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SYNOPSE

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ELENCHO

ELENCHO

[SYNOPSE]

O "romance lyrico" de Glauco Mattoso é obra unica no genero. Contada (ou cantada) em duzentos sonnettos heroicodecasyllabos, a historia tem logar numa São Paulo contemporanea e decadente, onde se desenrollam a ascensão e o fracasso de dois amigos inseparaveis, Raymundo e o appellidado Craque. Conflictando entre o determinismo e o livre arbitrio, ou entre o cayporismo e o sortilegio, ambos os antiheroes oscillam do céu ao inferno em relação às respectivas companheiras, Zuza e Vannessa. A consummação do chamado "fado" dos personagens tem, como contrapartida, o chamado "pacto" transcendental que, hypotheticamente, reverteria a fatal "urucubaca" (popularmente dicta "uruca") ou "ziquizira" (popularmente dicta "zica").

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Até o sonnetto 19 Raymundo é retractado em varias situações, quer como um pé-frio, quer como quem mette os pés pelas mãos, entre o azarado e o desastrado: cidadão, consumidor, vizinho, passageiro, paciente, anniversariante, dono de restaurante, corretor de immoveis, namorado, paquerador. Raymundo tracta a todos por "tu" e quem narra, na primeira pessoa, não é Mattoso, como se suppõe até aqui, mas o Craque, que tracta Raymundo por "você".

A partir do sonnetto 20, Craque passa a contrascenar e conviver com o protagonista, do qual era amigo desde os tempos de office-boy (sonnetto 108). No sonnetto 20 surge Zuza como companheira de Raymundo. No sonnetto 21 Zuza revela-se má cozinheira, mas futuramente (sonnettos 196 e 197) terá exito como administradora no ramo de fastfood.

No sonnetto 22 Zuza revela-se tambem má motorista, mas futuramente terá choffer particular. No sonnetto 24, appós um accidente de carro, Raymundo separa-se de Zuza, que, entretanto, não deixará a vida delle e retornará para ficar. No sonnetto 25 Craque revela-se conselheiro do amigo, que, teimoso, nem sempre accaptará suas opiniões. Aqui tambem fica clara a origem favellada do Craque, cuja cara mulata é retractada no sonnetto 128. Quanto a Raymundo, que tem cara de nerd branco (sonnetto 107), vem da classe media e será herdeiro da rica thia (sonnetto 47). No sonnetto 26 Raymundo se mostra rejeitado pelas mulheres devido aos oculos de myope.

A partir do sonnetto 29 Raymundo e Craque mostram-se mutuos confidentes na sexualidade: o primeiro como hetero mas aberto a experiencias bizarras e o segundo tambem hetero mas profissional como michê, cujo actual cliente é um escriptor cego e masochista. Ambos visitarão o cego para abusar deste nos sonnettos 33 e 34. Interessado no sadomasochismo, Raymundo acha na internet (sonnetto 36) o typo de mulher que não o rejeite e se deixe dominar, mas Magda se passa por escrava para exploral-o financeiramente (sonnettos 42 a 44), a despeito das advertencias do Craque. Entrementes, ambos frequentam o clube SM de Bella (sonnettos 40 e 41), onde o Craque tem Mona como escrava e della tira dinheiro, ao contrario de Raymundo, que prefere pagar.

Ja deprimido pela fuga de Magda, Raymundo recebe a noticia da imminente morte da thia e viaja a Pirapora, sua cidade natal (sonnettos 48 e 167). Embolsada a

herança, Raymundo retorna a São Paulo mas é victima de sequestro, sendo torturado no captiveiro (sonnettos 49 a 54). Graças à lealdade do Craque e à corrupção policial, Raymundo é resgatado e ganha alguma experiencia como masochista.

Quanto ao Craque, sempre preoccupado com a solidão do amigo, presenteia Raymundo com um basset hound chamado Chicho (sonnetto 55), que deixará saudade, ao morrer, annos depois (sonnetto 91).

Com o que lhe sobra da herança, Raymundo compra um velho casarão e convida o Craque para morarem junctos, mais Chicho e uma empregada (sonnettos 57 a 80), mas o sobrado é malassombrado: alli se guardam reliquias, livros kabbalisticos (sonnetto 61) que prophetizam mau agouro mas affugentam phantasmas.

Accostumado ao novo status, Raymundo quer entrar na politica, contra a vontade do Craque (sonnettos 67 a 71), mas a corrupção partidaria consome-lhe o capital e envolve-o em denuncias. Temendo serem incriminados, resolvem os dois refugiar-se na Argentina. Influenciado pelo escriptor cego, o Craque revela-se poeta pornô (sonnetto 72) e, adjudado por confrades "maldictos", encontra asylo em Buenos Aires (sonnettos 73 a 76), onde Raymundo sente saudades da casa e do cachorro, emquanto o Craque se prostitue no submundo litterario.

De volta a São Paulo e ja livres da perseguição politica, os dois amigos promovem fescenninos saraus no casarão, frequentados por "maldictos" como o Abbade e Roberto Piva (sonnetto 79). Mas, endividado, Raymundo vende o sobrado,

dividas, Raymundo se muda, com Craque, para um quarto de cortiço na Crackolandia (sonnettos 125 e 126) e, anesthesiado pela rapida miserabilidade, reage com indifferença a cada nova adversidade. Na Crackolandia, Craque reencontra Vannessa, tambem reduzida à indigencia (sonnettos 127 e 128), e ella volta a conviver com os dois no cortiço.

Vannessa appresenta Craque a uma quadrilha de pés-dechinello e, junctos, elles planejam o sequestro do poeta Abbade (sonnettos 131 a 133). Craque abbraça o vicio, perde mais alguns escrupulos e muda de lado, passando de ex-victima a auctor do crime. Mas Abbade morre no captiveiro (sonnetto 133) e o bando, temendo a policia, se dispersa. Craque foge de São Paulo com Vannessa (sonnetto 134), mas ja está debilitado pelo vicio e pela doença, perturbado por pesadellos delirantes (sonnettos 135 e 136). A partir do sonnetto 137 nota-se que o narrador Craque é mais omnisciente, pois, longe do amigo, continua a relatar a solidão de Raymundo, que agora o procura por toda parte: recorre a um chiromante (sonnetto 138), que prevê a morte do Craque e de Vannessa (sonnetto 139). Sem convencer-se, Raymundo, antes catholico, volta à Egreja (sonnetto 140), ora pelo amigo (sonnetto 141), mas continua sem resposta sobre a sorte do Craque. Emquanto isso, reencontra um cineasta que o convence a trabalhar como cabo eleitoral na campanha dum candidato à prefeitura (sonnettos 144 a 147), bicco que torna o ex-assessor mais revoltado com a corrupção. Em seguida Raymundo procura emprego numa rede de fastfood (sonnettos 148 e 149), mas fracassa até como palhaço. Vagando pelo deteriorado centro, adopta um cão de rua (sonnetto 151), que tambem morrerá (sonnetto 154).

Ainda tendo comsigo os textos kabbalisticos achados no casarão, Raymundo os consulta (sonnettos 155 e 156) e decide usal-os como meio de vida (sonnetto 162), mas outro charlatão tira proveito delles. De outros volumes Raymundo se desfaz, vendendo-os a quem melhor os use (sonnetto 165).

Entretanto, Craque volta a São Paulo, buscando tractamento que protele a phase terminal de seu mal (sonnetto 157). Vannessa, tambem accommettida, voltará para sua terra, onde morrerá (sonnetto 158). Craque reencontra Raymundo no cortiço (sonnetto 158), mas o convivio entre um moribundo e um mendigo será difficil. Craque continua michetando, mas ja não tem a mesma clientela (sonnettos 160 e 161). O sonnetto 166 marca a transição para a phase hallucinada do Craque, que tem visões phantasticas da cidade (sonnettos 169 a 176). Um fascista, eleito como novo prefeito, quer reurbanizar a Crackolandia e, para entregal-a à especulação immobiliaria, evacua e confina seus moradores em distantes albergues, mais parescidos com campos de concentração (sonnettos 177 a 181), de onde foge Craque (sonnetto 182) e, mais tarde, tambem Raymundo (sonnetto 187). Ambos retornam ao centro velho, mas ja não se encontrarão: Craque percorre as policiadas ruas em direcção ao predio Martinelli, de cuja cobertura lançarse-a à morte, ou à immortalidade (sonnettos 198 e 199), emquanto Raymundo, seguindo a ropta da ascensão social paulistana e subindo por Hygienopolis, alcançará os Jardins, onde, quasi attropelado pela limusine de Zuza, finalmente a reencontra (sonnetto 195) e com ella se casa, livrando-se da miseria, do cayporismo e da morte precoce

que attingiu o Craque em seu logar. No sonnetto 200 Craque falla do Alem mas não diz Amen impunemente e deixa aos posteros a herança do inconformismo.

A cada passo do entrecho as idiosyncrasias thematicas de Mattoso se reflectem na vida dos personagens: insomnia, pesadellos, paranoias, superstições, assombrações, arachnophobia, constipação, prostatite, cegueira, podolatria, affeição aos bassets, à architectura mansardista, à gothica, ao predio Martinelli. Nesse adspecto o romance funcciona como admostragem de todo o universo imaginario do auctor em milhares de outros poemas ou textos em prosa.

O tragico desfecho da historia, que não representa solução mysticamente moralista nem theologicamente correcta, calha ao enredo entrecortado de adventuras e desventuras sexuaes, sociaes, profissionaes, politicas, policiaes, litterarias e sobrenaturaes.

O romance, escripto em brevissimo prazo (entre abril e maio de 2011), reaffirma a vocação do poeta para o experimentalismo em materia de generos, thematicas e estructuras formaes, recyclando uma symbiose entre ficção novellistica e poesia narrativa, ja practicada desde o russo Pushkin mas desconsiderada na litteratura occidental moderna ou postmoderna.

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