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pergaminhos As crónicas de Laffayette

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truques de mestre

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pergaminhos

31 de Outubro de 1999 A. D.

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É madrugada. Estou sentado em frente à tela do meu computa- dor. A sensação de vazio me ator- menta, então resolvo preenchê-la com as primeiras palavras que me vem à mente, mas mesmo isso é difícil para mim no momento. Esta é uma das piores crises de tédio pelas quais eu já passei, e, levan- do-se em consideração que o meu tempo de vida pode ser medido em séculos, não foram poucas.

Meus olhos passeiam pela sala ao meu redor, enquanto eu procuro algo digno de nota, que renda mais do que algumas linhas neste texto arrastado, esta vã ten- tativa de ocupar meu interminável tempo. Nada. Em outras noites eu perderia horas observando e des- crevendo algumas das peças que compõem a decoração de minha cobertura. Os quadros, as escul- turas e a mobília... mas não esta noite. Esta noite eu preciso de algo mais... inspirador.

Meus olhos continuam seu lento movimento, perscrutando a sala em busca de um tema... Ah! Finalmente... seguindo uma estra- nha linha de raciocínio, eu encon- tro algo com o que me distrair. En- trevista com o Vampiro, de Anne Rice. Um bom livro. Quisera eu que nossas vidas fossem tão idiłicas e glamourosas quanto as saídas

CRÔNICAS

de LAFFAYETTE parte 1

por Fábio Corrêa

da imaginação da Sra. Rice, mas mesmo assim, alguns paralelos podem ser feitos. Sempre podem.

No caso em particular eu gostaria de me deter na relação entre dois personagens: Louis e Lestat. É um tanto triste reconhecer, mas existem muitas semelhanças entre minhas experiências pessoais com Ranier e o relacionamento destes dois personagens de ficção gótica. Ainda mais triste é aceitar o fato de que por muito tempo fui (ou quem sabe ainda seja), Louis, o frágil vampiro apaixonado por seu criador, possuidor de tal fascínio e mistério que levaria o jovem pupilo a fazer qualquer sacrifício por suas graças. Acho que todos tem o seu Lestat... seu Lestat... meu Ranier...

Mas talvez seja melhor eu colocar alguma ordem neste turbilhão de memórias que me invadiu subitamente. É claro que não poderia contar tudo, pois, ao contrário dos personagens da Sra. Rice, nós não temos memórias infalíveis, e mesmo que tivéssemos, muito pouco interessaria a alguém que não nós mesmos, por isso vou tentar tornar este texto o mais cativante possível.

INVERNO DE 1187 A.D.

França. Baronato de Poitiers. Por muito tempo, este foi meu endereço, meu mundo, minha realidade. Aos sete anos, já ajudava meu pai, um soldado da guarda pessoal do Barão, em tarefas como carregar água, escovar cavalos e polir armaduras. Na época, eu não poderia pedir mais nada da vida. As histórias das batalhas me fascinavam, e um dia eu seria um soldado como meu pai, e meu irmão Claude, que já iniciara seu treinamento. Eu ainda teria que esperar alguns anos, e, graças à minha mãe, ainda tinha algum tempo de folga, no qual realizava minhas próprias aventuras de capa e espada pelos bosques do baronato.

Foi numa destas aventuras que a minha vida começou a mudar. Como de costume, eu havia perdido a hora, e a noite já caía sobre o bosque, e junto com ela, os predadores noturnos, os lobos. Qual não foi minha surpresa ao me deparar com um deles rosnando à minha frente. Não era dos maiores, mas era grande o suficiente para dilacerat meu esquálido corpo sem muito esforço.

Por um instante nossos olhos se cruzaram, e o hálito quente daquele animal aqueceu meu rosto. Um rosnado crescia, à medida em que a boca se abria e os dentes pontiagudos brilhavam na noite. Então, três silvas cortaram o ar, e três flechas se cravaram no corpo do lobo. Quando me virei para encarar meu salvador, eu o vi, pela primeira vez tão de perto. Ranier, o pequeno Barão, era apenas alguns anos mais velho do que eu, e no entanto emanava um ar tão superior e nobre, à frente de sua escolta, todos os três com seus arcos em punho, mas isto já não era necessário, o lobo jazia morto.

1191 A. D.

Aquele foi um ano bastante difícil, na verdade eu me sentiria muito mais confortável pulando este capítulo, mas, como finalmente achei uma distração para o meu tédio, devo fazê-la da maneira certa, e este pequeno registro não estaria completo para mim se não falasse dos acontecimentos daquele ano. Posso considerá-lo como um marco. Um ano que realmente contribuiu muito para me tornar o que sou hoje, mas eu estou me adiantando novamente... 1191 foi o ano em que, no espaço de meses, perdi minha família inteira. Primeiro foi minha mãe, vitimada pelo sarampo. Deus! E pensar que hoje em dia esta é uma doença tão banal... às vezes eu daria tudo para não ter uma memória capaz de atravessar os séculos. Quando você pensa em quantas coisas poderiam ser evi

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tadas, quanto sofrimento e desespero...

Após a morte de minha mãe foi a vez de meu irmão, o qual, arrasado, fugiu do baronato numa madrugada sem lua. Ainda hoje eu me pergunto o que a vida lhe reservou… teria encontrado fortuna e felicidade ou apenas seu fim em algum campo de batalha enlameado? com o temperamento que tinha, não deve ter durado muito, mas, mesmo assim, gostaria de tê-lo reencontrado, mas só posso desejar que tenha tido uma boa vida.

Restamos apenas eu e meu pai, já velho e arrasado pelo trabalho de uma vida. Pobre diabo, estava condenado desde o berço, assim como eu, se o destino não tivesse mudado seus planos em relação a mim. Quando meu pai finalmente se foi, falecendo por pura exaustão, enquanto trabalhava em nossa minúscula gleba, eu não tinha dinheiro para comprar meu direito de permanecer cultivando a terra, e seria prontamente expulso do baronato, não tivesse uma cozinheira do barão, e antiga amiga de minha família, requisitado um ajudante para a cozinha. Sendo assim, passei a morar no castelo, ou melhor, na cozinha do castelo.

A partir desta data, meu relacionamento com Ranier tornou-se bem mais próximo. A admiração cega aos poucos tornou-se amizade verdadeira, pelo menos de minha parte. Mas acredito que da parte dele também, afinal, permitiu que eu participasse de suas aulas particulares, apesar de eu me encontrar muito abaixo do seu nível. Mas ele me ajudou a recuperar o tempo perdido, e neste instante percebi que seria eternamente grato a Ranier, foi ele quem se mostrou que eu poderia querer muito mais da vida do que uma simples gleba, que meus horizontes poderiam ser muito mais amplos do que eu sequer imaginara um dia.

1195 A.D.

Foi neste ano que realizei meu sonho de infância. Aos dezenove anos, tornei-me um soldado do Barão Poitiers. Infelizmente, como eu disse, este era meu sonho de infância...

Desde que passara A residir no castelo, ou, mais especificamente, desde que começara a ter aulas com Ranier, meus interesses e aspirações modificaram-se sobremaneira. É claro que o manejo de uma arma era uma habilidade indispensável naquela época (e muitos diriam que hoje também...), mas viver para a batalha era algo que já não me causava tanto encanto quanto outrora.

Muitas vezes, faltava aos treinos para estudar e ler os clássicos gregos com Ranier, ou mesmo para treinar esgrima com ele. A luta dos nobres era bem mais graciosa e atrativa do que a barbárie que nos ensinavam no exército. Minhas escapadas não ficavam impunes, e muitas vezes atravessei

as madrugadas varrendo a casa da guarda, ou os domingos cozinhando para a tropa, ou mesmo sendo surrado por soldados mais exaltados, sob o olhar frio de nosso capitão. Quase posso imaginar seus pensamentos... “Isso o fará um homem de Verdade.” De fato meu capitão, mas não da maneira como você imaginava.

Apesar de tudo, a cada dia, a cada nova lição, eu me convencia que valia a pena toda a dor e

humilhação. Hoje, estou mais do que certo que sim, afinal, eu ainda estou aqui, e por meus próprios méritos, alcancei um patamar que aqueles rufiões jamais sonhariam, nem mesmo se tivessem mil anos de vida, e hoje não estivessem reduzidos a menos do que poeira. Descansem em paz, meus caros, se um dia nos encontrarmos, eu lhes contarei todas as maravilhas que perderam.

Pois bem, mesmo com toda a dificuldade, e, confesso, um certo atraso, tornei-me um soldado em 1195. Meu único consolo era fazer parte da guarda pessoal do Barão, mais precisamente de seu filho, Ranier, que escolheu-me pessoalmente para tal tarefa. Lembro me bem do primeiro dia em que saímos à caça nos bosques do Baronato. A lembrança de anos atrás, quando o jovem barão e sua escolta salvaram-me do lobo, me invadiu. Um sorriso nasceu em meus

lábios... hoje eu era a escolta.

A partir daquela data, passei a acompanhar Ranier em mais uma de suas paixões, a caça aos lobos. E ao presenciar sua enorme perícia, talhada desde a juventude, finalmente entendi o pleno significado da alcunha conferida a ele por meu irmão, “Ranier, o Senhor dos Lobos.” De fato, caía-lhe como uma luva.

Posso dizer que este foi o melhor ano que tive desde a morte de meu pai. Todo o meu esforço pareceu finalmente render bons frutos. Tinha um amigo, um teto, comida, um cavalo, uma espada e o conhecimento das letras, que mais poderia eu exigir daquele mundo tão simplório?

Mas, como nada é para sempre, o meu velho amigo destino já espreitava nas sombras dos bosques, preparando sua nova investida contra mim. Uma sombra se avizinhava do Baronato Poitiers, uma sombra cuja escuridão mudaria para sempre nossas vidas.

continua na próxima edição...

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