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APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO TRÊS DEDOS DE PROSA
MANIFESTAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO EM MARCHA DA PRAÇA DA SÉ À PRAÇA RAMOS DE AZEVEDO. PASSEATA PERCORRE O VIADUTO DO CHÁ. EM PRIMEIRO PLANO JOSÉ ADÃO, ATRÁS DELE O PROF. EDUARDO OLIVEIRA E MILITANTES FUNDADORES DO MNU. 20/11/1979. ©ENNIO BRAUNS/FOTO&GRAFIA
DAR VISIBILIDADE aos negros que fizeram e fazem a luta contra o racismo e a opressão de classe é um passo fundamental na construção da História Negra.
As fotos dessa história, de cidadãos negros e da organização do seu Movimento, vieram de nove acervos diferentes. São nove fotógrafos de várias origens sociais que viveram, em parte ou no todo, esses quarenta anos de existência do Movimento Negro Unificado ( MNU). Fotos de profissionais que olham agudamente para a evolução da história dos negros em São Paulo. Cada um desses fotógrafos, independentemente de branquitude ou negritude, lida com generosidade e empatia em cada momento visto. Todas as imagens têm um viés claro ao valorizar e/ou denunciar a condição negra de forma irrefutável.
Ari Cândido, fotógrafo e cineasta, descreve seu momento inicial de transe entre a fotografia e sua negritude como uma “rara oportunidade de ‘captar’ a imagem de um negro que fumava cachimbo e ‘clicava’ ali o primeiro prefeito cassado, em 1965, no Brasil, Esmeraldo Tarquínio”.
Jesus Carlos e Rosa Gauditano, dois brancos de origens diversas e visões semelhantes, fizeram do ofício e do engajamento político motores da identidade com a ação dos negros que o livro celebra.
Sintetiza ele: “As ruas eram a grande trincheira naqueles tempos de chumbo, e foi de grande importância o surgimento do Movimento Negro exigindo o fim do racismo”.
Para ela, foi “um aprendizado diário escutar essas pessoas que não tinham voz na grande imprensa... a ditadura era forte, mas a gente tinha ânsia de democracia”.
Eles registraram os dois primeiros anos das ações negras e seus personagens fundadores na cidade.
Luiz Paulo Lima, fotógrafo e cineasta, destaca que “este acervo se tornou uma importante documentação histórica da formação do Brasil enquanto ‘nação’, embebida de racismos de todos os matizes”.
Samuel Tosta, fotógrafo de movimentos sociais no Rio de Janeiro que estava em Coroa Vermelha (BA), no ano 2000, na hora certa pra fotografar a coisa errada, lembra que “antes das 11 da manhã mais de 200 pessoas estavam cercadas por policiais (...) sendo obrigadas a sentar no chão, quase todas militantes do Movimento Negro”.
Juvenal Pereira, Joca Duarte e Wagner Celestino representam duas gerações de fotógrafos distantes no tempo e próximas na visão sobre o negro.
Juvenal, há meio século no fazer fotográfico, lembra que, quando trabalhava em Salvador para O Cruzeiro, viu “negros com autoestima mais elevada do que os negros das Minas Gerais... Em Minas, nos buracos, e em Salvador nas ruas, praias, becos, terreiros e uma circulação maior da voz negra”.
Wagner, com 10 anos a menos na fotografia, conta que sua consciência profissional-racial foi estimulada pelo surgimento do MNU, “que, por meio de suas diretrizes de luta contra o racismo, reforçou a conscientização da minha negritude e, obviamente, criou parâmetros para o desenvolvimento do trabalho fotográfico”.
Joaquim, o Joca, como é conhecido no fotojornalismo contemporâneo, em São Paulo, ex-cobrador de ônibus, autodidata “retado”, lembra como foi: “no trajeto diário entre a vila Carrão, na zona leste, e São Judas, na zona sul, uma infinidade de cores... que vinham e se perdiam na multidão... até tomarem coragem e começarem a se materializar”.
Quanto a mim, que atuava no Em Tempo, eu era mais um daquela geração de fotógrafos jornalistas que ia pra rua, para trabalhar e para expressar um olhar político sobre o que víamos. Era proibido informar e, por isso, era preciso fazer.
No olhar de cada um tem uma valorização absoluta da consciência do momento histórico, da natural beleza negra, das culturas negras e das religiosidades de matriz africana.
Juntos, são uma pequena contribuição à história do negro, em luta por igualdade racial e cidadania plena.
ENNIO BRAUNS
NOS 130 ANOS do pós-abolição, a comunidade negra em geral, e de São Paulo, em particular, está de braços abertos para celebrar o Movimento Negro Unificado: a resistência nas ruas, bem como homenagear as palavras e atitudes fundantes da luta contra o racismo que segue até a atualidade.
Muitos brasileiros já aprenderam com o Movimento Negro Unificado (MNU) a lição do protesto negro nas ruas e têm em sua trajetória uma forte referência. Mesmo não tendo sido capaz de eliminar o preconceito, a discriminação e o racismo, o MNU ao seu tempo assumiu com coragem aquela tarefa e inspirou a geração de julho de 1978 a desconstruir o mito da democracia racial, a farsa da abolição, a escrever na Constituição Federal brasileira de 1988 que o racismo é crime, a fortalecer a participação das mulheres nos encontros nacionais e internacionais, a celebrar Zumbi e Dandara como heróis nacionais, a exigir compromisso do Estado brasileiro em prover a igualdade racial em educação e saúde, garantir as terras dos quilombos e, sobretudo, a vida da juventude negra. Assim, o MNU despertou nacionalmente o desejo da unidade, condição sine qua non à efetividade dessa luta. No seu tempo, deu conta e cumpriu com afinco sua missão. Sabemos que a estrada é longa. A política sociorracial do Estado brasileiro é concentradora de riqueza, é conservadora da tradição escravocrata, arraigada de etnocentrismo, cinismo e desfaçatez, principalmente quando se trata de eliminar as iniquidades entre brancos, negros e indígenas Mas no seu encalço está o pioneirismo do MNU e das demais organizações negras brasileiras herdeiras dessa luta.
Este livro faz uma homenagem ao MNU e seus quarenta anos de luta por meio de colaborações autorais, palavras, depoimentos, memórias, documentos históricos, iconografias e imagens do universo negro em lutas guardadas em publicações, acervos pessoais e institucionais, pensamentos ora convergentes ora divergentes, mas que sempre se encontram na defesa dos direitos da população negra brasileira.
O MNU espera ganhar um presente do Brasil: que todos e todas possam, através da resistência negra e do protesto nas ruas, “reagir, re(sobre)viver e descolonizar para efetivar a democracia brasileira”.
GEVANILDA SANTOS
ENTRE AS MUITAS FOTOS que vi no registro dos quarenta anos de luta do MNU contra o racismo, estão duas que calam mais fundo. Uma é a do professor Eduardo Oliveira, o poeta, com o megafone falando no ato do dia 20 de novembro de 1979. Nesse dia saímos das escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, na primeira marcha em homenagem a Zumbi dos Palmares, e fomos em passeata até os degraus da Catedral da Sé. Fazia um ano que Karol Wojtyla tinha assumido o pontificado e se tornado Papa João Paulo II.
Durante as atividades do Brasil 500 anos, houve conflitos e questionamentos sobre se deveria celebrar ou não o nascente Estado brasileiro, e no contexto do Jubileu do II Milênio da Igreja Católica Apostólica Romana, completados no mesmo ano, poucos prestaram atenção ao pedido de perdão do Papa reconhecendo os crimes, erros e danos cometidos pela Igreja durante o período de escravização e colonialismo de povos e etnias do continente africano e da diáspora.
A outra foto é a do sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira ao lado de José Correia
Leite na caminhada em visita ao túmulo de Luiz Gama. Essa imagem demonstrava que a liderança na luta contra o racismo continua mesmo após a morte. Em 4 de novembro de 2015, perante o seu túmulo, foi entregue o título de “Advogado de Todos os Tempos”, num reconhecimento póstumo nacional da OAB ao grande líder abolicionista.
O professor Eduardo de Oliveira, cofundador do MNU, dizia em 2010: “quando eu era jovem, em 1942, não podia falar olhando no olho de um branco. Tinha que falar com a cabeça e os olhos baixos. Agora a juventude negra fala de cabeça erguida e luta por seus direitos e destinos”. E lembrou que o Dia Nacional da Consciência Negra é feriado em centenas de municípios e estados.
O grande feito dos homens e mulheres da geração de jovens de 1978, fundadores do MNU, foi dar continuidade, com nova energia e intensidade, a uma luta contra séculos de dor e opressão. Em meio aos conflitos da celebração dos quinhentos anos das Américas, poucos perceberam que, pela primeira vez na história da humanidade, desde o século XVI, por fruto de um acordo entre Estado nacional e Estado religioso católico, ocorreu a confissão de um crime de lesa-humanidade e lesa-divindade. A luta continua até que haja reconhecimento do direito e das conquistas. É isto o que representa os 40 anos do MNU. Ele tem na Lei 10.639/2003 um marco histórico porque assenta as inúmeras “Histórias afroatlânticas” que demarcam as reparações na construção de um novo futuro nas relações etnorraciais no Planeta Terra.
JOSÉ ADÃO DE OLIVEIRA