhos domésticos e, assim que despertavam para a puberdade, o destino de muitas dessas meninas era tornarem-se mucamas de seus senhores. São vastos os relatos em livros de história acerca da exploração sexual de meninas escravas, negras e índias. No Brasil das grandes plantações de cana-de-açúcar e do ciclo do ouro, esse tipo de prática sexual não era contestado abertamente na sociedade, mesmo porque os escravos negros e/ou índios não eram considerados como seres humanos, tese defendida, inclusive, pela Igreja Católica. Assim, levantar questionamentos sobre a dignidade humana de crianças indígenas, negras ou mestiças não estava na ordem do dia. O fato é que durante todo o período colonial e imperial, os serviços de assistência aos menores eram prestados de três formas: ações caritativas por parte da Igreja e de pequenas associações civis; filantropia oriunda da aristocracia rural e mercantilista; e, em menor número, obras realizadas pela Coroa Portuguesa e/ou Imperador. O limiar do que se poderia considerar como uma tutela jurisdicional às crianças e adolescentes surgiu, somente, com as iniciativas assistenciais no período posterior à independência política. A primeira referência à problemática infantil foi feita na Constituinte de 1823, quando José Bonifácio defendeu que a mulher escrava deveria ter

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um mês de convalescência depois do parto e que não trabalharia longe da “cria” no ano que se seguisse. De acordo com Josiane Veronese (1997) “o que se pretendia era zelar por aquele que constituiria, em breve, força de trabalho gratuito: o escravo”. Apesar da iniciativa do abolicionista, a Constituição de 1824 não trouxe qualquer garantia aos direitos da criança. Nos anos seguintes, é possível notar que a infância e a juventude só eram percebidas do ponto de vista infracional, quando se tornava um fardo para a sociedade, como é possível verificar no Código Criminal do Império, de 1830, que previa a responsabilização criminal do menor infrator. Art. 13. Se se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commettido crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás casas de correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não exceda á idade de dezasete annos (BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830, 1830).

Com o advento da Lei do Ventre Livre, em 18713, os proprietários de escravos podiam optar por receber do Estado uma indenização e abandonar nas ruas as crianças libertas, filhas de escravos que permaneciam em cativeiro. De outra forma, esses senhores podiam permitir que os libertos permanecessem ao lado dos pais até completarem 21 anos, realizando trabalhos forçados para arcar com as despesas desse sustento. Na maioria das vezes, a segunda opção era adotada por ser economicamente mais vantajosa. 3 Art. 1.º - Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre. § 1.º - Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Govêrno receberá o menor e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. (BRASIL. Lei n. 2040, de 28 de setembro de 1871, 1871 )

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Nesse contexto, aqueles que optavam por alforriar os jovens escravos não os deixavam alternativa senão a de migrar para os centros urbanos, onde se empregariam em atividades diversas e continuariam sendo explorados. A falta de escola ou uma educação precária empurrou as crianças e os adolescentes negros e exilados do campo para o trabalho urbano, sobretudo nas indústrias recém implantadas (DOURADO, 1999). Em pouco tempo, os acontecimentos políticos e sociais do final do século XIX fortaleceram a ideia de um programa de assistência à criança. A abolição da Escravatura em 1888 seguida pela Proclamação da República um ano depois, não tornou o Estado menos omisso em relação à proteção à infância e à juventude que, uma vez mais, não foi sequer mencionada na Carta de 1891. Lado outro, o Código Penal de 1890 estabelecia que jovens de 9 a 14 anos que cometessem infrações deveriam ser internados em estabelecimentos disciplinares industriais4. Na recém proclamada república brasileira, mantinha-se o olhar sob o menor infrator, não sob o indivíduo vulnerável. Analisando a questão sob outro prisma, pode-se asseverar que datam dessa época as primeiras leis que resguardavam a dignidade sexual do infante. É o que podemos concluir com a leitura dos artigos 267 e 266 do Código Penal de 18905 que previam, respectivamente, a punição de dois a quatro anos para agente que deflorasse mulher virgem de menor idade empregando 4 Art. 30. Os maiores de 9 annos e menores de 14, que tiverem obrado com discernimento, serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes, pelo tempo que ao juiz parecer, comtanto que o recolhimento não exceda á idade de 17 annos. (BRASIL. Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, 1890.) 5 Art. 266. Attentar contra o pudor de pessoa de um, ou de outro sexo, por meio de violencias ou ameaças, com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação moral: Pena – de prisão cellular por um a seis annos. Paragrapho unico. Na mesma pena incorrerá aquelle que corromper pessoa de menor idade, praticando com ella ou contra ella actos de libidinagem. Art. 267. Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano ou fraude: Pena – de prisão cellular por um a quatro anos. (BRASIL. Decreto n.847 de 11 de outubro de 1890, 1890)

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sedução, engano ou fraude; e para o agente que corrompesse pessoa menor de idade, de um ou de outro sexo, praticando com ela ou contra ela atos de libidinagem (DARLAN, 2001). Observa-se que o legislador em questão buscou resguardar o menor de idade de ambos os sexos, entretanto, permanece uma indagação: essa proteção se estendia às crianças e adolescentes negros e índios? Conhecendo a cultura política vigente naquele período, como afirmar que existia tal garantia para este segmento se até cerca de 50 anos atrás os negros ainda lutavam pelos seus direitos mais elementares? Apesar da menção ao menor de idade nos artigos supracitados, a proteção do Estado estava direcionada apenas àqueles que a sociedade considerava dignos de recebê-la, o que, de forma clara, não incluía as crianças e adolescentes negras e indígenas. Paralelamente ao Estado, a sociedade civil deu forças a um processo de defesa dos direitos das crianças e adolescentes. No ano de 1899, Artur Moncorvo Filho fundou o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro com o objetivo de amparar a mulher grávida carente e sensibilizar as autoridades públicas para uma legislação nesse sentido (VARGAS, 2002). Em âmbito global, começavam a ganhar força as ações direcionadas para a proteção do menor. Em 1923 a organização não-governamental International Union for Child Welfare deu início a uma campanha política e ideológica em favor dos direitos da infância, enquanto a Unicef amparava as crianças dos países devastados pelas guerras. O resultado dessa atuação, culminou com a elaboração e promulgação, em 1959, da Declaração Universal dos Direitos das Crianças pelas Nações Unidas (HISGAIL, 2007). No Brasil, o ano de 1927 viu nascer o Decreto no 17.943-A, denominado Código de Menores, ou Código Mello Mattos, e reconhecido por Angelo Luis de Souza Vargas (2002) como o marco significativo da legislação menorista brasileira e o primeiro a vigorar na América Latina, amalgamando leis

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e decretos que, desde 1902, propunham mecanismos legais que amparassem o menor de idade. Essas garantias já podiam ser percebidas no artigo 1o do referido Código que disciplinava: O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas neste Código (BRASIL. Decreto n.17943-A, de 12 de outubro de 1927, 1927.).

O Código de Menores, dessa forma, inovou no tratamento dado ao infante/púbere ao organizar o serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delinquente, definir quais eram as hipóteses de abandono e as situações que a ela poderiam ser equiparadas, ampliar as causas para suspensão e destituição do pátrio poder, prever as situações justificadores de colocação dos menores sob guarda de terceiros e indicar sanções aos pais ou responsáveis (PAULA, 2002). O menor de idade, que antes era mencionado nas leis assistencialistas taxativamente como o infrator ou delinquente, passou a ser tratado como um “objeto” dotado de direitos, permitindo que a assistência à infância saísse de uma esfera exclusivamente punitiva a uma esfera preferencialmente assistencialista-protetiva. Seguindo uma ordem cronológica, ao indagarmos sobre a garantia máxima de um Estado brasileiro às dignidades das crianças e adolescentes encontramos, somente na Constituição de 1934, a primeira referência ao assunto, quando o legislador instituiu a proibição do trabalho para os menores de 14 anos: Art. 121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. § 1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros

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REVISTA DE DIREITO que colimem melhorar as condições do trabalhador:[...] d) proibição de trabalho a menores de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 1988).

Seguindo essa tendência, as Constituições de 1937 e 1946 ampliaram a proteção à infância, com artigos que buscavam ampará-la desde a gestação6. Por sua vez, a Carta Magna de 1967 e sua respectiva Emenda de 1969, espelhos do regime ditatorial que assolava o país, provocaram um retrocesso nos direitos da criança e do adolescente ao estabelecer a idade de 12 anos como idade mínima para iniciação ao trabalho. Em contrapartida, essa mesma Carta instituiu o ensino obrigatório e gratuito nos estabelecimentos oficiais para crianças de 7 a 14 anos: Art 158 - A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos [...]: X - proibição de trabalho a menores de doze anos e de trabalho noturno a menores de dezoito anos, em indústrias insalubres a estes e às mulheres. Art 168 - A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola [...] § 3º - A legislação do ensino adotará os seguintes princípios e normas: [...] II - o ensino dos sete aos quatorze anos è obrigatório para todos e gratuito nos estabelecimentos primários oficiais (BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 1967, 1967).

Durante o período militar, em meados dos anos 60, também foram criadas no Brasil as instituições de caráter assistencialista de amparo aos me6 Art. 127: “A infância e a juventude devem ser objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições físicas e morais de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades”. Constituição de 1946, art. 164 “É obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo de famílias de prole numerosa (BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 1946, 1946).

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nores em situação irregular, dentre elas a Fundação Nacional do Bem-estar do Menor (FUNABEM), de abrangência nacional; e as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEM), em âmbito estadual, que atendiam aos menores carentes, abandonados e infratores. Apesar dos bons ideais de educação e reinserção social, essas instituições foram transformando-se, aos poucos, em escolas de iniciação criminal, nas quais o menor infrator que para ali fosse encaminhado, saía experto em crimes de toda natureza. Não foram raros os episódios de rebeliões nas quais adolescentes decapitaram colegas e faziam agentes de reféns. Muitos não saíram de lá para dar seu testemunho (VARGAS, 2002). Mais uma vez o caminhar da história e a preocupação da sociedade com o futuro das crianças do Brasil deu origem à Lei 6697/79, o novo Código de Menores. A finalidade desse estatuto era assistir às crianças que viviam afastadas das condições ideais de existência, expostas permanentemente aos maus tratos, castigos desmedidos e condições inadequadas à formação física, moral e emocional do indivíduo, privilegiando, desta maneira, a assistência, a proteção e a vigilância de menores com idade de até dezoito anos ou, em alguns casos, até 21 anos de idade, que se encontravam em situação sócio-educacional irregular ou de risco. De acordo com Genivaldo Gonçalves Pinto (2010), o novo Código abrangia problemas de ordem pedagógica, educacional e de formação profissional buscando disciplinar as atividades administrativas para a manutenção de uma estrutura burocrática capaz de acompanhar a vida dos seus recuperandos. Alguns aspectos controversos, como a ausência do contraditório no processo e a previsão de “prisão cautelar”, na qual o menor de 18 anos poderia ser apreendido para fins de verificação, permeavam o Código de Menores de 1979. Na opinião de Angelo Souza (2002, p.62), “de alguma forma ainda não via a criança como um ser integral. O próprio ato

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de definir o menor em situação irregular poderia ser encarado como uma confirmação do estigma de marginalização”. Assim, fundamentado pelo que se conceitua como Doutrina da Situação Irregular, o Código de Menores de 1979 foi conduzido a um tipo específico de criança e adolescente, a um grupo particularizado, delinquente ou infrator, e não a uma totalidade abstrata que deveria ser amparada por direitos. Como resultado de um processo histórico evolutivo, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 veio avalizar os demais dispositivos legais e dar a harmonia fundamental para sua sustentação e interpretação. Inovou ao garantir, às crianças e aos adolescentes brasileiros, direitos essenciais que, até então, não lhes eram dispensados. Particularmente, o art. 227 e seu respectivo § 4º destacam: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. [...] § 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente. (BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 1988, 1988)

Foi a primeira vez que a dignidade sexual da criança e do adolescente passou, explicitamente, a ser resguardada pela lei maior do Estado brasileiro, destacando a família como uma entidade essencial para o desenvolvimento social e garantidora da assistência a todos os integrantes. Juntamente com ela, as crianças e adolescentes passaram a ter assegurados seus direitos

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básicos, e o mais importante, tornaram-se, reconhecidamente, sujeitos de direitos, verdadeiros cidadãos. Um ano depois da promulgação da Carta Magna brasileira, em 20 de novembro de 1989, foi realizada a Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (BRASIL, 1990). Os participantes reconheceram como criança toda pessoa menor de dezoito anos e elaboraram normas extensas e abrangentes de como os estados signatários deveriam tratar, educar e proteger a criança, independentemente do contexto em que ela estivesse inserida e desvinculando-a de toda e qualquer exposição aos perigos físicos ou morais, como preceitua o artigo 1º: Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes (BRASIL, Lei nº 8072 de 13 de julho 1990, 1990).

A Convenção pode ser considerada o primeiro instrumento jurídico internacional no que diz respeito aos direitos humanos da criança, estabelecendo metas em relação à saúde, educação e assistência jurídica e social. Também faz referência clara à dignidade sexual, como mostram os artigos 16 e 19: Art. 16 Nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a sua reputação. Artigo 19 - Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa respon-

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REVISTA DE DIREITO sável por ela (BRASIL, Lei nº 8072 de 13 de julho 1990, 1990).

Em virtude da adesão do Brasil, o Decreto Presidencial nº 99.710/90 promulgou a Convenção da ONU e não tardou para que o legislador brasileiro editasse uma lei específica para tratar com particularidade a questão da criança e do adolescente. De tal modo, a Lei nº 8.069/90, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente – a

ECA – revogou o Código de

Menores de 1979 e a arcaica doutrina da situação irregular, reconhecendo a criança e o adolescente como verdadeiros sujeitos de direitos, dotados de particularidades e necessidades próprias. Apesar de toda a evolução em termos de legislação protecionista, o mundo globalizado, alicerçado pela tecnologia digital e pela velocidade da internet, viu crescer o número de casos de crimes sexuais contra a criança e o adolescente. Diversas reuniões e encontros internacionais, como o Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças, realizado em Estocolmo, na Suécia, em 1996, abraçaram a luta pelos direitos da infância e contra a pornografia infantil eletrônica (HISGAIL, 2007). A organização não-governamental ECPAT, End Child Prostitution in Asian Tourism, com seu trabalho de combate à exploração sexual e comercial contra crianças e adolescentes, ajudou a reconhecer que se tratava de um crime contra a humanidade. Diversas agências internacionais e organizações não-governamentais passaram a priorizar as campanhas nacionais e internacionais de apoio às crianças vítimas de violência sexual. No Brasil, o ECA amparou a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a pedofilia, em abril de 2008, dez anos depois da primeira prisão por pornografia infantil na internet em uma ação conjunta

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da Polícia Federal e Interpol7. No final de 1999, a operação batizada de Catedral-Rio, uma referência à operação internacional Catedral, apreendeu equipamentos de informática de 27 pessoas da região metropolitana do Rio de Janeiro, enquanto em São Paulo os mandados de prisão eram contra economistas, médicos, bancários e comerciantes. Os crimes tinham relação direta com a rede internacional Orchild Club, dirigida pelo belga Marc Dutroux. A CPI da Pedofilia8 denunciou casos gravíssimos de abuso sexual e violência contra o menor em diversas partes do país. Como resultado, criou-se a lei 11.829/2008 que influenciaria, juntamente ao ECA, alterações significativas no Código Penal brasileiro.

3. Conceitos importantes Como a nossa temática aborda a tipificação das condutas sexuais contra as crianças e os adolescentes, torna-se relevante a compreensão da expressão crime sexual. O conceito de crime não foi definido pelo legislador brasileiro em um artigo ou lei específicos e coube, portanto, aos doutrinadores do Direito, apoiados em teorias diversas, conceituar o termo. Assim, podemos conceber o crime sob três prismas distintos: no conceito formal, crime é todo o fato humano proibido pela lei penal; no conceito material no qual o crime é todo o fato humano lesivo de um interesse capaz de comprometer as condições de existência, de conservação e de desenvolvimento da sociedade, violando 7 A Polícia Federal, com o apoio da Interpol, prendeu o gerente de supermercado Luís Marcelo dos Santos em flagrante, na cidade de Itatiba, interior de São Paulo. Eram dez horas da manhã quando foi surpreendido pelos policiais, no momento em que distribuía, pelo computador, as imagens pornográficas para os clientes cadastrados. (HISGAIL, 2007, p.33) 8 Todos contra a pedofilia. <http://www.todoscontraapedofilia.br>

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os bens jurídicos mais importantes; e para o conceito analítico, crime é ação típica (tipicidade), antijurídica ou ilícita (ilicitude) e culpável (culpabilidade) (NUCCI, 2009). Rogério Greco (2010) entende que a Lei de Introdução do Código Penal adotou, implicitamente, o conceito analítico de crime, porém este permanece como um conceito que evolui com o passar dos anos. Destarte, é possível classificar os crimes sexuais como o ato típico, ilícito e culpável praticado contra a dignidade sexual de um sujeito. De uma forma mais técnica, caracteriza-se como crime sexual “todos aqueles atos delituosos que tenham o propósito de satisfação sexual como motivo (enfoque motivacional) ou limitá-los àqueles cuja natureza seja um relacionamento sexual em qualquer das suas formas (enfoque legal)” (TABORDA; CHALUB; ABDALLA-FILHO, 2004, p. 130). O Código Penal brasileiro chamou de “Dos crimes contra a dignidade sexual” o Título VI da Parte Especial, dedicando o Capítulo II inteiro aos crimes contra a dignidade sexual do vulnerável. Aqui nos deparamos com mais alguns conceitos importantes. Até a reforma de 2009, o Título VI do Código Penal empregava o termo “crimes contra os costumes” que, na opinião de Greco (2010), já não traduzia a realidade dos bens tutelados pelos tipos penais. Os crimes contra a dignidade sexual, redação dada pela lei 12.015/2009, veio ao encontro das alterações sofridas pela sociedade: Ao invés de procurar proteger a virgindade das mulheres, como acontecia com o revogado crime de sedução, agora, o Estado estava diante de outros desafios, a exemplo da exploração sexual de crianças. (GRECO, 2010, p.64)

Mas o que vem a ser a dignidade sexual? Para Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery (2006, p. 243), a dignidade sexual é uma espécie do princípio da dignidade da pessoa humana, entendido como “a razão

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de ser da proteção fundamental do valor da pessoa e, por conseguinte, da humanidade do ser e da responsabilidade que cada homem tem pelo outro”. Assim, a dignidade sexual encerra o conceito de intimidade e revela-se em harmonia com o princípio da dignidade da pessoa humana, cujo fundamento basilar se encontra na Constituição Federal de 1988 em seu art. 1°, inciso III. Um paradoxo da dignidade sexual seria o abuso sexual. Gesânia Pereira e Vânia Coelho entendem que o abuso sexual contra menores é todo e qualquer ato inconveniente e atentatório à moral praticado contra criança ou adolescente e levada a cabo por um adulto ou por outro adolescente contra criança/adolescente mais novo: Em sentido estrito é ato sexual realizado por meio de força, coação irresistível, chantagem, abuso do pátrio poder ou utilização de substâncias ou beneficio que dificultem ou reduzam o discernimento da criança. É ato legalmente punido independente da violência real. Em sentido amplo, pode-se entender como qualquer forma de exploração sexual de crianças e adolescentes, incentivo à prostituição, turismo sexual, rufianismo e a pornografia infantil. (2010, p.3)

Aqui nos interessam os sujeitos passivos dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes, o que nos leva a questionar a definição do termo vulnerável. Na opinião de Márcia Mônica Bezerra (2006), é possível encontrar no Código Penal, de forma explícita, um conceito de vulnerável como sendo a pessoa menor de quatorze anos ou o indivíduo que, por alguma enfermidade ou deficiência mental, não tenha o discernimento necessário para a prática do ato ou que não possa oferecer resistência, independente de sua idade. Mas é preciso atentar-se para a leitura e/ou interpretação da

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lei, dado que o legislador, com a finalidade de dar um amparo especial ao menor de quatorze anos, criou um conceito de vulnerável como gênero, abrangendo, também, o enfermo, o doente mental e todo aquele que não possua a capacidade intelectual para distinguir o fato ou oferecer resistência. Isto é, o tipo penal expande a proteção para indivíduos que não estão entre os menores de 14 anos. O artigo 2º do ECA trata do conceito legal e objetivo de criança e adolescente: Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade (BRASIL. Lei nº 8072 de 13 de julho 1990, 1990).

Murillo José Digiácomo e Ildeara de Amorim Digiácomo (2010) observam que o legislador optou por não utilizar o termo “menor”, de conotação pejorativa e discriminatória, incompatível com a nova orientação jurídico-constitucional. Além disso, ressaltam que o intérprete da lei não deverá, jamais, tecer equiparações entre as vítimas de exploração sexual e os agentes, como se aquelas fossem adultas, pois, em conformidade com art. 6º do ECA, crianças e adolescentes devem ser consideradas sempre como pessoas em desenvolvimento em todos os aspectos, ético, moral e educacional. Não poderíamos deixar de mencionar algumas expressões que frequentemente aparecem na mídia, e que em termos políticos e policiais aparecem como adjetivações para os crimes sexuais contra crianças e adolescentes – crimes de pedofilia –, adjetivações essas, inclusive, desprovidas de previsão legal. Etimologicamente, pedofilia é uma palavra de origem grega que sig-

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nifica amor ou amizade por infantes. De acordo com o Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa (1999) esse termo possui o seguinte sentido: 1 - [De ped(o)- + -filia.] Substantivo feminino. Psiquiatria. 2 - Parafilia representada por desejo forte e repetido de práticas sexuais e de fantasias sexuais com crianças pré-púberes.* Pedofilia erótica. Psiquiatria. 3 - Perversão sexual que visa a criança.

Os manuais de patologias psíquicas estabelecem uma distinção entre gêneros e espécies para os transtornos sexuais. Assim, Trindade e Breier (2007) entendem que a pedofilia pode ser concebida como uma espécie do gênero parafilia e, mais especificamente, um transtorno mental que provoca no indivíduo a preferência sexual por criança ou por adolescente. Trata-se de uma perturbação sexual que na CID10 - item F65.4 (CASTRO; BULAWSKI, 2011, p.7) estão referidas como Transtornos da Preferência Sexual. O termo vem substituindo expressões antigas como “perversão”, “corrupção”, “desmoralização”, “degradação”, “perversidade” e “crueldade”, e origina-se, etimologicamente, do grego pará (ao lado de, funcionamento desordenado ou anormal, oposição) e philos (amante, que tem afinidade, atraído por). Uma compulsão da parafilia, nos casos severos, pode ocasionar atos amorais e ilícitos que repercutem no meio jurídico, como os crimes sexuais de cunho pedófilo. Segundo Gesânia Pereira e Vânia Coelho (2010), a Organização Mundial de Saúde define a pedofilia, simultaneamente, como uma doença e um distúrbio, um desvio sexual que se caracteriza pela atração sexual de um adulto por uma criança. Ressalta-se que não é necessário haver relações sexuais para que um indivíduo seja caracterizado como pedófilo, basta o simples desejo por crianças e adolescentes.

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Na opinião de Damásio de Jesus (1997), o Brasil não possui uma política de combate à pedofilia, sendo difícil suprir a lacuna do Código Penal que trata com severidade crimes sexuais, abusos e correlatos, mas que não determina um tratamento diferenciado para os casos específicos de pedofilia. Não há uma norma incriminadora especial, autônoma, a ser aplicada nesses casos e o operador do Direito ampara-se em descrições de crimes diversos que se assemelhem à pedofilia ou sirvam de meio para sua prática. Para este autor: Não basta, entretanto, que haja leis. Elas precisam ser aplicadas. Saliente-se, por fim, que a população tem papel fundamental na prevenção do delito, pois é por meio de denúncias que os abusos chegam ao conhecimento das autoridades policiais, possibilitando o desmantelamento das redes e a punição dos criminosos (1997, p.29).

Considerando as condutas sexuais ilícitas contra crianças e adolescentes como pedofilia ou adotando qualquer outro termo, passaremos, a seguir, à análise da lei.

4. O Estatuto da Criança e do Adolescente: expressão da doutrina da proteção integral Vimos que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 13 de julho de 1990, adveio da necessidade da sociedade em adotar um sistema de proteção e garantia aos direitos das crianças e adolescentes brasileiros. O ECA recebeu uma forte influencia da Declaração Universal dos Direitos da Criança em Convenção pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, e decorreu da previsão da Constituição

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Federal de 1988, artigo 227. Na opinião de Érica Vianna (2011), o ECA pertence, notadamente, à linha de emergência contemporânea dos direitos das minorias: negros, mulheres, homossexuais, etc. Ao tecer uma análise criteriosa do Estatuto, podemos afirmar que foi um marco decisivo na inovação das garantias legais referentes aos direitos individuais das crianças e adolescentes, sobretudo ao considerar que a família, a sociedade e o Estado são co-responsáveis pela manutenção desses direitos, como expressamente tipificado em seu art. 4º. O legislador assegura ao indivíduo na infância e na adolescência “todas as oportunidades e facilidades” para que ele se encontre em uma situação de liberdade e dignidade. No que tange à dignidade sexual dos menores de 18 anos, as normas estabelecidas pelo ECA possuem o claro intuito de responsabilizar penalmente o indivíduo que comete a conduta de abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes e, como já demonstramos anteriormente, são uma derivação do artigo 227, caput e §4º, da Constituição Federal. É a partir da emergência da doutrina da proteção integral e da eclosão do Estatuto da Criança e do Adolescente que é possível evidenciar a inclusão das crianças e adolescentes no rol dos sujeitos titulares de direitos à dignidade sexual. A lei é una para todas as crianças e adolescentes, que são cercados pelo direito a uma cidadania plena, mormente aqueles que se encontram em condições especiais de vulnerabilidade. Pode-se afirmar ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente foi além da previsão do artigo 227, caput e §4º, da Constituição Federal, ao criar normas específicas e determinar que nenhuma criança ou adolescente poderá ser objeto de qualquer forma de exploração, violência, ou crueldade. Nesse sentido, a regra do art. 240 do ECA, mesmo após a reforma sofrida por força da Lei nº 11.829/2008, demonstra a pretensão de maior

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rigor na punição. Os indivíduos que, favorecendo-se de sua posição ou de relação de parentesco e/ou proximidade com a vítima, induz à prática das condutas que violam a sua dignidade sexual. Neste ponto, vale delimitar o que pode ser considerado como pornografia infantil. Segundo Gesânia Pereira e Vânia Coelho (2010), entende-se que a pornografia infantil é uma espécie ilegal e imoral de pornografia na qual cenas e imagens de crianças e adolescentes são utilizadas em fotos e outros materiais eróticos. Acrescentam ainda que o protocolo das Nações Unidas define de forma clara e precisa a pornografia infantil como “qualquer representação, por quaisquer meios, de uma criança em atividades sexuais explícitas reais ou simuladas, ou qualquer representação das partes sexuais de uma criança para propósitos principalmente sexuais” (BRASIL. Decreto n. 99710, de 21 de novembro de 1990). O artigo 241 veio dar ainda mais alcance ao artigo 240 ao trazer a seguinte previsão: Vender ou expor à venda fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente. Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

Neste artigo, a consumação do crime ocorre quando o material de conteúdo pornográfico infantil é colocado à venda. Não há, portanto, a necessidade de que o agente participe da produção ou elaboração. Assim, aquele comerciante que busca na sua atividade mercantil a justificativa para o comércio ilegal de pornografia estará cometendo o crime tipificado no artigo 241 do ECA. De forma a complementar essa previsão, o Superior Tribunal de Justiça julgou que o juízo competente para processar o crime será o do local onde

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ocorreu o oferecimento das imagens pornográficas envolvendo crianças e adolescentes à venda (bancas de revistas, internet, chats, etc) e não o local no qual está situado o provedor que dá acesso à internet, ou onde ocorreu sua efetiva visualização pelos usuários (DIGIÁCOMO, 2010). Como pode ser observado, a Lei nº 11.829/2008 destrinchou o artigo 241 dando origem a uma série de artigos relacionados. É o que comprova o artigo 241-A: Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. § 1º. Nas mesmas penas incorre quem: I - assegura os meios ou serviços para o armazenamento das fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo; II - assegura, por qualquer meio, o acesso por rede de computadores às fotografias, cenas ou imagens de que trata o caput deste artigo. § 2º. As condutas tipificadas nos incisos I e II do § 1º deste artigo são puníveis quando o responsável legal pela prestação do serviço, oficialmente notificado, deixa de desabilitar o acesso ao conteúdo ilícito de que trata o caput deste artigo (BRASIL. Lei n. 11829, de 25 de novembro de 2008, 2008).

Anteriormente à reforma, os tipos previam a punição para a conduta criminosa voltada para a produção e venda de material infantil pornográfico. Com o advento da Lei nº 11.829/2008, estará praticando um crime sexual contra criança e adolescente o sujeito que oferece, troca, disponibiliza, transmite, distribui, publica ou divulga materiais pornográficos envolvendo crianças e adolescentes. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu no sentido de que a simples troca de fotos pornográficas envolvendo crianças e adolescentes pela internet

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já configurava o delito do artigo 241-A, visto que a conduta propiciava uma difusão de imagens a número indeterminado de pessoas, fato que torna pública a intenção e caracteriza o dano à imagem da criança e do adolescente (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 617221 RJ 2003/0210233-5). Acompanhando o processo de evolução digital, o artigo 241-B tipifica não só a posse física de material com pornografia infanto-juvenil, mas, inclusive, a navegação por páginas na internet que contém pornografia infantil: Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente. Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. § 1º. A pena é diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços) se de pequena quantidade o material a que se refere o caput deste artigo. § 2º. Não há crime se a posse ou o armazenamento tem a finalidade de comunicar às autoridades competentes a ocorrência das condutas descritas nos arts. 240, 241, 241-A e 241-C desta Lei, quando a comunicação for feita por: I - agente público no exercício de suas funções; II - membro de entidade, legalmente constituída, que inclua, entre suas finalidades institucionais, o recebimento, o processamento e o encaminhamento de notícia dos crimes referidos neste parágrafo; III - representante legal e funcionários responsáveis de provedor de acesso ou serviço prestado por meio de rede de computadores, até o recebimento do material relativo à notícia feita à autoridade policial, ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário. § 3º. As pessoas referidas no §2º deste artigo deverão manter sob sigilo o material ilícito referido (BRASIL. Lei n. 11829, de 25 de novembro de 2008, 2008).

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Pelo artigo 241-B, pode-se perceber que o legislador preocupou-se em estabelecer uma espécie de punição para os indivíduos que, seja de forma real ou virtual, detém a posse de material pornográfico contendo imagens de criança ou adolescente. Uma exceção, contudo, é direcionada aos sujeitos que adquirem, possuem ou armazenam material pornográfico com crianças e adolescentes com objetivo de combater o crime. Na mesma linha de abordagem, é que o artigo 241-C buscou resguardar a infância e a juventude dos avanços e abusos tecnológicos: Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo (BRASIL. Lei n. 11829, de 25 de novembro de 2008, 2008).

Neste artigo, o legislador incluiu no mesmo tipo o simulador, o vendedor/expositor e o possuidor de qualquer espécie. Mais uma vez, o ECA inovou na defesa da dignidade sexual ao considerar como crime sexual as edições e montagens de imagens de crianças e adolescentes em softwares específicos feitas para fins pornográficos. Para que se configure o crime, não é necessário que ocorra o ato sexual em si, pois o objetivo explícito da norma é evitar, até de forma simulada, a confecção e divulgação de pornografia infantil por qualquer meio de difusão, seja rádio, televisão ou internet. A conduta criminosa vai, mais uma vez, além do ato sexual em si quando o legislador edita o texto do artigo 241-D:

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REVISTA DE DIREITO Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, com o fim de com ela praticar ato libidinoso: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: I - facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso; II - pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita (BRASIL. Lei n. 11829, de 25 de novembro de 2008, 2008).

O crime é consumado no momento em que o autor pratica qualquer dos atos mencionados, quais sejam, alicia, assedia, instiga ou constrange uma criança a praticar ato libidinoso, seja por telefone, internet, fitas de vídeo ou e-mails. Assim, o sujeito que, por exemplo, por meio de mensagem de texto convida uma criança a acariciá-lo, já está praticando a conduta típica do 241-D. Apesar da abrangência da norma, há um ponto questionável nesse artigo. O texto se refere tão somente às crianças, deixando de fora da punição prevista o agente que pratica a conduta descrita contra adolescentes. Todavia, de acordo com Murillo José Digiácomo e Ildeara de Amorim Digiácomo (2010), vale observar o disposto no art. 217-A, do CP, com a redação que lhe deu a Lei nº 12.015/2009, que considera “estupro” a prática de qualquer ato libidinoso com menor de quatorze anos. O artigo 241-E, também com a redação dada pela Lei nº 11.829/2008, trouxe a preocupação do legislador em definir e deixar claro o que a lei considerará como cenas de sexo com crianças e adolescentes. Para efeito dos crimes previstos nesta Lei, a expressão “cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins

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primordialmente sexuais. Os artigos seguintes do Estatuto tratam da exposição do menor de 18 anos a situações de perigo envolvendo armamentos, explosivos e drogas, mas retoma a temática do abuso sexual no caput do art. 244-A, incluído pela Lei n. 9.975/2000: Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2º desta lei, à prostituição ou à exploração sexual: Pena - reclusão de quatro a dez anos, e multa (BRASIL. Lei n. 9975, de 23 de junho de 2000, 2000).

Ultrapassando as diretrizes do que já estava previsto em leis anteriores, esse dispositivo tipifica a conduta daqueles que favorecem, de alguma forma, a prostituição ou a exploração sexual de crianças e adolescentes. Essas práticas são comuns em regiões que exploram o turismo sexual e nas quais os aliciadores buscam, principalmente em crianças e adolescentes provenientes das camadas inferiores, a inserção no comércio sexual como uma forma de alívio para a fome e a miséria. Ao punir o proxenetismo desses agentes, a norma do estatuto, alicerçada pelos ideais constitucionais, considera que a criança e o adolescente são sujeitos de direito vulneráveis às ameaças promovidas, especialmente, por adultos que possuem algum distúrbio psíquico. Os direitos infanto-juvenis, espécie do princípio da dignidade da pessoa humana, devem estar garantidos além do interesse do mero indivíduo e abarcar o interesse de toda uma sociedade. Nas palavras de Murillo José Digiácomo e Ildeara de Amorim Digiácomo (2010), a disposição do art. 244-A do ECA não pode ser interpretada de forma isolada, mas dentro do contexto que integra a proteção integral de toda criança e adolescente, não excetuando aquelas que possuem maior vulnerabilidade pessoal, familiar e social. Acrescentam, ainda, que a conduta da vítima é totalmente irrelevante para a caracterização do tipo penal, sendo

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considerada, quando permeada de preconceito e discriminação, apenas para fins de “dosimetria da pena”, a teor do disposto no art. 59 do Código Penal. Ao se deparar com a interpretação do texto do artigo 244-A, deve-se entrever que tentar impedir a responsabilização penal dos exploradores sexuais de crianças e adolescentes, adotando como argumento a maturidade da vítima, estamos violando não só incontáveis direitos fundamentais, mas, de forma inescusável, a própria dignidade das vítimas como seres humanos. Em consonância com a doutrina da proteção integral e considerando a criança e o adolescente em uma especial categoria de vulnerável, não se pode estabelecer qualquer restrição ou fator condicionante à punição do agente, sendo irrelevante e imoral investigar acerca da conduta da criança ou adolescente vítima de abuso sexual. Em concordância com os autores supracitados (DIGIÁCOMO, 2010), considera-se imprópria a utilização do termo “prostituição” no mencionado artigo, visto que crianças e adolescentes, por possuírem incapacidade absoluta ou relativa, jamais se prostituem, mas sim são vítimas de abuso e/ ou exploração sexual.

5. A dignidade sexual da criança e do adolescente no Código Penal Brasileiro O Código Penal Brasileiro, decreto-lei que data de 07 de dezembro de 1940, sofreu sua última grande alteração em 07 de agosto de 2009. Sistematicamente, entende-se que a organização de normas de um sistema penal com o intuito de formar uma sociedade disciplinar, designa ao Direito Penal a criação de um conjunto de normas valorativas e finalistas com respeito à ordem jurídica (HISGAIL, 2007).

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Para Gianfranco Caruso (2010) a primeira importante mudança ocorrida em 2009 diz respeito à classificação dos crimes sexuais. Antes das alterações esses crimes eram denominados crimes contra os costumes e revelavam os aspectos culturais e históricos da sociedade da década de quarenta. Os crimes contra os costumes eram, então, aquelas condutas que a sociedade de forma reiterada praticava e que veio a descobrir serem incorretas, tornando-as, para o Direito, ilícitos penais. A alteração do título foi uma adequação às inúmeras reivindicações dos doutrinadores pátrios que sustentavam que os crimes elencados no Título VI não atentavam contra a moralidade pública ou coletiva, mas sim contra a dignidade e a liberdade sexual das vítimas. O legislador, ao escolher a expressão “crimes contra a dignidade sexual”, harmonizou a norma penal à Carta Magna e à realidade dos bens jurídicos protegidos pelos tipos penais ali elencados. Acolheu a tutela da liberdade e do desenvolvimento sexual de cada pessoa: [...] a liberdade de autodeterminação do indivíduo de manter uma vida sexual conforme seus desígnios e livre de qualquer coação como forma de realização humana e consecução efetiva de um aspecto da própria dignidade humana (CARUSO, 2010, p.10).

Houve, portanto, uma mudança contundente na tipificação dos crimes sexuais e, no que se refere à temática da dignidade sexual de crianças e adolescentes, as mudanças mais relevantes estão relacionadas aos artigos 213, 217-A ao 218-B, e 227 a 231-A. Nestes artigos, podemos perceber que o legislador emprega especial proteção aos menores de 14 anos contra crimes sexuais, expressando a ilicitude de práticas sexuais com estes sujeitos, independente de sua escolha, com objetivo de proteger e garantir um desenvolvimento pessoal completo e saudável. As antigas tipificações das figuras do atentado violento ao pudor e

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da violência presumida, baseadas nos, até então, artigos 214 e 224, alínea “a”, foram extintas e agregadas pelo novo artigo 213, que caracteriza como estupro a ação de: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. §1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2º Se da conduta resulta morte. Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (BRASIL. Decreto-lei nº2.848, de 07 de dezembro de 1940, 2013).

Etimologicamente, o termo estupro advém do latim stuprum e designa qualquer prática carnal ilícita, sem aprovação do outro. Já o ato libidinoso pode ser entendido como todo aquele que atenta contra o pudor com um propósito nitidamente lascivo ou luxuruoso contra alguém que não autorizou a prática (HISGAIL, 2007). Esse entendimento é bem distinto da redação original que descrevia o estupro como a prática de constranger uma mulher a praticar conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça. No novo artigo 213, a vítima não necessariamente é uma mulher e o ato não se restringe a uma conjunção carnal, considerando-se inserto na conduta qualquer tipo de ato libidinoso. Ademais, pode-se observar que se a vítima é adolescente menor de 18 anos ou maior de 14 anos o crime de estupro será qualificado e as penas mínimas e máximas poderão ser aumentadas em até 2 anos. Para Rogério Greco, o delito do artigo 213 deve ser considerado qualificado a partir do momento que a vítima completa 14 anos, pois se

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ainda não houver completado, será protegida pela regra do 217-A. Ressalta, ainda, que se a conduta resultar em morte aplica-se a pena do parágrafo 2º parágrafo, podendo o autor ficar recluso de 12 a 30 anos. Outro tipo penal extinto é o crime de sedução, até então sob a égide do artigo 217, que foi abraçado pela tipificação do artigo 217-A, chamado de Estupro de Vulnerável e que possui a seguinte redação: Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. § 2º (VETADO) § 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave. Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. § 4º Se da conduta resulta morte. Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (BRASIL. Decreto-lei nº2.848, de 07 de dezembro de 1940, 2013)

Este artigo e os seguintes foram inseridos no Capítulo II, denominado Crimes Sexuais Contra Vulnerável, fato que chama a atenção pela criação de um capítulo exclusivo no Código Penal para tipificar e punir as ações contra os sujeitos entendidos como vulneráveis. A grande diferença entre o art. 217-A e o art. 213 é que no delito de estupro de vulnerável a vítima deverá ser, obrigatoriamente, menor de 14 anos. Vimos, inicialmente, que o conceito de vulnerável é apresentado pelo legislador como o indivíduo menor de quatorze anos ou que sofre enfermidade ou deficiência mental e não possui discernimento necessário para

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a prática de ato ou que, por qualquer razão, não possa oferecer resistência, independente da idade que possui. Anteriormente, no art. 224, existia a figura da violência presumida em relação à vítima menor de 14 anos, ou seja, portadora de algum tipo de deficiência, objeto que foi extinto pela tipificação do estupro de vulnerável. Com isso, torna-se clara a intenção do legislador de punir mais severamente o indivíduo que comete crimes sexuais contra crianças e adolescentes menores de 14 anos, com ou sem consentimento da vítima, estendendo ainda mais a proteção ao sujeito considerado vulnerável. Assim, basta que o sujeito ativo tenha conhecimento de que a vítima tem idade inferior a 14 anos e pratique com ela qualquer espécie de ato sexual, seja conjunção carnal ou ato libidinoso, para que seja relacionado ao tipo penal. Antes, a lei punia o agente que praticava relações sexuais com menores de 14 anos, seja com ou sem o consentimento da vítima, o que caracterizava a violência presumida, baseada exclusivamente na capacidade ou não de discernimento das vítimas. A partir da inserção do artigo 217-A a presunção de violência não poderá ser admitida, pois o crime se consuma mesmo que haja consentimento da vítima, considerando, assim, que os menores de 14 anos não possuem discernimento para a prática de atos sexuais. É a objetividade fática explícita na redação legal. Acrescente-se a isso que a Lei dos Crimes Hediondos, em seu artigo 1º, considera que o estupro de vulnerável é insuscetível de anistia, graça e indulto. Na opinião de Rogério Greco (2010, p. 615) “não poderão os Tribunais entender de outra forma quando a vítima do ato sexual for alguém menor de 14 (quatorze) anos”. Assim, pode-se considerar que a lei adota o critério objetivo da idade do ofendido, por considerar como sujeitos passivos do artigo 217-A todos os menores de 14 anos.

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Uma pequena parte da doutrina considera ser irracional e desproporcional a tutela penal aplicada à iniciação sexual consentida, dado que essa postura não leva em consideração à realidade social e a multiplicidade de situações relacionadas com o novo tipo penal. No artigo 218, o legislador caracterizou a corrupção de menores como a ação de: Induzir alguém menor de 14 (catorze) anos a satisfazer a lascívia de outrem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. Parágrafo único. (VETADO). (BRASIL. Decreto-lei nº2.848, de 07 de dezembro de 1940, 2013)

Induzir significa incitar, persuadir, levar, mover, fazer nascer na mente do menor de 14 anos a ideia de satisfazer a lascívia de outrem. Aqui reside a diferença entre induzir e instigar, visto que instigar significa estimular uma ideia já existente, isto é, seria necessário que o menor de 14 anos já tivesse uma ideia de satisfazer a outrem e o agente entrou apenas como encorajador. A prática de induzir o menor de 14 anos exige o dolo específico do agente, qual seja, satisfazer a lascívia de outrem. Para Rogério Greco (2010), a corrupção de menores é uma espécie de lenocínio, na qual o agente, denominado proxeneta, com ou sem a finalidade de contrair compensação financeira, presta assistência a atos libidinosos de outrem. Ressalta-se que a vítima deverá ser menor de 14 anos e não poderá praticar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso para que o crime se encaixe no tipo penal em questão. A questão da idade é um diferencial importante nessa espécie de crime para poder relacionarmos com os tipos do Estatuto da Criança e do Adolescente. No artigo 218-A, que caracteriza o crime de satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, o legislador buscou punir o

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agente que procura a criança ou adolescente não para a prática do ato sexual em si, mas para torná-los espectadores. A lei estabelece o seguinte parâmetro: Praticar, na presença de alguém menor de 14 (catorze) anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos. (BRASIL. Decreto-lei nº2.848, de 07 de dezembro de 1940, 2013)

A palavra lascívia é sinônima de sensualidade, luxúria, concupiscência e libidinagem, e é a principal característica do agente que se enquadra nesse tipo penal (NORONHA, 2002 apud GRECO, 2010, p.627). Gianfranco Caruso (2010) entende que o tipo penal pode ser empregado para os agentes que se utilizam meios eletrônicos, como a internet, para induzir pessoas menores de 14 anos a assisti-los na prática de atos sexuais. No entanto, devido ao princípio da legalidade e da interpretação restritiva da lei penal, torna-se imperioso atentar-se para o significado da palavra “presenciar” que, de acordo com Dicionário Aurélio, traduz-se em “estar presente num local no momento da ocorrência e ter a oportunidade de ver o que se passou” (FERREIRA, A. B. de H. Dicionário Aurélio). No entendimento da doutrina, no entanto, torna-se evidente que pela análise do §1º do artigo 244-B9 o agente que induzir um menor de 14 anos a assisti-lo praticando conjunção carnal ou ato libidinoso por qualquer sistema de transmissão de imagens, cometerá o delito do artigo 244-B, com pena de reclusão de um a quatro anos, e não o delito do artigo 218-A, com pena de reclusão de dois a quatro anos. O favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual 9 BRASIL. Decreto-lei nº2.848, de 07 de dezembro de 1940, 2013: “Incorre nas mesmas penas previstas no caput deste artigo a prática de condutas ali tipificadas utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas de bate-papo da internet”.

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de vulnerável está caracterizado da seguinte forma no Código Penal, artigo 218-B: Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. (BRASIL. Decreto-lei nº2.848, de 07 de dezembro de 1940, 2013).

A lei de 12.015/2009 criou esta modalidade de delito, especificando a prostituição do vulnerável, temática abordada no I Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes, em Estocolmo, 1996 e definida como uma das quatro formas de exploração sexual10. Pratica o crime não só aquele que submete um menor de 18 anos à prostituição ou outra forma de exploração sexual, como também aquele que proporciona os meios eficazes para tal prática ou impede que a vítima abandone o ato. Em relação aos anteriores, este artigo diferencia-se por incluir no rol das vítimas a criança ou adolescente entre 14 e 18 anos. O bem jurídico tutelado é o respeito e a dignidade das pessoas que figuram como sujeitos passivos, na condição de pessoas em desenvolvimento, ou na condição de pessoas com necessidades especiais que se sejam vulneráveis, independente da idade. No que concerne à defesa da dignidade sexual de crianças e adolescentes, o Capítulo II do Código Penal é o que mais se dedica à temática. Porém, não podemos deixar de mencionar outros artigos que, apesar de não pertencerem ao Capítulo II, fazem algum tipo de referência a alguma 10 As outras três são: turismo sexual, pornografia e tráfico para fins sexuais (GRECO, 2010, p. 630).

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espécie de proteção à criança e ao adolescente. Dessa forma, o artigo 227, descreve o crime de mediação para servir a lascívia de outrem da seguinte maneira: Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem: Pena reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos. § 1º - se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda [...](BRASIL. Decreto-lei nº2.848, de 07 de dezembro de 1940, 2013).

Entende-se que o § 1º, do artigo 227, veio preencher uma lacuna deixada pelo artigo 218-A, que tipificou o crime de lascívia apenas como aquele que fosse praticado contra menores de 14 anos. Assim como o 218-A, o artigo 227 é uma espécie de lenocínio e possui as mesmas especificidades do antecessor, diferenciando-se apenas por incluir no rol das vítimas o adolescente entre 14 e 18 anos. Por sua vez, o artigo 230 caracteriza o crime de rufianismo como a ação de: Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. § 1º Se a vítima é menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos ou se o crime é cometido por ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou por quem assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância. Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. (BRASIL. Decreto-lei nº2.848, de 07 de dezembro de 1940, 2013)

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A diferença prática entre rufianismo e proxenetismo está no fato de que o rufião é o sujeito que tira proveito da prostituição alheia de forma habitual enquanto que o proxeneta age buscando intermediar a lascívia de terceiros. Importante destacar que na prática de rufianismo o crime é habitual, de forma continuada, enquanto o favorecimento à prostituição é um crime de natureza instantânea. Vale acrescentar que no rufianismo o intuito de obter lucro integra o tipo penal em seu “caput”, enquanto que no favorecimento à prostituição constitui-se em qualificadora. Além de expandir um tipo de conduta no tipo penal, observa-se que o legislador intencionou punir com mais severidade aquele que promove o rufianismo com vítima maior de 14 anos e menor de 18 anos. Entendemos que o menor de 14 anos está protegido contra esses crimes em outros artigos, por isso não está mencionado no artigo 230. Em seguida, determina o artigo 231 sobre o tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual: Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. § 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 2º A pena é aumentada da metade se: I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por

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REVISTA DE DIREITO lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. § 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. (BRASIL. Decreto-lei nº2.848, de 07 de dezembro de 1940, 2013).

O tráfico internacional de pessoas, sobretudo de mulheres para fins de exploração sexual, tem sido observado com muita frequência na atualidade. Existem organizações criminosas especializadas nessa conduta que enveredam esforços da Interpol e outras agências de combate a esse delito em âmbito mundial. Note-se que basta, para a consumação do delito, a entrada ou saída do território nacional para fins de prostituição, independente do consentimento ou ciência da vítima quanto à prática do meretrício no exterior. O bem jurídico tutelado pela norma penal é, assim, a dignidade humana dos trabalhadores sexuais, a liberdade da pessoa, o direito à sexualidade, protegendo-a, absolutamente, contra a exploração sexual. Na redação original, o artigo 231 trazia apenas a mulher como sujeito passivo, fato que dificultava o enquadramento penal em relação, por exemplo, aos travestis. Com a reforma, esse crime passou a englobar a palavra “pessoas”, o que garante a punição para o tráfico de homens, mulheres ou transexuais. É importante notar que o legislador prevê uma pena aumentada pela metade no caso da vítima ser menor de 18 anos, qualificadora que nos remete à conclusão de que o §2º, inciso I do artigo 231 supriu uma lacuna deixada pelo ECA que não faz qualquer referência ao tráfico internacional de crianças e adolescentes. Outro ponto relevante é o de que crime previsto no artigo 231 abarca a conduta tanto de quem promove quanto de quem facilita o tráfico de

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pessoas para fins de exploração sexual. Assim, será agente do crime não só os donos das redes internacionais de tráfico como, também, o sujeito que intermedia o recrutamento da vítima. Em complemento ao artigo 231, criou-se a norma punitiva para o tráfico interno de pessoas para fim de exploração sexual, no artigo 231-A: Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. § 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 2º A pena é aumentada da metade se: I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. § 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. (BRASIL. Decreto-lei nº2.848, de 07 de dezembro de 1940, 2013)

Não se compartilha da ideia de que o artigo 231-A refere-se ao deslocamento interno das pessoas que chegaram a território brasileiro trazidas pelas organizações criminosas internacionais. A atividade do traficante internacional não se esgota com a entrada das vítimas no país. Acredita-se que esse artigo faz referência, sobretudo, ao agenciamento dentro do território

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nacional para fins de exploração sexual, crime muito comum para fins de turismo sexual, principalmente na região nordeste do país. Da mesma forma que o artigo 231, o §2º, inciso I prevê que a punição pode ser aumentada pela metade se a vítima for menor de 18 anos. A norma, como sua antecessora, preencheu outra lacuna do ECA.

6. Considerações finais Fato incontroverso é que a pedofilia se expandiu, ganhando proporções imensas. Age, atualmente, na sociedade, de formas avassaladoras, causando às crianças e jovens, vítimas de atos que vão desde a simples prática obscena até o efetivo abuso, danos irreparáveis. Somente via discussão e formação de operações conjuntas, com aplicadores do Direito, psicólogos e autoridades legislativas, poderão ser criados instrumentos eficazes na prevenção e repressão das redes de exploração sexual infantil. Procuramos demonstrar que o direito a uma dignidade sexual para crianças e adolescentes no Brasil foi adquirido ao longo de séculos de história. No vai e vem do tempo, foi possível reconhecer avanços e retrocessos da sociedade na garantia a esse direito. Percebe-se que a dignidade sexual de crianças e adolescentes foi reconhecida tardiamente no ordenamento jurídico brasileiro, alcançando o ápice com o Estatuto da Criança e do Adolescente e com a mais recente reforma do Código Penal. Tanto o ECA como o Capítulo II do Código Penal ampararam-se na doutrina da proteção integral e abraçaram os estudos e convenções acerca da temática que estão espalhados pelo mundo. Enfim, a legislação brasileira evoluiu na proteção da dignidade sexual de crianças e adolescentes, pois quando o sujeito que pratica crime sexual

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contra esses sujeitos recebe a punição estatal, leva a sociedade a satisfazer aquele sentimento de aversão mencionado na parte introdutória. Contudo, o ordenamento jurídico pátrio ainda não alcançou o ponto crucial dessa questão: o tratamento à vítima. É fundamental que o Estado crie medidas tratativas para a reparação da dignidade sexual das vítimas menores de 18 anos e do próprio agente do crime. Ou seja, não basta punir o agente, trancafiando-o em uma cela e submetendo-o a toda espécie de violência carcerária e, assim, satisfazer a sede de justiça de uma sociedade cada vez mais voltada para um movimento de lei e ordem. É necessário que a vítima tenha um acompanhamento adequado para que possa viver sua vida normalmente. O Estado, como garantidor dos direitos fundamentais, é responsável por restabelecer a dignidade sexual dessas vítimas. Por outro lado, o Estado também é responsável por remeter o agente a um mínimo de tratamento digno e, quiçá, psiquiátrico, entendendo que muitos deles cometem o crime por possuir algum tipo de distúrbio mental. É essencial que se quebre esse ciclo vicioso: a vítima de crimes sexuais durante a infância e adolescência, se não receber um tratamento adequado, poderá converter-se no agente criminoso do futuro. O agente não receberá o tratamento adequado e será levado a repetir seus crimes outras vezes. Enfim, não é o caso de instituir a castração química como forma de inibir esse tipo de conduta, mas evitar que os traumas da vítima a transformem no carrasco. Por fim, torna-se essencial que haja uma cobrança no sentido de prevenir esse tipo de conduta. Essa prevenção está centrada na educação. A família não deve temer orientar as suas crianças sobre as possibilidades de uma agressão. As escolas devem promover campanhas buscando quebrar o silêncio e orientar as vítimas em potencial. Os organismos sociais

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responsáveis pela proteção à criança e ao adolescente deveriam pressionar os legisladores para que medidas tratativas viessem ao alcance de todas essas vítimas. Ao legislador falta a iniciativa de implantar um sistema de educação e prevenção contra crimes sexuais que ajudaria a diminuir a incidência desses delitos. Pensando nessas possibilidades, conclui-se que esta monografia acadêmica buscou apresentar a questão da dignidade sexual de crianças e adolescentes de um prisma jurídico amparado por material bibliográfico e de forma simplificada. Porém, existem visões sociológicas, antropológicas e psicológicas que poderiam contribuir com a sua parcela.

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Recebido em 17/04/2015 - Aprovado em 18/09/2015.

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OS INSTRUMENTOS LEGAIS DE URBANIZAÇÃO PRESENTES NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: As Leis n. 6.766/79 e 10.257/01 e sua capacidade para dirimir os problemas relacionados ao uso da propriedade privada THE LEGAL INSTRUMENTS OF URBANIZATION PRESENT IN THE BRAZILIAN LEGAL ORDER: The laws n. 6.766/79 and 10.257/01 and their capacity to solve the problems related to the use of private property. Criteria for fixing moral damages Italo Fernando Costa1

1 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Viçosa. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Advogado. E-mail: italofc21@hotmail. com.

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RESUMO: A disciplina urbanística tem se destacado no cenário jurídico, tendo em vista a crescente urbanização das áreas habitadas, sendo alarmante e necessária a discussão a respeito do tema no Brasil, uma vez que se observa um crescente processo de urbanização descontrolado. As Leis n. 6.766/79 e 10.257/01 são os principais instrumentos normativos presentes no ordenamento jurídico pátrio que buscam regulamentar as transformações urbanísticas, as quais deverão ser analisadas quanto a sua eficácia na prática, isto é, se a aplicação dessas Leis está ocorrendo de fato, e se são capazes para dirimir os problemas relacionados ao uso da propriedade privada e o interesse público. O presente estudo buscou analisar os princípios regedores da propriedade, a dicotomia existente entre o direito de propriedade e o interesse público, aspecto este encontrado no contexto em que se insere o direito urbanístico e a aplicabilidade dos instrumentos legais urbanísticos aos casos concretos, observando o que de fato tem ocorrido na prática das cidades brasileiras, em concomitância ao desenvolvimento urbanístico destas. Para tanto, com o objetivo de se fundamentar este trabalho, com a discussão do problema apresentado, realizou-se levantamentos bibliográficos, principalmente de livros e artigos científicos, com a exemplificação de julgados relacionados ao tema em estudo, assim como a comparação de legislações urbanísticas. Observaram-se, assim, graves problemas no que tange aos instrumentos legais urbanísticos presentes no ordenamento jurídico brasileiro e sua ineficácia no que concerne ao uso da propriedade privada. Concluiu-se serem necessárias certas medidas para salvaguardar o interesse público, e, consequentemente, o bem-estar de toda a sociedade, como a melhor formação dos quadros públicos municipais, a possibilidade de acesso do Poder Público Municipal às novas formas de fiscalização, a responsabilização dos funcionários públicos encarregados da política urbana e a criação de tipos penais mais específicos, com a aplicação de penas mais severas.

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Italo Fernando Costa

Palavras-chaves: Direito UrbanĂ­stico. Propriedade Privada. Direito das Cidades.

ABSTRACT: The urban discipline has highlighted in the order scenery, bearing in mind the increasing urbanization of inhabited areas, being alarming and necessary the discussion concerning this subject in Brazil, once it is observed increasing process of uncontrolled urbanization. The laws n. 6.766/79 and 10.257/01 are the main normative instruments present in the homeland legal order that search regularly for urban changes, which must be analyzed regarding their effectiveness in practice, that is, if these application of these laws have happened in fact, and if they are able to solve the problems related to the use of private property and the public interest. This study aimed to analyze the principles that rules the property, the dichotomy between property rights and the public interest, aspect found in the context which it is inserted the urban rights and the applicability of urban legal instruments to the concrete cases, observing what indeed in practice of Brazilian cities has occurred, in concomitance to their urban development. For this, aiming to base on this work, with the discussion of the presented issue, it was done bibliographic search, mainly of book and papers, with the exemplification of selected ones related to the subject in study, as well as the comparison of urban legislation. It was observed, thereby, serious problems about the urban legal instruments present in the Brazilian legal order and its ineffectiveness concerning the use of private property. It was concluded that measures are necessary to protect the public interest, and, consequently, the all society well-being, as a better formation of municipal office force, the possibility of the access of Municipal Public Power to new ways of inspection, the responsibility of public servers incumbent for urban

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policy and the creation of more specific penal types, with the application of more severe punishments; Keywords: Urban rights. Private Property. Cities Rights.

1. INTRODUÇÃO

A

tualmente, a disciplina urbanística tem se destacado no cenário jurídico, tendo em vista a crescente urbanização das áreas habitadas. No Brasil, não é diferente, sendo, no entanto, mais alarmante e necessária a discussão a respeito do direito

urbanístico, uma vez que se observa um crescente processo de urbanização descontrolado. As Leis n. 6.766, de 19 de dezembro de 1979, e 10.257/01, de 10 de julho de 2001, são os principais instrumentos normativos presentes no ordenamento jurídico pátrio que buscam regulamentar as transformações urbanísticas, as quais deverão ser analisadas quanto a sua eficácia na prática, isto é, se a aplicação dessas Leis está ocorrendo de fato, e o que poderia ser feito para melhorar essa aplicabilidade. A preocupação em relação à eficácia dessas normas pode ser justificada, no caso do Brasil, pela concentração populacional encontrada em certas regiões, o que culmina em situações de excessivo risco a população, deterioração da qualidade de vida, gerando, além disso, escassez do solo e de qualquer outro recurso natural. Destarte, somente através de um planejamento do uso e ocupação do solo é que se torna possível amenizar os problemas apontados, estabelecendo-se mediadas limitadoras de densidade demográfica, com o objetivo de alcançar um equilíbrio entre a procura e a

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oferta por espaço, primando-se pela melhoria da qualidade de vida. A conservação do meio ambiente, a qual se relaciona com o elemento anterior, também representa um forte argumento na discussão sobre a utilização do solo urbano. Há um latente desrespeito às legislações ambientais pela lógica imobiliária, sendo observadas, a todo o momento, construções em Áreas de Preservação Permanente (APPs). Dessa feita, calcando-se na ideia de desenvolvimento sustentável, tão discutida e disseminada atualmente, em prol dos moradores atuais do meio urbano, bem como das futuras gerações, a proteção ao meio ambiente natural deve ser sempre uma preocupação nos processos de urbanização. A relevância do tema pode ser demonstrada, também, pelo fato da expansão urbana ser claramente ditada pelo poder privado e não pelo poder público, ao passo que o interesse público é que deveria conduzir as ações urbanísticas. Sendo assim, há um grande incentivo à especulação imobiliária, dificultando o acesso da população ao bem imóvel e tornando o processo de urbanização cada vez mais distante do ideal. Uma das explicações para isso acontecer está no fato de que as citadas Leis, apesar de conterem dispositivos que poderiam amenizar a situação descrita, dependem da regulamentação e aplicação pelo Poder Executivo Municipal, o qual, na maioria das vezes, não as faz ou faz de forma a não atender o interesse público, mas sim interesses privado. Visto isto, diversos são os elementos imprescindíveis para a vida em sociedade, como para a manutenção de um meio ambiente sustentável. Assim, incontestável é a importância de um estudo que tenha como base os instrumentos legais urbanísticos, a aplicação destes ao fato concreto e a capacidade de fornecimento de meios para dirimir todos os problemas relacionados ao uso da propriedade privada. O presente estudo visa, assim, a análise dos principais instrumentos

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legais urbanísticos presentes no ordenamento jurídico brasileiro (Leis n. 6.766/79 e n. 10.257/01), quanto a sua ineficácia para dirimir os problemas relacionados à propriedade privada e o interesse público. 2 A PROPRIEDADE PRIVADA E O INTERESSE PÚBLICO 2.1 A função social da propriedade Atualmente, é incontroversa a ideia de proteção ao direito de propriedade, sendo, até mesmo, um direito garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil (art. 5°, XXII). No entanto, este direito tem sofrido inúmeras limitações, com o intuito de que o interesse privado não se sobreponha aos interesses maiores da coletividade. Nesta toada, de grande valor é a legitimação e a proteção da propriedade privada, sendo esta de suma importância para a manutenção da sociedade nos moldes que temos hoje, ou seja, a propriedade individual pode ser considerada um dos principais pilares da sociedade moderna. Assim, faz-se mister que o ordenamento jurídico contenha normas que disciplinam e garantam o direito à propriedade de cada indivíduo. Todavia, sabe-se que na sociedade atual o direito tem se pautado pela supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Dessa feita, existem várias limitações ao direito de propriedade, podendo falar-se em restrições voluntárias à propriedade, como a superfície, as servidões, o usufruto e as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade ou incomunicabilidade, e, até mesmo, em limitações provenientes da própria natureza do direito de propriedade ou de imposição legal, como limitações que visem à preservação do meio ambiente e do patrimônio histórico, a proteção de áreas indígenas e a restrição relativa ao direito de vizinhança. Tais limitações são estipuladas com o intuito de evitar práticas abusi-

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vas e impedir que o indivíduo, no exercício do seu de direito de propriedade, cause algum prejuízo ao bem-estar social, sendo manifestações concretas do princípio da função social da propriedade, como pressuposto lógico do convívio social. Maria Helena Diniz, ao tratar da função social da propriedade, dispõe: A função social da propriedade é imprescindível para que se tenha um mínimo de condições para a convivência social. A Constituição Federal, no art. 5°, XXII, garante o direito de propriedade, mas requer [...] que ele seja exercido atendendo a sua função social. Com isso, a função social da propriedade a vincula não só à produtividade do bem, como também aos reclamos da justiça social, visto que deve ser exercida em prol da coletividade. [...] Condicionada está a conveniência privada ao interesse coletivo, visto que a propriedade passa a ter função social, não mais girando em torno dos interesses individuais do seu titular.2

Não obstante, o princípio da função social da propriedade não pode ser confundido com as restrições ao exercício do direito de propriedade, mas deve ser encarado como um princípio constitucional3 essencial para a própria caracterização e consolidação do direito de propriedade, qualificando as formas de uso, gozo e disposição dos bens imóveis. Nessa perspectiva, o direito de propriedade deixa de ter um conteúdo econômico predeterminado, cuja medida seria dada pelos interesses individuais do proprietário, e passa a ter um conteúdo econômico determinado pelo Poder Público, através das leis, planos e projetos urbanísticos, considerando-se, também, os interesses sociais, ambientais e culturais acerca 2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.107. 3 O princípio da função social da propriedade está consagrado pela Constituição Federal em seu artigo 5º, XXIII.

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da utilização do solo e dos bens imóveis. Destarte, latente é que o direito de propriedade deve-se coadunar com o princípio da função social da propriedade, como dispõe o Código Civil em seu art. 1.228, § 1°: Art. 1.228. [...] § 1°. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

O direito de propriedade é, portanto, uma construção jurídica complexa, com deveres tanto quanto direitos ao proprietário. Dessa forma, a função social deve ser o ponto principal a ser analisado independente da perspectiva em que a propriedade é inserida. 2.2 O direito urbanístico e a propriedade privada Antes de adentrar-se na disciplina de direito urbanístico propriamente dito, cumpre destacar-se a ligação deste com o instituto da propriedade privada. José Afonso da Silva, ao tratar da atividade urbanística, descreve como sendo seus principais objetos: “(a) planejamento urbanístico; (b) a ordenação do solo; (c) ordenação urbanística de áreas de interesse especial; (d) a ordenação urbanística da atividade edilícia; (e) os instrumentos de intervenção urbanística” 4. Com isso, tem-se que, em cada um desses objetos, o direito urbanístico 4 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p.32.

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deve-se pautar pela observância do interesse público, primando sempre pela aplicação da função social da propriedade. Dessa forma, pode-se dizer que a função social da propriedade privada urbana coaduna-se ao entendimento de que a atividade urbanística constitui uma função pública da Administração, que, em consequência, ostenta o poder de determinar a ordenação urbanística das cidades, implicando nisso a iniciativa privada e os direitos patrimoniais dos particulares. A atividade urbanística é uma função do Poder Público que se realiza por meio de procedimentos e normas que importam transformar a realidade urbana, interferindo amplamente na propriedade privada. Hely Lopes Meirelles5, ao tratar do direito de construir no uso da propriedade privada, dispõe que embora seja amplo esse direito, ele não é absoluto, uma vez que o proprietário de um bem imóvel deve observar as limitações elencadas em relação a esse direito, incluindo-se as limitações provindas das normas urbanísticas, visando a assegurar a coexistência pacífica entre os indivíduos em sociedade. Em consonância com o citado autor, as limitações provenientes da legislação urbanística objetivam proteger a sociedade como um todo, na medida em que limitam a utilização do bem imóvel privado, reduzindo direitos individuais, limitando ações particulares e diminuindo a liberdade de construção, primando sempre pelo interesse público. Outrossim, a propriedade urbana, inserida no contexto de normas e planos urbanísticos, vincula sua função social à ordenação da cidade, sendo formada e condicionada pelo direito urbanístico a fim de cumprir sua função social, qual seja, realizar as chamadas funções urbanísticas de propiciar habitação, condições adequadas de trabalho, recreação e circulação humana. Assim, expostas essas considerações sobre a propriedade privada, 5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

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sua função social e a interferência das normas urbanísticas, observa-se que o direito urbanístico, intimamente ligado ao uso do solo urbano, no qual se insere a propriedade particular, trás consigo o inevitável embate entre o interesse público e o privado.

3. DIREITO URBANÍSTICO 3.1 Aspectos gerais Nas lições de José Afonso da Silva, o direito urbanístico pode ser encarado na seguinte perspectiva: O direito urbanístico é o produto das transformações sociais que vêm ocorrendo nos últimos tempos. Sua formação, ainda em processo de afirmação, decorre da nova função do Direito, consistente em oferecer instrumentos normativos ao Poder Público a fim de que possa, com respeito ao princípio da legalidade, atuar no meio social e no domínio privado, para ordenar a realidade no interesse da coletividade.6

Como se vê, o direito urbanístico nasce com o objetivo de regulamentar e disciplinar a atuação do indivíduo em sociedade, fornecendo ao Estado as ferramentas legais necessárias, visando sempre o primor do interesse coletivo sobre o privado. O direito urbanístico pode ser visto sob dois aspectos, segundo José Afonso da Silva, isto é, dois são os modos como ele se manifesta. Pode-se falar em direito urbanístico objetivo, consistente no conjunto de normas 6 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 36.

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jurídicas reguladoras da atividade do Poder Público, destinadas a ordenar os espaços habitáveis. Tem-se ainda o direito urbanístico como ciência, o qual busca o conhecimento sistematizado das normas e princípios reguladores da atividade urbanística. A partir dessas características apontadas é que o direito urbanístico concebe o seu objeto de estudo, observando-se uma ligação existente entre os dois aspectos caracterizadores desse ramo do direito. 3.2 A evolução do direito urbanístico no ordenamento jurídico brasileiro No Brasil, as normas de direito urbanístico ainda não se encontram unificadas em um único diploma, sendo encontradas em diversos diplomas normativos criados pelos entes federativos (União, Estados e Municípios). Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, entretanto, uma nova perspectiva surgiu em relação às normas urbanísticas e o direito urbanístico como um todo. Buscando-se traçar uma linha histórica do direito urbanístico brasileiro, ao se voltar os olhos para os primórdios da nação brasileira, na época do Brasil Colônia, o Direito Luso-Brasileiro já possuía regras disciplinadoras da atividade urbanística, no entanto, essas regras eram gerais e simples. As Ordenações do Reino, por exemplo, estabeleciam princípios básicos e genéricos sobre a organização das povoações. Nas Ordenações Filipinas, por sua vez, existiam menções de normas genéricas sobre a estética das cidades e a atividade edilícia. No Império, grande parte das normas já existentes continuou em vigor, sofrendo algumas alterações no passar do tempo. A Constituição do Império não tratou diretamente sobre o assunto, entretanto, disciplinou a existência de Câmaras em cada cidade e vila, e dentre as atribuições desse

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órgão estaria a regulamentação das atividades urbanísticas. Sobre a função das Câmaras, José Afonso da Silva preconiza: [...] as câmaras deliberavam em geral sobre os meios de promover e manter a tranquilidade, segurança, saúde e comodidade dos habitantes; o asseio, segurança, elegância e regularidade externa dos edifícios e ruas das povoações; e sobre estes objetos formavam suas posturas [...].7

Posteriormente, no entanto, é que surgiriam as primeiras normas jurídicas urbanísticas, com as leis de desapropriação. Tais normas foram reproduzidas na República, com respaldo da primeira Constituição republicana. Com a promulgação da Constituição da República de 1988, o direito urbanístico ganhou mais força, recebendo uma atenção maior pela Carta Magna, que trouxe vários dispositivos sobre a matéria. A política urbana veio tratada pelos artigos 182 e 183 da atual Constituição, servindo como base para a edição de novas leis a respeito do tema. Com isso, surgiu o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/01), com o objetivo de regulamentar a nova perspectiva trazida pela Constituição, na qual a função social da propriedade passou a ser de suma importância. Em resumo, o direito urbanístico há muito se faz presente no ordenamento jurídico brasileiro, seja de forma direta ou indireta, demonstrando a importância desse tema para o pleno desenvolvimento da vida em sociedade. Dessa forma, faz-se relevante a análise do que, atualmente, são os principais instrumentos normativos urbanísticos, levando-se em conta a contribuição destes com o perfeito desenvolvimento do conviver humano 7 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 55.

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no meio urbano, como se verá mais adiante. 3.3 Normas de direito urbanístico José Afonso da Silva, ao tratar das normas de direito urbanístico, prescreve: [...] a convivência urbana pressupõe regras especiais que a ordenem. Compreende-se que, inicialmente, essas regras tenham surgido com base nos costumes, e só mais tarde se tornaram normas de Direito legislado. Eram regras simples, referentes aos aspectos mais primários da urbanificação, como o arruamento e o alinhamento. Assim teria que ser, porque também simples eram os núcleos urbanos. À medida que estes ficam mais complicados, também as normas urbanísticas adquirem complexidade, até chegar à formação de unidade substancial, quem sabe até adquirirem autonomia, formando um ramo autônomo do Direito.8

Portanto, as normas urbanísticas, como acontece com a maioria das normas que compõe um ordenamento jurídico, surgem a partir de costumes, e apenas posteriormente é que são positivadas, na medida em que se aprimoram com o desenvolvimento da sociedade. Além disso, por regularem uma função pública, que é a atividade urbanística, as normas de direito urbanístico estão inseridas entres as normas de direito público, sendo, assim, compulsórias e cogentes, devendo ser observadas por todos que se inserem na sociedade urbana. Outro fato envolvendo as normas de direito urbanístico, é que estas são normas jurídicas de ordenação dos espaços habitáveis, possuindo, por isso, uma característica denominada coesão dinâmica, isto é, elas surgem 8 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 61.

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para condicionar o futuro desenvolvimento do espaço urbano, o que as diferencia das demais normas jurídicas, ao passo que estas buscam adequar a postura atual da sociedade, tendo que se adequar às mudanças impostas sobre as relações jurídicas. Em decorrência dessa coesão dinâmica, a eficácia dessas normas somente ocorrerá se houver no ordenamento jurídico grupos complexos e coerentes de normas. Isto porque a norma urbanística, quando isoladamente analisada, não oferece nenhuma imagem possível de mudança do real, necessitando de um enquadramento global, numa visão dinâmica com outras normas. Nesse contexto, é que as Leis n. 6.766/79 e 10.257/01 serão analisadas quanto a sua capacidade para dirimir os problemas provenientes do uso da propriedade privada e o interesse público. 3.4 Os principais instrumentos legais urbanísticos: Leis n. 6.766/79 e 10.257/01 Os principais instrumentos legais urbanísticos presentes no ordenamento jurídico brasileiro são as Leis n. 6.766/69 e 10.257/01, responsáveis pela regulamentação da urbanização do país, às quais caberia dirimir a maioria dos problemas relacionados a esta matéria, primando pelos anseios da sociedade atual em detrimento ao interesse privado, este na maioria das vezes especulativo. A Lei n. 6.766/69 disciplina, em suma, o parcelamento do solo urbano, dispondo a respeito das condições mínimas que devem ser observadas em um terreno a ser parcelado, como a sua inserção obrigatória em zonas urbanas ou de expansão urbana definidas por planos e leis de ordenamento territorial, e a análise de suas características físicas e ambientais. Algumas importantes diretrizes para estruturação física das cidades

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foram definidas na referida legislação, ficando explícito o conceito de loteamento e sua articulação com o sistema viário, que por sua vez é visto como requisito básico para a qualidade da mobilidade urbana. Além disso, referida norma traz em seu bojo disposições a respeito dos projetos de loteamento e de desmembramento, destacando-se o papel do Município como responsável pela aprovação de tais projetos. Prevê, ainda, sanções penais, tipificando e criminalizando certas práticas, objetivando a defesa da ordem urbana e consequentemente o interesse público. Portanto, tal norma é de fundamental importância para a conformação adequada do espaço urbano geral da cidade. Já o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/01, tem como objetivo regulamentar o capítulo da política urbana da Constituição Federal (arts. 182 e 183), estabelecendo diretrizes e regulamentando a aplicação de importantes instrumentos de gestão e reforma urbana como: o Plano Diretor, o Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios; o IPTU Progressivo no Tempo; a Desapropriação com Pagamento em Títulos da Dívida Pública; o Direito de Superfície; o Direito de Preempção; a Outorga Onerosa do Direito de Construir; a Transferência do Direito de Construir; as Operações Urbanas Consorciadas e o Estudo de Impacto de Vizinhança. Nas palavras de Edésio Fernandes, o Estatuto da cidade: [...] tem quatro dimensões fundamentais, quais sejam: consolida a noção da função social e ambiental da propriedade e da cidade como marco conceitual jurídico-político para o Direito Urbanístico; regulamenta e cria novos instrumentos urbanísticos para a construção de uma ordem urbana socialmente justa e inclusiva pelos municípios; aponta processos político-jurídicos para a gestão democrática das cidades; e propõe instrumentos

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REVISTA DE DIREITO jurídicos para a regulamentação fundiária dos assentamentos informais em áreas urbanas [...].9

Pode-se considerar como seu principal alvo o de combater a especulação imobiliária. De acordo com o capítulo I, art. 2, inciso VI, o objetivo da Lei é o de “ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar [...] a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização”. Raquel Rolnik, em comentário à Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade), dispõe: Encarregada pela constituição de definir o que significa cumprir a função social da cidade e da propriedade urbana, a nova lei delega esta tarefa para os municípios, oferecendo para as cidades um conjunto inovador de instrumentos de intervenção sobre seus territórios, além de uma nova concepção de planejamento e gestão urbanos.10

É clara a preocupação com a função social da propriedade e com os meios de concretizá-la pelo Estatuto da Cidade. Para tanto, esta lei estabelece os instrumentos a serem utilizados, dentre os quais se destaca o Plano Diretor. Outro fato importante é o poder entregue aos municípios para efetivarem e concretizarem os objetivos expressos pela Lei n. 10.257/01, prevalecendo o entendimento de que o Estatuto da Cidade trata-se de norma cuja aplicabilidade se dá fundamentalmente pelo ente municipal, ao qual 9 ALFONSIN, Betânia. et al. (org.). Avaliando o Estatuto da Cidade: II Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico. Porto Alegre: Evangraf, 2002, p. 9. 10 ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade: instrumento para as cidades que sonham crescer com justiça e beleza. Programa de pós-graduação em Direito Registral Imobiliário da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006, p.1.

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cabe a elaboração do respectivo Plano Diretor. Outrossim, o Estatuto da Cidade ao ser aprovado, possibilitando a concretização da Constituição Federal, visa uma maior democratização da política urbana, através de uma gestão democrática, com o interesse público sobressaindo sobre o interesse privado. Nesse sentido, Edésio Fernandes dispõe: [...] A aprovação do Estatuto da Cidade consolidou a ordem constitucional quanto ao controle jurídico do processo de desenvolvimento urbano, visando a reorientar a ação do poder publico, do mercado imobiliário e da sociedade de acordo com novos critérios econômicos, sociais e ambientais. Sua efetiva materialização em leis e políticas públicas, contudo, vai depender de vários fatores.11

Dessa forma, pode-se dizer, em suma, que o Estatuto da Cidade designou as diretrizes gerais para uma política de urbanização a ser executada pelo Poder Público Municipal, a qual deve primar pela ordenação do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, assim como o equilíbrio ambiental.

4. A URBANIZAÇÃO E A EFICÁCIA DAS LEIS 4.1 A urbanização no Brasil O processo de urbanização do Brasil começa desde a descoberta e colonização do país, no ano de 1500. Foi, entretanto, a partir do Século XX 11 ALFONSIN, Betânia. et al. (org.). Avaliando o Estatuto da Cidade: II Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico. Porto Alegre: Evangraf, 2002, p. 9.

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que a urbanização no Brasil intensificou-se, ficando marcada, principalmente, pela forma célere como ocorreu a concentração do crescimento em poucos centros urbanos. Impulsionada pela industrialização, a migração da população para as cidades foi, de certa forma, repentina. No Brasil predominava a população rural até meados dos anos de 1940, a qual atingia cerca de 70% dos habitantes. No entanto, em pouco mais de 70 anos, tal perspectiva foi drasticamente alterada, uma vez que o número de pessoas que habitam as cidades passou a ser de mais de 80% do total da população brasileira.12 Não bastasse esse rápido processo de urbanização, resultado de um grande êxodo rural, o crescimento das cidades deu-se de uma forma concentrada. A maioria da população urbana cresceu em torno de poucas cidades, criando um grande adensamento populacional. Várias foram as consequências provenientes do modo como ocorreu o crescimento urbano no Brasil, as quais se tornaram atualmente motivo de grande preocupação e discussão no cenário nacional. A respeito do assunto, José Carlos de Freitas dispõe: Nesse contexto de cidades despreparadas para acolher o imenso contingente humano e absorver as demandas sociais, era de se esperar algumas conseqüências negativas, como o colapso do sistema de transportes, os congestionamentos no trânsito, o aumento de processos erosivos, os assoreamentos dos rios e a impermeabilização do solo como fatores desencadeantes das inundações, a proliferação de habitações subnormais, a ocupação de áreas de proteção ambiental, a precariedade do saneamento básico, a “favelização”, o desemprego e a violência.13 12 Em 1940, a população brasileira era de 41.236.315 habitantes, com a urbana correspondendo a 31,23 %. Em 2010, com 190.755.799 habitantes, a população urbana correspondia a 84,36%. Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1940/2010. 13 FREITAS, José Carlos de. O Estatuto da Cidade e o Equilíbrio no espaço urbano. Programa de pós-graduação em Direito Registral Imobiliário da Pontifícia Universidade Católica de

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Além disso, contribuindo para maior degradação do meio ambiente urbano, vê-se, cada vez mais, por parte da iniciativa privada, um desrespeito não somente às normas urbanísticas, mas também à coletividade, tornando o processo de urbanização mais uma alternativa de atender os anseios particulares, em detrimento do interesse público, contribuindo para uma segregação do espaço habitável entre pobres e ricos. A respeito do tema, Raquel Ronilk, citada por Liana Portilho, preconiza: [...] no mesmo passo, destaca a existência, em nossas cidades, de desigualdades responsáveis pela instauração de um modelo excludente de urbanismo, para concluir que “as poucas áreas que concentram as qualidades de uma cidade bem desenhada e equipada são destinadas para os segmentos de maior renda. Para os mais pobres, em nosso país, as maiorias, restam a ocupação das franjas, das áreas longínquas ou pouco aptas para urbanizar, como as encostas dos morros, as beiras de córrego, os mangues. Desta forma, uma poderosa máquina de exclusão territorial é posta em operação, monstro que transforma urbanismo em produto imobiliário, negando à maior parte dos cidadãos o direito a um grau básico de urbanidade.”14

Em consequência disso, certas práticas ilegais são cada vez mais comuns nos centros urbanos, crescendo o número de favelas, condomínios ilegais, tornando, mais ainda, caótico o uso e ocupação do solo urbano, o que somente contribui para piorar processo de urbanização como um todo. Sobre o assunto, Édesio Fernandes preleciona:

Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006, p. 1. 14 RONILK, Raquel apud MATTOS, Liana Portilho. Estatuto da Cidade: Em busca da dignidade humana perdida. Programa de pós-graduação em Direito Registral Imobiliário da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006, p. 3.

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REVISTA DE DIREITO A ilegalidade urbana tem tomado várias formas distintas: da vasta economia informal às inovadoras “estratégias de sobrevivência”, incluindo os mecanismos cada vez mais “sofisticados” de justiça popular que têm sido criados em várias cidades. De especial importância são as práticas ilegais de acesso ao solo e à moradia: os dados existentes sugerem que, se as condições de acesso a terra e de construção das moradias forem tomadas em consideração, entre 40% e 70% da população das grandes cidades nos países em desenvolvimento estão desobedecendo à lei de alguma maneira. Nas grandes cidades brasileiras, estima-se que entre 60% e 70% da população vive em assentamentos e construções ilegais – em favelas, loteamentos irregulares e clandestinos, cortiços, etc. – sendo que em média 20% da população vive em favelas. Esse número tende a aumentar com o aumento da pobreza urbana. Em outras palavras, na sua maioria, indivíduos e grupos sociais não têm sido plenamente reconhecidos legalmente como residentes – e como cidadãos – das cidades nas quais vivem. [...] Diversas análises dos casos de países em desenvolvimento – como de resto no Brasil – têm indicado que a combinação entre a falta de uma política habitacional social e as ações de um mercado imobiliário em grande medida sem controle, tem resultado na ausência de opções adequadas de habitação para a maioria da população urbana, gerando a proliferação de formas de uso e ocupação ilegal do solo urbano e de assentamentos ilegais, além de todo tipo de problemas urbanos, sociais e ambientais. [...] A ilegalidade crescente das formas populares de uso e ocupação do solo urbano precisa ser enfrentada com urgência dadas as suas sérias implicações sociais, políticas, econômicas e ambientais para os grupos imediatamente afetados e para a sociedade e estrutura urbanas mais amplas.15

É certo, ainda, que haverá um aumento da população urbana no Brasil, apesar da diminuição do crescimento das cidades verificado nos últimos anos, tendendo a agravamento do quadro em que se encontram a maioria 15 FERNANDES, Edésio. Questões anteriores ao Direito Urbanístico. Belo Horizonte: PUC Minas, 2002, p. 14.

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das cidades brasileiras. Nesse sentido, assevera Edésio Fernandes: [...] No Brasil, apesar do decréscimo identificado na última década, as taxas de crescimento urbano ainda são altas, embora o padrão da migração, tradicionalmente direcionado para as capitais, esteja mudando na direção das cidades de porte médio. Um crescimento urbano dessa escala será certamente acompanhado por acentuados desequilíbrios sociais e graves problemas ambientais, além de aumentar a demanda e necessidade, entre outros fatores, de novos empregos, opções de habitação e transporte público, controle da poluição, bem como da prestação de serviços básicos como água, saneamento, educação e saúde.16

Dessa forma, no tocante a urbanização no Brasil, pode-se dizer, em suma, que esta se deu de uma maneira desordenada, principalmente nos últimos anos, tendo ocorrido de uma forma drasticamente rápida e se concentrado em poucos locais, o que culminou nos problemas hoje enfrentados pela população urbana. Assim, o estudo das normas responsáveis por disciplinar o processo de urbanização no Brasil faz-se mister, auferindo se estas estão aptas a fornecerem soluções para os problemas apontados. 4.2 Os instrumentos legais urbanísticos e a capacidade para dirimir os problemas relacionados à propriedade privada e à urbanização Como apontado acima, em decorrência da forma que vem ocorrendo o processo de urbanização no Brasil, vários problemas tem surgido no contexto das cidades brasileiras. 16 FERNANDES, Edésio. Questões anteriores ao Direito Urbanístico. Belo Horizonte: PUC Minas, 2002, p. 8-9.

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Partindo desse ponto, é que serão analisados os instrumentos legais previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro, dando-se ênfase as Leis n. 6.766/79 e 10.257/01, no que concerne a capacidade das referidas normas em possibilitar um processo urbanístico que atenda aos anseios da coletividade, em harmonia com o respeito ao direito de propriedade garantido a cada indivíduo. 4.2.1 Problemas relacionados ao plano diretor Inicialmente, tratar-se-á de um instrumento previsto pelo Estatuto da Cidade, o plano diretor17. É justamente neste ponto que surgem várias brechas que prejudicam a perfeita aplicação das leis urbanísticas na prática, visto que se encontra nas mãos dos municípios efetivarem o previsto pelo Estatuto, através do plano diretor. Antes de tudo, cumpre salientar a grande importância do plano diretor no processo de urbanização dos municípios. Basicamente todo o planejamento do meio urbano é ditado de acordo com o previsto e elaborado no plano diretor. Nessa perspectiva, faz-se mister traçar um panorama do que seria e o que é visado por este instrumento urbanístico trazido pelo Estatuto da Cidade e pela Constituição Federal. Assim, segundo José Afonso da Silva: O plano diretor é, nos termos da Constituição e do Estatuto da Cidade, o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. É obrigatório para cidades com mais de 20.000 habitantes, integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas e de áreas de interesse turístico, onde o Poder Público Municipal pretende utilizar os instrumentos do parcelamento, 17 O plano diretor é disciplinado pelo Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/01) em seu Capítulo III, o qual corresponde aos artigos 39 a 42-B.

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Italo Fernando Costa edificação e utilização compulsórios ou inseridos na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional.18

Outrossim, pode-se dizer que o plano diretor tem sua formação calcada nos seguintes aspectos: físico, social, econômico e administrativo-institucional. Nessa toada, o aspecto físico faz referência à ordenação do solo municipal, com o planejamento de todo território do município. Nesse sentido, José Afonso preconiza: [...] o plano diretor deverá resolver dois problemas: (a) o problema de localizações, referente aos equipamentos públicos; (b) o problema das divisões em zonas, referente aos edifícios privados. Os dois problemas [...] engendram questões jurídicas diversas, pois as primeiras exigem o estabelecimento dos instrumentos para prever e executar planos de obras públicas e se desenvolvem no âmbito do regime jurídico da desapropriação. Quanto às segundas, o problema é o de fixar os limites e determinar o âmbito das faculdades dos indivíduos privados, e move-se no âmbito da função social e das limitações jurídicas da propriedade urbana.19

O aspecto físico, portanto, está intimamente ligado ao direito de propriedade garantido ao particular, uma vez que se consubstancia através de institutos como a desapropriação, limitações à propriedade privada e a função social da propriedade. Tal fator, por sua vez, evidencia a complexidade que envolve todo o processo de urbanização de um município, e a série de problemas que daí pode surgir, o que será discutido mais adiante. 18 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 139. 19 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 140-141.

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No que tange ao aspecto econômico, este está relacionado à demanda populacional no que se refere a instalações de bairro residenciais, de áreas reservadas à indústria e ao comércio, tendo em vista projeções de crescimento futuro. Passando-se ao fator social, este está ligado à qualidade de vida da população, devendo o processo urbanístico, delimitado pelo plano diretor, pautar pelos anseios básicos da coletividade, como educação, saúde, saneamento básico, lazer, etc., criando equipamentos que possibilitem o acesso do povo a tais serviços. Por fim, outro elemento de suma importância na elaboração do plano diretor é o aspecto administrativo-institucional. Nas palavras de José Afonso da Silva, tal aspecto concretiza-se da seguinte forma: [...] O plano deve prever os meios institucionais necessários à sua implementação, execução, continuidade e revisão. [...] há que prever as mudanças institucionais, organizatórias e jurídicas necessárias ao seu funcionamento. Deve prever a institucionalização do órgão de planejamento local, o preparo de funcionários locais para sua elaboração, revisão, implementação e execução, pois tais atividades não podem ser realizadas por técnicos de fora do Município planejado; deve propor as alterações nas leis existentes visando a adequá-las ao processo de planejamento, preparando os anteprojetos de leis indispensáveis à sua implementação e execução, bem como os regulamentos e outros jurídicos aconselháveis.20

Mais uma vez, como se percebe, fica a cargo do município, quando da elaboração do plano diretor, criar maneiras que possibilite que o planejamento constante neste venha a ser realmente aplicado no transcorrer de todo o processo urbanístico. 20 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 142-143.

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Não obstante a tudo que até aqui foi apresentado a respeito do plano diretor, destacando sua imensa importância no processo de urbanização, não é incomum detectar-se falhas quanto a sua elaboração e implementação pelos municípios brasileiros, que culmina em certa ineficácia das demais leis urbanísticas, principalmente da Lei n. 10.257/01 (Estatuto da Cidade). Nessa perspectiva, o problema inicial relacionado ao plano diretor está consubstanciado na sua elaboração pelo Poder Público Municipal. Muitas vezes, o município ignora a necessidade e obrigatoriedade de implantação do plano, sendo algumas vezes, até mesmo, influenciado pela iniciativa privada, considerando que os proprietários de terras particulares podem possuir interesses contrários ao que poderá vir a ser delimitado pela Lei que instituir o plano diretor. Nesse sentido, são as seguintes palavras de José Afonso da Silva: Problema sério, contudo, pode manifestar-se na pendência de sua (plano diretor) elaboração. À vista das alterações que ele promete efetivar na realidade existente, os proprietários, tendo em vista assegurar direitos, podem tentar atuar no sentido contrário ao previsto – o que criará dificuldades para a execução do futuro plano.21

Além disso, a forma como é elaborado o plano diretor, pode torná-lo inexequível e inviável, dependendo das especificações nele contidas. O plano diretor pode prever, muitas das vezes, apenas diretrizes, estas dependentes de serem disciplinadas de maneira mais específica por futuras atuações, através de normas especiais, o que nem sempre ocorre. Segundo Fabricio Leal de Oliveira e Rosane Biasotto: Os instrumentos de política urbana do Estatuto da Cidade foram largamente incorporados nos planos diretores 21 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 148.

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REVISTA DE DIREITO brasileiros, ainda que nem sempre sua regulamentação se vincule às diretrizes previstas no artigo 2º da Lei Federal. Raramente os instrumentos foram plenamente regulamentados nos planos diretores que, via de regra, os remetiam para detalhamento em legislação específica, o que adiou sua implementação para um novo momento – que não é certo que venha a ocorrer –, no qual não é garantida uma visão ampla e integrada das questões urbanas (como é de esperar no campo de discussão dos planos diretores) e as condições de participação e controle social tendem a ser piores.22

Como se vê, apesar de constar na maioria dos planos diretores os instrumentos de desenvolvimento do processo urbanístico delimitados pelo Estatuto da Cidade, os planos, em quase sua totalidade, não preveem a forma de concretização e aplicação desses instrumentos nos territórios municipais, o que dificulta a concretização do previsto pelo Estatuto. O que se tem, na verdade, é um grande embate entre o interesse público e privado, na medida em que a implantação de certas medidas pelos planos diretores vai contra os anseios dos proprietários fundiários. Tanto os instrumentos que buscam evitar a valorização fundiária, quanto os que tratam do parcelamento, edificação e utilização compulsória de áreas particulares não são, quase sempre, previstos pelos planos diretores, e quando o são, não se faz especificada a maneira que possibilitaria a sua real aplicação. 4.2.2 Gestão urbana a cargo dos municípios Outra questão a ser discutida, no âmbito da urbanização das cidades brasileiras, trata-se da capacidade dos municípios em executarem uma política de desenvolvimento urbano adequada aos anseios da população. 22 SANTOS JUNIOR, Orlando Alves; MONTANDON Daniel Todtmann (orgs.). Os planos diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Cidades: IPPUR/UFRJ, 2011, p. 77-78.

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Como já foi explanado, o cumprimento da função social da propriedade é um dos grandes problemas a serem enfrentados no processo de urbanização das cidades. Interesses controversos fazem por dificultar a implantação de certas medidas necessárias para a transformação do meio urbano em um ambiente mais democrático. Além disso, independente da dimensão do município, seja ele grande, médio ou pequeno, faz-se importante o planejamento do uso e ocupação do solo. Cediço é que o plano diretor, um dos principais instrumentos urbanísticos a disposição dos municípios, somente se faz cogente em municípios que possuem mais de 20.000 habitantes23. No entanto, isso não significa que a demais cidades (com menos de 20.000 habitantes) não dispensem a feitura de um planejamento que vise disciplinar e melhorar a questão do desenvolvimento urbano. Para que desenvolva e efetue uma política urbanística plausível, independente da obrigatoriedade de se elaborar um plano diretor, o Poder Público Municipal deve possuir em mãos um quadro de profissionais capacitados para tanto. Nesse sentido, Orlando Alves dos Santos Junior e Daniel Todtmann Montandon preconizam: Para todos os contextos, – de municípios médios, grandes e pequenos –, o Estatuto da Cidade apresenta desafios, pois traz instrumentos voltados para o cumprimento da função social da propriedade que requerem uma mudança de cultura de gestão das cidades, na medida em que pressupõem o estabelecimento de limitações a determinados imóveis urbanos, especialmente quanto à gestão da valorização da terra e quanto ao uso do solo, de forma a atender ao interesse público e ao enfrentamento das desigualdades urbanas e sociais. Além disso, o elevado grau de complexidade de alguns instrumentos 23 Art. 41, I, da Lei n. 10.257/01.

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REVISTA DE DIREITO requer uma ampla capacitação de equipes municipais e da sociedade, tanto em cidades grandes quanto em pequenas.24

Não obstante, é latente falta de tais profissionais no âmbito municipal, sendo vários os fatores que levam a tal quadro precário. A complexidade técnica das ações a serem tomadas, a falta de recursos econômicos de certos municípios e, até mesmo, a falta de interesse político, não somente por parte dos representantes do governo, mas também por parte da população, que seria o maior interessado, são exemplos de motivos que acarretam tal situação. Nesse diapasão, Heloisa Soares de Moura Costa, Ana Lúcia Goyatá Campante e Rogério Palhares Zschaber de Araújo prescrevem: [...] Ainda que seja efetiva a pressão de setores econômicos, interesses particulares e políticos interessados em manter sob controle a dinâmica urbana, a ausência de efetividade e autoaplicabilidade das propostas deve estar vinculada tanto à baixa capacidade de se produzir e sistematizar conhecimentos sobre a realidade urbana local que caracteriza as prefeituras, muitas delas sem estrutura técnica de planejamento territorial, quanto também à ausência de mecanismos de participação que sejam mais abrangentes e que consigam mobilizar, além do poder público, os diversos setores da sociedade civil. Como os municípios não contam com uma base de dados cartográficos e cadastrais atualizada, agentes públicos capacitados e mecanismos de gestão participativa consolidados, a delimitação e a regulamentação de instrumentos autoaplicáveis passam a demandar mais tempo para serem concebidas e a enfrentar mais dificuldades

24 SANTOS JUNIOR, Orlando Alves; MONTANDON Daniel Todtmann (orgs.). Os planos diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital:Observatório das Cidades: IPPUR/UFRJ, 2011, p. 51.

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Italo Fernando Costa para serem efetivadas do que as diretrizes e os objetivos genéricos [...].25

Percebe-se, portanto, que, mais uma vez, o cumprimento das Leis presentes no ordenamento que visam regular o desenvolvimento urbano é inviabilizado. Outra questão tormentosa é a relacionada a alterações em zoneamento preexistente pelos municípios. Nas palavras de José Afonso da Silva, “o [...] zoneamento consiste na repartição do território municipal à vista da destinação da terra, do uso do solo ou das características arquitetônicas”26. Trata-se de uma limitação ao direito de propriedade, uma vez que condiciona o seu uso ao limites estabelecidos em lei. Justamente por tratar de uma restrição a certo direito, as alterações em zoneamentos devem ser pautadas por diversos estudos de técnicos com especial conhecimento da situação, serem feitas com seriedade, analisando de forma minuciosa todas as questões envolvidas, procurando respeitar tantos os anseios públicos, como os privados, cabendo sempre aos municípios indenizarem os prejudicados. José Afonso da Silva assim prescreve a respeito do tema: A alteração do zoneamento é medida que se impõe com freqüência, quer porque durante sua execução se perceberam desvios ou inadequações, que precisam ser corrigidos, quer porque a dinâmica urbana exige a revisão periódica das normas e atos de zoneamento geral do Município. Recomenda-se, nessas alterações, muito critério, 25 SANTOS JUNIOR, Orlando Alves; MONTANDON Daniel Todtmann (orgs.). Os planos diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Cidades: IPPUR/UFRJ, 2011, p. 181. 26 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 240-241.

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REVISTA DE DIREITO a fim de que não se façam modificações bruscas entre o zoneamento existente e o que vai resultar da revisão. É preciso ter em mente que o zoneamento constitui condicionamento geral à propriedade, não indenizável, de tal maneira que uma simples liberação inconseqüente ou um agravamento menos pensado podem valorizar demasiadamente alguns imóveis, ao mesmo em que desvalorizem outros, sem propósito. É conveniente que o zoneamento resulte da revisão ou da alteração constitua uma progressão harmônica do zoneamento revisado ou alterado, para não causar impactos, que, por sua vez, geram resistência que dificultam sua implantação e execução [...].27

Estando, todavia, a mando dos municípios, a definição do zoneamento do território municipal, assim como sua alteração, abre-se espaço para decisões arbitrárias, o que pode levar prejuízo a particulares e à coletividade. Por fim, é importante lembrar que as alterações efetuadas nos zoneamentos municipais não têm o condão de inibir a continuação do exercício do direito de propriedade conforme o zoneamento anterior, devendo ser respeitado o direito adquirido. Tais situações, denominadas de desconforme, apesar de se oporem às novas normas estabelecidas, são permitidas e difundidas pela jurisprudência. Nesse sentido, são os seguintes julgados: Mandado de Segurança - Atividade comercial exercida em local residencial - Aprovação de projeto comercial para o local anterior à lei que o declarou como de zona residencial - Direito Adquirido - Recurso desprovido.28 27 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 251. 28 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 994.07.130888-7. Apelante: Prefeitura Municipal de Idaiatuba e outros. Apelado: Jaime Lopes Moreira Idaiatuba ME. Relator: Des. Oscild de Lima Júnior. Data de Julgamento: 13/12/2010. São Paulo, 13 de dezembro de 2010. Disponível em: http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1. Acesso em: 18 mar. 2013.

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Italo Fernando Costa Zoneamento urbano. Pequena empresa que produz e comercializa salgadinhos para festas, estabelecida no local desde 1990, licenciada em 1994 que foi interditada em razão da mudança do zoneamento. Direito adquirido, contudo, à permanência no local, na mesma atividade, sem que possa ser impedida pela prefeitura, nem negado o respectivo alvará, com a anulação das multas impostas. Segurança concedida. Recurso provido.29 APELAÇÃO. Indústria que funciona antes de alteração no zoneamento urbano. Uso não conforme tolerado desde que sem novas ampliações e desde que regular quando da alteração legislativa. Inocorrência no caso. Construção irregular e não exibição de alvará de funcionamento. Sentença de improcedência. Recurso da autora provido em parte, apenas para afastar a condenação em verba honorária sobre ação cautelar que promoveu. Mantida, no mais, a sentença. Recurso parcialmente provido.30

4.2.3 Questões relacionadas ao parcelamento do solo Passando adiante, outro fator que levanta certas polêmicas no âmbito do direito urbanístico é a questão dos loteamentos, no que tange a sua elaboração e disciplina jurídica. O primeiro ponto a ser discutido diz respeito à atividade de urbanização, na qual se encaixa os loteamentos. No Brasil, é normal particulares no exercício de atividades que a princípio deveriam ser exercidas pela Administração Pública no processo de urbanização, como é o caso do parcelamento do solo para fins urbanos. Quanto ao tema, José Afonso da Silva assevera: 29 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 994.09.244062-9. Apelante: Ingredientes Comércio de Alimentos Ltda. Apelado: Subprefeito Regional de Pinheiros. Relator: Des. Urbano Ruiz. Data de Julgamento: 26/04/2010. São Paulo, 26 de abril de 2010. Disponível em: http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1. Acesso em: 18 mar. 2013. 30 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 883.900.5/6-00. Apelante: Centrais Impressoras Brasileiras Ltda. Apelado: Município da Capital. Relator: Des. Oswaldo Luiz Palu. Data de Julgamento: 03/08/2011. São Paulo, 03 de agosto de 2011. Disponível em: http:// esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1. Acesso em: 18 mar. 2013.

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O parcelamento do solo para fins urbanos em sua forma mais característica – o loteamento (arruamento e divisão em lotes) – tem sido, entre nós, uma atividade urbanística de iniciativa de particulares, especialmente de proprietários de glebas (pessoas físicas ou empresas imobiliárias loteadoras). Neste caso, os particulares, em nome próprio, no interesse próprio e à própria custa e risco, estarão exercendo uma atividade que pertence ao Poder Público Municipal – qual seja, a de oferecer condições de habitabilidade à população urbana. [...]31

Em consonância com o autor referido, pode-se dizer que está nas mãos de particulares uma função de suma importância para toda a sociedade, que é de fornecer condições de moradia e habitação ao povo. Mas, será que teria a iniciativa privada condições de exercer de forma diligente e altruísta essa incumbência? Insere-se nessa discussão, novamente, a dicotomia entre interesse público e privado, ficando de um lado os interesses do proprietário do terreno a ser parcelado, e do outro os anseios de toda a coletividade, que espera que os novos loteamentos, não apenas facilitem a vida urbana (com vias de fácil acesso, lotes bem dimensionados, fornecimento de infraestrutura básica, etc), mas, também, concedam o acesso a moradia digna a todas as camadas sociais, democratizando o solo urbano. Apesar de ser necessária a aprovação do projeto de loteamento pelo Poder Público Municipal, como se verá mais adiante, a execução da obra incumbe totalmente ao particular, o que pode acarretar – e acarreta – sérios problemas no contexto da urbanização das cidades. José Afonso alerta que “em muitos bairros provenientes de processo de loteamento privado nota-se que as vias foram projetadas sem se atentar para a localização e a direção 31 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 328.

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das existentes nas áreas circunvizinhas, criando cotovelos e becos sem saída [...]”32, sendo este um dos menores problemas que podem vir a ocorrer. O mais lamentável, ainda, é que após toda a construção do loteamento, aparecendo os problemas, estes ficam a cargo do Poder Público Municipal, o qual deverá corrigir as falhas apresentadas após a conclusão do loteamento, “exigindo a intervenção do Poder Público, mediante desapropriação custosa, social e financeira, para proceder à reurbanização da área, a fim de adequá-la ao plano diretor”33, conforme dispõe José Afonso da Silva. No mais, os loteamentos, por serem elaborados por particulares, são vistos como forma de arrecadação de lucros, assim, quanto menor o valor dos gastos com sua execução, maiores os lucros auferidos pelo empreendedor. O que, a princípio, não haveria problema algum, pode resultar em obras mal feitas e em desconformidade com as regras estipuladas. Dessa forma, latente é que ao se permitir que a iniciativa privada fique responsável pelos empreendimentos loteadores, o desenvolvimento urbano, de certa forma, está em risco, acarretando prejuízos para toda a população. Portanto, faz-se necessário que seja revista a forma como tem sido tratada essa questão, levando em conta o disposto pela Lei n. 6.766/79. Outro fator de grande influência na questão do parcelamento do solo urbano, que está ligado à qualidade da execução de tal atividade, é o da competência para regulamentar e fiscalizar os loteamentos, a qual é concedida ao Poder Público Municipal. O art. 12 da Lei n. 6.766/7934 dispõe que cumprirá ao município, 32  SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 337. 33 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 337. 34 Art. 12. O projeto de loteamento e desmembramento deverá ser aprovado pela Prefeitura Municipal, ou pelo Distrito Federal quando for o caso, a quem compete também a fixação das diretrizes a que aludem os arts. 6° e 7° desta Lei, salvo a exceção prevista no artigo seguinte.

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através do poder executivo, aprovar os projetos de loteamento, o qual deverá seguir as diretrizes traçadas pela Prefeitura Municipal, conforme disposto no art. 6º da referida Lei. Tal competência, no entanto, pode acarretar a diversas complicações para o desenvolvimento urbano das cidades, como se verá. José Afonso da Silva, a respeito do tema, salienta que “as normas que o disciplinam (loteamento), quanto aos aspectos urbanísticos, são de competência dos Municípios, pois se trata de um instrumento importante do plano diretor municipal. Planejar um loteamento é planejar uma parte da cidade.” 35 Nesse sentido, pode-se dizer que as diretrizes dos planos de loteamento devem ser instituídas pelos municípios e vinculadas aos respectivos planos diretores, buscando uma homogeneidade no processo de urbanização. Não obstante, como já foi falado, nem sempre os municípios se preocupam com a elaboração dos planos diretores, ou quando o fazem, na maioria das vezes, é de forma incompleta, fato este que dificulta no melhoramento de todo o andamento das atividades urbanísticas, nas quais se incluem o parcelamento do solo. Não havendo, então, diretrizes a serem seguidas36, imagina-se que as aprovações dos projetos de loteamento ocorram de forma discricionária e sem parâmetro, o que pode culminar em sérios problemas. Mais uma questão relacionada ao parcelamento do solo, que não se pode olvidar, é em relação aos loteamentos ilegais, os quais vêm proliferando nas cidades brasileiras. Todas as vezes em que os loteadores no exercício de suas atividades não observam as suas normas disciplinadoras, as quais traçam as diretrizes a serem seguidas no parcelamento do solo, o empreendimento loteador é considerado ilegal. 35 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 338. 36 Art. 6° da Lei n. 6766/79.

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O problema de tais loteamentos encontra-se no fato de que, por ignorarem a legislação pertinente, criam áreas sem condições adequadas para habitação, trazendo sérios problemas não só para os que lá forem residir, mas também para toda a cidade. Mais agravante ainda se torna a questão pelo fato de a Lei n. 6.766/79 possuir poucos instrumentos que permitam a regularização dos loteamentos informais. Segundo Denise de Campos Gouvêa e Sandra Bernardes Ribeiro: A Lei Federal nº 6766/79 foi, sobretudo, pensada a partir da atividade econômica de parcelar o solo urbano, produzindo lotes para o mercado formal. Apesar de estabelecer a possibilidade de parâmetros urbanísticos reduzidos para os parcelamentos de baixa renda, não possui os requisitos urbanísticos e ambientais suficientes, no sentido de viabilizar a regularização fundiária do enorme passivo sócio-ambiental existente no país. Outra questão que merece destaque é que essa Lei, ainda em vigor, não foi pensada a partir de uma visão sistêmica, na qual o parcelamento do solo urbano estivesse diretamente interligado com os mecanismos de uso e ocupação da cidade e de gestão democrática, de maneira a interagir na formação da cidade como um todo. Sempre foi entendida como um ato unilateral dos empreendedores ou proprietários de terra, que parcelavam independente da função social de sua propriedade e do processo de construção coletiva da cidade.37

Observa-se que a Lei n. 6.766/79 não colabora para a democratização do solo urbano, não concedendo meios viáveis para solucionar o problema de habitação que assola o Brasil. Ao contrário, disciplina os loteamentos formais apenas, o que acaba por favorecer, quase que de forma única, os proprietários de terra, que na maioria das vezes possuem interesses espe37 SANTOS JUNIOR, Orlando Alves; MONTANDON, Daniel Todtmann (orgs.). Os planos diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital:Observatório das Cidades: IPPUR/UFRJ, 2011, p.3.

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culativos. Dessa forma, pode-se dizer que a Lei n. 6.766/79 não condiz com a realidade brasileira nesse ponto, posto que não traz alternativas para que os assentamentos informais venham a ser regularizados, e possam assim beneficiar seus moradores, principalmente de classe baixa. Destarte, conforme Denise de Campos Gouvêa e Sandra Bernardes Ribeiro: [...] a lei de parcelamento do solo vigente desde 1979 precisa se adequar à nova ordem jurídico-urbanística. [...] contribuiu para que o cenário da informalidade não se transformasse, dificultando ainda mais o acesso à terra legal, barata e urbanizada aos mais pobres, favorecendo a desqualificação espacial e propiciando o agravamento do quadro de irregularidade fundiária no país.38

No mais, o Município, como já foi dito, é responsável pela fiscalização de empreendimentos que visam o parcelamento do solo, assim, na ocorrência de loteamentos ilegais, sendo ajuíza ação civil pública, deverá figurar com legitimado passivo a Prefeitura Municipal. Nesse sentido, são os seguintes julgados: EMENTA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Loteamento irregular Objetivo: condenação dos réus a regularizarem as obras de infra-estrutura ainda não executadas no loteamento denominado ‘Jardim Monte Verde’, bem como providenciar a aprovação do loteamento junto à Municipalidade, de conformidade com a Lei nº 6.766/79 – Patente a legitimidade ativa do Ministério Público Art. 129 da CF Carência da ação, prescrição e decadência – Não ocorrência Legitimidade passiva ‘ad causam’ do Município Poder-dever da Municipalidade de fiscalizar 38 SANTOS JUNIOR, Orlando Alves; MONTANDON Daniel Todtmann (orgs.). Os planos diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Cidades: IPPUR/UFRJ, 2011, p. 3.

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Italo Fernando Costa e regularizar o parcelamento do solo – Responsabilidade solidária do réu, loteador – Parcelamento do solo e venda de lotes em desacordo com as normas da LF nº 6.766/79 – Bem fixado o prazo para regularização do loteamento Sentença de parcial procedência Recursos não providos.39 EMENTA – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Loteamento irregular Objetivo: condenação dos réus a regularizar ou desfazer o parcelamento irregular de solo denominado ‘Chácaras de Recreio Estância Del Rey’ – Legitimidade passiva ‘ad causam’ do Município – Poder-dever da Municipalidade de fiscalizar e regularizar o parcelamento do solo – Precedentes – Responsabilidade solidária do réu, loteador – Parcelamento do solo e venda de lotes em desacordo com as normas da LF nº 6.766/79 – Multa diária pelo descumprimento das obrigações, conforme petição inicial – Sentença de parcial procedência – Recurso não provido.40

Passando-se adiante, faz-se mister realizar alguns apontamentos a respeito do loteamento compulsório, IPTU progressivo no tempo e desapropriação, e a importância desses instrumentos no processo de democratização do solo urbano. A Constituição Federal em seu artigo 182, § 4°, I, II e III, preconiza: Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno

39 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 0331014-80.2010.8.26.0000. Apelante: José Passos Ferraz dos Santos e outros. Apelado: Ministério Público. Relator: Des. Reinaldo Miluzzi. Data de Julgamento: 06/02/2012. São Paulo, 06 de fevereiro de 2012. Disponível em: http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1. Acesso em: 25 mar. 2013. 40 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 0017388-04.2009.8.26.0000. Apelante: Prefeitura Municipal de Limeira e outros. Apelado: Ministério Público. Relator: Des. Reinaldo Miluzzi. Data de Julgamento: 11/04/2011. São Paulo, 11 de abril de 2011. Disponível em: http://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1. Acesso em: 25 mar. 2013.

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REVISTA DE DIREITO desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. [...] § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I – parcelamento ou edificação compulsórios; II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo. III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

Como se vê, a Carta Magna estipula o parcelamento obrigatório, a progressividade no tempo do IPTU e a desapropriação do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, o que faz em busca do cumprimento do princípio da função social da propriedade. A aplicação desses instrumentos, entretanto, só se tornou possível com a edição do Estatuto da Cidade41, que veio para regulamentar o assunto. Fabrício Leal de Oliveira e Rosane Biasotto aduzem: O parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, seguido do IPTU progressivo no tempo e da possibilidade de desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública – instrumentos definidos ainda no art. 182 da Constituição Federal –, concentram as possibilidades mais efetivas de indução do desenvolvimento urbano para áreas com boas condições de moradia, assim como, 41 Artigos 5º a 8º, da Lei n. 10.257/01.

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Italo Fernando Costa ao lado de outros instrumentos, de democratização do acesso à terra urbanizada. Aqui se agudizam, portanto, as dificuldades políticas de regulamentação dos instrumentos nos planos diretores, vide os conflitos previsíveis com proprietários e promotores fundiários – e, mais do que isso, toda a tradição patrimonialista brasileira.42

É clara – e louvável – a intenção do legislador ao criar o instituto do parcelamento compulsório de desestimular a especulação imobiliária, visando um adequado aproveitamento do solo urbano. Mais uma vez, nota-se o embate entre o interesse público e privado, mediado pelo princípio da função social da propriedade. É latente a tentativa de se chegar a uma sociedade mais democrática no que tange à propriedade urbana. Não obstante, para que se tenha sucesso na prática, é necessário um grande esforço por parte do Poder Público Municipal, uma vez que se requer um procedimento que lhe permita exigir do proprietário que aja de acordo com o que por ele for delimitado, seja no plano diretor ou em outra legislação decorrente. Ademais, faz-se necessário que os municípios não apenas façam menção a tais institutos nos planos diretores, mas que os regulamentem, tornando possível sua aplicação na prática. No entanto, não é isso que se tem percebido, posto que, em grande parte dos casos, os municípios não buscam regulamentar a forma de aplicação dos instrumentos citados, ou quando o fazem, limitam o poder de atuação destes, não atingindo áreas urbanizadas e bem localizadas, o que não condiz com a expectativa de democratização do acesso ao solo urbano. José Afonso da Silva, a respeito do tema, assevera: 42 SANTOS JUNIOR, Orlando Alves; MONTANDON Daniel Todtmann (orgs.). Os planos diretores municipais pós-estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Cidades: IPPUR/UFRJ, 2011, p. 79.

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O percurso é longo e espinhoso, porque a Constituição, sempre muito apegada no garantir o direito de propriedade, cercou a aplicação dos institutos do parcelamento, edificação e utilização compulsórios de muitas cautelas, que praticamente os tornaram inviáveis.43

O que se pode auferir dessas palavras, é que novamente a concretização do interesse público encontra-se obstada, seja pela legislação vigente ou pela falta de regulamentação desta. Por derradeiro, outra questão de suma importância, que não se pode deixar de mencionar, trata-se da tipificação de certas condutas como criminosas pela Lei n. 6.766/79, previsto pelos artigos 50 a 52, com o objetivo de punir certas práticas realizadas no âmbito do parcelamento do solo. A discussão gira em torno da eficiência de tais previsões para inibir a prática de condutas ilegais na seara do processo de desenvolvimento urbanístico. A respeito do tema, José Afonso da Silva dispõe: Cumpre notar que a Lei n. 6.766/79 aparelhou um conjunto de normas, bastante rigorosas, destinadas a reprimir loteamentos ilegais e a punir seus promotores (arts. 37-52), inclusive dando poderes ao Município e ao Distrito Federal para empreender a regularização de tais loteamentos as expensas do loteador (art. 40). São providencias de alto relevo, capazes de coibir parcelamentos ilegais do solo, se os Municípios se utilizarem adequadamente dessas disposições da lei. O Ministério Público, hoje, também dispõe de meios para providenciar a incriminação desses loteadores, já tendo conseguido alguns resultados, com a condenação deles à prisão. Mas, ainda

43 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 433.

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Italo Fernando Costa assim, tais resultados, não têm sido suficientes para desestimular a prática desses crimes.44

O que se pode inferir é que a previsão de tipos penais para inibir práticas ilegais no âmbito do direito urbanístico, apesar de ser uma boa tentativa de coibir um processo de urbanização desordenado e irregular, não tem surtido muito efeito na prática, uma vez que a iniciativa particular continua a desrespeitar as normas vigentes. Uma das explicações para tanto, seria o fato de que os tipos constantes na Lei n. 6.766/79 são considerados normas penais em branco, cujo conteúdo exige complementação. Isto pode contribuir na aplicação dos referidos artigos, uma vez que a conduta criminosa não estaria bem definida, o que geraria divergências e dúvidas aos aplicadores do direito na incriminação dos agentes. Exemplificando, colhem-se os seguintes julgados do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: PENAL - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - ERRO DE PROIBIÇÃO - INOCORRÊNCIA PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA - REDUÇÃO DO VALOR - JUSTIÇA GRATUITA - DENEGAÇÃO - RECURSO A QUE SE DÁ PARCIAL PROVIMENTO. V.V.P. - CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. LOTEAMENTO OU DESMEMBRAMENTO DO SOLO URBANO, SEM AUTORIZAÇÃO DO ÓRGÃO COMPETENTE OU EM DESACORDO COM AS DISPOSIÇÕES LEGAIS. IMÓVEL LOCALIZADO EM ZONA RURAL. IRRELEVÂNCIA PARA FINS DE CARACTERIZAÇÃO DO DELITO. ERRO SOBRE A ILICITUDE DO FATO. ÔNUS DA PROVA. DEFESA. - Para a configuração do crime contra a Administração Pública consistente em parcelamento do solo com infração à Lei 6.766/79, o 44 DA SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 345.

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REVISTA DE DIREITO que importa é sua destinação para fins urbanos, inobstante a localização em zona rural, e não urbana. - Não logrando êxito a defesa em comprovar que o acusado não possuía conhecimento do caráter ilícito do fato por ele praticado, afasta-se a aplicação do art. 21 do CP, que regula o erro sobre a ilicitude do fato (grifo nosso).45 EMENTA: LOTEAMENTO DE SOLO URBANO ÁREA RURAL - NÃO CARACTERIZAÇÃO DO CRIME - ABSOLVIÇÃO MANTIDA - CRIME AMBIENTAL - DESTRUIÇÃO DE ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - ABSOLVIÇÃO. 1. Restando comprovado que a área que foi loteada não possuiu fins urbanos e, sim rurais, não é possível imputar aos apelados os crimes da Lei 6.766/79, por ausência de elementar do tipo, vez que a lei especial somente se aplica para solo com fins urbanos. 2. Não há como impor aos réus a condenação pelo crime previsto no art. 38 da lei 9.605/98, pois ainda que tenha havido algum dano a área de preservação permanente, tal conduta não pode ser imputada aos agentes, pois os acusados solicitaram autorização ao IEF e averbaram as áreas de preservação permanente junto ao Registro de Imóveis, sendo que as alterações foram realizada após a venda dos terrenos. 3- Recurso improvido (grifo nosso).46

Como se percebe, a mesma conduta praticada por agentes distintos foi enquadrada de maneira diferente, no momento em que se definiu ser ou não para fins urbanos os loteamentos, o que demonstra a dificuldade 45 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Criminal n. 1.0346.06.011726-1. Apelante: Antônio Zacarias de Paula. Apelado: Ministério Público. Relator: Des. Duarte de Paula. Data de Julgamento: 24/03/2011. Data da publicação da súmula: 15/04/2011. Belo Horizonte, 24 de março de 2011. Disponível em: http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisa. Acesso em: 18 mar. 2013. 46 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação criminal n. 1.0338.03.013701-6/001. Apelante: Ministério Público. Apelados: Ana Paula Gonçalves de Souza e outros. Relator: Des. Antônio Armando dos Anjos. Data de Julgamento: 01/09/2009. Data da publicação da súmula: 24/09/2009. Belo Horizonte, 01 de setembro de 2009. Disponível em: http://www5.tjmg.jus.br/ jurisprudencia/pesquisa. Acesso em: 18 mar. 2013.

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e complexidade de se aplicar os tipos penais previsto pela Lei n. 6.766/79. Além disso, nos raros casos em que há uma punição aos que descumprem o previsto na legislação, as penas aplicadas não cumpre seu papel de inibição de novas práticas semelhantes, posto que os responsáveis por crimes urbanísticos não são punidos de uma maneira exemplar. Extrai-se da jurisprudência: APELAÇÃO CRIMINAL - LOTEAMENTO IRREGULAR DO SOLO PARA FINS URBANOS EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - ART.50 DA LEI 6.766/79 - CRIME INSTANTÂNEO DE EFEITOS PERMANENTES - CONSUMAÇÃO QUE OCORRE COM A REALIZAÇÃO DO LOTEAMENTO - MARCO PRESCRICIONAL - ART.60 DA LEI 9.605/98 - PENA DE MULTA ISOLADA - PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA EM DOIS ANOS - EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. I - De acordo com entendimento predominante, a conduta de loteamento irregular, tipificada no art. 50 da Lei 6.766/79, possui natureza de crime instantâneo de efeito permanente, cuja consumação se dá com o início da simples atividade de efetuar o loteamento ou desmembramento do solo sem observância das determinações legais. II - Nos termos no disposto no art.114, inciso I, do Código Penal, a pena de multa, quando for a única cominada ou aplicada, prescreve em 02 (dois) anos. III - Deve ser extinta a punibilidade dos apelantes uma vez verificada a prescrição da pretensão punitiva, pelo transcurso do lapso temporal (grifo nosso).47 APELAÇÃO. DELITO PREVISTO NO ART. 50, PARÁGRAFO ÚNICO, I, DA LEI Nº 6.766/79. PENA-BASE. MAJORAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PENA DE MULTA. APLICAÇÃO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. - Pena-base fixada um pouco acima do mínimo 47 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação criminal n. 1.0042.05.010918-2/001. Apelante: Cléver José de Souza e outros. Apelado: Ministério Público. Relator: Des. Adilson Lamounier. Data de Julgamento: 17/01/2012. Data da publicação da súmula: 30/01/2012. Belo Horizonte, 17 de janeiro de 2012. Disponível em: http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisa. Acesso em: 18 mar. 2013.

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REVISTA DE DIREITO legal, por ser desfavorável ao apelante a circunstância judicial atinente às consequências do delito. - A imposição da pena de multa não é uma faculdade do Juiz, sendo obrigatória a sua aplicação na sentença condenatória quando estiver prevista no tipo penal, não podendo o Juiz decidir de outra maneira, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade estrita. - Recurso parcialmente provido, para acrescentar à condenação a pena de multa no valor de 7,5 salários mínimos, ficando mantida, quanto ao mais, a r. sentença monocrática, inclusive no que tange à decretação da prescrição da pretensão punitiva (grifo nosso).48

Observa-se, assim, que, na maioria dos casos, a pena aplicada é apenas pecuniária e de multa, o que acaba por ser uma punição branda, tendo em vista que os empreendedores são pessoas ou empresas abastadas, e os investimentos feitos em certos loteamentos são de grande vulto, sendo irrelevantes os valores aplicados, mesmo que seja aplicada a quantia máxima prevista como pena.

5. CONCLUSÃO Cediço é que o direito urbanístico ainda caminha para desenvolvimento pleno, não tendo alcançado ainda sua perfeita estruturação. No entanto, é sabido também que, atualmente, devido ao grande crescimento das cidades brasileiras, os anseios da população por regras que disciplinem o desenvolvimento urbano são cada vez maiores, sendo de suma importância 48 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação criminal n. 1.0028.04.006106-2/001. Apelante: Ministério Público. Apelado: José Wilson Neves da Cunha. Relator: Des. Doorgal Andrada. Data de Julgamento: 03/08/2011. Data da publicação da súmula: 19/08/2011. Belo Horizonte, 03 de agosto de 2011. Disponível em: http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisa. Acesso em: 18 mar. 2013.

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que as normas existentes cumpram o papel por elas esperado. Por outro lado, as medidas necessárias para conter um processo de urbanização descontrolado e segregante, não podem desrespeitar direitos acobertados pela Carta Magna, como é o caso do direito de propriedade, devendo-se estabelecer uma harmonia entre as questões de direito público e de direito privado. Ao se analisar os principais instrumentos legais urbanísticos presentes no ordenamento jurídico brasileiro (Leis n. 6.766/79 e 10.257/01), quanto a sua eficácia e seu cumprimento na prática, bem como sua capacidade para dirimir os problemas relacionados à propriedade privada, observou-se a ocorrência de certas falhas, estas provenientes do texto de cada norma, bem como da sistemática aplicada em sua concretização. Apesar de conterem vários dispositivos plausíveis, os instrumentos normativos urbanísticos presentes no ordenamento jurídico brasileiro ainda não são suficientes para dirimir os problemas decorrentes do processo de urbanização no Brasil. Um dos motivos para tanto, passa pelo fato de que a legislação urbanística encontra-se interligada. Embora cada lei discipline uma matéria, não se pode negar que o descumprimento de uma das normas gera prejuízo na aplicação das demais. Por exemplo, na construção de um loteamento, este deverá seguir as regras preestabelecidas pelo município no plano diretor (quando existente), assim, havendo falha neste último, todo o processo de loteamento estará comprometido. Não havendo a responsabilidade por parte do Poder Público Municipal em regulamentar as regras estabelecidas no âmbito federal, não há como se concretizar a política urbana traçada pela Constituição Federal49. Ademais, as normas analisadas mostraram-se falhas quanto à pre49 Constituição da República Federativa do Brasil, Capítulo II, artigos 182 e 183.

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visão de sanções para aqueles que descumprem o determinado em seu bojo. Isso se torna um problema, principalmente quando está a cargo da iniciativa privada cumprir com certas funções públicas, como é o caso do parcelamento do solo. Não havendo punições, ou sendo estas brandas, as práticas ilegais tendem a proliferar cada vez mais na sociedade, o que acarreta sérios transtornos à população, ainda mais no âmbito do direito urbanístico. Além disso, instrumentos previstos pela legislação urbanística, com o intuito de democratizarem o solo urbano, como o parcelamento compulsório, o IPTU progressivo e desapropriação, são praticamente esquecidos pelo Poder Público, o que favorece a disseminação de assentamentos ilegais e a favelização das cidades brasileiras, uma vez que, na prática, prima-se pelos interesses dos proprietários de terras em detrimento do interesse público, dificultando o acesso a terras urbanizáveis a maioria da população, e contrariando o princípio da função social da propriedade. Indubitavelmente, a concretização de institutos como este requer um aprofundado estudo e cautela, para que não haja favorecimentos e prejuízos a qualquer indivíduo, assim como não sejam desrespeitados direitos previstos pela Constituição Federal, como o direito de propriedade. Para tanto, investimentos devem ser feitos nos órgãos públicos, principalmente municipais, para que estes tenham condições de executarem e concretizarem as previsões legais. E, assim, torne-se possível o desenvolvimento de uma política urbanística mais democrática. Nesse ponto, encontra-se outro entrave na aplicação das normas urbanística, qual seja, a falta de condições dos municípios brasileiros em colocarem em prática o previsto pela lei, o que se deve a falta de recursos materiais e humanos. A gestão municipal, principalmente de cidades de médio e peque-

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no porte, dá-se de uma formar bem limitada, tendo em vista a escassez monetária. Nessa perspectiva, os governantes locais primam por medidas imediatistas, deixando de lado questões mais complexas e que requerem médio ou longo prazo para surtirem efeito, como é o caso da política urbana. Assim, a tendência é que, cada vez mais, as questões urbanísticas sejam postergadas, tornando-as ainda mais insustentáveis, o que leva ao aumento dos problemas evolvendo o bem-estar do cidadão que habita as cidades. Destarte, através deste estudo, pode-se perceber que o interesse privado ainda se sobrepõe ao interesse público na seara urbanística, tendo a iniciativa privada uma grande influência quanto à elaboração, aplicação e regulamentação das normas urbanísticas. Fato esse que deve ser combatido cada vez mais pelo Poder Público, em todas as esferas, para que os desejos dos particulares não possam vir a intervir no cumprimento do maior objetivo da Administração Pública, isto é, o interesse público. Dessa forma, concluiu-se que a legislação brasileira não é satisfatória, no que diz respeito à organização espacial das cidades, faltando-lhe ingredientes para sua melhor implementação, quais sejam, possivelmente: a formação adequada dos quadros públicos municipais; a possibilidade de acesso do Poder Público Municipal às novas formas de fiscalização, notadamente os registros de imóveis, competência exclusiva da União; a responsabilização dos funcionários públicos encarregados da política urbana; tipos penais mais específicos, que não deixem brechas no momento de sua aplicação; bem como a estipulação de penas mais severas para os crimes urbanísticos.

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Recebido em 22/02/2015 - Aprovado em 11/09/2015.

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O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO MEIO PROTETIVO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS THE PROHIBITION PRINCIPLE OF SOCIAL REGRESSION AS PROTECTIVE MEAN OF FUNDAMENTAL RIGHTS João Paulo Reis de Deus1

1 Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogado. e-mail: joaopauloreis86@gmail.com

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RESUMO: O presente artigo pondera a relação existente entre o princípio da proibição do retrocesso social e a proteção dos direitos fundamentais sociais. Partindo-se da premissa que os direitos fundamentais sociais carecem de prestações positivas do Estado e que, por isso, demandam um esforço maior do Poder Público para a sua concretização, o objetivo deste trabalho é perquirir acerca da evolução dos direitos fundamentais e discutir a importância de tratá-los como pressupostos legitimadores de um Estado que se pretenda Democrático e de Direito. Assim, diante da confrontação existente entre a possibilidade do Estado garantir um direito fundamental social e das condições orçamentárias para a sua concretização, surge a necessidade de analisar o princípio em comento, a sua incidência e os seus limites, de forma a garantir que os cidadãos de determinado governo não sejam surpreendidos com a supressão ou diminuição de direitos sociais já implementados. Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Direitos Fundamentais. Direitos Sociais. Princípio da Proibição do Retrocesso Social.

ABSTRACT: This paper is to ponder the relationship between the principle, implicit in the Constitution, of retrocession prohibition and the protection of social fundamental rights. Our objective consists basically in analyzing the evolution of fundamental rights and argues about the importance of treating them as presumption of legitimacy of a Democratic and Social Estate of rights. This paper consider the social fundamental rights as those who needs positive benefits from the state and those who require an effort by the government to its completion. Therefore, before the confrontation between the possibilities of government guarantee a fundamental

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social right and budgetary conditions for achieving them, the need arises to analyze the principal of retrocession prohibition, its incidence and limits, to ensure that the citizens of a state are not surprised with the suppression or reduction of implemented social rights. Keywords: Democratic and social estate of rights. Fundamental rights.Social rights. Principle of prohibition of retrogression.

1. INTRODUÇÃO

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s revoluções burguesas, próprias do final do século XVIII, foram essenciais para a história da humanidade e para a teoria da Constituição. Como resposta aos Estados absolutistas, cujos governantes concentravam em si todas as funções públicas

em detrimento da participação e da liberdade individual dos governados, os burgueses, que detinham os meios de produção de uma sociedade cada vez mais industrializada, passaram a reivindicar maior participação política no Estado, a partir da limitação dos poderes do monarca, cuja função seria precipuamente garantir direitos. Concomitantemente às referidas revoluções, surgiram as primeiras Constituições escritas, que erigiam o povo como titular legítimo do poder e que primavam por valores fundamentais a abstenção do Estado na vida privada dos seus governados e a proteção dos direitos de liberdade, igualdade (ainda que num plano formal) e de propriedade. Contudo, as Constituições liberais foram claramente promulgadas com o objetivo de garantir os direitos de uma parcela mínima da população, na medida em que a política de abstenção do Estado na sociedade e

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na economia teve como consequência a concentração de riquezas e a miserabilidade daqueles que eram explorados pela lógica capitalista, própria do liberalismo político e econômico. À vista disso, as classes oprimidas se insurgiram, o que corroborou para o surgimento de um constitucionalismo social comprometido em garantir os denominados direitos sociais, tais quais a saúde, a educação, a previdência e o direito ao trabalho digno. Esse Estado Social foi sistematizado pelas Constituições promulgadas no início do século XX, como a Constituição Mexicana de 1917 e a Alemã de 1919. De conseguinte, é imprescindível a análise dos marcos constitucionais supra, para que se compreenda a importância dos direitos fundamentais. Os direitos individuais à liberdade e propriedade foram maximizados, num primeiro momento, ao status de direitos constitucionalmente previstos, quando da vigência das Constituições liberais, já os direitos sociais foram erigidos ao patamar de fundamentais no momento em que passou a ser prioridade do Poder Público concretizar medidas de cunho socializante, a fim de proteger a dignidade da pessoa humana. Diante do exposto, surgiu na segunda metade do século XX, muito em razão das falhas do projeto constitucional liberal e social, o Estado Democrático de Direito, cuja função foi sintetizar e proteger os direitos fundamentais sejam eles de origem liberal ou social. O Estado Democrático de Direito, portanto, tem por finalidade promover a manutenção dos direitos fundamentais individuais, de origem liberal, e a concretização dos direitos fundamentais sociais, de modo a preservar a interdependência desses direitos. Não há mais uma hierarquização dos direitos fundamentais, que passam a ter o mesmo grau de importância na implementação do projeto constitucional social e de direito. Nesse apanágio, o objetivo desse trabalho é investigar a respeito do

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grau de efetividade da Constituição Federal brasileira de 1988, no que se refere aos direitos fundamentais sociais, na medida em que essa espécie de direitos demanda do Estado a adoção de políticas públicas que exorbitam a mera abstenção e garantia dos direitos individuais. Para tanto, eleger-se-á o princípio da proibição do retrocesso social como forma de garantir a efetividade da promessa constitucional de concretização dos direitos fundamentais sociais, confrontando o referido princípio com outros de previsão constitucional, com o fim de pesquisar as hipóteses de sua ocorrência e os seus limites, para em conclusão tentar apresentar uma resposta para o problema da efetividade dos direitos fundamentais sociais na conjuntura atual do ordenamento jurídico brasileiro.

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS A primeira questão relevante para se confrontar no corrente trabalho é a delimitação de um conceito de direitos fundamentais, para que a expressão seja empregada de modo idôneo e correlato às definições já sedimentadas por autores que dedicaram seus estudos à Teoria da Constituição. Paulo Bonavides, excepcional autor e pesquisador do direito pátrio, começa a delinear o conceito de direitos fundamentais a partir do pensamento de dois juristas clássicos do direito alemão contemporâneo, a saber, Konrad Hesse e Carl Schmitt. Segundo o autor, enquanto o primeiro, numa acepção ampla do termo, expõe que os direitos fundamentais são pressupostos elementares de uma vida humana livre e digna, o segundo dita dois critérios para a sua caracterização, ao dizer que: a) são denominados direitos fundamentais aqueles nomeados em específico pelo Texto Constitucional como tais e; b)

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são os direitos eleitos pela Constituição como aqueles com um grau mais elevado de garantia, dotados de uma imutabilidade, ou quando possível a mudança, essa será dificultada, dado ao caráter singular dessa espécie de direitos. (BONAVIDES, 2009, p. 561-562). Destarte, dentre os conceitos sobre expostos, o segundo conceito é o que melhor se coaduna com o contexto e a proposta do atual escrito. Todavia, Konrad Hesse, em uma concepção mais reduzida e normativa do termo direitos fundamentais, definiu-os como aqueles que o direito vigente dita como tais. Esse entendimento, também se afilia a essa proposta, no sentido de que cada Estado elege os direitos fundamentais que melhor manifeste as ideologias e finalidades do seu povo. Nessa senda, continua Paulo Bonavides: Corresponde assim, por inteiro, a uma concepção de direitos absolutos, que só excepcionalmente se relativizam “segundo o critério da lei” ou “dentro dos limites legais” [...] as limitações aos chamados direitos fundamentais genuínos aparecem como exceções, estabelecendo-se unicamente com base em lei, mas lei em sentido geral; a limitação se dá sempre debaixo do controle da lei, sendo mensurável na extensão e no conteúdo. (BONAVIDES, 2009, p. 561-562).

Nota-se, portanto, a partir da formulação encabeçada por Bonavides, que subsiste uma intrincada relação entre o Texto Constitucional e os direitos fundamentais, vez que, a Constituição, em uma apertada síntese da expressão, é a exteriorização da vontade popular de estabelecer um novo ordenamento jurídico que melhor reflita os anseios, ideologias e valores de um povo. Inobstante ser, portanto, um marco que delimita uma cisão entre uma ordem jurídica que não mais se compatibiliza com a vontade popular para outra que melhor se apraz com o alvedrio do povo.

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Da mesma forma expõe o constitucionalista José Afonso da Silva: A Constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de governo, o modo de aquisição e o exercício de poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias[...]. (SILVA, 2005, p. 37-38).

Diante do exposto, é lógica a conclusão que leva a crer, que o surgimento dos direitos fundamentais e do próprio Estado é coetâneo à própria Constituição. Não há que se falar, assim, de uma Constituição que não se preste a delimitar e explicitar os direitos fundamentais basilares de sua validade. De tal sorte, continua José Afonso da Silva: Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. (SILVA, 2005, p. 37-38).

Neste poente, conclui-se pela indissociável noção que os direitos fundamentais são pressupostos essenciais para a formação de uma ordem jurídica nova, que reflita de modo real um Estado sensível as necessidades e vontades dos seus governados. Mencionados direitos são concebidos, assim, como elementos que definem e legitimam toda ordem jurídica positivada de um Estado. A Constituição é base e fundamento de toda atividade estatal.

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2.1 Direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 determina em seu artigo 1º, inciso III, que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da ordem constitucional democrático e de direito que se pretendia inaugurar com a promulgação do novo Texto Constitucional. 2 Neste sentido, é pertinente mencionar, que a dignidade da pessoa humana foi sob elevada ao status de princípio fundamental e à condição de fundamento da República, o que permite afirmar que o indivíduo é o epicentro de toda ordem constitucional e a sua proteção é o núcleo dos direitos fundamentais. Deste modo, estabelece-se o caráter indissociável e de concatenação entre a guarda da dignidade do indivíduo e a proteção dos direitos fundamentais que o representam. Os doutrinadores Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco consideram em obra analítica do tema, que o princípio da dignidade da pessoa humana é respeitado quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco e resta violado quando a pessoa é reduzida à condição de objeto para a satisfação de um interesse imediato. (BRANCO; MENDES, 2014, p. 280-281). Essa vedação ao reducionismo do homem à condição de objeto para a satisfação das necessidades de outrem pode ser interpretada como um complemento da teoria do filósofo Immanuel Kant, que defendia que o homem é um fim em si mesmo e não um meio que Estado dispõe para a consecução de suas finalidades. O homem deve ser individualmente considerado para que subsista de maneira digna. (BALERA, 2009, p. 124). A dignidade da pessoa humana enquanto qualidade intrínseca do indivíduo o torna merecedor do respeito e consideração do Estado e dos 2 A dignidade da pessoa humana, segundo o art.1º, III, da CF de 1988, encontra-se no Titulo I da Constituição, que trata dos princípios fundamentais.

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membros da comunidade em que está inserido, sendo a ele assegurado proteção contra qualquer ato desumano e degradante, garantindo-lhe, em contrapartida, as condições de existência mínima para uma vida saudável e condizente à realidade pretendida pelo Texto Constitucional. Ingo Wonfgang Sarlet ratifica o entendimento de complementaridade entre os conceitos de Constituição, dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, quando aduz que: Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e positivação constitucional de determinados valores básicos (daí seu conteúdo axiológico), integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais (a assim denominada parte orgânica ou organizatória da Constituição), a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado constitucional democrático se tornam necessárias (necessidade que se fez sentir da forma mais contundente no período que sucedeu à Segunda Grande Guerra) certas vinculações de cunho material para fazer frente aos espectros da ditadura e do totalitarismo. (SARLET, 2005, p.70).

Noutros termos, justamente por representarem os valores básicos de uma sociedade, os direitos fundamentais delimitam o núcleo substancial da Constituição. Assim, com a finalidade de evitar os governos totalitários e ditatoriais, a positivação destes direitos e a sua consagração em normas jurídicas, que são verdadeiros pressupostos de validade, são absolutamente necessários. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não unicamente se empenhou em conjecturar a dignidade da pessoa humana com fundamento, como também se encarregou de maximizar consideravelmente o elenco de direitos e garantias fundamentais, conforme se depreende com a leitura do artigo 5º da CF de 88 e seus setenta e oito incisos.

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Além disso, a Constituição de 1988 foi responsável por todo um realojamento topográfico da previsão dos direitos fundamentais, defrontado-se com as Constituições brasileiras que o antecederam, as quais previam os direitos e garantias fundamentais ao final do texto, logo após a regulamentação da organização do Estado. Mencionada mudança, consoante Kildare Carvalho, não representa tão somente um remanejamento, conquanto sedimenta de vez que os direitos fundamentais são condicionantes de validade para todo Texto Constitucional. (CARVALHO, 2008, p. 693). Diante das considerações elaboradas, a finalidade das análises dispostas neste capítulo não foi outra que investigar a extensão do conceito de direitos fundamentais e a intrínseca correspondência entre essas garantias e a dignidade da pessoa humana, pois, o presente trabalho pretende elaborar proposições que otimizem a implementação dos chamados direitos fundamentais sociais, para que se atinja uma efetivação real dos preceitos constitucionais elencados na atual Constituição brasileira.

3. EVOLUÇÃO HISTÓRICA D OS DIREITOS FUNDAMENTAIS No capítulo anterior pretendeu-se sumariamente expor a relação de influência entre os direitos fundamentais e a Constituição, que é o documento jurídico-político responsável por inaugurar uma nova ordem jurídica no Estado. Para tanto, partiu-se do conceito de direitos fundamentais, entendidos como o núcleo da Constituição, para depois se perquirir sobre o caráter indissociável deles com o princípio da dignidade da pessoa humana. A idéia preliminar foi, portanto, demonstrar que em um Estado, cuja Constituição inaugura um regime político democrático e de direito, a

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previsão dos chamados direitos fundamentais é absolutamente inafastável. Cumpre demonstrar, neste momento, que os direitos fundamentais tiveram seu alcance ampliado no decorrer da história, isto é, a noção de direitos que devem ser preservados pelo Poder Público e a própria função do Estado na manutenção destes se alterou com o avançar do tempo. Portanto, esse capítulo tratará dos direitos fundamentais nos Estados absolutistas, liberais, sociais e democráticos de direito, para que se possa inquirir a relevância dos direitos fundamentais no Constitucionalismo atual e se apure o alcance e os limites do princípio da proibição de retrocesso social, como princípio implícito do Texto Constitucional, que auxilia na democratização de acesso a determinados bens e serviços. 3.1 Do Estado absolutista ao Liberal O Estado Absolutista surgiu na modernidade3 e foi responsável pela unificação do Poder Político, em contraposição a dispersão do governo próprio dos regimes feudais. Nele a figura do monarca se confundia com o próprio Estado, pois a vontade do governante se sobrepunha ao exercício das liberdades individuais dos governados. O poder do soberano se justificava numa compreensão de predestinação divina, o que por si só, não permitia nenhuma interpelação em sentido contrário: A desigualdade perante a lei, que era mantida pelo sistema político dos “estados”, com seus privilégios fiscais para as ordens da nobreza e do clero e acesso limitado aos cargos públicos, às limitações impostas às pessoas e à propriedade; a servidão; a exclusão da participação popular nos assuntos públicos; a intolerância religiosa; a 3 Expoente das ciências políticas, Nicolau Maquiavel, em sua obra “O Príncipe”, de 1513, define Estado como todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens. É na modernidade que surgiu, portanto, a noção de Estado tal qual conhecemos hoje, a partir da teoria defendida por Maquiavel.

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REVISTA DE DIREITO desumanidade do direito penal, que infligia penas capitais e horríveis castigos corporais e mutilações; o processo penal que ainda utilizava a tortura como método de investigação. (CAENEGEM, 1995, p.117-118).

Nesta conjuntura, era inevitável a tentativa de reforma das bases do regime que se impunha, visto que os burgueses detentores do poderio econômico, não gozavam de nenhum poder político, na medida em que subjugavam seus interesses ao alvedrio de um monarca muitas vezes alheio aos seus interesses. As revoluções burguesas liberais tinham por finalidade, então, limitar o exercício arbitrário do poder de império do Estado, que ultrapassava a vontade dos seus súditos a proveitos que extrapolavam o interesse público. José Afonso da Silva sintetizou os ideais do Estado Liberal, a saber: a) A submissão do império à lei, sendo essa um ato emanado de um Poder Legislativo, composto por representantes do povo-cidadão; b) A divisão institucionalizada dos poderes do Estado, em Legislativo, que garantiria a produção das leis e a imparcialidade do poder Executivo, que por sua vez tinha por função proteger os direitos fundamentais dos seus cidadãos; e Judiciário, cuja competência era solucionar os conflitos entre os particulares; c) além da previsão e garantia dos direitos individuais. (SILVA, 2005, p. 113). O primeiro elemento, que determina o subjugo do monarca à lei, surgiu com as revoluções burguesas próprias do século XVIII, que tinham por propósito prevalecente derrogar os privilégios de uma nobreza de procedência feudal e garantir a não intervenção do Estado na privacidade do indivíduo. O indivíduo passa a ser livre para agir conforme seus próprios ditames, sem a intervenção de seus semelhantes e ou do próprio Estado, que passa a garantir o exercício dessa liberdade, entendida como direito fundamental, juntamente com a igualdade formal e o direito a proteção

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da propriedade. Surgem nessa época a compreensão dos direitos civis e políticos como direitos fundamentais. 4 Quanto à tripartição dos poderes, o filósofo francês Montesquieu, em sua obra O Espírito das Leis (1748), teorizou acerca da necessidade de criação de órgãos distintos para o desempenho das funções fundamentais do Estado: Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. (MONTESQUIEU, 1998, p.167-168).

Na teoria tripartita dos poderes de Montesquieu, a concentração de funções atenta contra a própria idéia de Constituição e, portanto, contra a noção de direitos fundamentais. Logo, sem separação das funções do Estado, não há garantia de previsão e implementação de direitos fundamentais. Finalmente, os direitos civis e políticos próprios dessa época, que por inspiração do filósofo inglês, John Locke, eram ligados à liberdade individual, a igualdade formal e a propriedade privada, foram classificados pela Teoria da Constituição como de primeira geração ou dimensão.5 No que diz respeito a esses direitos fundamentais, o principal empecilho a ser 4 Sobre o tema, Paulo Bonavides enuncia que: “A burguesia, classe dominada, a princípio e, em seguida, classe dominante, formulou os princípios filosóficos de sua revolta social.” (SILVA, 2006, p. 113). 5 Foi o filósofo político Noberto Bobbio que delimitou as três gerações clássicas dos direitos fundamentais, na obra “A Era dos Direitos”. (BOBBIO, 2004, p. 32).

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superado era a criação de um bojo de direitos que fossem considerados indispensáveis à condição humana, naquele dado momento histórico. O Estado Liberal, em razão disso, é assim denominado em alusão as ideais do liberalismo político e econômico, cujo fundamento é o poder político que passa a emanar do povo ou da nação, vislumbrando-se, assim, o surgimento das Constituições escritas, que representam a idéia da lei como manifestação racional do poder que o povo atribui ao Estado. A lei, nesse sentido, é verdadeiro limite de atuação do Estado e é responsável pela igualdade (de todos perante a lei) entre os sujeitos que a ela se submetem. 3.2 Estado Social O Estado Liberal, a despeito do progresso em termos de direitos fundamentais, não logrou êxito em evitar que os excluídos das benesses do capitalismo se voltassem contra a política minimalista de intervenção do Estado. A realidade social da má distribuição de riquezas entre os segmentos da sociedade tornou inócuo o conteúdo dos direitos fundamentais de primeira geração, em razão da miséria de um proletariado marginalizado. O Estado Social, que data do início do século XX, despontou com o objetivo de apontar as falácias do discurso liberal, que se mostrou, principalmente no contexto de crise pós-guerra, insuficiente para garantir a existência digna da pessoa humana. Por conseqüência desse levante, no início do século XX surgiram Constituições que prescreviam como direitos fundamentais os reclames sociais: A Constituição mexicana de 1917 foi a primeira, seguida da alemã de 1919 6, a espanhola de 1931 e a Constituição russa de 1936. Nesse contexto, os direitos de primeira geração precisavam de uma

6 Também conhecida como Constituição de Weimar.

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reformulação, para que se conseguisse amenizar as desigualdades de acesso a bens e serviços mínimos para a manutenção da subsistência do indivíduo. A mencionada reformulação implicou no aumento das funções estatais, para que se garantisse uma igualdade material do povo, pois segundo as teorias socializantes, só é livre o sujeito que detém condições materiais mínimas de sobreviver de forma digna, sendo dever de o Estado evitar as mazelas das classes oprimidas pelo poderio político-econômico dos burgueses. De tal sorte, a respeito das funções que o Estado passa a desempenhar, nos ensina Paulo Bonavides: Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social. (BONAVIDES, 2008. p. 186).

O Estado Social é ainda um Estado Constitucional, pois tem por princípio a proteção dos direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana – ainda que esses conceitos tenham sido ampliados para se compatibilizarem com as demandas sociais– a preservação da separação dos poderes e o reconhecimento que o poder político emana do povo. (CARVALHO, 2008. p.83).

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Conseguintemente, em que pese ser o Estado responsável por promover os direitos sociais para toda a coletividade, o titular desses direitos fundamentais ainda eram as pessoas humanas, consideradas individualmente: O princípio da igualdade de fato ganha realce nessa segunda geração dos direitos fundamentais, a ser atendido por direitos a prestação e pelo reconhecimento de liberdades sociais – como a de sindicalização e o direito de greve. Os direitos de segunda geração são chamados de direitos sociais, não porque sejam direitos de coletividades, mas por se ligarem a reivindicações de justiça social – na maior parte dos casos, esses direitos têm por titulares indivíduos singularizados. (MENDES; BRANCO, 2014. p. 151).

Os direitos fundamentais sociais, também denominados direitos de segunda dimensão, são aqueles que dependem de uma prestação positiva do Estado e implicam no acesso das pessoas a bens sociais como a saúde, a educação, a previdência social e os direitos decorrentes das relações de trabalho. São direitos, acrescenta-se, que protegem uma “liberdade real”, pois compreendem verdadeiros deveres dirigidos aos Poderes Executivo e Legislativo, que deverão criar pressupostos reais para o exercício dessa liberdade (QUEIROZ, 2006, p. 16). Tal afirmação, por fim, coaduna-se com a idéia que se apresenta neste trabalho, pois os direitos fundamentais sociais prescrevem verdadeiras obrigações a serem cumpridas pelo Poder Público, o qual as promoverá conforme os ditames do Texto Constitucional. 3.4 Estado Democrático de Direito Segundo o constitucionalista Raul Machado Horta: Na classificação dos cientistas políticos, os direitos individuais são direitos da primeira geração, fundados no

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João Paulo Reis de Deus primado da liberdade, enquanto os direitos sociais são os direitos da segunda geração, edificados sob a primazia da igualdade. [...] A relação de anterioridade dos direitos individuais conduziu à relação de sucessividade dos direitos sociais, para alcançar a relação de coexistência, responsável pela inseparabilidade entre direitos individuais e direitos sociais no domínio supremo da Constituição. (HORTA, p. 87).

A despeito do exposto, o advento do Estado Social e maximização das suas funções falharam em evitar a eclosão de governos autoritários e ditatoriais. A Alemanha Nazista, a Itália Fascista, a Espanha Franquista, Portugal Salazarista e o Estado-Novo Brasileiro eram exemplos de Estados Sociais, porém, antidemocráticos. (BONAVIDES, p. 2008, 70). O Estado Social, de forma similar aos governos absolutistas, de tão intervencionista, passou a cercear os direitos fundamentais de primeira geração, tão caros à história da humanidade. Esse macro Estado foi duramente criticado por Bonavides, o qual percebeu que após a concepção dos direitos fundamentais sociais, ocorreu um erro de ordem interpretativa: os direitos individuais liberais e os direitos sociais foram compreendidos como mutuamente excludentes, como se a valorização da sociedade implicasse na diminuição do valor dos direitos e liberdades individuais do homem. Para evitar a repetição das atrocidades históricas cometidas no período da Segunda Grande Guerra, que ocorreram pelo fortalecimento exacerbado das funções estatais, o Estado Democrático de Direito surgiu em contraposição ao Estado Social. Os direitos fundamentais sejam eles econômicos, sociais, culturais e humanos ou direitos civis e políticos devem ser concebidos como um “todo” indivisível, devendo ser interpretados em suas múltiplas dimensõs (QUEIROZ, 2006, p. 94). São direitos interdependentes, pois um direito fundamental não pode ser garantido em detrimento de outro, justamente

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porque ele deriva e subsiste da observância dos demais. Logo, conclui-se que: Sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais, enquanto que, sem a realização dos direitos civis e políticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos sociais e culturais carecem de verdadeira significação. Não há mais como cogitar da liberdade divorciada da justiça social, como também infrutífero pensar na justiça social divorciada da liberdade. Em suma, todos os direitos humanos constituem um complexo integral, único e indivisível, em que os diferentes direitos estão necessariamente inter-relacionados e são interdependentes entre si. (PIOVESAN, 1997, p. 161).

Foi tão-somente a partir da teorização de um Estado Democrático e de Direito que se admitiu que os direitos de primeira e segunda dimensão podiam conviver em um mesmo ordenamento jurídico, em um plano de igualdade. Afinal de contas, compete ao Estado garantir os direitos civis e políticos dos seus governados, sem, no entanto, se descurar de atuar na proteção dos direitos sociais. A proteção do homem e da sua dignidade depende dessa conciliação. Os direitos de terceira geração foram concebidos no Estado Democrático de Direito e dizem respeito aos direitos fundamentais que não pertencem a um indivíduo em específico, mas a toda coletividade. Esses direitos foram pensados a partir dos ideais de fraternidade e solidariedade, como o direito ao meio ambiente sustentável, o direito do consumidor e até o direito da autodeterminação dos povos. 7 Assim, é lógica a conclusão que leva a crer que o Estado Democrático de Direito conseguiu conciliar os direitos fundamentais do Estado de 7 As teorias constitucionais mais recentes tratam dos direitos fundamentais de quarta e quinta geração. Essas classificações, conquanto, extrapolam as finalidades desse trabalho.

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Direito Liberal e do Estado Social, na medida em que ambos, considerados isoladamente, foram incapazes de atender às exigências populares. O conceito de Estado Democrático de Direito, supera, no entanto, a simples junção dos conceitos supramencionados e se coaduna com uma nova definição baseada na idéia de soberania popular. O próprio Texto Constitucional de 1988 determina que a democracia pretendida pelo Estado Democrático de Direito deriva de um processo de convivência social, numa sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, III). Para tanto, o poder emana do povo e deve ser realizado em proveito do próprio povo, ainda que por representantes eleitos. A democracia é participativa, porque o povo é parte ativa no processo decisório e nos atos do governo; é pluralista, porque respeita a manifestação de idéias antagônicas, culturas diferentes e etnias variadas; pressupõe, no mais, o diálogo e a convivência pacífica entre pensamentos diferentes na sociedade. (SILVA, 2005, p. 119-120). A terceira geração de direitos fundamentais, típicos das democracias pluralistas da modernidade, dizem respeito a direitos metaindividuais, seja porque protegem os indivíduos como seres humanos, seja porque os protegem enquanto participantes de um grupo social específico. Os direitos metaindividuais também são conhecidos por difusos, justamente por se remeterem a pessoas indeterminadas. (VILANI, 2002. p. 58). Inobstante os direitos fundamentais sociais, como o direito à saúde, à educação, ao trabalho digno, ao transporte público de qualidade, à cultura e à previdência social, possuírem previsão expressa no Texto Constitucional brasileiro, ainda hoje, depois de vinte e seis anos de Constituição democrática, esses direitos demandam um esforço maior do Estado para serem efetivados, pois ao contrário do que acontece com os direitos e liberdades individuais, os direitos sociais, comumente, demandam uma prestação positiva do Estado, o que implica em gastos para o erário público. Sobre a

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temática, Ingo Wolfgang Sarlet ensina: O Constituinte de 1988, além de ter consagrado expressamente uma gama variada de direitos fundamentais sociais, considerou todos os direitos fundamentais como normas de aplicabilidade imediata. Além disso, já se verificou que boa parte dos direitos fundamentais sociais (as assim denominadas liberdades sociais) se enquadra, por sua estrutura normativa e por sua função, no grupo dos direitos de defesa, razão pela qual não existem problemas em considerá-los normas auto-aplicáveis, mesmo de acordo com os padrões da concepção clássica referida. (SARLET, 2009, p. 267).

Ressalta-se, todavia, que os direitos fundamentais sociais e as normas programáticas possuem aplicabilidade imediata quanto a sua proteção, gerando inclusive direitos subjetivos para os cidadãos. Contudo, a autoaplicação dos direitos fundamentais pelo Estado não se refere à prestação desses direitos, na medida em que sua execução é diferida no tempo. Por Estado Democrático de Direito entende-se o resultado das revoluções que ocorreram ao longo da história da humanidade, que tinham por principal demanda o reconhecimento de direitos como fundamentais, sem os quais a dignidade da pessoa restaria comprometida. É, por fim, modelo de Estado que conciliou os direitos de primeira, segunda e terceira dimensão e tratou-os como iguais e interdependentes, uma vez que é um Estado de Direito, pois prevê uma série de direitos e garantias individuais, que salvaguardam as liberdades civis e políticas de seus governados. Ademais, é Democrático, na proporção em que lançará mão de recursos para promover a igualdade de acesso a bens a todos os seus cidadãos, propõe-se a diminuir as desigualdades existentes e a promover uma vida saudável e digna.

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4. PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL O que se vislumbrou nos tópicos antecedentes foi a construção histórica de todo o arcabouço teórico concernente aos direitos fundamentais, remontando num primeiro momento a conceituação doutrinária do termo, a sua consolidação que ocorreu de modo coetâneo à promulgação das Constituições, além da compatibilidade da noção de direitos inerentes à condição humana e à proteção decorrente da previsão dessa categoria de direitos no texto Constitucional. Nesta senda, procurou-se conceber os direitos fundamentais como condicionantes de uma vida condigna e correspondente aos valores máximos de uma sociedade. A partir do descrito, procurou-se averiguar a evolução do conceito de direitos fundamentais nos paradigmas do Estado Liberal, Social e Democrático de Direito. Nesse sentido, é imperiosa a análise do princípio objeto de estudo deste artigo, o da proibição de retrocesso social, a sua relação com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, sem se descurar de perquirir sobre a sua abrangência, limite e auxílio na edificação de uma sociedade mais justa. 4.1 Regras e Princípios Antes de enumerar algumas das possíveis classificações entre as espécies de normas jurídicas, Canotilho nos ensina que a distinção entre regras e princípios não é tarefa das mais simples no campo da teoria do direito. Em síntese, para o autor, as normas jurídicas podem ser categorizadas de acordo com: a) o grau de abstração, posto que os princípios são normas mais abstratas que as regras; b) o grau de determinabilidade, haja vista que no caso concreto os princípios carecem de medidas concretizadoras, enquanto as

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regras podem ser imediatamente aplicadas; c) o caráter de fundamentalidade no sistema das fontes do direito, pois os princípios são normas de natureza fundamental no ordenamento jurídico devido a sua posição hierarquicamente superior no sistema de fontes do direito; d) a proximidade com a idéia de direito, pois os princípios são juridicamente vinculantes, já as regras podem ser juridicamente vinculantes ou serem meramente funcionais; por fim, e) a natureza normogenética dos princípios, vez que os princípios são fundamentos das regras. (CANOTILHO, 2003, p. 1.160-1.161). Contudo, para o autor lusitano, a classificação só é possível se duas questões fundamentais forem respondidas, a saber: os princípios têm uma função retórica ou são normas de conduta? Existe um denominador comum entre princípios e regras, para que depois seja feita uma distinção qualitativa? (CANOTILHO, 2003, p. 98). Quanto à primeira questão, responde Canotilho, que os princípios podem desempenhar função argumentativa e revelar normas que não são expressas em nenhum enunciado legislativo. No que se refere à segunda ponderação, dispõe que há distinção qualitativa entre princípios e regras, sendo os primeiros, normas impositivas de uma otimização, que possuem vários níveis de concretização e que as últimas são normas que prescrevem uma exigência de cunho imperativo. Nesses termos, justamente por serem mandados de otimização, os princípios podem ser balanceados, conforme seu peso e a ponderação de outros princípios conflitantes, na medida em que as regras devem ser cumpridas de acordo com suas prescrições. Isso ocorre, pois enquanto a convivência de dois princípios é meramente conflitual, a distinção entre duas regras é antinomia. (CANOTILHO, 2003, p. 97). Ainda sobre o tema, na obra “Os princípios jurídicos no Estado Democrático de Direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação”, Marcelo Galuppo, retoma e sistematiza os estudos no campo da teoria do direito, que tratam

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da natureza e do conceito dos princípios jurídicos, principalmente no que se refere ao reconhecimento da força vinculante dos mesmos. Notadamente, o objetivo deste trabalho não é abordar de modo completo e definitivo os argumentos e falácias das teorias do direito que se ocupam da distinção entre normas e princípios. Utilizar-se-á neste escrito o conceito elaborado por Alexy, suficiente para se tirar as conclusões pretendidas. Os princípios serão aqui entendidos como mandados de otimização ou espécies de normas jurídicas que determinam que algo seja realizado na melhor medida possível. De acordo com o autor: Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais, como também das jurídicas [...]. De outro lado, as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então deve-se (sic) fazer exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras contêm determinações no âmbito fático e juridicamente possível (GALUPPO, 1999, p. 192).

Cumpre perquirir, que consonante à teoria de Alexy, as normas jurídicas podem ser classificadas em regras e em princípios, o que implica que ambos são enunciados jurídicos que possuem uma diferença estrutural, pois as regras descrevem comportamentos sem se ocupar com a finalidade e os princípios descrevem finalidades, mas não dispõem, necessariamente, sobre os meios necessários para a consecução dos fins pretendidos. (COUTINHO, 2007, p. 109). Além do mais, anota-se outra diferença fundamental entre as espécies de normas jurídicas, quanto a sua aplicação numa situação de fato. Pois

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bem, na análise de um caso concreto, em que duas ou mais regras jurídicas contradizem, uma das normas deverá ser afastada, indispensavelmente. Afasta-se uma regra para que a outra possa prevalecer. Os princípios, ao revés, por serem mandos de aprimoramento, devem ser cumpridos na melhor medida possível. Assim, havendo colisão entre princípios num caso concreto, deve-se utilizar o método da ponderação, ou seja, recorre-se a uma tentativa de conciliá-los. (COUTINHO, 2007, p. 109). A distinção entre regras e princípios e a conceituação dos últimos é de essencial relevância para esse escrito, na medida em que o objeto dessa discussão é a interpretação do princípio da proibição do retrocesso social, como forma de maximização da efetividade dos direitos fundamentais sociais. 4.2 O Princípio da Proibição do Retrocesso Social Os princípios da democracia social e econômica remontam o Princípio da proibição do retrocesso social. É o que elucida Canotilho, responsável por delimitar o conceito e dispor sobre a aplicação do princípio objeto deste trabalho. Segundo o autor, os direitos sociais e econômicos já conquistados, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. Desta forma, a diminuição de direitos adquiridos pelo legislador, configura violação ao princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural. Destarte, o reconhecimento dessa proteção é um limite jurídico a atividade do legislador, que deverá agir de forma a continuar garantindo os direitos já concretizados. (CANOTILHO, 2003, p. 469). Diante do exposto, pode-se concluir que às normas que se destinem, portanto, a diminuir as conquistas sociais serão aplicadas sanções de inconstitucionalidade.

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Complementando o supra-exposto, a doutrinadora Cristina Queiroz, na obra “O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais: princípios dogmáticos e prática jurisprudencial”, dispõe que a proibição de retrocesso social determina que uma vez consagradas legalmente determinadas prestações sociais, o legislador não pode eliminá-las sem oferecer alternativas ou compensações ao cidadão, pois concretizado o direito fundamental social, o dever de legislar se transfigura num dever de proteção, ou seja, no dever de não suprimir ou restringir o direito social efetivado. (QUEIROZ, 2006, p. 70). De outro modo diz-se que, o legislador infraconstitucional não pode deliberadamente dispor dos direitos fundamentais sociais concretizados por meio de legislações ordinárias, sendo proibido o retorno ao estado anterior à efetivação dos mesmos. Diante do exposto, repisa-se que os direitos fundamentais sociais, seja qual for a classificação em que se queira enquadrá-los, devem ser concebidos como direitos fundamentais, de maneira que gozam do regime jurídico dispensado a tal espécie de direitos, ou seja, não apenas são considerados como cláusulas pétreas do Texto Maior, mas também devem ser considerados como fundamentos de todo o ordenamento jurídico, servindo tanto de norte para a sua interpretação quanto de limites à ação do Estado (devendo tal controle ser exercido através do controle de constitucionalidade dos atos administrativos e normativos). Tal idéia fica bastante clara nesta passagem de J. J. Gomes Canotilho: A constituição é uma lei dotada de características especiais. Tem um brilho autônomo expresso através da forma, do procedimento de criação e da posição hierárquica das suas normas. Estes elementos permitem distingui-la de outros atos com valor legislativo presentes na ordem jurídica. Em primeiro lugar, caracteriza-se pela sua posição hierárquico-normativa superior relativamente às outras normas do ordenamento jurídico. Ressalvando algumas particularidades do direito comunitário, a su-

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REVISTA DE DIREITO perioridade hierárquico-normativa apresenta três expressões: (1) as normas constitucionais constituem uma lex superior que recolhe o fundamento de validade em si própria (autoprimazia normativa); (2) as normas da constituição são normas de normas (norma enormarum) afirmando-se como uma fonte de produção de outras normas (leis, regulamentos, estatutos); (3) a superioridade normativa das normas constitucionais implica o princípio da conformidade de todos os atos dos poderes públicos com a Constituição. (CANOTILHO, 1996, p. 1131).

Nesse apanágio, o poder legislativo, conforme apontado pela autora Cristina Queiroz, tem o dever de proceder com a configuração e a posterior conformação dos direitos fundamentais sociais. (QUEIROZ, 2006). Em decorrência dessa conformação, faz-se necessário o destaque da cumplicidade existente entre o princípio da proibição do retrocesso social e o princípio da segurança jurídica, pois o conjunto de leis de um Estado Democrático de Direito deverá encontrar fundamento numa estabilidade das relações jurídicas. Devendo dessa estabilidade, inobstante, decorrer a confiança que o cidadão deposita nos órgãos estatais criados para acautelar os seus interesses. Por conseguinte, o princípio da segurança jurídica impõe a proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, contra medidas de caráter retrocessivo, que tenham por finalidade suprimir ou reduzir posições jurídicas já implementadas. Um Estado Democrático de Direito é, portanto, um Estado da segurança jurídica, visto que pretende vedar o retrocesso dos direitos adquiridos pelo cidadão (SARLET, 2006, p. 294). É preciso estabelecer um padrão mínimo de conexão entre o cidadão e a segurança jurídica, para que se configure uma confiança entre o titular de direitos fundamentais e a ordem constitucional vigente. A proibição de adoção de medidas retrocessivas pelo Estado, enquanto princípio implícito da Constituição de 1988 deve ser ponderada numa

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perspectiva progressiva dos direitos fundamentais sociais, posto que, tais direitos, principalmente os contidos em normas constitucionais programáticas, têm a sua efetivação diferida no tempo, além de dependerem de recursos financeiros para a sua ultimação. Assim, já que não são realizados somente pela previsão na Constituição, os direitos sociais devem ser interpretados progressivamente, de forma a ampliar as garantias já titularizadas pelos cidadãos. A execução dos direitos fundamentais sociais não depende exclusivamente da institucionalização de uma ordem jurídica ou da tomada de uma decisão política, individualmente concebida, pelos órgãos do governo, mas da conquista de uma ordem social baseada na justa distribuição dos bens, que somente poderá ser auferida de forma progressiva. (QUEIROZ, 2006, p. 26). Outro questionamento importante, quando o assunto é a proibição de retrocesso social, é o conceito e extensão do denominado núcleo essencial dos direitos fundamentais, que está intimamente relacionado não somente ao princípio da proibição do retrocesso social, mas também ao princípio da dignidade da pessoa humana, apesar de com ele não se confundir. O núcleo essencial dos direitos fundamentais define-se pela afinidade existente entre o direito fundamental e a própria dignidade da pessoa humana, pois, levando-se em conta que os direitos fundamentais surgiram para garantir que as pessoas pudessem viver com dignidade, sendo imprescindível a realização dos mesmos, ao se suprimir um direito ao ponto de comprometer a dignidade daquele que o titulariza, o direito fundamental inexiste, afetando, assim, o seu núcleo essencial. (COUTINHO, 2007, p.135). A dignidade da pessoa que é diretriz jurídico-material para a definição do núcleo essencial dos direitos fundamentais, por isso, diz-se que, este mínimo é garantido para assegurar que a pessoa exercite suas liberdades

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fundamentais. (SARLET, 2006, p. 326). Nesse cenário, sustenta Gomes Canotilho que o núcleo essencial dos direitos sociais já realizados pelo legislador está constitucionalmente garantido e protegido contra medidas estatais que resultem na sua anulação, revogação ou aniquilação. (SARLET, 2006, p. 319). O legislador infraconstitucional não pode se eximir de efetivar os direitos sociais com previsão constitucional, nem tão pouco adotar medidas de caráter retrocessivo contra os direitos já concretizados, de modo que o núcleo essencial do direito fundamental seja suprimido. A dignidade da pessoa humana configura limite para a atuação do Estado, que ao erigir, por razões históricas, determinado direito ao patamar de direito fundamental, deverá se organizar de tal modo que o núcleo essencial desse direito não seja abolido. O princípio do núcleo essencial e a definição de mínimo existencial relacionam-se intrinsecamente com o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, segundo Ricardo Lobo Torres, o mínimo existencial pode ser conceituado como: “um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas” (TORRES, 1999, p. 141). Deste modo, o mínimo existencial pode ser entendido como um padrão básico de implementação de direitos fundamentais sociais, de forma a não comprometer a dignidade da pessoa humana. Em razão disso, deverá o Estado dispor de meios para garantir a manutenção desse mínimo, para não incorrer na inefetividade do seu projeto Constitucional. Nos dizeres de Otávio Henrique Martins Port: O conteúdo mínimo ou núcleo essencial dos direitos fundamentais é, [...], a dignidade da pessoa humana. Esta

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João Paulo Reis de Deus é o denominador comum de todos os direitos fundamentais, ao qual todos eles podem ser reduzidos. Ou seja, a dignidade da pessoa humana é um princípio de natureza absoluta, devendo ser preservada e respeitada por todos, constituindo o piso mínimo ao qual estão inexoravelmente adstritos todos os direitos fundamentais. A pessoa deve ser vista como fundamento primeiro e último do Estado, conferindo a dignidade da pessoa humana uma unidade de sentido e de valor aos direitos fundamentais. (PORT, 2005, p. 30).

Diante da citação supra, é possível concluir que os direitos que foram erigidos ao patamar de fundamentais são aqueles eleitos pelo legislador originário como indispensáveis ao exercício pelo cidadão de uma vida digna. Nesse sentido, uma ação ou omissão do Poder Público que comprometa o direito fundamental ao ponto de atingir a dignidade da pessoa que o titulariza configurará o desrespeito aos limites do núcleo essencial desse direito fundamental. 4. 2. 1 Limites do Princípio da Proibição de Retrocesso Social No concernente aos limites do princípio da proibição de retrocesso social, apesar do consenso existente na doutrina e na jurisprudência quanto ao seu status de princípio fundamental, não pode o mesmo ser interpretado de forma absoluta. Conforme exposto no início deste capítulo, os princípios são mandados de otimização, por isso diante de uma eventual colisão entre o princípio da proibição do retrocesso social e outro princípio será preciso ponderá-los na análise do caso concreto. Ora, determina Alexy, que somente nas especificidades do caso concreto é que os prejuízos decorrentes do descumprimento de um dos princípios em colisão serão analisados. (GALUPPO, 1999, p. 194). No mais, dentre as justificativas apontadas por Ingo Wolfgang Sarlet,

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o princípio que proíbe o retrocesso em matéria de direitos fundamentais sociais não pode ser avaliado como regra geral, pois coloca em risco a autonomia do Poder Legislativo, vez que pode reduzir a função legiferante a uma mera execução das decisões constitucionais. Fora que, uma leitura do princípio sem qualquer restrição, acabaria por elevá-lo a um grau superior aos direitos fundamentais que não os sociais, sendo que, esses últimos podem ser restringidos pelo legislador, desde que respeitado seu núcleo essencial. A interpretação irrestrita do princípio atribuiria aos direitos sociais uma proteção maior do que os direitos de liberdade, o que, como visto nos tópicos anteriores, é inadmissível em um Estado Democrático de Direito. Por fim, importa esclarecer que, caso o princípio não fosse relativizado, as leis infraconstitucionais que efetivaram direitos sociais, seriam equiparadas as leis constitucionais, que possuem limites materiais de alteração. (SARLET, 2006, p. 321). Portanto: A dinâmica das relações sociais e econômicas, notadamente no que concerne às demandas de determinada sociedade em matéria de segurança social, e por via de conseqüência, em termos de prestações sociais asseguradas pelo poder público, por si só já demonstra a inviabilidade de se sustentar uma vedação absoluta de retrocesso em matéria de direitos sociais. (SARLET, 2006, p. 324).

O trecho acima traz a lume a compreensão que a variação e instabilidade das necessidades públicas e até mesmo da capacidade do Estado de promover determinado serviço social, não permitem a aplicação absoluta do princípio da proibição de retrocesso social. Afinal, uma garantia social que um dia foi indispensável para a sociedade em determinada época, pode não o ser em outro período, posto que as necessidades prementes são, também, mutáveis. O exemplo traçado por Carlos Mardem Cabral Coutinho se coaduna

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com a idéia acima exposta. O Brasil, que nas últimas décadas tinha uma população essencialmente jovem, demandava prestações de medidas como a expansão do ensino público fundamental e médio. Contudo, de modo similar ao que vem acontecendo nos países europeus, em alguns anos a quantidade de idosos na população brasileira crescerá e a taxa de natalidade diminuirá, o que não obstará que o Estado reduza os gastos com a educação básica e média e passe a investir mais em outra área social, como a saúde e a previdência. (COUTINHO, 2007, p. 134). Cumpre aduzir, conquanto, que a despeito das justificativas mencionadas, é relevante pontuar que a redução das conquistas sociais realizadas, por meio de legislações infraconstitucionais, não pode acontecer de forma pura e simples. O núcleo essencial do direito social garantido e efetivado a partir da produção legislativa está constitucionalmente protegido, de tal sorte que, a interpretação restritiva do princípio da proibição de retrocesso social está limitada ao núcleo essencial do direito social já efetivado. (SARLET, 2006, p. 321). Finalmente, para que não se viole o princípio da proibição de retrocesso social, a adoção de uma medida de supressiva ou reducionista deve sempre contar com uma premissa com suporte na Constituição e salvaguardar o núcleo essencial do direito fundamental concretizado, principalmente no que concernir às prestações materiais indispensáveis à dignidade da pessoa humana. Além disso, os órgãos estatais não poderão se descurar de considerar os demais princípios constitucionais, como o da confiança e da segurança jurídica. Com a finalidade de ilustrar a preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais como forma de se garantir o princípio da proibição de retrocesso social, pode-se dar continuidade ao exemplo supra exposto, uma vez que, aumentadas as demandas sociais em prestações como saúde

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e previdência social e diminuídas a necessidade de investimento em educação infantil, em razão da diminuição da taxa de natalidade e do aumento da expectativa de vida, é natural que haja uma redução dos investimentos do Poder Público no segmento educação. Todavia, cumpre advertir que, essa redução não poderá comprometer o direito social educação ao ponto de suprimir ou abolir esse direito, em outras palavras, o núcleo essencial deverá ser preservado, pois o seu descumprimento implica na nulificação do próprio direito fundamental social, a educação. 4.3 Princípio da Proibição do Retrocesso Social x Princípio da Reserva do Possível Em conformidade do que fora discutido nos tópicos precedentes, os direitos fundamentais sociais dependem de prestações positivas do Estado, e por isso, diferente dos direitos civis e políticos não são autoaplicáveis, em decorrência da sua execução diferida no tempo. Isso significa que, além de prever e classificar tais direitos como fundamentais, o Estado disporá de meios para efetivá-los, a luz do disposto no Texto Constitucional. Nessa condição, assevera Cristina Queiroz: [...] Concretamente, a dependência desses direitos “dos recursos disponíveis”, querendo com isso acentuar a dependência dos direitos fundamentais sociais dos “recursos econômicos” existentes e, designadamente, relevar a necessidade da sua cobertura orçamental ou financeira. No mínimo, uma qualificação que se traduz no reconhecimento de que a inexistência de recursos econômicos força os poderes públicos a fazer menos do que aquilo que em princípio se encontravam obrigados a fazer. (QUEIROZ, 2006, p. 99).

O princípio da reserva do possível é um dos que mais se relaciona

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com o da proibição de retrocesso social, na medida em que o primeiro trata das possibilidades reais do Estado em concretizar e promover os direitos fundamentais sociais enunciados pela Constituição. Logo, deduz-se que, os direitos de segunda geração dependem da existência de recursos financeiros para as políticas públicas destinadas a sua efetivação. Que os direitos fundamentais sociais serão implementados paulatinamente, não sendo possível que as pretensões constitucionais sejam concretizadas todas ao mesmo tempo é algo irrefutável, vez que as políticas públicas dependem de recursos financeiros para a sua ultimação. Contudo, ainda que se tolere um avanço gradual dos direitos de natureza prestacional, não se admite a retrocessão dos direitos sociais já alcançados. Os direitos sociais, econômicos, humanos e culturais dependem e só existem quando houver disponibilidade financeira por parte do Estado (CANOTILHO, 2003, p. 481). Em vista disso, o princípio da reserva do possível implica que as prestações estatais, em termos de efetivação dos direitos fundamentais sociais, dependem, necessariamente, da existência de recursos financeiros. Não há que se duvidar, nesse sentido, que o princípio da reserva do possível limita a efetividade dos direitos fundamentais sociais e pode ser utilizado como matéria de defesa do Estado que se escusa a efetivar os direitos fundamentais de segunda geração. Sobre o assunto dispôs o já mencionado Jayme Benvenuto Lima Júnior: A excessiva importância dada aos recursos financeiros, na verdade tem impossibilitado à realização de muitos direitos humanos, econômico, sociais e culturais, mediante a acomodação do Estado, nos seus diversos níveis, as situações de vulnerabilidade de amplos setores sociais. O argumento da mera escassez de recursos financeiros, usado com freqüência pelos administradores públicos, resulta na postergação da realização prática dos direi-

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REVISTA DE DIREITO tos humanos, econômico, sociais e culturais. (LIMA JR., 2001, p.101).

À vista das ponderações realizadas, o argumento de escassez de recursos financeiros para a concretização dos direitos sociais, econômicos, humanos e culturais não pode ser utilizado para restringir o cumprimento dos direitos fundamentais sociais a uma questão meramente orçamentária. Dentre os críticos à aplicação do princípio da reserva do possível, encontra-se Andréas Krell, que defende a impossibilidade de se importar para o Brasil uma teoria desenvolvida na Alemanha, um país no qual os direitos sociais já atingiram um alto nível de realização (COUTINHO, 2007, p. 126). O autor, portanto, só faz corroborar com a tese que os direitos fundamentais sociais, em que pese à dependência de recursos materiais para sua realização, não podem ficar ao alvedrio do Poder Público, que pode se escusar em realizá-los sob a justificativa de ausência de recursos financeiros. Outra desaprovação realizada pela doutrina, quando da utilização injustificada e em demasia do princípio da reserva do possível, diz respeito ao fato que os entes da federação possuem suas fontes de receitas com estipulação da própria Constituição, ou seja, as verbas destinadas à efetivação das políticas públicas estão previstas no texto constitucional. Além do que, a ineficiência das prestações do Estado muitas vezes está ligada à má gestão das verbas existentes (COUTINHO, 2007, p. 126). Sob essa perspectiva, depreende-se que, a justificativa para a utilização do princípio da reserva do possível estará condicionada ao grau em que o Estado esteja implementando os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos e não para justificar a sua omissão em concretizá-los. O princípio da reserva do possível não poderá, ademais, atentar contra a dignidade da pessoa humana (COUTINHO, 2007, p. 128-129). Isso posto, o mencionado

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princípio encontra verdadeiro limite na concretização mínima dos direitos fundamentais, que não podem ser diminuídos a um patamar aquém do já implementado pelas políticas públicas estatais. O Supremo Tribunal Federal se manifestou a respeito dos limites da aplicação do princípio da reserva do possível na Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45. Nesta decisão, o ministro Celso de Mello fundamentou as razões de seu despacho de modo coetâneo aos argumentos apresentados no presente trabalho, vejamos: [...] É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese - mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.8

Por conseguinte, com base no posicionamento jurisprudencial supra, é verdadeira a afirmação que o Supremo Tribunal Federal, órgão político e jurídico máximo do Poder Judiciário brasileiro, responsável precipuamente pela guarda da Constituição Federal de 1988, adota o posicionamento defendido neste tópico, a saber: os direitos fundamentais sociais dependem, 8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45. Rel: Min. Celso de Mello. Publicado no D.J.U em 04 de mai. 2004.

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quase sempre, de prestações estatais e estão subordinados à capacidade econômico-financeira do Estado, justamente por demandarem gastos por parte do Poder Público. No entanto, não poderá o Estado, evocar de modo a frustrar o estabelecimento de condições mínimas existenciais de seus cidadãos o princípio da reserva do possível, quando o referido princípio importar na nulificação ou aniquilação de direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. Importa destacar, em conclusão do que foi explicado que, estabelece-se a relação entre o princípio da não retrocessão e da reserva do possível, na proporção em que o Estado deverá maximizar a efetividade dos direitos sociais, dentro dos limites da sua possibilidade. O Estado além de garantir os direitos fundamentais sociais na medida do possível, não poderá, sobremaneira, atuar de forma a abolir aqueles direitos já efetivados. Por mais que não seja o objetivo deste trabalho apresentar uma solução para a aplicação em demasia do princípio da reserva do possível pelo Poder Público, é importante mencionar que o Estado deverá demonstrar que as verbas para a implementação dos direitos fundamentais sociais não estão disponíveis porque estão sendo utilizadas para outros fins públicos. Sem a comprovação, é lícita a intervenção do Poder Judiciário para garantir efetividade da Constituição e mínimo existencial para a manutenção da integridade do indivíduo. 4.4 Princípio da proibição do Retrocesso Social como meio de cumprir o projeto social Democrático da Constituição de 1988 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 possuía dois objetivos bem delineados, o primeiro diz respeito à superação do modelo constitucional anterior, de bases ditatoriais, no qual os direitos civis e políticos foram duramente restringidos e o segundo consistia em erigir os

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direitos fundamentais, sejam eles individuais ou sociais, como verdadeiros condicionantes da democracia que se pretendia inaugurar. Nos anos que antecederam a redemocratização lenta e gradual do Brasil, os direitos fundamentais, tais como definidos pela Constituição atual, praticamente inexistiam, enquanto os direitos individuais eram diariamente violados pela censura e pela impossibilidade de participação na vida cívica do país, os direitos sociais ocupavam posição periférica e não constituíam fundamentos essenciais do governo imposto. Na atual conjuntura, no que se refere à proteção dos direitos e garantias individuais e a superação do modelo militar autoritário, ao que parece, a Constituição Federal foi bem sucedida ao promover, dentre outros direitos: a cidadania e o pluralismo político como fundamentos da república (art. 1º, III, da CF), a livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV, da CF), a liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI, da CF), a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX, da CF), a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (art. 5º, X, da CF). Contudo, no que tange os direitos fundamentais sociais, parece haver um consenso que a promessa constitucional resta pendente de concretização. Desta maneira, o que se buscou foi demonstrar que a Constituição possui funções para além da organização do Estado, pois os direitos nela previstos devem ser implementados de forma a garantir, num plano real, uma democracia efetiva. O princípio da proibição de retrocesso social é princípio que auxilia todos os destinatários da Constituição que também são seus intérpretes, vez que, os direitos sociais demandam do Poder Público uma prestação positiva, o que implica no dispêndio de recursos pelo Estado, é inadmissível que o cidadão fique vulnerável às decisões estatais que de qualquer forma supri-

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mam ou diminuam os direitos sociais já implementados, noutros termos, os direitos fundamentais sociais no Brasil ainda estão longe de alcançarem o patamar desejado pelo legislador constituinte originário. A proibição de retrocesso social, ainda que não configure princípio expresso da Constituição brasileira, pode ser entendido como princípio integrante do nosso ordenamento jurídico, a partir de um esforço interpretativo que leva em conta as previsões do próprio Texto Constitucional. Com efeito, ressalta-se que: Assim, a proibição de retrocesso assume feições de verdadeiro princípio constitucional fundamental implícito, que pode ser reconduzido tanto ao princípio do Estado de direito (no âmbito da proteção da confiança e da estabilidade das relações jurídicas inerentes à segurança jurídica) quanto ao princípio do Estado Social, na condição de garantia da manutenção dos graus mínimos de segurança social alcançados, sendo, de resto, corolário da máxima eficácia e efetividade das normas de direitos fundamentais sociais e do direito à segurança jurídica, assim como da própria dignidade da pessoa humana. (SARLET, 2006, p. 223).

O que se exige do princípio supra, é que ele passe a orientar o Poder Público que deve pautar suas ações na busca constante de efetivar os direitos fundamentais sociais. Essa idéia está diretamente vinculada à progressividade dessa espécie de direitos, que não podem ser concretizados de uma vez só, já que previsão deles não enseja na implementação dos mesmos. A regressão a situação pior, anterior a concretização ao direito fundamental é, em regra, inadmissível. Portanto, quando o Estado, no exercício das suas funções, tiver de suprimir qualquer direito fundamental social, somente poderá fazê-lo se, primeiro, não ofender o núcleo essencial do direito e nem tão pouco comprometer a dignidade da pessoa que o titulariza. Ainda assim, além desses

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limites, o Poder Público deverá justificar suas ações apresentando alguma compensação pela perda social. Nos dizeres de Canotilho, o princípio da proibição de retrocesso social relaciona-se diretamente com o núcleo essencial dos direitos sociais realizados por meio de medidas legislativas, restando inconstitucionais as medidas estatais tendentes a anular, revogar ou aniquilar o núcleo essencial destes direitos. A liberdade de conformação do legislador possui limite no núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, sobremaneira daqueles já efetivados. (CANOTILHO, 2003, p. 340). Nesses termos, acredita-se que o princípio da proibição do retrocesso social poderá orientar uma transformação efetiva da sociedade brasileira, em uma realidade em que os direitos sociais façam parte do dia-a-dia dos seus cidadãos, para que se atinja em definitivo a democracia de direito e social tão exaustivamente prevista Constituição de 1988.

5. CONCLUSÃO A dignidade da pessoa humana é fundamento e princípio previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o que implica na primazia do ordenamento jurídico pátrio pela promoção da vida condigna dos seus cidadãos, sob pena de frustrar todo o cerne do Estado Democrático de Direito que se pretendeu implementar. A relação de interdependência entre os direitos sociais e a dignidade da pessoa humana se estabelece na medida em que o próprio Estado lançará mão de meios para minimizar as desigualdades ao promover o acesso de todos aos bens e serviços que permitem que o indivíduo possa subsistir de modo compatível com os ditames Constitucionais.

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É justamente por isso, que o presente trabalho apresentou argumentos que justificassem a implementação de um princípio capaz de auxiliar a difícil tarefa que é a implementação dos direitos fundamentais sociais no Brasil, principalmente se comparados aos direitos individuais, muito em razão do alto custo para concretização daqueles. Além disso, pode-se afirmar que os direitos sociais nunca serão exauridos ou plenamente alcançados, pois o Estado sempre poderá melhorar o desempenho das prestações dos bens e serviços cujo objeto seja garantir um direito social. A despeito da dificuldade de realização desses direitos, sobretudo no concernente aos direitos fundamentais sociais como saúde (art. 196 a 200 da CF), educação (art. 205 a 214) e a segurança pública (art. 144 da CF) é possível vislumbrar no Brasil uma carência na realização do projeto social constante no Texto Constitucional atual. Por conseguinte, buscou-se nesta pesquisa situar o princípio da proibição de retrocesso social como princípio implícito no Texto Constitucional, com o fim de propor uma atividade hermenêutica comprometida com a realização progressiva dos direitos fundamentais sociais. Para tanto, colocou-se em evidência as hipóteses que o referido princípio incidiria e as situações em que seria relativizado, na medida em que nenhum princípio pode ser considerado de forma absoluta. Em suma, concluiu-se que, a indisponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado, que muitas vezes ocorre em razão da corrupção e da má gestão do dinheiro público, não pode ser invocada em defesa do governo, que deverá se empenhar no sentido de garantir os direitos sociais que possuem previsão constitucional. Esses direitos, na maioria dos casos previstos em normas constitucionais programáticas, deverão ser garantidos de forma gradual pelo Poder Público, sobremaneira pelo legislador infraconstitucional, na medida em que possuem execução diferida no tempo. De tal, ainda que não se possa compelir o Estado a substancializar os direi-

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tos sociais previstos na Constituição, o princípio da proibição de adoção de medidas de cunho retrocessivo corrobora a construção progressiva de um projeto social efetivo, além de salvaguardar a confiança que o cidadão deposita no Estado, que a princípio não poderá suprimir nem diminuir direitos sociais já conquistados.

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Recebido em 22/02/2015 - Aprovado em 11/09/2015.

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DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS: A DIFICULDADE DE EFETIVAÇÃO SOCIAL RIGHTS AND PUBLIC POLICIES: A DIFFICULTY OF REALIZATION

Jorge Irajá Louro Sodré1

1 Procurador da República. Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC. Doutorando em Direito pela PUCRS. E-mail: jisodre@gmail.com.

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Resumo: O artigo trabalha as dificuldades em efetivar os direitos sociais prestacionais mediante políticas públicas, devido a obstáculos econômicos, sociais e políticos, mesmo em um Estado Democrático de Direito como o brasileiro, onde, em tese, a posição doutrinária majoritária reconhece os direitos sociais como fundamentais ao asseguramento da dignidade da pessoa humana, reconhecendo a nota de fundamentalidade daqueles. Palavras-chave: dignidade da pessoa humana; direitos sociais; nota de fundamentalidade.

Abstract: the article works the difficulties in effecting the prestacionais social rights through public policies , due to economic, social and political obstacles , even in a democratic state such as Brazil, where , in theory , the majority doctrinal position recognizes the social rights as fundamental the assurance of human dignity , recognizing the fundamentality note of these . Keywords: human dignity ; social rights; fundamentality note.

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1. Introdução

O

mundo globalizado sofre um revés econômico de proporções ainda desconhecidas, mas definidas como catastróficas para os países sejam eles desenvolvidos ou em desenvolvimento. Aliás, são os países desenvolvidos que, neste momento, de-

monstram sua fragilidade econômica. Espanha e Portugal, antigas colônias, encontram-se à bancarrota, vivendo riscos de moratória internacional. Títulos do tesouro nacional estadunidense que até agora eram um refúgio para investidores, foram rebaixados por agências de classificação de crédito. Buscando recuperar suas economias, os estados adotam políticas de austeridade, cuja consequência, em regra, é a redução das políticas públicas sociais. Nos países do velho continente intensificam-se as discussões sobre os limites dos direitos sociais, visto a dificuldade dos estados em garanti-los devido ao desaquecimento de suas economias. Esse repensar os direitos sociais traz certa intranquilidade, pois em países em desenvolvimento, como o Brasil, já há uma natural resistência estatal em assegurá-los. Mas porque é tão difícil afirmar sua exigibilidade? O presente artigo tenciona apresentar alguns obstáculos à exigibilidade dos direitos sociais, oriundos tanto de uma doutrina jurídica que não os compreendem como verdadeiros direitos, quanto de uma concepção vetusta de gerenciamento público, onde as decisões estão adstritas à vontade de técnicos, sem participação da comunidade. Nesse sentido, primeiro afirma-se a posição dos direitos sociais prestacionais como direitos de cidadania, na construção de uma boa sociedade. Após, traz-se as dificuldades da efetivação desses direitos mediante políticas públicas sociais. Ao cabo, analisando o direito humano à alimentação adequada e sua concretização no sistema político e jurídico brasileiro, ressalta-

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-se a possível transformação da gerência pública brasileira, com a busca de uma nova relação entre estado e sociedade, através de canais legítimos de interlocução.

2. Desenvolvimento 2.1 Os direitos sociais prestacionais como direitos de cidadania Consequência do horror promovido durante a 2ª grande guerra, o “mundo” do direito alterou seus paradigmas, admitindo a coexistência de regras e princípios no interior do ordenamento jurídico, tendo a Carta das Nações Unidas (26.6.1945) afirmado a crença na dignidade da pessoa humana2. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10.12.1948, em seu art. I,3 reconduziu-se à matriz kantiana, centrando-se na autonomia4 e no direito de autodeterminação da pessoa humana5. 2 A dignidade humana como “reação” aos horrores e violações perpetrados na Segunda Guerra Mundial é, nesses textos, digna de nota, mas também importa destacar a dimensão prospectiva da dignidade, apontando para a configuração de um futuro compatível com a dignidade da pessoa. HÄBERLE, Peter. A dignidade humana com fundamento da comunidade estatal. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e Pedro Scherer de Mello Aleixo. In: Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, org. Ingo Wolfgang Sarlet Porto Alegre: do Advogado, 2005, p. 91. 3 Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade. 4 A dignidade é aquilo que faz com que um ser humano seja uma pessoa humana, e isso não pode ser questionado. Essa qualidade da pessoa faz com que o ser humano seja uma pessoa racional, então livre e autônoma [...].MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana...ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central, trad. Rita Dostal Zanini. In Dimensões da dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2005.op. cit., p. 68. 5 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana, construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005 p. 21.

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Não obstante, autonomia e autodeterminação não significam egoísmo ou individualismo, pois o viver comunitário traz ínsito um dever para com o próximo6. Por essa razão, o Constituinte brasileiro, ao incluir como princípio fundante do sistema jurídico pátrio a dignidade da pessoa humana, o fez a colocando no mesmo patamar da cidadania, definindo como objetivos da nação a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, promovendo-se o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Nesse escopo, a participação da pessoa humana na vida comunitária deve ter como pressuposto a liberdade de atuar e o dever de responsabilidade pelos rumos escolhidos para a vida comum, constituindo-se em obrigação do Estado o respeito à dignidade do indivíduo7, sendo evidente a conexão da dignidade humana com o direito fundamental de liberdade, impondo ao Estado e à sociedade, em proteção da dignidade da pessoa humana, obrigações positivas e negativas para uma “coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal”.8 Contudo, a pessoa humana somente será seu próprio senhor ao possuir os recursos necessários à sua autodeterminação. Sendo a dignidade da pessoa humana uma qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada 6 Igualmente clave es reconocer que una sociedad donde nadie es rechazado y se trata a todos com idéntico respeto, a todos se les concede el status de fines em sí mismos y, por tanto, todos son capaces de alcanzar su más completo potencial humano. Además, la idea comunitária básica – tenemos derechos individuales inalienables y responsabilidades sociales para com los demás- se sustenta em el mismo principio báscio: poseemos al mismo tiempo el derecho a ser tratados como fines y somos llamados a tratar a los demás y a nuestras comunidades del mismo modo. ETZIONI, Amitai. La tercera via hacia una buena sociedad. Propuestas desde el comunitarismo. Madrid: Editora Trotta, 2001, p. 17. 7 BENDA, Ernest. El Estado Social de Derecho. In: BENDA et al. Manual de Derecho Constitucional. Traduzido por Antônio López Pina. Madrid: Marcia Pons, 1991, p. 126. 8 SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2ª ed, São Paulo: Malheiros, 2006, p. 69.

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ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, a sua liberdade positiva exige do Estado a tutela das condições existenciais mínimas à autodeterminação, pois a autodeterminação exige direitos à liberdade e recursos materiais, exige tanto a proteção contra a violação da esfera privada, quanto uma dotação suficiente de bens básicos que possibilite ao menos uma vida minimamente autônoma, protegida contra exploração e humilhação pelo arbítrio alheio. [...] A ausência de recursos materiais condena à coisificação.9

Ainda, nas palavras de Kersting10: Face a essa dependência operacional do direito da liberdade da posse suficiente de bens materiais, uma sociedade comprometida com a liberdade deve dotar seus cidadãos de uma correspondente renda substitutiva no caso de incapacidade de prover o seu sustento, não importa em virtude de quais causas. A obrigação à realização do estado do Direito, inerente aos direitos humanos, produz, a partir de si mesma, a obrigação à realização do estado de bem-estar social

Desta feita, possui o indivíduo um direito fundamental a ações positivas fáticas para garantia de “las condicciones mínimas de existencia [...]”11., constituindo-se em um direito fundamental que “sem ele cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais de

9 KERSTING, Wolfgang. Liberdade e Liberalismo. Trad Luís Marcos Sander. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005, p. 45. 10 KERSTING, Wolfgang. Universalismo e Direitos Humanos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 69. 11 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 195.

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liberdade”12. Mas o que são esses direitos e quem deve prestá-los? No final da idade moderna, movimentos revolucionários (independência das colônias estadunidenses do jugo inglês e a revolução francesa) permitem a concretização de deveres de abstenção por parte do estado frente à vida privada dos indivíduos pertencentes a uma comunidade. Não obstante, na proteção do valor liberdade permite-se uma igualdade meramente formal: Não obstante, essa igualdade formal demonstra-se insuficiente a garantir ao operariado uma condição digna frente ao sistema capitalista, o qual transformou o trabalho em uma mercadoria. Com o fortalecimento dos sindicatos, e receoso de insurgências, a burguesia, por intermédio do estado, começa a participar da vida comunitária, através da regulação do mercado e da intervenção ativa na produção. Tem-se o Welfare state, o Estado de bem-estar social, destinando recursos públicos a gastos sociais, como saúde, educação e previdência social, direitos então denominados como direitos sociais:

Assim é que as Constituições do século XX, especialmente após a II Guerra Mundial, são políticas, e não apenas estatais. Elas assumem conteúdo político, ou seja, elas englobam os princípios de legitimação do poder, e não apenas de sua organização. O campo constitucional é, por conseguinte, ampliado para abranger toda a sociedade, e não só o Estado. Este processo tem, contudo, suas origens ainda no começo do século XX, quando, diante das flagrantes desigualdades geradas pela noção de igualdade jurídica deixada entregue ao livre desenvolvimento do mercado, começam os movimentos sociais a reclamar uma atuação mais forte por parte do Estado, no sentido 12 TORRES, Ricardo Lobo. O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral, Rio de Janeiro, 1990, p. 75.

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de regulação de certas distorções provocadas pelo modelo anterior. Surge, assim, um novo modelo estatal, denominado Estado de Bem-Estar Social (ou Welfare State), orientado por um novo entendimento do princípio da igualdade, que deixa de ser compreendido meramente sob a perspectiva formal para converter-se em elemento material, isto é, ele não se entende mais realizável senão mediante a igualdade social, o que quer dizer que a igualdade não se dá tão-somente perante a lei, mas, fundamentalmente, através dela.13 Os direitos fundamentais sociais, em sua principal característica, são direitos a ações positivas14; não são direitos contra o Estado, mas sim direitos através do Estado, exigindo do poder público certas prestações materiais15. Nas palavras de Celso Lafer16: É por essa razão que os assim chamados direitos de segunda geração, previstos pelo welfare state, são direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade. Tais direitos – como o direito ao trabalho, à saúde, à educação – têm como sujeito passivo o Estado porque, na interação entre governantes e governados, foi a coletividade que assumiu a responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito, no entanto, continua sendo, como nos direitos de primeira geração, o homem na sua individualidade. Daí a complementaridade ,na perspectiva ex parte populi, entre os direitos de primeira e de segunda geração, pois estes últimos buscam assegurar as condições para o pleno exercício dos primeiros, eliminando ou atenuando os impedimentos ao pleno uso das capacidades 13 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional Aberta. Reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática, Rio de Janeiro: Lumen Juris, p.31. 14 LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 87. 15 KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: Os (Des) Caminhos de um Direito Constitucional “Comparado”. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002, p. 19. 16 LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia de Letras, 1988, p. 127 e 130-131.

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Jorge Irajá Louro Sodré humanas. Por isso, os direitos de crédito, denominados direitos econômico-sociais e culturais, podem ser encarados como direitos que tornam reais direitos formais: procuraram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num sentido amplo.

Nesse raciocínio, os direitos fundamentais sociais são direitos a ações positivas fáticas, que, se o indivíduo tivesse condições financeiras e encontrasse no mercado oferta suficiente, poderia obtê-las de particulares, porém, na ausência destas condições e, considerando a importância destas prestações, cuja a outorga ou não-outorga não pode permanecer na mão da simples maioria parlamentar, podem ser dirigidas contra o Estado por força de disposição constitucional.17

2.2 As dificuldades em efetivar os direitos sociais prestacionais mediante políticas públicas sociais Esses direitos sociais prestacionais, em regra, são garantidos mediante políticas públicas sociais18, planejadas com o escopo de distribuir o capital social19 entre as classes sociais formadoras da comunidade, reduzindo as desigualdades, visto que

17 LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 89. 18 Política pública é o processo pelo qual os diversos grupos que compõem a sociedade – cujos interesses, valores e objetivos são divergentes – tomam decisões coletivas, que condicionam o conjunto dessa sociedade. In RODRIGUES, Marta M. Assumpção. Políticas públicas. São Paulo: Publifolha, 2010, p. 13. 19 Conjunto de redes, relações e normas que facilitam ações coordenadas na resolução de problemas coletivos e que proporcionam recursos que habilitam os participantes a acessarem bens, serviços e outras formas. SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, inclusão e capital social: o capital social nas ações de inclusão. In Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Edunisc: Santa Cruz do Sul, 2007, p. 1761.

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REVISTA DE DIREITO os rumos do desenvolvimento passam pelo combate às desigualdades, à pobreza e à exclusão social, a partir de medidas que incluem a construção de uma nova cultura política, a estruturação de políticas públicas baseadas nas expectativas e demandas dos cidadãos, o fortalecimento das pessoas e das comunidades, o investimento em capital humano, à criação e fomento de capital social.20

Nesse sentido, suas formulações passam pela preparação da decisão política, especificando-se qual o direito social será implementado por aquela política, o planejamento, execução e avaliação dos resultados obtidos, tendo o gestor público de levar em consideração “o que os cidadãos esperam ou desejam que melhore”21. Na garantia dos direitos sociais como saúde, moradia, educação, assistência social, alimentação adequada, etc, as políticas públicas, mais do que garantir certos bens da vida, devem estabelecer planos de inclusão social, efetivando o empoderamento22 dos grupos sociais excluídos, permitindo-lhes exercer com efetividade sua condição de cidadão pertencente a um espaço de argumentação23. Não obstante, os obstáculos que se apresentam à efetivação dos direitos sociais são muitos e de distintas grandezas. Desde sua positivação no âmbito internacional, através da Declaração dos Direitos do Homem 20 SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, inclusão e capital social: o capital social nas ações de inclusão. In Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Edunisc: Santa Cruz do Sul, 2007, p. 1763. 21 KLISBERG, B. O desafio da exclusão. São Paulo: Fundap, 1997, p. 84. 22 O empoderamento consiste numa transformação atitudinal de grupos sociais desfavorecidos que os capacita “para a articulação de interesses, a participação comunitária e lhes facilita o acesso e controle de recursos disponíveis, a fim de que possam levar uma vida autodeterminada, auto-responsável e participar do processo político”. SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, inclusão e capital social: o capital social nas ações de inclusão. In Direitos Sociais e Políticas Públicas: desafios contemporâneos. Tomo 7. Edunisc: Santa Cruz do Sul, 2007, p. 1774. 23 HERMANY, Ricardo (org); RODEMBUSCH, Claudine Freire. O empoderamento dos setores da sociedade brasileira no plano local na busca da implementação de políticas públicas sociais, in Empoderamento Social Local. Santa Cruz do Sul: Editora IPR, 2010, p. 77-78.

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de 194824 e, em especial, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), mesmo tendo-se o reconhecimento da dignidade como valor inerente a todos os membros da família humana, os direitos sociais tiveram sua implementação condicionada25. Também parte da doutrina estrangeira e pátria ainda resistem a qualificá-los como direitos públicos subjetivos, tendo-os como normas diretivas ao legislador ordinário, ou disposições de boa vontade política. Conforme Bonavides26,

De juridicidade questionada nesta fase, foram remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. Vê-se, no caso brasileiro, uma contradição em si, pois, mesmo estando contidos na Carta Constitucional, constituindo o que se denomina catálogo de direitos fundamentais, não conseguem receber o legítimo status de direito fundamental autoaplicável, sendo que apenas na sua dimensão individual, têm sido tratados como direitos definitivos ou auto-suficientes, que operam como razões protegidas, no sentido definido por Joseph Raz, ou

24  Art 22. Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. 25 PIDESC - Artigo 2.º 1. Cada um dos Estados Partes no presente Pacto compromete-se a agir, quer com o seu próprio esforço, quer com a assistência e cooperação internacionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados, incluindo em particular por meio de medidas legislativas. 26 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.13ª ed, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 565.

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REVISTA DE DIREITO seja, razões para agir de determinado modo e, ao mesmo tempo, razões para desconsiderar razões concorrentes.27

E, mesmo reconhecendo tais direitos sociais, estabelece o estado, por meio de sua administração pública, restrições a sua efetivação, alegando desde um poder discricionário “divino” do administrador público, até uma pretensa reserva financeira do possível, mesmo quedando claro a ficção em que se tornaram os orçamentos públicos. Além dessas questões de ordem jurídica, problemas de ordem gerencial também se apresentam como elementos de restrição do alcance de políticas públicas sociais, pois novas demandas apresentam-se, exigindo do gestor uma maior flexibilidade e capacidade de adaptação, atuando como um negociador, definindo e concentrando-se em uma agenda estratégica, pois: Gerenciar organizações públicas, nos tempos atuais, é bem diferente de gerenciar organizações privadas, seja quanto aos dilemas que a gerência pública tem de enfrentar, seja quanto às suas opções, aos problemas de compatibilização de objetivos, aos problemas de restrições e de proibições, seja quanto à eleição de meios.28

O novo gestor deve compreender os interesses da sua comunidade, na busca de uma maior qualidade de vida, exigindo-se a abertura de espaços de interlocução, pois “as sociedades contemporâneas aspiram, cada vez mais, a uma participação muito mais direta e cotidiana, para decidir sobre os assuntos que considerem relevantes”29. A inter-relação estado-sociedade permite afirmar um conceito de cidadania responsável, onde o seio social 27 MELLO, Cláudio Ari. Os direitos fundamentais sociais e o conceito de direito subjetivo. In: Os Desafios dos Direitos Sociais, Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 133, nº. 56, set/dez 2005. 28 KLISBERG, B. O desafio da exclusão. São Paulo: Fundap, 1997, p. 87. 29 KLISBERG, B. O desafio da exclusão. São Paulo: Fundap, 1997, p. 85

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é o centro de institucionalização da dignidade humana30. Nas palavras de Etzioni31: El princípio ético de que la gente debe ser tratada como un fin y no como un medio está ampliamente reconocido. Bastante menos aceptada resulta la significativa observación sociológica de que es em las comunidades, y no en el estado o el mercado, donde este princípio está mejor institucionalizado.

O artigo 204 da Constituição Federal brasileira traz a concepção da participação social na elaboração das políticas públicas ao incluir, como diretriz das ações governamentais na área de assistência social, permitindo a concretização de um estado democrático, já que: Para ser democrático, pois, deve contar, a partir das relações de poder estendidas a todos os indivíduos, com um espaço político demarcado por regras e procedimentos claros, que efetivamente assegurem, de um lado, espaços de participação e interlocução com todos os interessados e alcançados pelas ações governamentais e, de outro lado, que assegure o atendimento às demandas públicas da maior parte da população, demarcadas por aquelas instâncias participativas, sejam elas espontâneas ou oficiais[..]32 30 A participação social é um dos pressupostos para a gestão dos interesses públicos. O surgimento de novos atores sociais aliados às crescentes exigências para efetivação dos direitos fundamentais, especialmente dos direitos sociais, implica na adoção de novos mecanismos de gestão e, nesse contexto, se destaca como imprescindível a participação da sociedade, bem como a conformação de um novo modelo de gestão estatal, especialmente com a abertura de espaços públicos de participação. COSTA, Marli Marlene da; REIS, Suzéte da Silva. Espaço local: o espaço do cidadão e da cidadania, in Gestão local e políticas públicas. Org Ricardo Hermany. Santa Cruz do Sul: Editora IPR, 2010, p. 104. 31 ETZIONI, Amitai. La tercera via hacia una buena sociedad. Propuestas desde el comunitarismo. Madrid: Editora Trotta, 2001, p. 17. 32 LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 27.

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Há, sem dúvida, desde o ano de 2003, no âmbito federal, a implementação de um projeto político que procura ampliar a participação dos atores sociais na definição da agenda política, criando instrumentos de controle social sobre as ações estatais, desmonopolizando a formulação e a implementação das ações públicas. Porém, o planejamento das políticas públicas continua centralizado nas mãos de burocratas. Contudo, os espaços de participação e argumentação social não são suficientes a permitir a compreensão dos limites dos direitos alcançados; ademais, não se percebe uma completa inter-relação estado-comunidade, coexistindo um estado weberiano, burocrata, com vida e interesses próprios, nem sempre coincidentes com os interesses da comunidade. 2.3 Um caso concreto: a afirmação da exigibilidade do direito humano à alimentação adequada Como exemplo dessa dicotomia estado-sociedade tem-se o direito humano à alimentação adequada. Esse direito fora descrito no artigo XXV, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem33, bem como no artigo 11, nº 1, do PIDESC34. O direito à alimentação adequada foi incluído no rol de direitos sociais do artigo 6º da Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional 33 Artigo XXV 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 34 Artigo 11.º 1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito reconhecendo para este efeito a importância essencial de uma cooperação internacional livremente consentida.

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nº 64, de 04.02.2010, após a mobilização da sociedade civil organizada, recebendo nota de fundamentalidade. Todavia, antes de constituir-se em direito fundamental escrito, o Estado brasileiro já o reconhecia, pois o Presidente da República, Luis Inácio da Silva, em seu discurso de posse (janeiro de 2003), afirmara sua pretensão de erradicar a fome e a miséria no território brasileiro. Ratificando a exigibilidade do referido direito, em 15.9.2006, fora promulgada a Lei nº 11.346, criando-se o Sistema Nacional de Segurança Alimentar, definindo a alimentação adequada como um direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população35. A Lei nº 11.346/2008 estabeleceu as definições, princípios, diretrizes, objetivos e composição do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN, por meio do qual o poder público formulará e implementará políticas, planos, programas e ações com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada. Mas, mais importante, toda essa atividade deverá contar com a participação da sociedade civil organizada, sendo princípio do sistema a participação social na formulação, execução, acompanhamento, monitoramento e controle das políticas e dos planos de segurança alimentar e nutricional em todas as esferas de governo. Assim, em tese, temos a vontade política de efetivação do direito à alimentação adequada e o arcabouço jurídico necessário. Contudo, a principal questão discutida em um grupo de trabalho específico junto ao CONSEA (GT desdobramentos à Emenda Constitucional nº 64) centrava-se no estabelecimento da afirmação de exigibilidade deste direito. Por quê? 35 Art 2º, Lei nº 11.346/2006

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Porque ainda uma desconfiança da gestão das políticas públicas devido a comportamentos contraditórios do estado, que retira o empoderamento social. Contudo, no tocante à alimentação adequada, parece existir uma intenção política real de redução da pobreza e da fome no país, em especial quando se percebe uma continuidade e evolução nas políticas públicas de combate à pobreza por intermédio do programa de combate à pobreza extrema (Programa Brasil sem miséria), programa do governo federal constituído de ações de inclusão social voltadas a 16,2 milhões de brasileiros com renda mensal de até R$ 70,00 (setenta reais). Percebe-se uma nova forma de gerência pública, pois as diretrizes do programa – transferência de renda, inclusão social e acesso aos serviços públicos – foram discutidas e delimitadas mediante consultas às populações a se atingir, aos movimentos sociais, às organizações civis e demais setores da sociedade, concretizando a ideia de cidadania participativa, importante para a recuperação de um civismo republicano, pois uma sociedade livre requer um patriotismo cujos valores essenciais incorporem uma liberdade significativa que salvaguarde a dignidade dos cidadãos.

3. Conclusão Assim, ao concluir, ressalta-se a importância dos direitos fundamentais sociais no asseguramento da pessoa humana cidadã, mesmo que, em sua formatação internacional, através da Declaração dos Direitos do Homem e, em especial do Pacto Internacional sobre Direitos econômicos, sociais e culturais, tenham sido constituídos como normas programáticas, a serem alcançadas de forma progressiva, nos limites das possibilidades orçamentárias de cada Estado membro, podendo esses solicitar auxílio internacional

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para a efetivação dos direitos descritos no Pacto. A nota de fundamentalidade recebida por um Direito Humano quando de sua inserção no catálogo de Direitos Fundamentais de uma comunidade, em especial daquela que proclama a dignidade da pessoa humana como princípio fundante de seu ordenamento jurídico, traz, como consequência, a imediata exigibilidade do direito frente a esta comunidade e ao Estado, gerando um dever de prestação. Todavia, no plano interno, foram tratados os direitos sociais como direitos secundários, concebidos, na forma pensada no plano internacional, como normas meramente programáticas, mesmo contidas no catálogo de direitos sociais. Vencida essa barreira, apresenta-se uma nova, agora de viés econômico, na qual a efetivação dos direitos sociais está adstrita à reserva do financeiramente possível. Não obstante, essa luta de afirmação integra a própria natureza dos direitos fundamentais, dentre eles os sociais, onde, para o seu reconhecimento, faz-se imprescindível a participação da comunidade na busca de uma maior qualidade de vida, exigindo-se a abertura de espaços de interlocução, afirmando-se uma cidadania responsável. Os direitos fundamentais sociais descritos na Constituição Federal brasileira são normativos, exigíveis e judicializáveis, sendo dever do Estado brasileiro otimizar a efetivação do direito humano à alimentação adequada, na sua dupla face: ausência da fome e qualidade da dieta, garantindo a todos a segurança alimentar.

Referências BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

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Recebido em 01/07/2015 - Aprovado em 27/08/2015.

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ALIMENTOS E PRESTAÇÃO DE CONTAS: UMA ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DO PEDIDO DAS CONTAS PELO ALIMENTANTE AO GUARDIÃO DO ALIMENTADO FOOD AND PROVISION OF ACCOUNTS: AN ANALYSIS OF THE POSSIBILITY TO PROVISION OF ACCOUNTS REQUIREMENT BY THE NON-CUSTODIAL PARENT TO THE CHILD’S GUARDIAN Marina Alice Souza Santos1

1 Doutoranda e mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora adjunta na Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira, no curso de Direito da Faculdade de Ciências Humanas de Itabira, em disciplinas da área de Direito Civil; e Analista em Direito no Ministério Público de Minas Gerais. E-mail: marinaalices@ hotmail.com

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RESUMO: O presente artigo analisa a possibilidade de o alimentante requerer em juízo a prestação de contas das verbas pagas ao menor-alimentado em face do administrador da pensão alimentícia, o guardião do infante. Para tanto, primeiramente, foi tratado em breves linhas sobre alimentos e suas características relevantes, o poder familiar, o instituto da guarda e da ação de prestação de contas. Ao final, houve o enfretamento do problema, em que restou concluída a possibilidade do alimentante figurar como autor na ação de prestação de contas contra o guardião do alimentado, fundado no conteúdo do poder familiar, no princípio constitucional da inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário e na efetivação do melhor interesse da criança e do adolescente. Palavras-chave: alimentos – prestação de contas – poder familiar – princípios constitucionais.

ABSTRACT: The present study aims to examine the possibility primary feeder implore action accountability of monies paid to the child or teenager in the face of alimony administrator, guardian of the infant. For this, first, was treated in a few lines about food and its relevant characteristics, the parental authority, the institute of guard and the action of accountability. At the end, there was the confrontation of the problem proposed by presenting opposing arguments, concluded that the possibility remained feeder in action figure as author of accountability against the guardian of the child, based on the contents of the family power, the constitutional principle of no removal appreciation by the judiciary and especially effective in the best interest of the child and adolescent. Keywords: Food - accountability – parental authority – constitutional principles.

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1. INTRODUÇÃO

N

as relações familiares, em especial as relações paterno/materno-filiais, o princípio constitucional da solidariedade impõe direitos e deveres recíprocos, principalmente no que tange ao dever dos pais em prestar alimentos aos filhos menores.

Nessas relações, tanto a assistência material quanto a imaterial é muito

importante. Muitas vezes esse dever de assistência material é atribuído ao genitor que não detém a guarda do filho menor, sendo que o genitor guar-

dião é aquele que administra as verbas alimentares pagas ao alimentário. Razões diversas podem despertar o interesse daquele que presta alimentos ao filho cuja guarda não detém, em saber a destinação dos gastos da criança ou do adolescente. Ocorre que é comum, no âmbito forense, verificar o interesse do alimentante em acompanhar e fiscalizar os gastos com o alimentário que se encontra sob a guarda do outrem. Entretanto, o entendimento majoritário na doutrina e jurisprudência indica a prevalência da ideia de que, por ser irrepetível a verba alimentar, bem como devida a ausência de previsão legal expressa, não seria admissível a propositura da ação de prestação de contas pelo alimentante. Também se utiliza como fundamento a ausência de algum elemento à condição da ação. Lado outro, parte minoritária da doutrina e jurisprudência pugnam pelo contrário, baseando sua argumentação, especialmente, no princípio da proteção integral da criança e do adolescente. Assim, para este trabalho, cabe expor brevemente sobre algumas premissas. Inicialmente, sobre os alimentos. Cumpre frisar serem os alimentos legítimos, sendo aqueles resultantes de imposição legal, fundados

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no vínculo familiar entre devedor e credor os balizados da discussão2. Estes alimentos podem ser materializados por meio de verbas pecuniárias, bens ou serviços destinados à mantença das necessidades daquele que não pode se prover sozinho, demonstrando, assim, o caráter assistencialista dos alimentos. Outra característica que tem relevância na discussão do problema é o fato desses alimentos serem irrepetíveis, ou seja, em regra, uma vez pagos, mesmo que indevidamente, não cabe pedido de devolução, isso porque os mesmos já atingiram a sua finalidade assistencial. Na aferição do quantum a ser pago leva-se em consideração a verificação da necessidade do alimentado e a possibilidade do alimentante, sempre nessa proporção, o que faz da fixação da verba alimentária algo que pode ser sempre revisto. Importa para o presente trabalho os alimentos fundados no vínculo de filiação quando o alimentado ainda é menor, ou seja, encontra-se sob o poder familiar de seus pais, sendo estes os primeiros a serem responsáveis pela manutenção da prole; responsabilidade esta que, em razão do princípio da solidariedade familiar, pode alcançar outros parentes, principalmente os avós. O poder familiar impõe aos pais, além do dever de sustento, a guarda, a educação, o cuidado pessoal, moral e patrimonial do filho menor, dentre outros, que se não cumpridos devidamente possibilita a aplicação de sanções que podem culminar desde a alteração da guarda, até na suspensão ou perda do poder familiar ao pai faltoso; sempre tendo como norte a busca do melhor interesse da criança e do adolescente, princípio constitucionalmente reconhecido às crianças e adolescentes, devido o seu estado de vulnerabilidade. 2 Isso porque o ordenamento jurídico brasileiro reconhece outras duas formas de alimentos, com fundamentos e efeitos jurídicos próprios: os alimentos voluntários e os indenizatórios.

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Sendo a guarda um dos atributos inclusos no poder familiar, frisa-se que na ausência ou no fim de relação familiar (casamento ou união estável) entre os pais do menor, como, via de regra, os pais não coabitam, na busca da proteção dos filhos têm-se a necessidade de fixação do regime de guarda, que pode ser unilateral ou compartilhada, garantindo a convivência do filho com ambos os genitores. É importante salientar que a ausência de relação entre os pais em nada implica, por si, no poder familiar, que se mantém intacto nas suas atribuições. Entretanto, tratamento especial recebe quando se é estabelecida a guarda unilateral ou exclusiva, visto que, neste caso, haverá a figura de um guardião (que terá responsabilidade pelo filho menor em tempo integral, pois estará em contato direto com este) e do não guardião (que mantém o poder familiar e direito a visitas ao filho). Ao não guardião é estabelecido, então, o dever de prestar alimentos à prole, além de fiscalizar sua manutenção e educação, conforme prevê o art. 1.589 do CC/02. Quanto à ação de prestação de contas, esta é dirigida àquele que administra patrimônio de outrem, com o fito de, apuradas as contas e verificado o saldo, formar título executivo do haver em favor de uma das partes. Porém, no caso de verba alimentar, quem tem o patrimônio administrado por terceiro é o alimentado, o filho menor, não o alimentante. Considerando as premissas apresentadas, apresenta-se o seguinte problema: poderia o devedor de alimentos (alimentante), em nome próprio, propor ação de prestação de contas das verbas alimentícias pagas ao credor dos alimentos (alimentado-menor) em face do guardião deste, administrador das referidas verbas?

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2. CONDIÇÃO DA AÇÃO E O PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DA APRECIAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO

Antes de adentrar no cerne da questão proposta à discussão neste trabalho, algumas premissas, agora de ordem processual, necessitam ser fixadas. Primeiramente, cumpre diferenciar, no âmbito da teoria da ação, as condições da ação dos pressupostos processuais. Conforme o professor José Altivo Brandão Teixeira (2011), primeiramente, para entender acerca de carência de ação, deve-se ter em mente as condições da ação, pois estas que conduzem àquela. Fredie Didier Jr. (2008, p. 171) explica que O Código de Processo Civil brasileiro adotou a concepção eclética sobre o direito de ação, segundo a qual o direito de ação é direito ao julgamento de mérito da causa, julgamento esse que fica condicionado ao preenchimento de determinadas condições, aferíveis a luz da relação jurídica material deduzida em juízo.São as chamadas condições da ação, desenvolvidas na obra de Enrico Tullio Liebmam, processualista italiano cujas lições exercem forte influência na doutrina brasileira. Seriam elas a legitimidade ad causam, o interesse de agir ou interesse processual e possibilidade jurídica do pedido.

Assim, as condições da ação (possibilidade jurídica, legitimidade das partes e interesse processual) podem ser entendidas como a verificação da aptidão de alguém provocar o Estado na busca da jurisdição, e obter a apreciação de sua pretensão contra outrem. Humberto Teodoro Júnior, no mesmo sentido que Arruda Alvim,

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explica que “as condições da ação são requisitos de ordem processual, intrinsecamente instrumentais e que existem tão somente para que se possa verificar se deverá ser admitido julgamento de mérito de uma ação proposta(...)”(TEODORO JÚNIOR, apud TEIXEIRA, 2011). Deste modo, a falta de quaisquer das condições da ação implicaria a extinção do processo sem análise meritória, conforme expressa o inciso VI do art. 267 do CPC. Conforme ensina Didier Jr. (2008, p.208), “pressuposto processual são todos os elementos de existência, os requisitos de validade e as condições de eficácia do procedimento, aspecto formal do processo, que é ato complexo de formação sucessiva”. Assim, os pressupostos processuais são a existência de fatos jurídicos indispensáveis à formação da relação processual; enquanto os requisitos dizem respeito aos elementos formais impostos pelo direito para a atuação jurídica. Focados nas condições da ação, passa-se a tratar de cada uma das condicionantes em separado: possibilidade jurídica do pedido, legitimidade para agir em juízo e interesse de agir. Primeiramente, com relação à possibilidade jurídica do pedido, esta não é simplesmente a previsão no ordenamento jurídico da pretensão da parte, mas a inexistência de uma previsão que torne inviável o pedido, uma proibição expressa verificada no ordenamento; ou como expõe Cândido Dinamarco (apud DIDIER JR, 2008), casos em que há uma ilicitude na causa de pedir ou nas próprias partes. No que tange a legitimidade ad causam, esta pode ser entendida como o vínculo entre os sujeitos da demanda e a situação jurídica discutida, que lhes autorize conduzir o processo. Deste modo, “parte legítima é aquela que se encontra em posição processual (autor e réu) coincidente com a situação legitimadora, decorrente de certa previsão legal, relativamente àquela pessoa e perante o objeto litigioso” (DIDIER JR., 2008, p. 177).

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Por esta noção de legitimidade ad causam podem-se extrair alguns principais aspectos, citados por Didier Jr.(2008): a) trata-se de situação jurídica regulada em lei; b) é qualidade jurídica que se refere a ambas as parte, qual seja, é bilateral; c) afere-se a legitimidade diante do objeto da demanda, da relação jurídica – “toda legitimidade baseia-se em regras de direito material, embora se examine à luz da situação afirmada no instrumento da demanda” (DIDIER JR., 2008, 177). O interesse de agir somente é possível de aferido in concreto, pois este sempre estará vinculado a uma determinada demanda judicial. Daí a dificuldade de conceituá-lo abstratamente. Entretanto, a aferição do interesse de agir passa pela verificação de duas circunstâncias: a utilidade e a necessidade de pronunciamento judicial para a tutela do direito. Ser útil diz respeito à aptidão da providência judicial em tutelar a situação jurídica do titular do direito. A necessidade tem sede no fato da medida judicial ser a última forma de solução ou obtenção da tutela almejada. Expostas, sucintamente, os requisitos para a condição da ação, importante para o presente trabalho uma breve explanação quanto do princípio da inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário, que é princípio inerente à Jurisdição. O referido princípio decorre de previsão expressa na CF/88, estando inscrito no inciso XXXV, do art. 5º. Sucintamente, e em outras palavras, “trata, o dispositivo, da consagração, em sede constitucional, do direito fundamental de ação, de acesso ao Poder Judiciário, sem peias, condicionamentos ou quejandos [...]”(DIDIER JR, 2008, p. 86). Este princípio implica, então, no impedimento da criação de norma que proíba o acesso ao judiciário, que tenha por fito a obtenção, por meio

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da apreciação da demanda, uma decisão3; ou, ainda, norma que imponha a necessidade de esgotamento de instâncias administrativas para que se possa procurar tutela jurisdicional4. Assim, ao ser provocado, por meio do exercício do direito de ação, aquele que pleiteia tem direito a uma decisão judicial, seja esta favorável ou não ao pretendido. Entretanto, Didier Jr. (2008, p. 89) vai além ao afirmar que “não basta a simples garantia formal do dever do Estado de prestar a Justiça; é necessário adjetivar esta prestação estatal, que há de ser rápida, efetiva e adequada”. Em especial, no que tange à necessidade da adequação na tutela jurisdicional, Didier Jr.(2008, p. 89) aduz que o princípio fundamental da inafastabilidade “garante o procedimento, a espécie de cognição, a natureza do provimento e os meios executórios adequados às peculiaridades da situação de direito material. É de onde se extrai, também, a garantia do devido processo legal”. Analisados, deste modo, os assuntos prévios pertinentes, passa-se a análise do problema central proposto ao trabalho.

3 Cabe ressalvar a possibilidade das partes optarem pela arbitragem na resolução de conflitos em determinado negócio jurídico, excluindo a apreciação judicial para aquele negócio em especial. 4 Neste caso, ressalva-se as questões de competência da justiça desportiva, em que, somente após passar a análise perante aquele é que se admite a apreciação pelo Poder Judiciário. Essa é a interpretação que se extrai do art. 217, §1º da CF/88: O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

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3. ENTENDIMENTOS CONTRÁRIOS À POSSIBILIDADE DO ALIMENTANTE FIGURAR COMO AUTOR NA AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS DAS VERBAS ALIMENTARES DESTINADAS AO FILHO MENOR SOB A GUARDA DE OUTREM A doutrina e a jurisprudência se dividem na opinião relativa à possibilidade ou não do alimentante requerer prestação de contas das verbas alimentares fornecidas ao filho menor em face do guardião, administrador das respectivas verbas. Vozes defendendo a impossibilidade da demanda têm prevalecido5, baseando-se em argumentos que variam desde a característica irrepetível dos alimentos até a falta de expressa previsão legal. A Terceira Câmara do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em meados do ano de 2008, proferiu acórdão, tendo como relatora a Ministra Nancy Andrighi, em que a unanimidade de votos, entendeu pelo não conhecimento do recurso especial, baseando-se, principalmente, na carência da ação por ausência de legitimidade do alimentante-recorrente e interesse de agir (este fundado na irrepetibilidade das verbas alimentícias) para a ação de prestação de contas. EMENTA. Direito civil e processual civil. Família. Recurso especial. Ação de prestação de contas. Alimentos. Ausência de interesse de agir. - No procedimento especial de jurisdição contenciosa, previsto nos arts. 914 a 919 do CPC, de ação de prestação de contas, se entende por legitimamente interessado aquele que não tenha como aferir, por ele mesmo, em quanto importa seu crédito ou débito, oriundo de vínculo legal ou negocial, nascido em razão da administração de bens ou 5 É o entendimento atual dos Tribunais de Justiça Minas Gerais e São Paulo, além de haver precedentes no Superior Tribunal de Justiça; e na doutrina, entendem da mesma forma Maria Helena Diniz e Maria Berenice Dias, conforme será verificado a seguir.

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Aline Carneiro Marina Alice Souza Magalhães, Santos Vitor Salino de Moura Eça interesses alheios, realizada por uma das partes em favor da outra. - O objetivo da ação de prestação de contas é o de fixar, com exatidão, no tocante ao aspecto econômico de relacionamento jurídico havido entre as partes, a existência ou não de um saldo, para estabelecer, desde logo, o seu valor, com a respectiva condenação judicial da parte considerada devedora. - Aquele que presta alimentos não detém interesse processual para ajuizar ação de prestação de contas em face da mãe da alimentada, porquanto ausente a utilidade do provimento jurisdicional invocado, notadamente porque quaisquer valores que sejam porventura apurados em favor do alimentante, estarão cobertos pelo manto do princípio da irrepetibilidade dos alimentos já pagos. - A situação jurídica posta em discussão pelo alimentante por meio de ação de prestação de contas não permite que o Poder Judiciário oferte qualquer tutela à sua pretensão, porquanto da alegação de que a pensão por ele paga não está sendo utilizada pela mãe em verdadeiro proveito à alimentada, não subjaz qualquer vantagem para o pleiteante, porque: (i) a já referenciada irrepetibilidade dos alimentos não permite o surgimento, em favor do alimentante, de eventual crédito; (ii) não há como eximir-se, o alimentante, do pagamento dos alimentos assim como definidos em provimento jurisdicional, que somente pode ser modificado mediante outros meios processuais, próprios para tal finalidade. Recurso especial não conhecido (STJ. 3ª Turma, REsp 985061-DF (2007/0212442-0). Rel. NANCY ANDRIGHI, Jul. 20/05/2008, p.u.).

Denota-se da análise do referido acórdão que os senhores Ministros entenderam que, devido à falta de expressa previsão legal, elencando o alimentante como legitimado em requer as contas, a ação de prestação de contas intentada em nome próprio por este contra o guardião administrador das verbas alimentares destinadas ao menor, deveria ser extinta sem julgamento do mérito por falta de condição da ação (ilegitimidade de parte). No mesmo sentido, outros Tribunais já se manifestaram, como o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

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REVISTA DE DIREITO EMENTA: Processo civil. Verbas alimentícias. Menor. Mãe. Guardiã. Pai. Prestação de contas. Requerimento em nome próprio. Carência de ação. O pedido de prestação de contas cabe à pessoa que administra ou geriu bens ou interesses alheios, como àquela em nome da qual se realiza ou se realizou a administração. O reconhecimento ao pai, em cuja guarda não esteja o filho, de fiscalizar a manutenção e educação deste, não tem o efeito de atribuir-lhe legitimação para, em nome próprio, exigir contas da guardiã do menor, relativamente aos alimentos ou a outras verbas a ele destinadas, na forma do art. 914 e seguintes do Código de Processo Civil. (TJMG. 4ª CÂMARA CÍVEL. APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0024.11.306821-7/001. Rel. ALMEIDA MELO. Jul. 16/08/2012. p.u.) (grifo meu) EMENTA: AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. ALIMENTOS PAGOS EM FAVOR DO FILHO MENOR. ILEGITIMIDADE ATIVA DO GENITOR. O pai do menor é parte ilegítima para propor, em nome próprio, ação de prestação de contas dos alimentos pagos. (TJMG. 5ª CÂMARA CÍVEL APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0549.10.000195-3/001. Rel. LEITE PRAÇA. Jul. 10/11/2011. m.v.)(grifo meu) EMENTA. Prestação de contas referente a alimentos – indeferimento da inicial por falta de interesse de agir do autor Inconformismo – A jurisprudência é manifestamente contrária à pretensão – Inexistência de previsão legal que legitime o alimentante a pedir prestação de contas a ex-cônjuge dos alimentos pagos aos filhos menores. A ação deve ser extinta sem o julgamento do mérito, nos termos do artigo 267, inciso VI do CPC Recurso improvido. (TJSP. 8ª Câmara de Direito Privado. Apelação nº 9158850-24.2008.8.26.0000. Rel. Ribeiro da Silva. Jul. 26/09/2012. v.u.)(grifo meu)

Verifica-se, ainda, que os defensores da ausência de legitimidade do alimentante-genitor, que ainda encontra-se no gozo do poder familiar se dividem em argumentos: ora pela ilegitimidade apenas em intentar a ação

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de prestação de contas em nome próprio; porém, se feito pelo alimentado, representado pelo alimentante-genitor, contra o guardião, não haveria impossibilidade6; ora é negada a legitimidade tanto em nome próprio, quanto como representante do alimentado, sob a afirmação de que o não-guardião não poderia representar o alimentado, somente o guardião7, não havendo que se confundir o direito de fiscalização – típico do poder familiar – com direito de exigir do guardião prestação de contas das verbas alimentícias pagas ao filho menor. Ainda, é recorrente aos magistrados a alegação de falta de interesse de agir do alimentante, tendo em vista a finalidade da ação de prestação de contas em, conforme a Ministra Nancy Andrighy, “fixar, com exatidão, no tocante ao aspecto econômico de relacionamento jurídico havido entre as partes, a existência ou não de um saldo, para estabelecer, desde logo, o seu valor, com a respectiva condenação judicial da parte considerada devedora”. Assim, ausente estaria a utilidade da prestação de contas ao alimentante, visto que, pela irrepetibilidade dos alimentos, ou seja, impossibilidade de devolução destes, ainda que pagos indevidamente, o autor da ação nunca conseguiria uma restituição das verbas. Se não há utilidade o manejo da ação, não haveria, por conseguinte, interesse de agir. Há ainda aqueles que buscam guarida para negar a possibilidade 6 Este é o entendimento de Theotônio Negrão (2004, p.927): “Não tem legitimidade passiva para a ação de prestação de contas a mãe, em relação à pensão alimentícia do filho, cabendo ao alimentante apenas fiscalizar a aplicação dos valores pagos e não exigir prestação de contas (JTJ 239/164); mas, neste caso, como o próprio acórdão reconhece pode o alimentado exigir prestação de contas de sua mãe, a qual recebeu a pensão e a administrou”. 7 Ementa. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE LOCUPLETAMENTO ILÍCITO. 1.- Ação visando à prestação de contas quanto ao emprego do encargo alimentar destinado ao filho comum. Inadmissibilidade. Genitor do alimentado que sequer ostenta legitimidade para representá-lo em juízo. 2.- Reconhecimento apenas do direito de fiscalizar o emprego da verba alimentar. EXTINÇÃO DO FEITO PRESERVADA. APELO IMPROVIDO. (TJSP. 3° Câmara de Direito Privado. Apelação Cível n. 0010707-14.2012.8.26.0032. Rel. Donegá Morandini. Jul. 27/11/2012).(grifei)

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do pedido de contas pelo alimentante contra o guardião, baseados na impossibilidade jurídica do pedido, por ausência de relação jurídica entre o alimentante (autor da ação) e o administrador das verbas alimentares – o guardião (réu na ação). Este é o entendimento de Maria Berenice Dias (2009, p. 532), ao afirmar que Sistematicamente a justiça vem rechaçando essas ações em seu nascedouro, por impossibilidade jurídica do pedido. O alimentante não tem relação jurídica com o guardião do alimentado. Como os valores se destinam ao filho e não a quem detém sua guarda e está a exercer o poder familiar, não pode responder por crédito que não lhe pertence. Assim, flagrante a ilegitimidade passiva de quem é acionado. Ao depois, falta interesse processual ao autor, pois os alimentos pagos são irrepetíveis. Assim, estão presentes todas as hipóteses configuradoras da carência de ação (CPC 267 VI). Se tudo isso não bastasse, foge à razoabilidade pretender que o genitor que exerce o poder familiar venha periodicamente a juízo prestar contas de forma contábil, quando desempenha sozinho mister que não é só seu.

A impossibilidade jurídica do pedido também é fundamento utilizado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conforme se extrai da seguinte ementa: AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. ALIMENTOS. DESCABIMENTO. Acertada a decisão que extinguiu a ação de prestação de contas que o alimentante move contra a genitora das alimentadas, com fundamento no art. 267, VI do CPC, por carecer o recorrente do direito de ação e pela impossibilidade jurídica do pedido. Não se perquire de declaração de crédito ou débito entre os litigantes, ante a irrepetibilidade dos alimentos. Precedentes do Tribunal. Recurso de apelação desprovido monocraticamente” (TJRS. 8ª Câmara Cível. AC 70019287127. rel. José Ataídes Siqueira Trindade. Jul.11/06/07).

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4.ENTENDIMENTOS FAVORÁVEIS À POSSIBILIDADE DO ALIMENTANTE FIGURAR COMO AUTOR NA AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS DAS VERBAS ALIMENTARES DESTINADAS AO FILHO MENOR SOB A GUARDA DE OUTREM Na contramão do entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência (esta principalmente), há quem defenda a possibilidade do alimentante manejar ação de prestação de contas contra o guardião, administrador das verbas alimentares creditadas ao filho menor. Na doutrina pode-se citar Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2012), Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior (2012) e Yussef Said Cahali (2009). Na jurisprudência, destaca-se o pioneirismo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Diversos são os argumentos (de ordem material e processual) que se unem para justificar a possibilidade do alimentante se utilizar da ação de prestação de contas como forma de fiscalizar os gastos realizados pelo guardião da criança ou adolescente (credor dos alimentos), principalmente como forma de proteção dos interesses deste. Passar-se-á a expor cada argumento em separado. 4.1Princípio da proteção especial da criança e do adolescente A mudança de paradigmas no estudo e aplicação do direito civil, voltado para uma análise constitucional (civil-constitucional), irradiou influências significativas no direito das famílias, em especial na proteção da criança e do adolescente. Conforme o art. 1º, III da Constituição de 1988 (CF/88), o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana.

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Sendo considerado um macroprincípio, este visa uma inegável proteção à pessoa humana, o que atualmente, muitos nomeiam de personalização ou despatrimonialização do Direito Privado, ou seja, enquanto o patrimônio perde importância, a pessoa é cada vez mais valorizada (TARTUCE, 2008). Com guarida constitucional, a dignidade da pessoa humana é central, tendo se tornado o paradigma de toda interpretação e aplicação da legislação ordinária, o que abrange, principalmente, mas não exclusivamente, a matéria de cunho familiar. O princípio da dignidade da pessoa humana tem um duplo aspecto, material e moral. O material diz respeito às condições de subsistência do indivíduo. Já a moral, que nos interessa, prima pela preservação da liberdade e dos valores de espírito (PERES, 2006, p. 54). Nas palavras de Luís Roberto Barroso (apud PERES, 2006, p. 54), o princípio da dignidade representa “a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar”. Nas palavras de Tartuce (2008, p. 40), Como se pode perceber, o princípio de proteção da dignidade da pessoa humana é o ponto central da discussão atual do Direito de Família, entrando em cena para resolver várias questões práticas envolvendo as relações familiares. Concluindo, podemos afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana é o ponto de partida do novo direito de família (grifo do autor).

Também reconhecida constitucionalmente, a solidariedade social é apresentada como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, I da CF/88), e se entende pela interação entre os indivíduos na busca de uma melhor correlação entre eles, perfazendo assim uma vinculação com finalidade de mútuo auxílio.

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Apesar desta busca de interação mútua entre os cidadãos ser vislumbrada de forma generalizada, tal princípio tem especial aplicação na seara do direito de família. Isto porque, é dentro do seio familiar, nas relações íntimas deste ambiente peculiar, que se inicia a formação do ser como cidadão. Sendo cidadão e inserido em uma dada sociedade, a interdependência se torna inevitável. “A partir do momento em que ocorre uma conscientização acerca da vinculação mútua que une os membros sociais, ser solidário passa a representar ser responsável pelo outro (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 57) (grifo dos autores). Por isso, a solidariedade merece destaque especial no meio jurídico, até porque, este princípio vem a completar o elencado anteriormente (princípio da dignidade da pessoa humana) uma vez que busca garantir a tutela da pessoa humana. Conforme os professores Almeida e Rodrigues Júnior (2010, p. 58-59), a solidariedade apresenta uma face negativa e outra positiva: A negativa se explica pela ordem de respeito e tolerância frente à forma eleita pelo outro para sua realização social. A positiva, por sua vez, explica-se pelo imperativo de sanar as carências do outro a fim de conceder-lhe situação adequada ao seu livre e pleno desenvolvimento. A finalidade da solidariedade é contribuir para a autodeterminação.

E sendo a família a base da sociedade (art. 226, CF/88) é deste ambiente que há de ter o contato primário com a solidariedade, visto que se espera dos familiares sejam solidários entre si, “a fim de auxiliar a promoção do livre desenvolvimento da personalidade de todos” (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 60). A solidariedade como princípio implica num dever jurídico, onde se vislumbra como obrigatória, na defesa da pessoa, a cooperação entre os

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indivíduos. Deste modo, a solidariedade pode impor mútuo auxílio material (tanto que é um dos princípios fundamentais que regem os alimentos entre parentes), até que o outro adquira sua independência, sua autonomia (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010). No entanto, a solidariedade não é somente material, como lembra Tartuce (2008), mas também psicológica e afetiva. Nas palavras de Maria Berenice Dias (2010, p. 62) conclui-se ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa-se o Estado do encargo de prover uma gama de direitos que são assegurados constitucionalmente ao cidadão. Basta atentar que, em se tratando de crianças e adolescentes, é atribuído primeiro à família, depois à sociedade e finalmente ao Estado (CF 227) o dever de garantir com absoluta prioridade os direitos inerentes aos cidadãos em formação.

A partir do princípio da dignidade da pessoa humana, desaparece o poder marital, que é substituído por um sistema em que as decisões devem ser de comum acordo entre os conviventes, uma vez que o homem e a mulher têm os mesmos deveres e direitos na sociedade conjugal. Contemporaneamente, as relações familiares se baseiam na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges e no respeito mútuo entre os integrantes da entidade familiar, bem como na igualdade absoluta de atenderem a manutenção do lar e a formação integral dos filhos mediante esforço mútuo que resulte compatível com o desenvolvimento das atividades sociais de ambos. Conforme disposto no artigo 226, § 5º da Constituição Federal (a igualdade nos direitos e deveres do homem e da mulher na sociedade conjugal), os cônjuges devem exercer em conjunto seus direitos e deveres conjugais, não podendo um cercear o direito do outro. Inexistindo quaisquer diferenciações relativamente aos direitos e deveres. Esta é uma inovação

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constitucional: a paridade entre os cônjuges ou conviventes, tanto nas questões pessoais como nas patrimoniais, igualdade de direitos e deveres, sendo expandido seu exercício na sociedade conjugal. Decorrente também do principio da dignidade humana, o artigo 227, § 6º da CF/88, iguala a condição dos filhos legítimos, naturais ou adotivos, não se admitindo qualquer discriminação entre os mesmos, no que se refere ao nome, poder familiar, alimentos e sucessão, permitindo ainda o reconhecimento de filhos havidos fora do casamento a qualquer tempo, além de proibir qualquer referência quanto à filiação ilegítima, vedando designações discriminatórias. Dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 226, § 7º que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Ali são estabelecidas as diretrizes do direito ao planejamento familiar e do seu exercício, que envolve eventual necessidade de acesso aos recursos educacionais e científicos, de responsabilidade do Estado. O novo Código Civil, por sua vez, em seu artigo 1.565, §2º, reforça a matéria. Gama (2008) explica que a terminologia correta, tendo em vista o princípio da igualdade, seria “parentalidade responsável”, visto que o conteúdo de tal princípio importa não somente ao homem – o pai, mas também à mulher – a mãe, a observância da responsabilidade no exercício das liberdades inerentes à sexualidade e à procriação no gerar de uma nova vida humana, cuja pessoa deve ser priorizada na proteção e garantia de seu bem-estar físico, psíquico e espiritual, bem como reconhecido todos os seus direitos fundamentais. Em direta consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana, da parentalidade responsável e da liberdade, no que tange o planejamento familiar, o princípio do melhor interesse da criança e do ado-

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lescente ou da proteção especial ao menor e ao adolescente, apresenta-se como diretriz determinante nas relações mantidas entre os menores com seus pais e parentes, bem como a coletividade e o Estado. Dentro do âmbito familiar, o filho passa a ser merecedor de tutela especial do ordenamento jurídico, prioritário em relação aos demais membros do núcleo familiar do qual participa. Tudo isso se deve à peculiar situação do menor por ser pessoa ainda em peculiar processo de desenvolvimento de sua personalidade. E é no ambiente familiar que este desenvolvimento deve ocorrer: Sendo a família um núcleo de companheirismo e afeto é de se supor ser um ambiente bastante propício para incentivar a maturidade volitiva dessas pessoas proporcionalmente ao que sua condição permite. A realização de escolhas verdadeiramente autônomas no exercício de seus fundamentais e, por conseguinte, na sua formação pessoal talvez, fique, dessa forma, garantida (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2010, p. 67).

A partir desta apresentação, de alguns dos vários princípios constitucionais inerentes ao direito das famílias, pode-se concluir que, trazendo para o tema central de discussão do presente trabalho, na busca da efetivação do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, fundado na preservação da dignidade da pessoa humana, tendo em vista a peculiar situação do menor, pessoa em desenvolvimento, que goza da presunção de necessidade de cuidados, impondo aos seus pais a obrigação de por eles zelar, a fixação de alimentos a um pai ou mãe (não guardião), que por ausência de vínculo familiar com o outro ou por outro motivo8 acaba por

8 Por exemplo, decisão judicial que entendeu melhor por não deferir a guarda a nenhum dos pais, garantindo o bem-estar do menor.

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não ter a guarda do filho menor9, “a proteção integral infanto-juvenil implica reconhecer uma necessidade constante, permanente, de fiscalização do emprego das verbas pecuniárias no atendimento daquelas necessidades elementares do alimentando [...]” (FARIAS, 2010, p. 52). Considerando, ainda, que a fixação da guarda na modalidade unilateral não implica na retirada do pai/mãe não guardião do exercício poder familiar, este tem o dever de fiscalizar a aplicação dos alimentos pagos, verificando se estão sendo garantidos o respeito à integridade física e moral do menor. Cristiano Chaves de Farias (2010, p. 55) enfatiza este dever de fiscalização aduzindo que Aliás, reconhecer a possibilidade de exercício de uma atividade fiscalizatória é essencial para assegurar o melhor interesse da criança e do adolescente, uma vez que, mesmo estando o filho sob a guarda, apenas, de um dos pais, o outro se mantém na plenitude do poder familiar, devendo contribuir para a proteção integral de sua prole. Com efeito, não se pode negar que o pai ou a mãe que não detém a guarda do filho deve (observe-se que não se trata de pode, mas sim de deve) estar atento às despesas e aos gastos realizados, pelo cônjuge guardião, com o seu filho incapaz, velando pelo atendimento de suas necessidades básicas fundamentais, com educação, saúde, moradia, cultura, esporte, vestuário e, por igual, lazer.

Fundamentando referido posicionamento, cabe citar o art. 1.589 do CC que prevê o seguinte: CC. Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua compa9 Analisada tal possibilidade sob o prisma da fixação de guarda unilateral, visto que na guarda compartilhada não cabe a fixação de prestação alimentícia, pois ambos os pais mantém a guarda do filho menor.

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REVISTA DE DIREITO nhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação. Parágrafo único. O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente (grifo meu).

Este dever de fiscalização nada mais é que consequência da aplicação do princípio constitucional do melhor interesse da criança e do adolescente. 4.2 A ação de prestação de contas como meio adequado à proteção do interesse da criança e do adolescente No exercício do poder familiar o genitor que presta alimentos tem direito de fiscalizar a manutenção dos filhos, podendo se utilizar das medidas judiciais e extrajudiciais para fazer valer tal prerrogativa. E como explica Cristiano Chaves de Farias (2010), no âmbito judicial, as medidas destinadas à proteção do menor têm rol exemplificativo, “não se exaurindo nas medidas de limitação, suspensão ou extinção do poder familiar previstas no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente” (FARIAS, 2010, p. 56), podendo outras serrm tomadas, desde que observado os princípios constitucionais. Por este raciocínio, Farias aponta a ação de prestação de contas como instrumento próprio para a demonstração da aplicação dos recursos destinados ao filho menor, dirigido em face da pessoa do administrador, no fito de proteger integralmente o interesse do menor. E ainda arremata afirmando que “sem dúvida, a possibilidade de exigir contas é inerente ao exercício do poder familiar e da proteção avançada da criança e do adolescente, sob pena de inviabilizar a própria fiscalização da manutenção, do sustento e da educação dos filhos[...]” (FARIAS, 2010, p. 57).

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A própria natureza da prestação de contas confirma sua adequação a essa hipótese, pois visa demonstrar situações em que os bens estejam na administração de terceiros, que se verifica na gestão do guardião sobre as verbas alimentícias do filho menor pagas pelo alimentante. Neste sentido, afirma Theotônio Negrão ser a “ação de prestação de contas consiste no relacionamento e na documentação comprobatória de todas as receitas e de todas as despesas referentes a uma administração de bens, valores ou interesses de outrem” (2004, p.346). Assim, fundado na interpretação Constitucional, a viabilidade de manejo de ação de prestação de contas pelo não guardião do alimentado visa fiscalizar as despesas, para se evitar o desvio de recursos destinados à criança e o adolescente, buscando-se a própria proteção integral da criança e do adolescente. O não guardião alimentante, que não foi excluído do exercício do poder familiar (CC, art. 1.632), tem o dever de fiscalizar para assegurar a ampla e integral proteção de sua prole, colocando-a a salvo de prejuízos que poderia ser ocasionado pela má administração do genitor responsável pela sua guarda. Deste modo, se o genitor que presta os alimentos tem o direito de fiscalizar a manutenção dos filhos, a ação de prestação de contas é sem dúvida o instrumento próprio para a demonstração da aplicação dos recursos destinados ao alimentado, dirigido contra a pessoa do administrador. Nas palavras de Farias e Rosenvald (2012, p. 892), [...] impedir a propositura da prestação de contas poderia fazer periclitar os interesses menoristas que devem ser tutelados preferencial e integralmente. É que vedado o ajuizamento da ação, a má administração de verba pecuniária destinada à manutenção e educação de filho menor não seria passível de um eficiente controle. Por isso, na defesa do melhor interesse da criança e do

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REVISTA DE DIREITO adolescente, é reconhecida ao genitor-alimentante (bem como ao Ministério Público e a qualquer outra pessoa interessada, como os avós e tios) a legitimidade para requerer a prestação de contas do genitor que detiver a guarda e estiver administrando a importância pecuniária paga a título de alimentos.

Deixa-se claro que o genitor guardião do filho menor deve aplicar os valores dos alimentos em benefício do mesmo, não podendo utilizá-los em benefício próprio ou mesmo dilapidar os saldos dos valores eventualmente não aplicados, uma vez que o desvio de finalidade da verba poderá ocasionar prejuízo ao patrimônio da infante, sendo possível tal verificação através da ação de prestação de conta. 4.2.1 A compatibilidade da ação de prestação de contas de verbas alimentícias frente o princípio inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário e o caráter irrepetível dos alimentos Argumento desfavorável à utilização da ação de prestação de contas em verbas alimentícias seria a falta de previsão expressa em lei, não sendo admissível à propositura de uma ação de prestação de contas pelo alimentante, de modo a materializar, concretamente, a fiscalização que se pretenda exercer dos interesses do filho menor alimentando. Tal argumento também não merece acolhida, pois, como já dito acima, a ação de prestação de contas serve para declarar a existência ou inexistência do dever de prestar contas e, sendo o caso, para obtenção efetiva das contas devidas e formação de título executivo a respeito do saldo apurado a favor de uma das partes, podendo ser exigida sempre que exista relação jurídica em que figure uma pessoa que tenha o direito de exigir tais contas ou uma pessoa que tenha a obrigação de prestá-las. Não existindo uma lista taxativa das possibilidades de emprego de tal ação, pode-se perfeitamente

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ser amoldada ao caso presente. Tal entendimento converge-se e representa a aplicação concreta do princípio da inafastabilidade da apreciação do Poder Judiciário, que entende pelo impedimento de proibição do acesso ao judiciário, que tenha por finalidade obter uma decisão; ou, que imponha a necessidade de esgotamento de instâncias administrativas para que se possa então ter tutela jurisdicional. Ainda, a referida ação de prestação de contas pode ser um importante mecanismo de fiscalização, que permite verificar o cumprimento da proteção integral, cujo descumprimento poderá ocasionar diversas sanções, tanto no âmbito civil quanto penal, que podem culminar até mesmo na destituição do poder familiar. Por esse motivo, apesar da resistência de parte da doutrina e da jurisprudência, não há, de forma efetiva, descompasso entre a ação de prestação de contas e o caráter irrepetível das verbas alimentares. Maria Berenice Dias (2010) é uma das que vislumbram a impossibilidade da ação de prestação de contas aduzindo a falta de interesse processual ao autor, pois os alimentos pagos não poderiam ser devolvidos. Entretanto, conforme afirmado acima, é plenamente possível utilizar o procedimento de prestação de contas na finalidade de se ver apurados os créditos e despesas com o alimentado, pois a ação se limita à prestação de contas, não importando se o resultado poderá gerar alguma execução, ou não. E sendo as verbas irrepetíveis estas não serão devolvidas. Todavia, o saldo apurado na ação poderá ter finalidades diversas, relacionadas ao exercício do poder de fiscalização do alimentante e a proteção do melhor interesse da criança e do adolescente, como por exemplo, a suspensão ou destituição do poder familiar, ou a alteração da guarda. Assim manifestou o TJSC:

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REVISTA DE DIREITO DIREITO CIVIL - FAMÍLIA - ALIMENTOS DESTINADOS À FILHA - PRESTAÇÃO DE CONTAS - ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM E INTERESSE DE AGIR - INDEFERIMENTO DA INICIAL - INSURGÊNCIA - FISCALIZAÇÃO – DIREITO PROTETIVO DA MENOR - LEGITIMIDADE ATIVA E INTERESSE PROCESSUAL DO PAI ALIMENTANTE - RECURSO PROVIDO - SENTENÇA REFORMADA. Porque a má administração de numerário destinado à manutenção e educação de filho alimentando pode acarretar severas sanções legais ao mau administrador (arts. 1637 e 1638, IV, do CC), a lei assegura ao alimentante a fiscalização da respectiva verba alimentar. (TJSC. 5ª Câmara de Direito Civil . Apelação Cível n. 2010.057483-6, Rel. Monteiro Rocha. Jul. 01.03.2012. m.v.)

Rolf Madaleno (2009) e Yussef Said Cahali (2009) compartilham do mesmo entendimento, ao afirmarem que sendo os alimentos prestados para a prole, o alimentante tem legitimidade para exigir a prestação de contas, conquanto não tenha a rendição de contas o escopo de apurar crédito ou débito para fins de reembolso diante da irrepetibilidade dos alimentos, porque nada poderá ser restituído. Mas pode se valer da demanda para fiscalizar a exata e correta aplicação das pensões recebidas pelo credor e administrada pelo guardião, visto que o poder familiar o alimentante não perdeu, sendo dele co-titular, apesar de não guardião. No mesmo sentido manifestou o Tribunal de Justiça de Santa Catarina: PRESTAÇÃO DE CONTAS. ALIMENTOS. ACOLHIMENTO. CONTAS CONSIDERADAS BOAS. ‘DECISUM’ CORRETO. CONFIRMAÇÃO. IRRESIGNAÇÃO APELATÓRIA DESATENDIDA. O prestador de alimentos tem legitimação para ingressar com pedido de prestação de contas, na modalidade rendição de contas, não com o desiderato de obter uma apuração de débito ou de crédito, diante da irrepetibilidade da verba, mas, apenas, para fiscalizar a exatidão e a cor-

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Aline Carneiro Marina Alice Souza Magalhães, Santos Vitor Salino de Moura Eça reteza das aplicações dos valores recebidos pela representante legal da alimentária. Isso porque, ainda que dissolvido o casamento dos litigantes, o pai não perde o poder familiar sobre a filha menor, poder esse do qual continua ele co-titular. É a compreensão que, segundo os intérpretes, resulta do art. 1.589 do CC/02, que confere aos pais que não tenham os filhos sob sua guarda o direito de fiscalizar a manutenção e a educação dos mesmos. (TJSC - Quarta Câmara de Direito Civil. Apelação Cível n. 2007.028489-6. Rel. Trindade dos Santos. jul.25. 11. 2008. p.u.) (grifo meu). APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS - DIREITO DE FISCALIZAR O EMPREGO DA PENSÃO ALIMENTAR - ART. 1.589 DO CÓDIGO CIVIL - IRREPETIBILIDADE DOS ALIMENTOS - PROCEDIMENTO QUE SE ESGOTA NA PRIMEIRA FASE - LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM RECONHECIDA - PEDIDO JURIDICAMENTE POSSÍVEL AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DA MALVERSAÇÃO DOS ALIMENTOS - FALTA DE INTERESSE DE AGIR - EXTINÇÃO DA AÇÃO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO - SENTENÇA MANTIDA POR FUNDAMENTO DIVERSO - RECURSO DESPROVIDO. O progenitor, em cuja a guarda não estejam os filhos, possui legitimidade para, em nome próprio, exigir contas de quem as detém, com o fim de averiguar o correto emprego dos valores alimentares entregues. Tal ação exaure-se na primeira fase do procedimento, ante a irrepetibilidade conferida aos alimentos. Apresenta-se de extrema necessidade que o autor da ação de prestação de contas, que envolva administração da verba alimentar, instrua a ação com indícios mínimos da malversação dos alimentos, a fim de evitar que este tipo de demanda torne-se mais um instrumento de ataque a já conturbada relação familiar pós-separação do casal. (TJSC. 3ª Câmara de Direito Civil. Apelação Cível n. 2007.059088-5. Rel. Fernando Carioni. Jul. 26.05.2008. p. u.) (grifo meu).

Nota-se que o ajuizamento da referida ação demonstra preocupação por parte do autor, não somente em ter ciência de como é investido o valor pago a título de pensão alimentícia, mas principalmente visando a

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boa e correta administração da verba. Assim, a ação de prestação de contas torna-se um meio eficaz para promoção do melhor interesse da criança se for constatada a má administração do valor pago ao alimentando, e não utilizado de maneira correta, ou seja, para atendimento as necessidades do menor, reprimindo condutas que sejam prejudiciais, a fim de que seu patrimônio seja aplicado em seu favor. Desta forma, não há dúvida que é direito e dever de quem presta alimentos, fiscalizar a boa aplicação do numerário repassado em favor do alimentário, não apenas por constituir um dever de quem se preocupa pela formação moral e intelectual dos filhos menores, mas porque, advém de um comando jurídico aos pais em cuja guarda não esteja o filho, o que culmina na concretização do princípio constitucional da proteção integral da criança e do adolescente. 4.2.2 Da possibilidade de manejo da ação de prestação de contas por alimentante não detentor do poder familiar Considerando que a finalidade da ação de prestação de contas, em sede de obrigação de prestação alimentar a menores, visa prioritariamente a proteção deste, plausível é permitir, assim como ao pai alimentante, a qualquer alimetante o direito de promover a fiscalização das referidas verbas por meio da prestação de contas em face do guardião, quando houver indícios de má administração das mesma. Isso se deve ao fato de ser comum os alimentos não serem prestados pelos pais, mas sim por outro parente, especialmente os avós10. Da mesma 10 Cabe salientar que é reconhecido aos avós o direito de visita aos netos. Cita-se a jurisprudência do TJMG: EMENTA: FAMÍLIA - PEDIDO DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS FORMALIZADO PELA AVÓ - POSSIBILIDADE. - Embora não exista previsão expressa, o direito de visita pode ser estendido aos avós, sempre à luz do melhor interesse da criança e do adolescente. - A partir do momento em que o menor mudou-se da casa da avó para morar com

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forma, que é comum estes serem guardiões dos netos. Neste sentido, manifestou o Tribunal de Justiça de Santa Catarina ao reconhecer aos avós-alimentantes a legitimidade no manusear da ação de prestação de contas em face da guardiã da neta. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. ALIMENTOS PAGOS PELOS AVÓS PATERNOS À NETA. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL EM PRIMEIRO GRAU. DIREITO DO ALIMENTANTE EM FISCALIZAR A MANUTENÇÃO E EDUCAÇÃO DA ALIMENTANDA. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.589, DO CÓDIGO CIVIL. CABIMENTO DA AÇÃO FISCALIZADORA NOS CASOS EM QUE HÁ INDÍCIOS DA MALVERSAÇÃO DOS RECURSOS PAGOS À MENOR. SUSPEITA DE DESVIO DE FINALIDADE. SENTENÇA CASSADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJSC. 5ª Câmara de Direito Civil. Apelação Cível n. 2010.0015120-5. Rel. Odson Cardoso Filho. Jul. 12.04.2012. p. u.) (grifei)

Assim, apesar do poder familiar se destinar aos pais em relação aos filhos menores, e àqueles se impor o dever de fiscalização de sua manutenção e educação, verificada a possibilidade de estar ocorrendo desvios nas verbas alimentares destinadas ao alimentado, a legitimidade de impetrar a ação de prestação de contas deve ser deferida ao alimentante, independentemente deste ser ou não titular do poder familiar. Pois, conforme exposto acima, a ação terá o fito de buscar a proteção do alimentado com a possível aplicação de penalizações ao guardião-administrador, e a alteração da guarda, suspensão ou perda do poder familiar. a mãe biológica, deve-se admitir que esta necessita de condições satisfatórias de tempo para restabelecer e tornar mais fortes os vínculos afetivos que os une. - Deve ser reduzido o tempo de visitação quando a sua fixação não observou a disponibilidade da mãe. (TJMG - 1ª CÂMARA CÍVEL. AGRAVO DE INSTRUMENTO CÍVEL N° 1.0024.10.083554-5/001. Rel. ALBERTO VILAS BOA. Jul. 16.11.2010. p. u)

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5. CONCLUSÃO O Judiciário nacional cotidianamente tem se deparado com demandas em que o autor da prestação de contas é o alimentante, sendo réu o guardião do credor de alimentos. Na maioria das decisões, os Tribunais brasileiros têm entendido pela impossibilidade do alimentante requerer tais contas fundamentando-se na carência da ação (por falta das condições da ação: legitimidade, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido), seja por ausência de previsão legal elencando o alimentante como parte legítima na ação de prestação de contas e de relação jurídica entre as partes; seja pelo fato do resultado da demanda seria inútil ao autor da ação, visto a irrepetibilidade dos alimentos, que impediria a execução do título formado; seja pela ausência de relação jurídica entre o autor (alimentante) e o réu (guardião). Todos os fatos que geram a extinção do processo sem resolução do mérito (art. 267,VI do CPC). Houve ainda aqueles que fundamentaram o não cabimento da demanda no incentivo ao litígio entre as partes, normalmente ex-cônjuges ou ex-companheiros. Todavia, parte ainda minoritária da jurisprudência (especialmente o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, e algumas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), entende pela viabilidade da referida demanda, fundado em argumentos nobres e sólidos, baseados principalmente em princípios constitucionais. Na atual conjuntura dos estudos jurídicos, entendimentos focados na irradiação dos princípios constitucionais para todos os ramos do Direito têm ganhado adeptos em várias nuances, mostrando a primazia dos preceitos emanados pela Constituição no ordenamento jurídico brasileiro. Reflexo deste fenômeno é a proteção especial destinada à criança e

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ao adolescente, tendo em vista a peculiar situação de sua vulnerabilidade que vêm impor, primeiramente, aos pais o dever de cuidado e mantença, na garantia do pleno desenvolvimento de sua personalidade, concretizando o princípio da dignidade da pessoa humana. Quando este cuidado se materializa no dever de prestar alimentos, visto não manter a guarda efetiva do filho menor, este alimentante (não guardião), na proteção do melhor interesse do infante, tem o dever de fiscalização da manutenção e educação, visto se manter intacto o poder familiar, verificando se estão sendo garantidos o respeito à integridade física e moral do alimentado. A presença de indícios de má administração dos interesses do filho menor pelo guardião, em especial, da aplicação das verbas alimentícias, impõe ao não guardião, também responsável pelo bem estar do alimentado, a tomada de medidas necessárias à garantia da proteção deste. E o ordenamento jurídico deve apresentar os aparatos necessários para fazer valer esta prerrogativa do alimentante. Neste diapasão, surge o entendimento de que a prestação de contas seria o meio adequado para a fiscalização dos recursos aplicados pelo administrador (guardião) ao alimentado, na finalidade precípua de proteger integralmente o interesse do mesmo. A própria natureza da prestação de contas demonstra a sua adequação a tal finalidade, pois visa apresentar a situação dos bens que se encontram sob a administração de um terceiro. Deste modo, tendo o alimentante o dever de fiscalizar a aplicação das verbas alimentícias pagas, seria este legítimo a manejar a ação de prestação de contas em face do administrador dos bens do alimentado. Argumentar pela falta de previsão legal legitimando o alimentante como demandante na ação de prestação de contas contraria preceitos constitucionais, como a própria busca do melhor interesse da criança e

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do adolescente, e o princípio da inafastabilidade da apreciação do poder judiciário, pois se estaria impedindo o acesso ao judiciário. Ater-se ao legalismo exacerbado engessa o Direito frente às mudanças na sociedade. Como bem expressa o ex-Ministro Waldemar Zveiter (apud FARIAS, 2010, p. 61) “(...) não deve o Poder Judiciário, ao que incumbe a composição de litígios, com olhos postos na realização da Justiça, limitar-se à aceitação de conceitos pretéritos que não se ajustam à modernidade”. Além disso, a ação de prestação de contas é um importante mecanismo de fiscalização que permite apurar a correta aplicação das verbas alimentícias que se destinam à mantença exclusivamente do alimentado. Apesar de em regra gerar a formação de título executivo a respeito de um saldo em favor de uma das partes, certo é que, pela irrepetibilidade dos alimentos, não seria possível tal execução. Até mesmo porque a pessoa diretamente lesada seria o alimentado, não o alimentante (autor da ação). Porém, independentemente das observações ora apresentadas, nesta especial situação, a prestação de contas se limitaria a declaração das contas e serviria de prova, caso se comprovasse a suspeita de má-administração e lesão ao patrimônio do filho menor, à aplicação das medidas necessárias à proteção do mesmo, que se consubstanciaria na aplicação das sanções cabíveis ao administrador, que poderiam ser, por exemplo, desde a alteração da guarda até a suspensão ou destituição do poder familiar. Em rechaço aos argumentos pautados em um possível crescimento de demandas com fito de simplesmente perturbar o guardião, há que se observar que a demanda sempre deverá estar pautada em indícios de ocorrência de má-administração pelo guardião, bem como na especial primazia da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente. Por fim, cabe salientar que visto a realidade atual de que muitas vezes o alimentante não detém o poder familiar (como por exemplo, os avós),

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a ausência do referido múnus público também não seria argumento para impedir o manejo da ação de prestação de contas, visto que a finalidade sempre será a proteção do alimentado-menor na concretização de sua dignidade como pessoa humana.

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BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm. Acesso em: 14.09.2012. BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406. htm. Acesso em: 10.10.2012. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma, REsp 985061-DF (2007/0212442-0). Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, Jul. 20/05/2008, p.u. CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6 ed. ver., atual. e ampli. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 9 ed. Salvador: Jus Podivm, 2009. v. 1. DINIZ, Maria Helena. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família, 21.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v.5. FARIAS, Cristiano Chaves de. A Possibilidade de Prestação de Contas dos Alimentos na Perspectiva da Proteção Integral Infanto-juvenil: Novos Argumentos e Novas Soluções para um Velho Problema. Revista do Ministério Público do Estado do Pará. Ano 5, V. 1, (2010, Dezembro). Belém: Gráfica e Editora Liceu Ltda., 2010. p. 49-64.

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MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça. 1ª CÂMARA CÍVEL. AGRAVO DE INSTRUMENTO CÍVEL N° 1.0024.10.083554-5/001. Rel. ALBERTO VILAS BOAS. Jul. 16.11.2010 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito de Família. 38 ed. rev. e atual. por Regina Beatriz Tavares da Silva. São Paulo: Saraiva, 2007. NEGRÃO, Theotônio; GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código de processo civil: e legislação processual em vigor. 36 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2004. PEREIRA,Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. 5. PERES, Ana Paula Ariston Barion. A adoção por homossexuais: fronteiras da família na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça. 8ª Câmara Cível. AC 70019287127. rel. José Ataídes Siqueira Trindade. Jul.11.06.07. RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Alimentos entre pais e filhos na perspectiva constitucional. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Direito Civil: Princípios jurídicos no direito privado. Atualidades III. Del Rey, 2009, p. 209-225. SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça. 5ª Câmara de Direito Civil. Apelação Cível n. 2010.057483-6, Rel. Monteiro Rocha. Jul. 01.03.2012.

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Aline Carneiro Marina Alice Souza Magalhães, Santos Vitor Salino de Moura Eça

SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça. 4ª Câmara de Direito Civil. Apelação Cível n. 2007.028489-6. Rel. Trindade dos Santos. Jul. 25. 11. 2008. SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça. 3ª Câmara de Direito Civil. Apelação Cível n. 2007.059088-5. Rel. Fernando Carioni. Jul. 26.05.2008. SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça.. 5ª Câmara de Direito Civil. Apelação Cível n. 2010.0015120-5. Rel. Odson Cardoso Filho. Jul. 12.04.2012. SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça. 3ª Câmara de Direito Civil. Apelação Cível n. 2012.007943-5, Relator: Marcus Tulio Sartorato. Jul. 26.06.2012. SANTOS, Marina Alice de Souza. Da titularidade dos alimentos gravídicos: uma (re) visão das teorias do início da personalidade. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, v. 17, p. 84-99, Porto Alegre: Editora Magister, 2010. SANTOS, Marina Alice de Souza. A natureza do afeto nas relações paterno-filiais frente à responsabilização civil. 2011. 122 f. Dissertação (Mestrado em Direito)- Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. Belo Horizonte. SÃO PAULO, Tribunal de Justiça. 8ª Câmara de Direito Privado. Apelação nº 9158850-24.2008.8.26.0000. Rel. Ribeiro da Silva. Jul. 26/09/2012. SÃO PAULO, Tribunal de Justiça. 3° Câmara de Direito Privado. Apelação Cível n. 0010707-14.2012.8.26.0032. Rel. Donegá Morandini. Jul. 27.11.2012.

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SOARES, Carlos Henrique; DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Manual Elementar de Processo Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite(Coord.). Manual de Direito das Famílias e das Sucessões, Belo Horizonte: Del Rey e Mandamentos, 2008. p. 35-52. TAVARES, José de Farias. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 4 ed. rev. ampl. e atual.com os dados comparativos entre os dispositivos do Código Civil de 1916 e o novo Código Civil de 2002.Forense. Rio de Janeiro: 2002. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autoridade Parental. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite(Coord.). Manual de Direito das Famílias e das Sucessões, Belo Horizonte: Del Rey e Mandamentos, 2008. p. 251-274. TEIXEIRA, José Altivo Brandão. Preliminares, mérito e carência de ação. Disponível no Centro de Recursos do curso de Pós Graduação lato sensu em Direito Processual Civil da PUCMinas Virtual, 2011. Recebido em 25/07/2015 - Aprovado em 11/09/2015.

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Direito AO Esquecimento Right to Forgetfulness Poliana Bozégia Moreira1

1 Bacharela em Direito pela Faculdade Presidente Antônio Carlos – Ubá. Advogada. e-mail: pbmoreira20@gmail.com

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Resumo: O artigo visa a analisar o chamado “direito ao esquecimento”, expressão relativamente nova no ordenamento jurídico brasileiro, mas que se refere a um conflito antigo entre os direitos da personalidade e os direitos relativos à informação e liberdade de expressão. Teve surgimento com a elaboração do Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal, com a finalidade de limitar a divulgação infinita de fatos pretéritos, que muitas vezes causam grandes transtornos aos envolvidos, ferindo o direito fundamental à privacidade e à intimidade. Trata-se de um conflito entre direitos fundamentais, de igual peso constitucional, que deve ser solucionado pelo julgador. Palavras-chave: Direito ao Esquecimento. Privacidade. Informação. Conflito. Harmonização.

Abstract: The article aims to analyze the so-called “right to forgetfulness”, a relatively new term in the Brazilian legal system, but it refers to an ancient conflict between the rights of personality and the rights to information and freedom of expression. It emerged with the elaboration of the Statement 531 of the VI Journey of Civil Law of the Federal Council of Justice, in order to limit the endless disclosure of past tense facts, which often cause great inconvenience to those involved, injuring the fundamental right to privacy and intimacy. It is a conflict between fundamental rights, of equal constitutional weight, which must be resolved by the judge. Key words: Right to forgetfulness. Privacy. Information. Conflict. Harmonization.

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Poliana Bozégia Moreira

1. Introdução

O

Enunciado n°. 531 da VI Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho de Justiça Federal (CJF), reconheceu o chamado “direito ao esquecimento”, segundo o qual “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação

inclui o direito ao esquecimento”. Consistindo no direito que as pessoas têm de serem esquecidas pelos atos praticados no passado, impedindo que crimes ocorridos anteriormente, pelos quais já tenham cumprido pena ou tenham sido considerados inocentes sejam divulgados infinitamente. Este tema tem sido abordado hoje como uma forma de proteção ao indivíduo da invasão de privacidade pela mídia, especialmente em relação a fatos públicos referentes ao passado da pessoa; e atualmente, a comunidade jurídica brasileira tem visto chegar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) reflexos dos novos valores trazidos pela tecnologia, os quais abordam este novo direito. Tal direito baseia-se em uma interpretação doutrinária do Código Civil, que enumera o direito de ser esquecido entre os direitos personalíssimos, referindo-se a um desdobramento do direito constitucional à intimidade e à proteção da imagem, que vem ganhando destaque em razão da facilidade de circulação e de manutenção de informação pela internet. Conforme discutido pelos magistrados Federais, na VI Jornada de Direito Civil, o ordenamento jurídico brasileiro assegura até mesmo ao condenado criminal o direito ao esquecimento, já que o artigo 93 do Código Penal dispõe sobre o direito à reabilitação do condenado dois anos após o cumprimento da pena ou extinção da punibilidade, quando preenchidas algumas condições, e no artigo 748 do mesmo diploma, prevê que após a reabilitação não será visível o registro da condenação, salvo quando solici-

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tado por juízo criminal. Diante desta situação, o presente artigo pretende confrontar duas vertentes principiológicas: de um lado, os princípios da intimidade e privacidade e do outro, os princípios da informação e liberdade de expressão, à luz do “direito ao esquecimento”, utilizando o método indutivo, pois através da análise de casos específicos envolvendo os direitos em confronto, buscou-se chegar à elaboração de uma regra geral e a técnica da pesquisa bibliográfica, analisando doutrina, legislação e jurisprudências, com a finalidade de entrar em contato com tudo que já foi escrito sobre o tema, constatando-se as regras aplicadas nessa situação para tentar-se chegar à solução do problema levantado.

2. Direito ao Esquecimento na Internet A origem do direito ao esquecimento, como um direito personalíssimo a merecer proteção, está na defesa do indivíduo em razão das invasões de privacidade pelas mídias sociais e sites de relacionamento. Com as evoluções tecnológicas – uma constante ao longo dos tempos – a internet, trouxe uma capacidade de armazenamento ilimitada, fazendo com que as informações fiquem disponíveis infinitamente. Fator até certo ponto positivo, haja vista que a internet é uma fonte inesgotável de conhecimento, mas que, no entanto, quando colide com os direitos fundamentais à privacidade e intimidade, pode se tornar um grande problema para os indivíduos envolvidos. Para se divulgar um conteúdo na internet não é preciso nenhuma identificação, há uma grande facilidade de circulação e de manutenção de informações; a qualquer tempo estão disponíveis, mesmo depois de decor-

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rido um grande lapso temporal. Fato é que qualquer informação pode ser postada sem nenhuma triagem sobre sua veracidade. Em razão disso, o instituto do direito ao esquecimento, já abrangido no âmbito da proteção constitucional da privacidade, vem ganhando forte importância, ressurgindo como uma das principais discussões no campo do Direito Digital2. Essa discussão ganhou destaque com a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, em meados de maio de 2014, imputando à empresa Google3 o dever de analisar e avaliar individualmente os pedidos de usuários, que buscam remover do seu site os resultados vinculados à pesquisa. Conforme este julgado caberá ao próprio site Google avaliar em cada pedido se o conteúdo contestado ofende o direito à privacidade do usuário, ou se há um interesse público na manutenção da informação. Quando se tratar de remoção de conteúdos postados ilicitamente por terceiros, o recente Marco Civil da Internet4, seguindo esta mesma linha de entendimento, contemplou que a retirada de conteúdos postados ilicitamente por terceiros deverá ser julgada por juízes de direito, afastando 2 O termo “Direito Digital” vem se tornado relativamente popular no Brasil para indicar questões jurídicas relativas à internet. É um campo do Direito que se dispõe a estudar os aspectos jurídicos relativos ao uso de computadores e da tecnologia da informação em geral, pautado no crescente desenvolvimento da internet e na sua importância nas relações jurídicas. É uma nova área de estudo do Direito, visando regulamentar as interações sociais ocorridas no campo da tecnologia da informação. Disponível em: <www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_ link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2901>. Acesso em 19 de setembro de 2014. 3 Google trata-se de uma empresa multinacional americana, surgida no ano de 1998, que fornece serviços online e produz software. Desenvolve e hospeda serviços e produtos baseados na internet, com a finalidade de organizar a informação mundial, tornando-a útil e universalmente acessível. Disponível em: <www.significados.com.br/google/>. Acesso em 09 out 2014. 4 Marco Civil da Internet, trata-se da Lei n°. 12.965, de 23 de abril de 2014, que regula o uso da internet no Brasil, tratando de temas como a privacidade, neutralidade da rede, retenção de dados, a função social a ser cumprida pela rede, principalmente para garantir a liberdade de expressão e a transmissão de conhecimento, além de atribuir responsabilidade civil aos usuários e provedores. Prevê princípios, garantias, direitos e deveres para quem utiliza a rede, bem como estabelece diretrizes para a atuação estatal. Disponível em: <www.conjur.com.br/ 2014-abr-23/ direito-comparado-primeiras-consideracoes-marco-civil-internet>. Acesso em 19 set 2014.

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dos provedores de internet a discricionariedade pela retirada da informação de seu site. Neste cenário, os magistrados deverão analisar se prevalecerá o direito de informação e liberdade de expressão ou os direitos da personalidade. Como todo choque entre princípios constitucionais, neste caso também há que se fazer uma harmonização, adotando-se cada princípio em sua medida, possibilitando o direito à informação, desde que estejam preservados os direitos individuais do cidadão, uma vez que a Constituição Federal preocupou-se em preservar o indivíduo, dotando-lhe de uma esfera mínima de proteção. Trata-se de um juízo de ponderação objetivando identificar, na prática, quais dos princípios em confronto deve prevalecer. Nesse sentido, a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (grifo meu) assevera: EMENTA:APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. PUBLICAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA SUPOSTAMENTE OFENSIVA AOS DIREITOS DE PERSONALIDADE, DE PRIVACIDADE E DE INTIMIDADE DOS AUTORES. CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS. DIREITO DE INFORMAÇÃO E DE LIBERDADE DE IMPRENSA. FATOS DE INTERESSE PÚBLICO. VERACIDADE DA NOTÍCIA. DEVER DE REPARAR INEXISTENTE. No caso em tela, a notícia veiculada pelo jornal demandado não ofendeu a intimidade ou a honra dos demandantes, que sequer foram citados na matéria. Com efeito, a publicação questionada informou, de maneira imparcial, a ocorrência de operação da Polícia Federal no combate ao tráfico de drogas, não tendo as imagens reproduzidas o condão de induzir os leitores em erro, pois estampam apenas os fatos. Ademais, no caso concreto, o juízo de ponderação do princípio da proporcionalidade indica que o interesse público existente no caso deve preponderar sobre o direito à inviolabilidade da intimidade e da privacidade. Por fim, não comprovaram os autores a ocorrência de repercussão negativa que conferisse supedâneo ao alegado abalo moral sofrido. Dessa forma,

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Poliana Bozégia Moreira foram obedecidos os limites constitucionais do direito de informação e de liberdade de imprensa, previstos no artigo 5º, inciso IX e no artigo 220, § 1º da Carta Magna, inexistindo conduta ilícita capaz de gerar o dever de indenizar. NEGADO PROVIMENTO AO APELO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70029002441, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Odone Sanguiné, Julgado em 10/06/2009).

Desse modo, aquele que se sentir lesado em razão de publicações na internet, deverá recorrer ao Poder Judiciário. E então, caberá ao magistrado responsável reconhecer se é necessária a remoção do conteúdo, priorizando assim o “direito ao esquecimento” do requerente, ou se tendo em vista o interesse público envolvido, será mais importante a manutenção da informação no universo digital.

3. Princípios Constitucionais 3.1. Direito à Intimidade, à Privacidade, à Honra e à Imagem A Constituição Federal, em seu artigo 5°, X expressamente erigiu os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas como um direito individual fundamental. Tem-se a privacidade como o conjunto de dados sobre a pessoa, que ela pode definir se quer manter somente em seu conhecimento, ou se quer compartilhar, decidindo com quem, onde e em que condições, não podendo ser obrigada a isso. A intimidade quase sempre é considerada sinônima da privacidade, porém a Constituição trouxe uma distinção, já que no inciso X do artigo 5°, há uma expressa diferenciação entre a intimidade e as demais manifestações

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da privacidade: vida privada, a honra e imagem das pessoas. Segundo Dotti (apud SILVA, 2010, p. 207), a intimidade constitui “a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais”. Neste sentido, abarca a inviolabilidade de domicílio, o sigilo de correspondência, o segredo profissional. Ao instituir a casa como asilo inviolável do indivíduo (artigo 5°, XI), a Constituição reconhece o direito do homem de ter um local em que viva só ou com sua família, em que usufruirá de uma esfera jurídica privada e íntima, que deverá ser respeitada como intocável manifestação da pessoa humana, comportando o direito a uma vida familiar livre de qualquer intromissão alheia. No sigilo à correspondência encontra-se a proteção dos segredos pessoais, que pertencem apenas aos correspondentes, abarcando o direito à expressão e à comunicação. O segredo profissional é um dever de quem exerce uma profissão regulamentada, em razão da qual toma conhecimento de segredos de outra pessoa e deve guardá-lo com zelo. O titular desse segredo é protegido pelo direito à intimidade, não podendo ser divulgado pelo profissional, pois devassaria a esfera íntima do indivíduo, sob pena de incidir em sanções cíveis e penais. Segundo o texto constitucional, a vida privada compreende dois aspectos, um voltado para a vida exterior, que envolve o indivíduo nas interações sociais e nas atividades públicas, podendo ser objeto de pesquisa e divulgação de terceiros, considerando que é pública; e outro aspecto voltado para a vida interior, que refere à própria pessoa, sobre sua família e amigos. É a essa vida interior a que a Constituição se refere como inviolável no artigo 5º, X. Tal dispositivo também declara como invioláveis a honra e a imagem das pessoas, as quais constituem um direito à privacidade ou da intimidade, mas é objeto do direito da personalidade.

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A honra é o conjunto de qualidades que caracterizam a dignidade da pessoa, o respeito aos outros cidadãos, a reputação, o bom nome, sendo direito fundamental de o indivíduo resguardar essas qualidades, até mesmo contra ataques da verdade, pois se contrário à dignidade da pessoa, deverá ser mantido em segredo. Trata-se da tutela do aspecto físico, como se é perceptível visivelmente à imagem das pessoas, que também é inviolável para a Constituição Federal, refletindo na esfera moral do indivíduo. 3.2. Direito à informação e à Liberdade de Expressão A comunicação teve um crescimento exponencial nas últimas décadas e passou a ser uma necessidade fundamental das sociedades, configurando-se como um novo direito social. A liberdade de informação assegurada pelos incisos IV, V, IX, XII e XIV combinados com os artigos 220 a 224 da Carta Magna, compreende as formas de criação, expressão e manifestação do pensamento e de informação, e a organização dos meios de comunicação. Nas palavras de Silva (2010, p. 243), “a liberdade de comunicação consiste num conjunto de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação”. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 19º assegurou que “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por quaisquer meio de expressão”. O direito à informação trata-se de um direito coletivo, ou seja, refere-se do direito que a coletividade tem de ter acesso à informação. Até mesmo o direito de informar – direito subjetivo do indivíduo de manifestar o próprio

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pensamento – como aspecto da liberdade de manifestação de pensamento, que na sua essência trata-se de um direito individual, já foi contaminado de sentido coletivo “em virtude das transformações dos meios de comunicação social ou de massa, envolve a transmutação do antigo direito de imprensa e de manifestação do pensamento, por esses meios, em direitos de feição coletiva”, segundo Silva (2010, p. 260). Tal distinção foi reconhecida pela Constituição que em seus artigos 220 a 224 trata da liberdade de informar no sentido de liberdade de manifestação de pensamento e no artigo 5º, incisos XIV e XXXIII, e do direito à informação como um direito coletivo. Assegura a todos o acesso à informação contrapondo-se ao interesse individual de livre manifestação do pensamento, veiculados pelos meios de comunicação social. Assim, a liberdade de informação deixa de ser mera função individual, para adquirir função social quando passa ser um instrumento de formação de opinião pública. A liberdade de expressão tem cunho intelectual em que o homem tenta participar os demais indivíduos de seus conhecimentos, suas crenças, suas opiniões políticas e religiosas, entre outros, caracterizando-se como uma exteriorização dos pensamentos. A Carta Magna de 1988 não só reconheceu o direito à informação como também proibiu a censura – submissão à deliberação de outro indivíduo o conteúdo da manifestação de pensamento, como condição para sua veiculação – que vinha sendo praticada em regime anterior5. Desta forma a veiculação das manifestações de pensamento passou a

5 A Ditadura Militar foi um período da política brasileira, entre 1964 e 1985, em que os militares governaram o Brasil. Consagrou normas que suprimiram a democracia, limitando os direitos constitucionais do indivíduo, promovendo a censura, a perseguição política dos opositores do governo e reprimindo todos que eram contra o regime militar. Disponível em: <www. suapesquisa.com/ditadura/>. Acesso em 09 de outubro de 2014.

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não depender de controle prévio, propiciando a liberdade de expressão. A norma constitucional vedou expressamente a censura, garantindo a liberdade de informação e comunicação, destacando Mendes e Branco: Não é o Estado que deve estabelecer quais as opiniões que merecem ser tidas como válidas e aceitáveis; essa tarefa cabe, antes, ao público a que essas manifestações se dirigem. Daí a garantia do art. 220 da Constituição brasileira. Estamos, portanto, diante de um direito de índole marcadamente defensiva – direito a uma abstenção pelo Estado de uma conduta que interfira sobre a esfera de liberdade do indivíduo. (2014, p. 265).

No entanto, não significa que a liberdade de expressão não deve ter compromisso com os demais direitos consagrados no Texto Constitucional. Deste modo, se até mesmo a liberdade de ir e vir pode sofrer restrições para preservar outros direitos fundamentais, o mesmo poderá ocorrer com a liberdade de expressão. Apesar do papel de promoção da cidadania e de ser um importante instrumento da democracia, a liberdade de expressão está inserida no contexto das liberdades públicas, logo, não é o único interesse ou direito protegido constitucionalmente. Portanto, não se trata de um valor isolado no ordenamento jurídico, e por isso não possui primazia sobre os demais direitos fundamentais.

4 . D ireito ao E s q uecimento : uma Harmonização de Direitos Fundamentais É incontestável na sociedade atual, que a imprensa é um veículo formador de opinião pública mais até que informativa. Também é in-

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questionável que a Constituição Federal de 1988 consagrou a liberdade de expressão como um direito fundamental, assumindo um importante papel na consolidação da democracia como uma defesa contra a censura experimentada nos regimes anteriores, revelando-se como uma liberdade pública fundamental – uma prerrogativa do indivíduo frente ao Estado. Com a liberdade de expressão começaram a ocorrer abusos pelos meios de comunicação, ocasionando graves lesões ao direito de intimidade do cidadão e violando-se outros direitos constitucionais como o da presunção de inocência, previsto no artigo 5°, inciso LVII da Carta Magna. Questão que suscitou um questionamento: pode a liberdade de expressão e a informação causarem lesões à honra e imagem do indivíduo? Diante desta situação surgiu um conflito entre a liberdade de expressão e informação, de um lado, e os direitos da personalidade (intimidade, honra e imagem), de outro, ambos direitos fundamentais igualmente protegidos, ocasionando a chamada colisão de direitos fundamentais, sendo necessário salientar que a Constituição de 1988 expressamente proíbe a censura. Nesse sentido jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (grifo meu): EMENTA: DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. LIBERDADE DE IMPRENSA. LIMITES. REPRODUÇÃO DE INFORMAÇÕES COLHIDAS EM BOLETIM DE OCORRÊNCIA. POSTERIOR TERMO CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA EM SENTIDO CONTRÁRIO. VERACIDADE. PREVALÊNCIA DA LIBERDADE DE IMPRENSA. 1. Na colisão de direitos fundamentais à liberdade de expressão e direitos da personalidade relativos à honra, imagem e privacidade, adota-se, inclusive no direito pátrio, modelo desenvolvido pela Supreme Court norte-americana para a solução de conflitos entre a liberdade de expressão e a privacidade. Procura-se compatibilizar, na espécie, a proteção dos direitos da personalidade com o interesse público no

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Poliana Bozégia Moreira acesso à informação característico dos regimes democráticos. 2. O direito à liberdade de imprensa não é absoluto, havendo de ser exercido em harmonia com outros previstos na Constituição. O exercício da liberdade de expressão e informação está dentro do marco traçado para a sua forma lícita de ação. A colisão dos princípios deve ser solucionada pela ponderação balizada na análise do caráter público da informação, bem como do limite interno da veracidade que conforma a liberdade de expressão e informação. (TJMG - Apelação Cível 1.0024.12.220829-1/001, Relator (a): Des.(a) Cabral da Silva, 10ª Câmara Cível, julgamento em 03/12/2013, publicação da súmula em 19/12/2013).

Todavia, a censura ter sido ter sido efetivamente proibida, o constituinte brasileiro estabeleceu alguns limites para o exercício das liberdades de expressão e de imprensa. Esses limites surgem diante do choque com outros direitos fundamentais, com base no princípio da unidade da Constituição, e acabam restringindo esses direitos, diante da obrigação de harmonização dos direitos em conflito. O princípio da unidade da Constituição conduz ao entendimento de que se devem evitar contradições entre as normas constitucionais, principalmente quando se tratar de princípios jurídicos constitucionalmente estruturantes, compelindo o intérprete a considerar a Carta Magna em sua totalidade, não apenas como normas isoladas e dispersas, mas sim como regras integradas num sistema interno unitário de normas e princípios. No conflito entre direitos fundamentais, um não anula o outro; eles impõem ao intérprete a composição dos conflitos de interesses para determinar os limites concretos aos princípios em choque. Nos dizeres de Mendes e Branco: [...] No conflito entre princípios, deve-se buscar a conciliação entre eles, uma aplicação de cada qual em extensões variadas, segundo a respectiva relevância do

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REVISTA DE DIREITO caso concreto, sem que se tenha um dos princípios como excluído do ordenamento jurídico por irremediável contradição com o outro. (2014, p. 183).

Segundo Dworkin, (apud MENDES; BRANCO, 2014, p. 73/74), os princípios, em razão de sua dimensão de peso, podem interferir uns nos outros, e para resolver o conflito deve ser levado em consideração o peso de cada um. Admite-se que isto não se faz por meio de critérios de mensuração exatos, mas através de questionamentos sobre quão um princípio é mais importante, ou seja, qual o seu peso numa dada situação. Não se chega à solução de conflitos entre princípios tomando um como exceção ao outro. O que ocorre é um confronto entre normas que estão em paralelo. Para Dworkin, os princípios demonstram os valores morais da sociedade e tornam-se elementos próprios do discurso jurídico. Tendo em vista a proteção ao direito à intimidade e à dignidade da pessoa humana, o titular da liberdade de expressão ou de imprensa, deve observar os demais direitos fundamentais, e dosar sua liberdade com responsabilidade. Essa limitação está baseada no conceito clássico de que os direitos fundamentais não são absolutos e podem ser restringidos por outros direitos de mesma hierarquia. Neste caso, estes tem que ser limitados entre si e harmonizados através da aplicação do princípio da proporcionalidade, que estabelece um juízo de ponderação, explicado por Mendes e Branco da seguinte forma: O juízo de ponderação a ser exercido liga‐se ao princípio da proporcionalidade, que exige que o sacrifício de um direito seja útil para a solução do problema, que não haja outro meio menos danoso para atingir o resultado desejado e que seja proporcional em sentido estrito, isto é, que o ônus imposto ao sacrificado não sobreleve o be-

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Poliana Bozégia Moreira neficio que se pretende obter com a solução. Devem‐se comprimir no menor grau possível os direitos em causa, preservando‐se a sua essência, o seu núcleo essencial. [...] (2014, p. 184).

Assim, tem-se que não é possível criar uma fórmula genérica para solucionar o conflito entre esses princípios, a solução dependerá de uma análise das particularidades do caso concreto. Pensamento este, também verificado na obra de Mendes e Branco, que dispõem que para “solucionar o conflito, hão de se considerar as circunstâncias do caso concreto, pesando-se os interesses em conflitos, no intuito de estabelecer que princípio há de prevalecer, naquelas condições específicas, segundo um critério de justiça prática” (2014, p. 183, grifo do autor). Nesse sentido a elaboração do Enunciado n°. 531, reconhecendo o surgimento do chamado “direito ao esquecimento”, demonstra uma tentativa de pautar o exercício da liberdade de comunicação no interesse público sobre o fato divulgado e na necessária preservação da dignidade da pessoa humana, resguardando a aplicação de ambos os princípios em maior e menor medida, diante da análise de cada caso concreto.

5. Aplicação do Direito ao Esquecimento 5.1. Caso Chacina da Candelária Na madrugada de 23 de julho do ano de 1993, oito meninos de rua que dormiam em frente à igreja da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro, foram mortos a tiros disparados por policiais. O motivo seria a vingança contra o apedrejamento de uma viatura pelos menores no dia anterior. Um dos menores que tomou quatro tiros sobreviveu e se tornou a única teste-

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munha da tragédia, que ficou conhecida como “a Chacinada Candelária” e ganhou repercussão internacional. Um dos acusados à época e posteriormente inocentado pelo Tribunal do Júri por unanimidade, o Sr. Jurandir Gomes de França, foi procurado pela equipe do programa televisivo Linha Direta6, que desejava retratar o ocorrido em um de seus episódios e colher seu depoimento sobre o seu indiciamento no caso. No entanto, o mesmo manifestou não querer ver seu nome envolvido mais uma vez na tragédia ocorrida, buscando evitar reviver os dramas sofridos no curso do processo penal. Posteriormente houve a veiculação do episódio no referido programa, mencionando seu nome verdadeiro, mesmo contra sua vontade expressa, ressurgindo no meio em que vivia o interesse e a desconfiança de todos, em que muitos voltaram a vê-lo como culpado pelo crime. Em razão da violação de sua imagem e invasão de sua esfera privada sem prévia autorização, o Sr. Jurandir ingressou com uma ação de indenização contra a emissora buscando uma reparação pelos danos morais sofridos. Em primeira instância seus pedidos foram julgados improcedentes ao argumento de que as publicações da imprensa só poderiam ensejar reparação quando existir dolo, o que não existe e nem pode existir se os fatos levados a público eram verdadeiros e foram noticiados exatamente da forma como ocorreram. Entendimento este que não foi mantido pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro nos autos da Apelação Cível de n°. 2008.001.48862 (Processo originário de n°. 0029569-97.2007.8.19.0001), que reformou a sentença, condenando o apelado, Globo Comunicações e Participações 6 Programa televisivo, especializado em recontar crimes ocorridos no passado, veiculado pela emissora Rede Globo (Globo Comunicações e Participações S/A). Disponível em: < http:// memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/programas-jornalisticos/linha-direta/curiosidades.htm>. Acesso em 05 de novembro de 2014.

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S/A ao pagamento da quantia de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), ao apelante, o Sr. Jurandir. Entendeu-se que neste caso a Rede Globo invadiu o anonimato de um homem esquecido, e esquecido principalmente por ter sido absolvido, contrariando sua vontade expressa de assim o permanecer, com a intenção de lucrar com um episódio histórico, que simplesmente poderia ter sido contado sem a revelação de seu nome verdadeiro. Em seu voto, o Relator, Desembargador Eduardo Gusmão Aves de Brito Neto, ressaltou que: [...] Não há como negar, com efeito, que certos episódios históricos são, ao final, bem como seus participantes, insuscetíveis de serem esquecidos. São fatos que se prendem à própria essência de um povo ou marcaram de forma indelével a história, que a seu turno há de ser recontada para a formação da identidade cultural do país. Não há, por exemplo, como falar da história americana sem mencionar o assassinato de Kennedy em novembro de 1963 por um homem chamado Lee Oswald. Tampouco é razoável supor a impossibilidade de lançar no esquecimento as circunstâncias que levaram à morte de Euclides da Cunha e mais tarde seu próprio filho. Como Capitu e Bentinho, são todas estas pessoas reféns de um momento em que saíram do anonimato e entraram na história.Todavia, contra esta regra devem ser erguidas necessárias barreiras de proteção ao cidadão. Assim, por exemplo, não se justifica o retorno ao passado com a divulgação de nomes dos envolvidos se o réu foi absolvido e o episódio, embora marcante e hediondo, possa ser contado sem a revelação de sua presente identidade. Porque ao lado do direito coletivo de conhecer os fatos do passado, há também aquele inerente à dignidade da pessoa humana, de não ter a existência sacrificada por um erro judiciário ou pela notoriedade que o episódio involuntariamente conquistou. Penso que esta seja a hipótese dos autos. O crime da Candelária teve os seus culpados e estes foram condenados. Quem queira recontar a estória, que o faça preservando o anonimato daqueles que foram absolvidos. Estes tem o direito de serem esquecidos, nada justificando o sa-

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REVISTA DE DIREITO crifício de sua própria vida, além da tomada daqueles anos durante os quais tramitou o processo. [...] (BRASIL, 2008).

Ficou evidenciado no voto do Ilustre Desembargador que apesar do direito à informação ter papel de destaque no atual ordenamento jurídico, este não é amplo e irrestrito, encontrado limitações no também fundamental princípio da dignidade da pessoa humana. Certamente alguns episódios se tornaram marcantes e constituem a própria identidade cultural do país, devendo ser recontados a fim de que se entenda a história daquela nação. No entanto, há que se preservar a identidade daqueles que foram considerados inocentes. Nota-se hoje, que a informação deixou de ser só um direito e passou a ser utilizada como uma atividade lucrativa, em que menospreza o direito à privacidade da pessoa objeto da informação em busca do dinheiro que a aquela notícia renderá para quem a veicula. Desse modo, há que se estabelecerem limites ao direito de informação, proporcionando uma harmonização com os direitos decorrentes da privacidade do indivíduo, levando-se em consideração as especificidades do caso concreto para se verificar qual direito prevalecerá naquela situação. 5.2. Caso Aída Curi O caso Aída Curi ocorreu no bairro de Copacabana na cidade do Rio de Janeiro, no dia 14 de julho de 1958, em que a mesma, na época com 18 anos de idade, foi arrastada até o topo do Edifício Rio Nobre por dois rapazes, que foram ajudados pelo porteiro a abusar sexualmente da mesma. Segundo a perícia, Aída foi submetida a pelo menos trinta minutos de tortura e luta corporal com os três agressores, até vir a desmaiar. Para encobrir o

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crime, os mesmos atiraram a jovem do terraço do prédio tentando simular um suicídio. Este crime foi um dos mais famosos nos jornais policiais da época devido à forte comoção gerada na população. E em razão dessa notoriedade, foi um dos crimes também apresentados no programa televisivo Linha Direta. Em razão disso, os irmãos da vítima ingressaram com uma ação de indenização por danos morais, materiais e à imagem contra a emissora, alegando que o crime teria sido esquecido no decorrer do tempo e que a exibição do programa trouxe à tona todo o sofrimento que sentiram na época do fato, reabrindo as antigas feridas da família. Sustentaram também que notificaram previamente a emissora de que não autorizavam a exposição do crime novamente, e em razão disso, houvera enriquecimento ilícito da emissora, com a exploração da tragédia familiar, obtendo lucros com audiência e publicidade. O juiz de Primeira Instância julgou o pedido dos autores improcedentes sob o fundamento de que o fato era de conhecimento público e que havia sido amplamente divulgado à época em que ocorreu, tendo a emissora apenas executado o seu papel de informar, alertando e abrindo debates sobre o controvertido caso. A sentença foi mantida em Segunda Instância ensejando a interposição de Recurso Especial para o STJ. O recurso foi julgado pela Quarta Turma que entendeu que a liberdade de imprensa encontra algumas limitações, como por exemplo: [...] (I) o compromisso ético com a informação verossímil; (II) a preservação dos chamados direitos da personalidade, entre os quais incluem-se os direito à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade; e (III) a vedação de veiculação de crítica jornalística com o intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandi vel diffamandi) [...]. (Recurso Especial 801.109/DF,

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REVISTA DE DIREITO Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 12/06/2012).

O julgamento deste recurso evidenciou a necessidade de que o conflito entre direitos da personalidade e a liberdade de informação devem analisados a partir da nova realidade social, de informações massificadas, chocando-se diariamente com o surgimento de novos direitos resultantes da proteção da dignidade da pessoa humana. Em seu voto, o Ministro Relator Luis Felipe Salomão, ressaltou que o conflito entre os bens jurídicos aqui discutidos, via de regra, é solucionado com certa inclinação ou predileção constitucional para soluções protetivas do indivíduo, embora a solução mais eficaz devesse ser a observação das particularidades do caso concreto. Isto ocorre, pois a despeito da informação livre de censura integrar o rol de direitos fundamentais (artigo 5°, inciso IX), a Constituição Federal atribuiu importante proteção ao homem, ao prever em seu primeiro artigo (artigo 1º, inciso III) a proteção da dignidade da pessoa humana, demonstrando que mais que um direito fundamental, trata-se de um dos fundamentos da República, pelo qual devem ser interpretados os demais direitos. No entanto, deve ser levado em consideração o comprometimento com a história da sociedade, considerada patrimônio imaterial, em que se inserem os acontecimentos e personagens capazes de evidenciar para o futuro os traços culturais, sociais e políticos de uma determinada época, pois a adoção do direito ao esquecimento faria com que crimes e criminosos que entraram para a história simplesmente desaparecerem. A análise de crimes passados pode servir para verificar como o ser humano e, por consequência, a própria sociedade evoluiu ou regrediu em determinados momentos, no concernente a valores éticos e humanitários,

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e qual foi a resposta dado pelos aparelhos estatais aos fatos, demonstrando, por exemplo, para onde está caminhando a humanidade e a criminologia. É certo que não só o ofensor tem direito ao esquecimento quanto também a vítima e seus familiares, não sendo permitido que os canais de informação se enriqueçam mediante a exploração comercial das adversidades pelas quais passaram. Porém, nos crimes com grande repercussão nacional, o ofendido, pela situação ocorrida, torna-se elemento indissociável da infração, o que em geral inviabiliza a narrativa do fato caso se omita a figura da vítima. Seria, por exemplo, recontar o caso Doroty Stang, sem Doroty Stang; o caso Vladimir Herzog, sem Vladimir Herzog, entre outros que estiveram na história passada e recente do quadro criminal brasileiro. Nas palavras do Ministro Relator Luis Felipe Salomão: [...] Com efeito, o direito ao esquecimento que ora se reconhece para todos, ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Ainda Curi, sem Ainda Curi. É evidente e possível, caso a caso, a ponderação acerca de como o crime se tornou histórico, podendo o julgador reconhecer que, desde sempre, o que houve foi uma exacerbada exploração midiática, e permitir novamente essa exploração significaria conformar-se com um segundo abuso só porque o primeiro já ocorrera. Porém, no caso em exame, não ficou reconhecida essa artificiosidade ou o abuso antecedente na cobertura do crime, inserindo-se, portanto, nas exceções decorrentes da ampla publicidade a que podem se sujeitar alguns delitos. [...] (BRASIL, 2103).

O não provimento deste Recurso Especial deixa claro que como todo direito, nem mesmo o direito ao esquecimento é absoluto, encontrando algumas limitações nos casos concretos. Dessa forma, apesar de se

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reconhecer tal direito, muitas vezes determinados fatos e pessoas ficam tão marcadas na história, que dificilmente serão esquecidos. Mais uma vez resta claro que o reconhecimento do chamado “direito ao esquecimento” depende de uma análise caso a caso para se chegar a uma solução mais próxima do ideal, tendo em vista tratar-se de um conflito entre direitos de igual valor no ordenamento jurídico brasileiro – direitos da personalidade X direito de informação/liberdade de expressão.

6. Considerações Finais Como se tratam de direitos fundamentais e possuem igual valor perante a Constituição Federal, a solução mais efetiva é fazer uma análise do caso concreto, com suas particularidades e ponderar qual direito irá prevalecer, pois não obstante o fato de os envolvidos possuírem o direito de serem esquecidos, pela historicidade do fato, isso nem sempre será possível. O direito ao esquecimento é um avanço na proteção da dignidade da pessoa humana, mas como os demais direitos fundamentais não é absoluto, podendo ser restringido em casos de grande repercussão social que acabam por construir a história do país, de modo que é impossível relembrá-los sem mencionar o nome dos envolvidos. Assim não há uma única solução para o choque entre os direitos da informação e da privacidade, pois esta dependerá de cada caso, prevalecendo o direito de informar ou o direito de ser esquecido a depender das particularidades dos fatos analisados.

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ReferênciaS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especialnº 1.335.153 - RJ (2011/0057428-0). Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, DF, 28 de maio de 2013. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=31006938&n um_registro=201100574280&data=20130910&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em 05 de novembro de 2014. ______. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível N°. 1.0024.12.22 0829-1/001. Relator: Desembargador Cabral da Silva. Belo Horizonte, MG, 03 de dezembro de 2013. Disponível em: <http://www5. tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcordao.do?&numer oRegistro=1&totalLinhas=5&paginaNumero=1&linhasPorPagina=1&pa lavras=privacidade%20E%20informa%E7%E3o%20E%20colis%E3o%20 E%20pondera%E7%E3o&pesquisarPor=ementa&pesquisaTesauro=true& orderByData=1&referenciaLegislativa=Clique%20na%20lupa%20para%20 pesquisar%20as%20refer%EAncias%20cadastradas...&pesquisaPalavras=P esquisar&>. Acesso em 05 de novembro de 2014. ______. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Apelação Cível n°. 2008.001.48862.Relator: Desembargador Eduardo Gusmão Aves de Brito Neto. Rio de Janeiro, RJ, 13 de novembro de 2008. Disponível em: <http:// www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=0003EED1 89BD70D943FB4DF9D32CC4F954CF62C40213455F>. Acesso em 05 de novembro de 2014.

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______. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº. 70029002441. Relator: Desembargador Odone Sanguiné. Porto Alegre, RS, 10 de junho de 2009. Disponível em: <http://www. tjrs.jus.br/busca/search?q=cache:www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/ consulta_processo.php%3Fnome_comarca%3DTribunal%2Bde%2BJusti %25E7a%26versao%3D%26versao_fonetica%3D1%26tipo%3D1%26id_ comarca%3D700%26num_processo_mask%3D70029002441%26num_pro cesso%3D70029002441%26codEmenta%3D2964636+privacidade+inform a%C3%A7%C3%A3o+pondera%C3%A7%C3%A3o+++&proxystylesheet= tjrs_index&client=tjrs_index&ie=UTF-8&lr=lang_pt&site=ementario&ac cess=p&oe=UTF-8&numProcesso=70029002441&comarca=Comarca%20 de%20Ere chim&dtJu lg=10/06/2009&rel ator=O done%20 Sanguin%C3%A9&aba=juris>. Acesso em 04 de novembro de 2014. ______. VADE MECUM (2014).17. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2012. FILARETO, Juliana. No Brasil, direito ao esquecimento na internet depende do Judiciário. Disponível em: <http//:www.conjur.com.br/2014-ago-03/ juliana-filareto-direito-esquecimento-depende-judiciario>. Acesso em 17 de setembro de 2014. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. ______, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

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RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Direito ao esquecimento na perspectiva do STJ. Disponível em: <http:// www.conjur.com.br/2013-dez-19/ direito-comparado-direito-esquecimento-perspectiva-stj>. Acesso em 17 de setembro de 2014. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.

Recebido em 14/12/2014 - Aprovado em 15/04/2015.

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APELAÇÃO CÍVEL Nº 0006422- 26.2011.8.26.0286 APELANTES: VIVIAN MEDINA GUARDIA E AUGUSTO BAZANELLI APELADO: JUÍZO DA COMARCA JUIZ: CÁSSIO HENRIQUE DOLCE DE FARIA RELATOR: EXMO. SR. DES. ALCIDES LEOPOLDO E SILVA JUNIOR DATA DO JULGAMENTO: 14/08/2012 DATA DE REGISTRO: 14/08/2012

EMENTA MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da maternidade biológica - Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade - Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade - Recurso provido.

ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação nº 000642226.2011.8.26.0286, da Comarca de Itu, em que são apelantes VIVIAN

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MEDINA GUARDIA e AUGUSTO BAZANELLI, é apelado JUÍZO DA COMARCA. ACORDAM, em 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso. V. U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores RUI CASCALDI (Presidente sem voto), DE SANTI RIBEIRO E ELLIOT AKEL. São Paulo, 14 de agosto de 2012. DES. ALCIDES LEOPOLDO E SILVA JÚNIOR – Relator

O SR. DES. ALCIDES LEOPOLDO E SILVA JUNIOR: RELATÓRIO E VOTO Trata-se de ação declaratória de maternidade socioafetiva c.c. retificação de assento de nascimento, julgada parcialmente procedente, apenas para incluir no assento de nascimento do requerente o patronímico da coautora, porém, foi afastado o reconhecimento da filiação socioafetiva. Os autores apelaram pretendendo a reforma (fls. 88/98). A d. Procuradoria de Justiça opinou pelo provimento do recurso (fls. 107/108). É o Relatório. Conforme narrado na inicial, o autor, nascido em 26/06/1993, perdeu sua mãe biológica, três dias depois do parto, em decorrência de acidente vascular cerebral. Meses após, seu pai conheceu a requerente, e se casaram, quando a criança tinha dois anos, e foi por ela criado como filho, com quem convive até o presente.

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A autora poderia simplesmente adotar o enteado, mas por respeito à memória da mãe, vítima de infortúnio, que comoveu toda a comunidade, que a homenageou, atribuindo seu nome a uma rua e a um Consultório Odontológico Municipal, e por carinho a família dela, com quem mantém estreito relacionamento, optou pela presente via. É certo que a filiação não decorre unicamente do parentesco consanguíneo. O art. 1.593 do Código Civil é expresso no sentido de que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. De “outra origem”, sem dúvida alguma, pode ser a filiação socioafetiva, que decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes. As fotografias anexadas mostram a autora, durante muitos anos, participando efetivamente de fatos e momento importantes na formação da criança, nos seus aniversários, nas reuniões da escola, nos passeios, viagens, festas, mas também, na reclusa do lar, sobressaindo em todas as imagens, desde aquelas em que ainda está seguro no colo, até as mais recentes, já adulto e estudante de Direito, mesma profissão da requerente, a expressão de felicidade. A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade, haja vista o reconhecimento da união estável como entidade familiar (art. 226, § 3º, CF), e a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (art. 227, § 6º, CF). As relações familiares deitam raízes na Constituição da República, que tem como um dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa Humana

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(art.1º, III), ou seja, como preleciona Jorge Miranda1, “na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado”, além da formação de uma sociedade solidária (art. 3º). Por isso o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a possibilidade de adoção por duas mulheres, diante da existência de “fortes vínculos afetivos” (REsp 889852/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/04/2010, DJe 10/08/2010), e, assim, da mesma forma, no caso específico, não se pode negar a pretensão, de reconhecimento da maternidade socioafetiva, preservando-se a maternidade biológica. O mesmo Tribunal Superior tem entendido que: “a filiação socioafetiva encontra amparo na cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade da criança” (REsp 450.566/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/05/2011, DJe 11/05/2011), e que “não se pode olvidar que a construção de uma relação socioafetiva, na qual se encontre caracterizada, de maneira indelével, a posse do estado de filho, dá a esse o direito subjetivo de pleitear, em juízo, o reconhecimento desse vínculo, mesmo por meio de ação de investigação de paternidade, a priori, restrita ao reconhecimento forçado de vínculo biológico” (REsp 1189663/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/09/2011, DJe 15/09/2011). Não se evidencia qualquer tipo de reprovação social, ao contrário, pelo caminho da legalidade (diversamente da via comumente chamada de “adoção à brasileira”), vem-se consolidar situação de fato há muito tempo consolidada, pela afeição, satisfazendo anseio legítimo dos requerentes e de suas famílias, sem risco à ordem jurídica. 1 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. Tomo IV. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p.180.

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Pelo exposto, DÁ-SE PROVIMENTO ao recurso para declarar-se a maternidade socioafetiva de Vivian Medina Guardia em relação a Augusto Bazanelli Guardia, que deve constar do assento de nascimento, sem prejuízo e concomitantemente com a maternidade biológica.

COMENTÁRIOS AO ACÓRDÃO SOFIA DUARTE FIALHO Advogada e Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Viçosa O respeitável acórdão, objeto destes breves comentários foi proferido pela 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, e versa sobre o pedido de reconhecimento de maternidade socioafetiva, sem exclusão da maternidade biológica já existente. Trata-se, assim, de temática atinente ao novel instituto conhecido como multiparentalidade. Inicialmente, é importante ressaltar que o primado de valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a afetividade e o melhor interesse da criança e do adolescente compõe o cenário hábil à formação e consolidação de novos arranjos familiares na sociedade contemporânea brasileira. Isso porque, com o advento da Constituição Federal de 1988, a concepção de família abandonou o paradigma patriarcal e matrimonializado até então vigente, para se afirmar como um núcleo plural e eudemonista, que não se origina mais apenas através do casamento, e se pauta primordialmente nos vínculos de afeto2. Dessa forma, a família deixa de constituir um instituto formal, imu2 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 41, 58.

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tável e indissolúvel3, para se afigurar como um verdadeiro instrumento de realização da personalidade e dignidade de cada um de seus integrantes, os quais se unem pelo amor mútuo4. Em razão disso, a socioafetividade se consolidou em nosso ordenamento como fator determinante da filiação, ao lado dos critérios jurídico e biológico já existentes. Sua importância se materializa em legitimar a relação entre pessoas que se veem como pais e filhos, a despeito da ausência de vínculos genéticos. Nesse contexto, verificam-se conjunturas familiares em que, por diversos motivos, um filho verdadeiramente considera possuir mais de um pai ou mais de uma mãe, sendo um biológico, e outro socioafetivo. Denominado como multiparentalidade, esse fenômeno começa a ser posto ao Poder Judiciário, em função da vontade dos indivíduos de obter o reconhecimento jurídico dessa situação de fato, mediante a anotação simultânea de mais de uma paternidade ou maternidade no assento de nascimento. É justamente o que se observa dos fatos narrados no acordão em comento. Para compreender como a multiparentalidade se delineia, impende considerar que tal situação se assenta fundamentalmente em três aspectos: a crescente formação de famílias recompostas, a consagração da filiação socioafetiva como modalidade de parentesco civil e a coexistência, no plano factual, das filiações biológica e socioafetiva. Nesse sentido, são as lições de Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues: A liberdade de constituição familiar, marcada não só pela possibilidade de desconstituição do casamento - inaugurada pela Lei do Divórcio, em 1977 -, mas também pela possibilidade de se constituir família por meios infor3 LÔBO, Paulo. Famílias. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 52. 4 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional nas relações familiares. p. 05. Disponível em:<http://d.yimg.com/kq/groups/15017587/813150887/name/GUSTAVO%20TEPEDINO%20Rela%C3%A7%C3%B5es%20Familiares.pdf.>. Acesso em: 29 out. 2015.

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REVISTA DE DIREITO mais, e, de maneira igualmente informal, pôr fim à sua existência, gerou o fenômeno social, hoje, amplamente disseminado em nossa realidade, consistente na formação das chamadas famílias recompostas, que trazem cada vez mais complicadas repercussões jurídicas, mormente no que diz respeito ao estabelecimento dos papéis parentais e do exercício do poder familiar, indicando a corrosão de um último paradigma de nossa cultura jurídica: a biparentalidade, que cede lugar ao que aqui convencionamos denominar multiparentalidade. Esse novo fenômeno jurídico tem seu fundamento, também, nas concepções de socioafetividade, novo fator propulsor ao estabelecimento de parentesco5.

Por família recomposta ou mosaico, entende-se aquela construída através de uma recomposição familiar: a partir do fim do vínculo conjugal oriundo de um casamento, ou da dissolução de uma união estável, por exemplo, é possível que um núcleo familiar já existente agregue um novo cônjuge ou companheiro, que, a seu turno, possa também já ter outros filhos. Juntos, esses membros constituem um novo seio familiar. De fato, a formação de uma família mosaico permite a consolidação de estreitas relações de afeto entre indivíduos que não possuem vínculos biológicos, mas que certamente podem vir a se considerar como pais e filhos6, em razão da intensa convivência. Nessas circunstâncias, resta clara a possibilidade de surgimento da filiação socioafetiva, baseada na posse do estado de filho. À vista disso, há que se considerar que, na prática, duas pessoas podem assumir o papel de pai – ou mãe – na vida de um filho: o genitor bio5 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. RODRIGUES, Renata de Lima. A multiparentalidade como nova estrutura de parentesco na contemporaneidade. E-Civitas - Revista Científica do Departamento de Ciências Jurídicas, Políticas e Gerenciais do UNI-BH, Belo Horizonte, v. VI, n. 2, dezembro de 2013. p. 08. Disponível em: <http://revistas.unibh.br/index.php/dcjpg/ article/view/1179>. Acesso em: 29 out. 2015. 6 Ibidem, p. 08, 13.

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lógico e o padrasto, por exemplo, podem ser igualmente presentes e, por essa razão, fundamentais na construção de personalidade e identidade do filho. Por consequência, verifica-se que a existência de elos afetivos capazes de configurar uma filiação socioafetiva não implica, necessariamente, na ausência de outra relação de parentalidade, construída a partir da identidade genética. Nesse compasso, a multiparentalidade é concebida justamente mediante a excepcional equiparação entre as filiações biológica e socioafetiva: ao contrário do método tradicionalmente utilizado, o qual elege apenas um dos critérios existentes para definir a filiação, a multiparentalidade leva em consideração tanto a origem genética quanto a afetividade, como fatores de igual importância, notadamente em razão das particularidades vivenciadas pelos indivíduos. Diante dessas considerações, os tribunais pátrios estão sendo progressivamente demandados a solucionar o seguinte questionamento: esse fenômeno, cada vez mais aparente nos lares brasileiros, deve ser juridicamente tutelado? É a problemática enfrentada no acórdão objeto desses comentários. Cuida-se de uma questão eminentemente controversa, que está longe de ser pacificada pela jurisprudência. Isso porque, tradicionalmente, cada indivíduo possui apenas um pai e uma mãe. Ademais, a multiparentalidade carece de uma legislação específica que expressamente a admita, o que fomenta as discussões sobre o tema. Para exemplificar a divergência existente entre os tribunais, basta observar a ementa de um acórdão oriundo do Tribunal de Justiça Rondônia, o qual, ao contrário do julgado objeto desse estudo, negou o reconhecimento da multiparentalidade:

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REVISTA DE DIREITO Apelação. Paternidade afetiva e biológica. Duplo reconhecimento. Pais diferentes. Ausência de previsão legal. A convivência familiar e a afetividade constroem e consolidam o estado de filiação, independentemente de provimento judicial. A configuração do estado de filiação ocorre quando o menor se coloca na posição de filho, em face daquele que assume o papel de pai, não importando a natureza do vínculo existente, se biológico ou de fato. Se não há previsão legal para o reconhecimento concomitante e averbação no registro de nascimento de dupla paternidade, a afetiva e a biológica, o recurso do Ministério Público deve ser desprovido7.

Impende destacar também que as manifestações da doutrina acerca do assunto ainda são modestas. Os estudiosos que defendem a multiparentalidade se baseiam principalmente na tutela do direito fundamental do filho à dignidade, à afetividade e à identidade, para ver reconhecida no mundo jurídico uma situação que é por ele vivida; aqueles que se posicionam contrariamente, por sua vez, assentam seus argumentos no perigo oriundo dos reflexos advindos do reconhecimento de mais de um pai ou mãe a um filho, especialmente pela possibilidade das pessoas se valerem do pleito com o fim único de lograr vantagens patrimoniais, tal como a de se tornar herdeiro de três genitores. Nessas condições, é certo que a análise da viabilidade jurídica da multiparentalidade exige extrema cautela. Para tanto, é necessário atentar-se às especificidades da hipótese concreta de forma minudente, a fim de aferir se a situação narrada realmente possui elementos bastantes a ensejar a tutela jurídica, ou não. Do acórdão em análise, depreende-se que, em sede de sentença, a 7 BRASIL, Tribunal de Justiça de Rondônia. Primeira Câmara Cível. Apelação Cível nº 0005041-07.2010.8.22.0002. Relator: Sansão Saldanha. Apelante: Ministério Público de Rondônia. Apelado: R. R de M. Porto Velho, 11 de julho de 2011. Publicação: Diário de justiça eletrônico, 25/07/2011.

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ação declaratória de maternidade socioafetiva cumulada com retificação de assento de nascimento foi julgada parcialmente procedente: determinou-se a inclusão do sobrenome da madrasta no assento de nascimento de seu enteado, mas restou negado o reconhecimento da filiação socioafetiva. Nesse momento, observa-se que, mesmo diante de todas as peculiaridades inerentes ao caso, o magistrado não vislumbrou o reconhecimento da maternidade socioafetiva – e, por conseguinte, da multiparentalidade – como uma solução juridicamente plausível. Em que pese o respeitável posicionamento do juiz de primeiro grau, mais acertado é o entendimento consagrado na decisão que julgou a apelação interposta pelos demandantes, o qual reconheceu a multiparentalidade, ao determinar a declaração da maternidade socioafetiva da madrasta em relação ao enteado, a ser consignada no assento de nascimento, concomitantemente à maternidade biológica. Duas razões principais justificam a razoabilidade dessa decisão. Primeiramente, os fatos e argumentos relatados no acórdão demonstram estarem presentes, no caso litigioso, os três fatores que possibilitam o surgimento factual da multiparentalidade, quais sejam: a constituição de uma família recomposta, originada a partir do segundo casamento do pai; a existência da filiação socioafetiva entre madrasta e enteado, baseada na posse do estado de filho, já que restou comprovado, além do afeto mútuo, a sólida e pública convivência entre eles por mais de 16 anos, não deixando dúvidas, a quem não conhece, de que se tratam parentes; e, por fim, a coexistência de espécies distintas de filiação, uma vez que a maternidade socioafetiva estabelecida não aboliu a maternidade biológica preexistente, especialmente em razão da importância e do respeito que a genitora biológica possui, por dar a vida a seu filho, não o criando tão somente em razão da fatalidade que a acometeu e resultou no seu precoce falecimento.

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Com efeito, não é demais reafirmar que, a despeito do que decidiu o magistrado em sede de sentença, não restam dúvidas quanto à presença dos elementos configuradores da filiação socioafetiva no presente caso. Nessa perspectiva, elementos probatórios carreados aos autos pelos autores foram objetivamente apontados pelo desembargador relator, como fotografias que retratam a efetiva participação da madrasta em todos os momentos da vida do enteado, de onde se depreende a verdadeira assunção do papel de mãe pela madrasta. A segunda razão que justifica o acerto da decisão ora analisada se assenta no fato de que, a meu ver, a multiparentalidade é juridicamente viável, isto é, válida e capaz de gerar efeitos jurídicos, por ser concebida como um verdadeiro direito da personalidade. Para compreender esse segundo argumento, impende considerar que os direitos da personalidade são regulados de modo não exaustivo pelo Código Civil, e destinam-se a garantir o desenvolvimento e a proteção da pessoa humana, especialmente quanto à sua dignidade8. Referidos direitos são intransmissíveis, impenhoráveis e irrenunciáveis, e dizem respeito tanto ao titular do direito em si, quanto às suas projeções psíquicas, físicas e intelectuais no seio social9. Nessa senda, tem-se que o intento da multiparentalidade é justamente promover a plenitude existencial do indivíduo enquanto ser no mundo, em respeito ao direito à identidade e à vida digna, o que se evidencia, principalmente, a partir da importância que a filiação assume na formação da 8 CANTALI, Fernanda Borghetti. A dignidade da pessoa humana e a tutela geral da personalidade: tutela promocional para além da protetiva e o direito à privacidade em épocas de reality shows. Direitos fundamentais & justiça. nº 12 – jul./set. 2010. p. 02. Disponível em:< http:// www.dfj.inf.br/Arquivos/PDF_Livre/12_Dout_Nacional_3.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2015. 9 GUNTHER, Luiz Eduardo. Os direitos da personalidade e sua repercussão na atividade empresarial. Revista TRT 9ª Região, Curitiba, a.33, n.60,p., jan./ jun. 2008 p. 12. Disponível em: <http://www.trt9.jus.br/internet_base/arquivo_download.do?evento=Baixar&idArquivoAnex adoPlc=1567651.> Acesso em: 03 nov. 2015.

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identidade das pessoas. Dessa forma, pode ser possível que, para aquele indivíduo que verdadeiramente considere possuir mais de um pai ou mais de uma mãe, o reconhecimento jurídico dessa situação existente de fato seja necessário ao integral desenvolvimento da sua personalidade, haja vista que a multiparentalidade se delineia como uma projeção psíquica da sua personalidade. Com efeito, verificada essa circunstância, o Poder Judiciário não pode esquivar-se do reconhecimento desse instituto, pois a tutela jurídica dessa situação tem o condão de promover a igualdade entre o modo como o indivíduo se vê (e é enxergado em seu meio social) e a forma como é juridicamente tratado, o que certamente fomenta o livre incremento da personalidade, ao mesmo tempo em que prestigia valores que imperam na órbita civil-constitucional, como a afetividade e o melhor interesse da criança e do adolescente. Diante dessa situação, portanto, pode o juiz se valer da cláusula geral de proteção da personalidade, inserta no artigo 1º, III da Constituição Federal de 1988, para fundamentar o reconhecimento jurídico da multiparentalidade. Referida cláusula é reconhecida tanto pela doutrina10 quanto pela jurisprudência11, e se funda na dignidade da pessoa humana, assegurando a devida proteção aos novos valores incorporados à personalidade12, que ainda não gozem de disciplina específica na legislação vigente. Desta feita, compreende-se que a ausência de dispositivo regula10 Enunciado 274 da IV Jornada de Direito Civil: Art. 11: Os direitos da personalidade, regulados de maneira não-exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, inc. III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana). Em caso de colisão entre eles, como nenhum pode sobrelevar os demais, deve-se aplicar a técnica da ponderação171. 11 Nesse sentido: BRASIL,Superior Tribunal de Justiça.Terceira Turma. Recurso Especial 450.566/RS. Rel. Ministra Nancy Andrighi. Data de julgamento: 03/05/2011. Data de publicação: 11/05/2011. 12 FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 178.

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mentador não constitui óbice ao reconhecimento da importância que a dupla filiação assume na formação da identidade e da personalidade das pessoas que cresceram sob essa peculiar circunstância. A esse respeito, bem argumentou o desembargador relator do acórdão em análise. Valendo-se de decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, demonstrou que a filiação socioafetiva é amparada pela cláusula geral de proteção da personalidade, e que o referido tribunal já concedeu, em razão da socioafetividade existente, uma adoção em favor de duas mulheres. Sob esse mesmo fundamento, portanto, aduziu que não se deveria negar a pretensão autoral daquele que vivencia a maternidade afetiva, mas deseja preservar a maternidade biológica. Ora, de fato, não se pode olvidar que o surgimento de algumas decisões judiciais que reconhecem a multiparentalidade fundada na coexistência das filiações socioafetiva, biológica ou registral tem como ponto de partida a aceitação, pela jurisprudência pátria, da dupla paternidade ou maternidade materializada nos casos de casais homoafetivos, que optam por ter filhos através da adoção ou de técnicas de reprodução assistida13. Entretanto, é necessário atentar-se ao fato de que, ressalvados os casos que tratem de uniões homoafetivas, cujo reconhecimento – a meu ver – é imperioso, em razão dos princípios constitucionais da igualdade, dignidade e proibição de designações discriminatórias relativas à filiação, a multiparentalidade tem caráter eminentemente excepcional, devendo ser tomada como a última solução. Isso significa que, constatada a existência de um instituto paralelo à multiparentalidade, que seja capaz de suprir de forma razoável os anseios e os motivos que levaram o autor a formular a demanda, a multiparentalidade não deve ser tutelada. 13 CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva - Efeitos Jurídicos. São Paulo: Atlas, 2014, p.161.

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Agindo dessa forma, prestigiam-se apenas as situações que realmente ensejam a produção dos efeitos jurídicos oriundos da multiparentalidade, ao mesmo tempo em que se busca evitar o reconhecimento desmedido desse instituto, a fim de impedir que este seja pleiteado com o objetivo único de angariar vantagens patrimoniais. São exemplos de institutos paralelos, cuja adoção deva ser criteriosamente analisada pelo juiz à luz do dos fatos: a ação de investigação de ascendência genética, quando bastar ao indivíduo a descoberta sobre quem é o seu genitor biológico; a possibilidade de concessão de alimentos ao enteado, quando a multiparentalidade for alegada tão somente para viabilizar o pagamento de alimentos pela madrasta ou padrasto; a possibilidade de inclusão do sobrenome do padrasto ou da madrasta, se se verificar que a adoção desse mecanismo, por si só, é capaz de homenagear a pessoa que é vista como pai ou mãe, como um meio de agradecer a importância que ela tenha na vida do enteado; e, por fim, a paternidade alimentar, forma especial de parentalidade capitaneada por Rolf Madaleno, que é marcada pela possibilidade do filho requerer o pagamento de alimentos a seu genitor biológico, com o qual não possui relação de proximidade e afeto, sem prejuízo do estado de filiação anteriormente estabelecido com seu pai socioafetivo14, quando este estiver sem condições financeiras de prover o sustento do filho15. Pois bem. Examinando a possibilidade de aplicação desses institutos no caso concreto, observa-se primeiramente que o juiz de primeiro grau afastou o reconhecimento da multiparentalidade, ao entender como razoável apenas a adoção do instituto paralelo consistente na inclusão do 14 LOURENÇO, Marcos. NOGUEIRA, Nara Chaves. Reconhecimento de paternidade com efeitos exclusivamente alimentares. p. 13. Disponível em:<http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/1353/1040>. Acesso em: 03 nov. 2015. 15 MADALENO, Rolf. Repensando o Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 169.

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sobrenome da madrasta ao do enteado. Todavia, em sede de apelação, a Câmara vislumbrou, acertadamente, que a simples inclusão do sobrenome não era bastante ao anseio e à dignidade do apelante, que verdadeiramente desejava obter o reconhecimento da madrasta como sua mãe socioafetiva. Corrobora tal raciocínio o fato de que, a madrasta poderia ter optado pelo ajuizamento da ação de adoção, mas assim não o fez por almejar manter incólume a memória da mãe biológica, bem como pelo carinho existente em favor da família dela, com a qual se mantém um estreito relacionamento. Ademais, denota-se que os outros institutos paralelos à multiparentalidade também não seriam capazes de solucionar de forma plausível o caso litigioso. A ação de investigação de ascendência genética, por óbvio, não tem valia na hipótese, já que nunca houve dúvida sobre quem é a genitora biológica do filho. A seu turno, a paternidade alimentar também não pode ser admitida, posto que a genitora biológica faleceu três dias após o parto. Por fim, a concessão de alimentos ao enteado com base na socioafetividade também não se mostra suficientemente hábil a resolver o litígio, uma vez que não existem elementos bastantes a apontar a necessidade alimentar do enteado. Isso porque, da narrativa dos fatos, depreende-se que o enteado foi criado como filho pela madrasta e, ao tempo do julgamento da demanda, com ela convivia. Ademais, os apelantes ajuizaram a ação em conjunto, donde se infere não ser possível afirmar que o pleito da multiparentalidade tenha sido intentado unicamente com vistas à obtenção pagamento de pensão alimentícia pela madrasta em favor do enteado. Constatada a impossibilidade de adoção de quaisquer dos institutos paralelos, torna-se mais seguro concluir que o pedido de reconhecimento jurídico da multiparentalidade formulado pelos apelantes se assenta, de fato, no direito ao integral desenvolvimento da dignidade do indivíduo,

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especialmente no que tange à importância que a figura dos pais possuem na formação da identidade de um filho. Por essa razão, vislumbro adequado o posicionamento da 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao determinar o reconhecimento jurídico da multiparentalidade. De fato, foi possível aferir que o pleito formulado pelos apelantes motivou-se, sobretudo, pelo desejo de alcançar a tutela da realidade familiar por eles vivenciada, a qual, apesar de não estar expressamente prevista nos diplomas legais, encontra amparo na cláusula geral de proteção da personalidade e em nada contraria os preceitos fundantes da ordem jurídica hodierna. Diante dessas ponderações, também é válido notar que, se adotada pelos julgadores, a análise pormenorizada dos fatos à luz dos institutos paralelos constitui ferramenta útil ao julgamento das ações que versem sobre a multiparentalidade, notadamente porque visam evitar a concessão de efeitos jurídicos à multiparentalidade de forma desmedida. Questão interessante é a atinente ao aspecto registral da multiparentalidade. A despeito da ausência de previsão expressa quanto a essa situação na Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), não existe óbice de ordem instrumental à anotação da multiparentalidade no assento de nascimento do filho. Isso porque, as certidões de nascimento são padronizadas de acordo com os provimentos 2 e 3 do Conselho Nacional de Justiça, de modo que os quadros correspondentes à filiação e aos avós podem comportar tantos nomes quantos sejam necessários, a depender do caso concreto. Visto isso, convém ressaltar que o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM – já se manifestou sobre a temática da multiparentalidade através do enunciado programático 09, recentemente aprovado no X Congresso Brasileiro de Direito de Família, que assim determina:“A multi-

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parentalidade gera efeitos jurídicos.”16 Na mesma perspectiva, é a decisão proferida no presente ano pela Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a qual decidiu pela viabilidade jurídica da multiparentalidade: APELAÇÃO CÍVEL. DECLARATÓRIA DEMULTIPARENTALIDADE. REGISTRO CIVIL. DUPLA MATERNIDADE E PATERNIDADE. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. INOCORRÊNCIA. JULGAMENTO DESDE LOGO DO MÉRITO. APLICAÇÃO ARTIGO 515, § 3º DO CPC. A ausência de lei para regência de novos – e cada vez mais ocorrentes – fatos sociais decorrentes das instituições familiares, não é indicador necessário de impossibilidade jurídica do pedido. É que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil). Caso em que se desconstitui a sentença que indeferiu a petição inicial por impossibilidade jurídica do pedido e desde logo se enfrenta o mérito, fulcro no artigo 515, § 3º do CPC. Dito isso, a aplicação dos princípios da “legalidade”, “tipicidade” e “especialidade”, que norteiam os “Registros Públicos”, com legislação originária pré-constitucional, deve ser relativizada, naquilo que não se compatibiliza com os princípios constitucionais vigentes, notadamente a promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo ou qualquer outra forma de discriminação (artigo 3, IV da CF/88), bem como a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (artigo 227, § 6º, CF), “objetivos e princípios fundamentais” decorrentes do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Da mesma forma, há que se julgar a pretensão da parte, a partir da interpretação sistemática conjunta com demais princípios infra-constitucionais, tal como a doutrina da proteção integral o do princípio do melhor interesse do menor, informadores do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como, e especialmente, em atenção do fenômeno da afetividade, como formador de relações familiares e objeto de 16 Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/noticias/5819/ IBDFAM+aprova+Enunciados+++>. Acesso em: 04 nov. 2015.

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JURISPRUDÊNCIA COMENTADA proteção Estatal, não sendo o caráter biológico o critério exclusivo na formação de vínculo familiar. Caso em que no plano fático, é flagrante o ânimo de paternidade e maternidade, em conjunto, entre o casal formado pelas mães e do pai, em relação à menor, sendo de rigor o reconhecimento judicial da”multiparentalidade”, com a publicidade decorrente do registro público de nascimento. DERAM PROVIMENTO (SEGREDO DE JUSTIÇA)17.

Ante a tais considerações, está claro que a multiparentalidade pode ser admitida no ordenamento jurídico brasileiro de forma excepcional, isto é, quando o caso concreto não puder ser solucionado por meio da aplicação de outros institutos, paralelos à multiparentalidade. Nessa situação, estar-se-á diante de um verdadeiro direito da personalidade, cujo reconhecimento é necessário à plenitude existencial do indivíduo, em homenagem ao direito à identidade e à vida digna em sociedade. Pelo exposto, salvo melhor juízo, o acórdão objeto dos comentários merece ser prestigiado, por estar em perfeita consonância com a visão civil-constitucional da filiação e fomentar a proteção jurídica das composições familiares da contemporaneidade.

17 BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Oitava Câmara Cível. Apelação Cível nº70062692876. Apelantes: L.P.R, R.C e M.B.R. Relator: José Pedro de Oliveira Eckert. Data de julgamento: 12/02/2015. Data de publicação: 25/02/2015.

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