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CAPITULO XXVIII - A PAUSA CALCULADA 157/166
CAPITULO XXVIII A PAUSA CALCULADA
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Vannessa me preoccupa: ja começa a dar signaes. Eu proprio ja emmagresço faz tempo! Nossa vida cobra o preço daquillo que fizemos, ora essa! Miseria com luxuria dão, à bessa, motivo para azar. Foi meu começo luxento e rico; agora dou tropeço no lado miseravel, má promessa. Decido, então, voltar ao centro urbano. Quem sabe um tractamento aqui eu consigo. Talvez ainda exsista um ser humano. Qual nada! Um hospital até commigo foi digno, até ignorou si fui mundano ou não, mas falta um medico e um amigo.
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Vannessa quiz voltar para a cidade natal, Camanducaya, e nunca mais a vejo. Quer morrer juncto dos paes. Talvez ainda a acceitem, nessa edade. Perdido no centrão, nem sei quem ha de querer me dar abrigo. Mas jamais pensei em procurar Raymundo. Taes desejos eu não tenho, os da saudade. Mentira deslavada! Não me aguento e corro para o quarto do cortiço, aonde sempre volto e ganho alento! Raymundo me abre a porta. Seu mortiço olhar, que se illumina, no momento seguinte se admortesce: estou magriço!
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"Ja foste, Craque, ao medico? Que disse o gajo? Tens certeza? Tu fizeste exames? Confirmaram essa peste? Não creio, Craque: é tudo uma tolice!" Pondero que qualquer um que me visse diria ja de cara que, sem teste, se pode deduzir que me moleste aquillo que virou, hoje, mesmice. "Que queres que eu te faça? Si precisas de mim, adjudarei no que puder. Mas grana falta, as bolsas estão lisas..." Pondero que serei, dê no que der, eu grato ao meu amigo. Si pesquisas valessem, ja nem vivo estou siquer!
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Raymundo traz comida e, quando não, eu saio, a descollar algum programma. Si o cego me quizesse, em sua cama talvez eu disfarsasse a compleição. Mas elle nem attende à ligação. Na certa se mudou e até reclama si for expezinhado: sua fama está por vir, justiça lhe farão. De quando em vez, eu topo com alguem que gosta só de bota. Nesse caso, que a lamba bem lambida, e a grana vem. Ainda calço aquella, por acaso, com sola de borracha, grossa e, alem de tudo, poeirenta: não dephaso!
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Podolatras, porem, não são assim tão faceis de encontrar. O mais commum é mesmo a michetagem que quer um veado: chupar rolla e dar, emfim. Mulheres raramente teem em mim aquelle garanhão que seu jejum de sexo irá supprir: o meu fartum é forte, e mais, depois que p'ra ca vim. As putas, por seu lado, querem grana e, em vez de me pagarem o jantar, contentam-se si provam-me a banana. Alguem ja commentou que é bom gozar na bocca, mais seguro, mas se enganna quem acha que se livra, assim, do azar.
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Raymundo descobriu sua maneira de obter uns trocadinhos: na "Kabbala" baseia-se, disposto a consultal-a si alguem, por encommenda, saber queira. Percebe que não acham ser besteira o pappo de magia. Quando falla o Livro, quasi sempre accerta a balla na mosca e se confirma: fede e cheira. Raymundo, então, propõe ao Xenophonte pequena sociedade nesse ramo das claras prophecias, feita a ponte. Martins estuda o caso e, no que eu chamo de "astral charlatanismo", adopta a fonte e acceita o Livro, como o escravo ao amo.
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Raymundo só descobre quando é tarde. O astuto Xenophonte o está roubando! Do Livro se appropria! Faz seu bando de perfidos discipulos allarde. À midia se appresenta, esse covarde saphado, como "auctor" do Livro e, quando tem sido entrevistado, vae contando passagens que decora, o que, a mim, arde. Vontade tenho, emfim, de seu pescoço torcer, pegar de volta o Livro, em mãos do dono o devolver... Si tenho! Ah, moço! Mais raiva sinto quando diz: {Irmãos! Observem este Livro, velho e grosso! Supera as Escripturas dos christãos!}
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Exquesça-se a "Kabbala"! O charlatão quiz tanto vel-a à venda e popular, que desmoralizada está! Fallar do Livro, agora, rende gozação. Raymundo até ironiza: "O cara é tão careta, tão cafona, que ao azar deu sopa! Tu verás, vae dar logar seu amplo consultorio a um varejão!" Virada, agora, a pagina, nós dois voltamos, novamente, à estacca zero. O estomago não deixa p'ra depois! Si fossemos dedar... Mas eu nem quero de todos os ladrões dar nome aos bois, nem vale a pena, em summa, ser sincero.
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Raymundo de outros Livros, com um "L" maiusculo, foi dono. Agora estão perdidos por ahi, sei la, na mão de gente interesseira, sem quem zele. Um delles o Lourenço Mutarelli pegou, um quadrinhista que ficção agora tem escripto, a quem ja dão a fama que meresce e que repelle. Lourenço bom proveito do volume tem feito: personagens elle cria tirados dalli, pondo tudo a lume. Raymundo, que o vendeu por ninharia, nem pensa mais no Livro, nem ciume terá, pois no Lourenço elle confia!
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Chegamos, pois, ao poncto em que não resta mais nada a se fazer: só resta a espera. Nem sei si terminou, ainda, nesta sequencia, a nossa historia... Quem nos dera! Certeza é que o Demonio faz a festa, abrindo, aos dois amigos, a cratera. Ninguem vae me curar do que molesta nem pode alguem ter sorte mais severa. Não pensem, todavia, que eu encerro o causo por aqui, levando ferro em braza no trazeiro, dum tridente! Raymundo, por seu turno, não meresce que attenda o Creador à sua prece, mas Elle a attenderá, pois ri da gente.