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A MULHER NEGRA NO PALCO DA LUTA DO 7 DE JULHO DE 1978
da manifestação grupos organizados de mulheres e de homossexuais e organizações de trabalhadores. Após a concentração, os manifestantes saíram em passeata pelas ruas do centro, portando faixas e fazendo coro de palavras de ordem contra o racismo, o subemprego, o desemprego, a repressão policial e a ditadura. A passeata dirigiu-se para a escadaria do Teatro Municipal, onde foi realizada nova concentração. Vejamos o que, dez anos depois, Hamilton escreveria a respeito desse dia:
Foi uma data memorável, o dia 13 de maio de 1978. O presidente do Clube 28 de Setembro, Frederico Penteado, começou a suar quando faixas e cartazes, questionando a abolição da escravatura em São Paulo e denunciando a brutalidade policial, foram erguidas no Largo do Paiçandu diante da estátua da Mãe Preta. A solenidade com autoridades visava comemorar o dia 13 de maio. O inusitado da situação tornou autoridades e policiais incompetentes para impedir a leitura da primeira carta aberta à população, fazendo um balanço dos mortos pela Rota e denunciando a violência policial. O governo da época era de Paulo Maluf.
Estava aberto um campo comum de atuação para as forças que se uniriam na construção do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial. O impulso para a mobilização de 13 de maio de 1978 veio em grande parte dos acontecimentos envolvendo Robson Silveira da Luz, primo de Rafael Pinto, torturado e assassinado no início daquele mês nas dependências da 14ª Delegacia de Polícia da Capital. Em seguida, a discriminação sofrida por quatro garotos negros, expulsos do time juvenil de basquete do Clube de Regatas Tietê, desencadeou novas e fortes reações no interior da população negra. Os dois episódios causaram grande indignação. Em 18 de junho de 1978, grupos e entidades se reúnem na sede do Cecan para deliberar sobre as ações a serem implementadas. Nessa reunião, foi fundado o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (Mucdr), que seria lançado no dia 7 de julho em um Ato Público Contra o Racismo.
Celso Prudente 41 , que costumava participar sempre junto com seu irmão Wilson das
41. Celso Luiz Prudente foi um dos fundadores do MNU e colaborador do Afro-Latino-América. É antropólogo, cineasta e escritor, com doutorado em educação e cultura pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp).
reuniões do Cecan, lembra que ele, Milton Barbosa, Rafael Pinto e Hamilton defendiam a ideia de uma passeata contra a opinião da maioria dos participantes: “Ir às ruas era tão significativo que vieram de diferentes estados pessoas ligadas a associações culturais, políticas ou populares, que tinham a questão do negro como elemento nuclear. Porque não se falava em negro fazer uma passeata, então aquilo foi muito forte”. Partiram desse núcleo as denúncias daqueles episódios de racismo feitas aos jornais da grande imprensa nacional e internacional e da própria imprensa alternativa.
Cabe destacar o importante papel desempenhado por duas pessoas brancas nessa divulgação: a jornalista Mirna Grzich (1951-2018) e o cineasta José Antonio de Barros Freire, que junto com Hamilton fizeram um intenso trabalho de contato com os diversos órgãos de informação.
Ao anoitecer do dia 7 de julho de 1978, cerca de 2 mil pessoas, na grande maioria negros e negras, concentraram-se na praça Ramos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. Durante a manifestação, foi distribuído um manifesto conclamando a população a fazer frente ao racismo, assinado por Grupo AfroLatino-América, Grupo Decisão, Brasil Jovem, Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA), Associação Cristã Brasileira de Beneficência (Acbb), Grupo de Artistas Negros e Grupo de Atletas Negros. Estiveram representadas no ato a Escola de Samba Quilombo, o Renascença Clube, o Centro de Estudos Brasil-África, o Instituto de Pesquisa da Cultura Negra (IPCN) e o Núcleo Negro Socialista do Rio de Janeiro, além Grupo Nego da Bahia. A carta aberta, distribuída à população e lida em coro pelos manifestantes, dizia a certa altura: “Hoje é um dia histórico. Um novo dia começa a surgir para o negro. Um novo passo foi dado na luta contra o racismo”.
O ato, que contou com a presença de militantes de associações negras do Rio de Janeiro, além de moções de apoio do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Bahia, culminou com o apelo à criação de uma entidade nacional que unificasse as lutas contra a discriminação racial. A grande repercussão nacional e internacional da manifestação colocou o movimento em novo patamar, tornando secundárias as polarizações existentes no interior do Cecan.
A realização desse ato desnudou a falácia da afirmação insistentemente feita pelos governos e pela diplomacia do Brasil de que o país era um paraíso racial, ao mesmo tempo que demonstrou o anseio da população negra por encontrar caminhos para combater de maneira mais incisiva o racismo e suas consequências. O tema dominante no Movimento Negro agora seria o caráter da organização que estava sendo criada.
Para Hamilton, a estruturação do movimento estava se dando até aquele momento nos marcos do que havia sido imaginado pelo Núcleo Negro Socialista, mas justamente na primeira assembleia há uma mudança de rumos, que ele depois classificará como início da crise do Movimento Negro Unificado. Na leitura dele e do Núcleo Negro Socialista, o movimento deveria unificar forças sociais contra o racismo e não se restringir a um movimento de negros. Sua intenção era criar uma articulação que abrangesse negros e todos os que estivessem dispostos a lutar contra o racismo. Mas essa ideia acabou sendo derrotada.
Em 8 de julho, foi realizada uma reunião de avaliação do ato e, no dia 23 de julho, na sede da Associação Cristã de Beneficência, em São Paulo, foi feita a primeira Assembleia de Organização e Estruturação Mínima do Mucdr, com a presença de representantes de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. É nesse momento que, por sugestão de Abdias Nascimento, a palavra “negro” é incluída na sigla, que passa de Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (Mucdr) para Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (Mnucdr). É Milton Barbosa quem explica:
Ele [Hamilton] queria fazer um movimento tipo Sos Racismo da França, que junta todo mundo. Já eu e Rafael queríamos construir o embrião de um movimento de libertação nacional. Não estava decidido na nossa cabeça o que seria, mas nós já tínhamos essa noção. A gente estudava muito os movimentos de libertação em África, partidos políticos, e achávamos que se tinha que construir um Movimento Negro organizado. Quando Abdias veio com a palavra negro, nós abraçamos porque queríamos uma única coisa: organizar o povo negro.
Nos dias 9 e 10 de setembro de 1978, no Estado do Rio de Janeiro, realizou-se a 2ª
Assembleia Nacional do Mnucdr, em que foram aprovados a Carta de Princípios e o Programa de Ação. A terceira Assembleia Nacional aconteceu na cidade de Salvador, em novembro de 1978, e aprovou o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, data nacional do Movimento Negro Brasileiro, e o Manifesto Nacional do Mnucdr. Em setembro de 1979, ocorreu o I Encontro Nacional do movimento, que tinha como objetivo preparar o I Congresso Nacional, realizado nos dias 14, 15 e 16 de dezembro na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Nesse congresso foram discutidos e aprovados a Carta de Princípios, o Programa de Ação, o Estatuto e o Regimento interno da organização, cuja sigla é simplificada para Movimento Negro Unificado (MNU).
Apesar das diferenças em relação à estruturação do MNU e da distância que ele acabou tendo de sua ideia original, Hamilton sempre se declarou militante da organização. Por mais que criticasse o projeto do MNU, ele sempre o reivindicou como parte de uma construção coletiva do Movimento Negro Brasileiro. Flávio Jorge afirma que muitas das propostas do MNU nasceram sob influência do pensamento de Hamilton:
Eu diria que ele não influenciava as instâncias do MNU, se você for pensar burocraticamente como funciona a organização do tipo do MNU, com a coordenação, direção nacional... mas o que Hamilton escrevia era sempre alvo de debate dentro desses agrupamentos. Ele nunca foi um dirigente reconhecido e de destaque dentro do MNU, mas sempre influenciou informalmente tudo o que o MNU fez, principalmente nos primeiros dez anos.
Quando analisamos as matérias assinadas por Hamilton na seção Afro-Latino-América, em 1978, no Versus, verificamos um esforço para garantir a unidade política do Movimento Negro que surgia, entendido como um fenômeno de massas e sempre citado no singular:
O Movimento Negro não é algo isolado do conjunto das manifestações de massas. Dele se alimenta, alimentando-o, participa de suas vitórias e de suas derrotas. E sofre com os seus desvios. É preciso, portanto, estar atento a tudo que vem ocorrendo no Brasil e no mundo. (...) Em outras palavras: precisamos começar a escrever – fazendo – a história atual do Brasil. Uma
história negra que há muito vem sendo embranquecida (...), um Movimento Negro Unificado é, hoje, a única forma responsável de trabalhar no sentido de responder aos anseios das populações negras [grifo nosso].
Depois da fase de grande ativismo de 1978, a relação de Hamilton e do Núcleo Negro Socialista com a Liga Operária (depois Convergência Socialista) foi gradativamente se desgastando. Os militantes negros exigiam uma participação maior na definição de uma política antirracista, mas esbarravam na resistência da direção. Na entrevista que concedeu a Maria Ercília do Nascimento, Hamilton revela que novamente (como havia acontecido com a geração de Milton Barbosa e Rafael Pinto) existia um desejo desses militantes de estar em posição de igualdade com os brancos da Liga Operária, o que gerava polêmicas, debates:
A relação entre os negros e a direção da organização era de certa forma uma relação rica, porque aprofundou a questão marxista no Movimento Negro e aproximou a organização na questão racial. Então, a gente exigiu que a organização definisse uma política antirracista e que a gente pudesse se pautar por tal orientação. Na medida em que a organização não definiu uma política antirracista, o núcleo começou a se desfazer. Saiu um daqui, outro dali, essa coisa toda.
O afastamento de Hamilton da Convergência Socialista parece ter sido um processo gradativo e combinado com a busca de novos espaços de realização profissional e de atuação política. Era evidente a necessidade que ele tinha de ampliar seus horizontes.
Em 1980, Hamilton passou nove meses na Inglaterra em uma viagem feita para ampliar os horizontes. A experiência da Europa ofereceu a oportunidade para ampliar o seu contato com grupos artísticos e políticos engajados na resistência cultural negra, na luta contra o racismo e pela libertação nacional. Esse contato aguçou a sua perspectiva diaspórica em relação à consciência negra (algo já observável no Brasil em sua militância trotskista). De volta ao Brasil, ele retoma o estudo de jornalismo e inicia sua carreira profissional. Os arquivos da Metodista registram seu ingresso em 1981, tendo terminado a graduação em 1982.
O próximo passo seria a luta para conseguir emprego como jornalista.
A garra de um repórter
Examinando minhas pastas de recortes de jornais com artigos sobre a questão racial, encontrei alguns textos assinados por Hamilton na Folha de S.Paulo, principalmente no caderno Folhetim. Dulce Pereira fala de contribuições dele para a Folha Ilustrada, e Ivair Augusto dos Santos lembra-se de um período em que ele teria trabalhado na revista IstoÉ. Eu me lembro que, em 1980, Hamilton participou, junto com Celso Prudente, do projeto de uma revista negra, Ébano, publicada pela Associação de Cultura Afro-Brasileira (Acacab), entidade negra dirigida por Jorge Octávio Xavier Júnior e Benedito Eduardo de Paula, que funcionava em uma casa da rua Bela Cintra. A experiência, no entanto, seria curta.
O primeiro emprego fixo de Hamilton como jornalista parece ter sido na assessoria de imprensa do então vereador Paulo Ruy de Oliveira, que assumiu a liderança do MDB na Câmara Municipal de São Paulo em 1979 e que, em 1981, depois de migrar para o PDS, tornou-se o primeiro negro a assumir a presidência daquela casa. O maior reconhecimento profissional como jornalista, Hamilton teve em meados da década de 1980 como repórter especial de política do Diário Popular. Esse “especial” aí de cima quer dizer que ele tinha autonomia para criar suas próprias pautas, tinha fontes exclusivas, trabalhava sem um horário específico e ganhava um pouco mais que um repórter comum. Na redação do Diário Popular, por volta de 1987, recebeu um convite para trabalhar no SBT, cujo departamento de jornalismo havia decidido ter um repórter negro, um personagem chamado “Repórter do Povo”, que discutia com a população os problemas da cidade. O jornalista Simão Zigband, colega de Hamilton no Diário Popular e que também trabalhava no SBT nessa época, conta que, apesar de nunca ter trabalhado em TV, ele logo se familiarizou com o veículo, e que suas entradas como repórter do jornal local da emissora faziam subir a audiência:
Ele não só atraía a atenção do telespectador como, no local da reportagem, em geral a periferia. A presença de um repórter negro era muito familiar para as pessoas. Então era a fome com a vontade de comer: o Hamilton se sentia à vontade de ir a um
posto de saúde ou a uma escola da periferia, onde a população é predominantemente negra. Quando a gente via as imagens, via o Hamilton cercado de crianças negras, sempre muito à vontade, em casa.
Trabalho e ativismo
Ao mesmo tempo em que trabalhava como jornalista, Hamilton continuou atuando tanto no Movimento Negro quanto na vida política geral do país. Um momento de sua vida que merece ser lembrado é a participação no III Congresso de Cultura Negra das Américas, realizado em 1982 pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), sob a presidência de Abdias Nascimento e coordenação de Dulce Pereira 42 . O local do congresso foi o prédio da PUC de São Paulo, na rua Monte Alegre, onde funcionava o Ipeafro. Vale lembrar que o 1º Congresso foi realizado em agosto de 1977, em Cali, na Colômbia, e que o segundo, realizado em março de 1980, teve como sede o Panamá. Hamilton passou por momentos difíceis nesse congresso, uma vez que o MNU teve uma participação bastante crítica, questionando
42. Arquiteta, conhecida militante do Movimento Negro e primeira esposa de Hamilton.
a ausência de movimentos sociais e da população negra no evento.
Um apoio importante a essa reivindicação foi dado por Humberto Brown, experiente militante do Movimento Negro panamenho, que havia participado do II Congresso e que fazia parte da cúpula do III Congresso.
O contexto em que conheci Hamilton – conta Brown – foi quando o pessoal do MNU apresentou uma proposta política dentro da conferência. Em um dado momento, quando acontece o conflito, eu tive problemas com Abdias e as pessoas da direção do Congresso no Brasil, porque apoiei Hamilton e o MNU, que queriam ampliar a participação, iniciar um novo processo, defendendo que eles teriam direito de estar oficialmente no evento. Isso foi visto como uma traição, porque eu tinha integrado a organização da conferência e tinha um lugar dentro da sua estrutura, mas consolidou um pouco minha amizade com Hamilton.
Além da dedicação ao trabalho de jornalista, Hamilton manteve uma militância política de esquerda e antirracista, que depois da sua saída da Convergência passou a ser desenvolvida no Partido dos Trabalhadores. Foi no interior do
PT que ele reencontrou, no início dos anos 1980, o sociólogo José Álvaro Moisés, que ele havia conhecido no final de década de 1970, por intermédio de Dulce Pereira. Dirigida por Moisés, a revista Lua Nova, do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), era uma publicação com perfil intelectual, mas que procurava ter capacidade de intervenção junto aos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e organizações não governamentais.
Nas entrevistas que realizou e nos artigos que escreveu para essa publicação, Hamilton organizou a sua reflexão em relação à esquerda, à questão racial e ao momento histórico de restabelecimento das liberdades democráticas. No âmbito da questão racial, merece destaque o artigo “O resgate de Zumbi”, publicado em Lua Nova n. 4, de janeiro-março de 1986. Nesse texto, Hamilton Cardoso fala das consequências políticas do reconhecimento de Zumbi como herói nacional em novembro de 1985:
(...) com o reconhecimento do herói e com o tombamento da serra da Barriga, encerra-se a fase em que os negros lutavam apenas para legitimar as lutas antirracistas no Brasil. Um bom sintoma de que o objetivo está alcançado é que já há brancos engajados na luta antirracista. Há índios repensando quem e o que são os negros no Brasil. Há mestiços que já oscilam entre a fácil consciência branca e a consciência negra – que cada vez mais deixa de ser tratada como vergonha ou complexo. Há negros que se movem nos sindicatos e nas periferias. Finalmente, as elites elaboram uma nova tática para conter a subversão negra, um risco jamais afastado nos países de populações multirraciais e onde a dominação, além da exploração econômica, baseia-se também no racismo.
Hamilton viveu uma experiência que escapa à maioria dos negros e negras: ativista, jornalista e escritor, com lucidez para pensar a discriminação racial além de suas próprias fronteiras. E essas posições e cargos, sabidamente de difícil acesso para um homem negro comum, ele ocupou graças ao seu talento. O que o credenciou a ocupar lugares e posições tradicionalmente estranhos e difíceis a homens e mulheres negros? A sua história de vida nos permite dizer que, mais do que um importante militante para a causa negra brasileira, Hamilton Bernardes Cardoso foi um intelectual, no sentido lato do termo.
Ao mesmo tempo em que permaneceu ligado a sua cultura de origem, ele estabeleceu um diálogo constante com o meio acadêmico. Foi informante-chave de inúmeros pesquisadores da questão racial, mas também teve uma produção intelectual própria, ainda que sem ocupar um espaço formal na academia. Vários de seus artigos figuraram lado a lado com a produção teórica da elite intelectual do país. Além disso, iniciou na década de 1980 um projeto de mestrado na Faculdade de Ciências Sociais da USP, ao qual acabou não dando continuidade. E aqui talvez seja o momento para trazer à tona um lado de Hamilton, apontado por José Álvaro Moisés, que permite conhecê-lo melhor: o fato de às vezes ser confuso e indisciplinado, nem sempre dando continuidade aos projetos que tinha iniciado. “Esse é um aspecto humano de que me recordo muito. Às vezes tinha que chamar Hamilton às suas próprias responsabilidades, em função das coisas que ele queria fazer, não das coisas que o Cedec propunha, mas as coisas dele mesmo.”
O sociólogo situa Hamilton na categoria de intelectual orgânico: “Eu tenderia a trabalhar com a noção de intelectual de um autor como Gramsci, de que as lideranças que são capazes, de alguma maneira, de organizar os pensamentos e dar resposta aos problemas de organização do seu grupo, propondo temas, agenda, solução e ação, são intelectuais”. Nesse sentido, Hamilton deu continuidade a uma tradição de pensadores e pensadoras negros, como Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Eduardo Oliveira e Oliveira, Lélia Gonzalez, Lima Barreto, Luiz Gama e Manuel Querino, ao mesmo tempo em que pensou e atuou politicamente no sentido da construção de um país (creio que ele diria um planeta) mais justo para mulheres e homens de todas as cores.
Um longo adeus
No dia 1º de maio de 1988, depois de uma festa na Escola de Samba Unidos do Peruche, Hamilton foi atropelado por um automóvel na rua da Consolação, em frente ao cinema Belas Artes. O acidente obrigou-o a ficar internado por mais de um ano na Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo. Recuperou-se parcialmente, mas só conseguia caminhar com alguma dificuldade, o que não o impediu de continuar atuando no PT e no Movimento Negro, mas o afastou da grande imprensa. Foi um divisor de águas na sua vida. O ator,
o poeta, o amante, o militante aguerrido, o jornalista em ascensão, o intelectual que acreditava na construção de um futuro melhor cedem lugar a um homem amargurado. Segundo a economista Eliana Moraes, companheira de Hamilton na fase final de sua vida, a depressão foi algo que o acompanhou durante os últimos anos, embora não o impedisse de continuar a escrever:
Hamilton era uma pessoa que sofria, tinha crises de depressão. Depois começou a virar depressão mesmo, porque, se você não tem uma forma de trabalhar essas questões, elas vão virando depressão, a pessoa se isola e aí ela não consegue mais fazer as coisas. Mas ele escrevia sempre...
Esse quadro de depressão levou Hamilton a uma tentativa de suicídio, em 1994. Atirouse do viaduto Pedroso, no bairro do Bixiga, fraturou as pernas, mas sobreviveu. Depois dessa primeira tentativa, voltou a residir na casa dos pais, na Casa Verde, bairro de sua infância. Ficou em minha memória uma frase dele, numa das últimas vezes em que nos falamos e que dá a dimensão do estado em que se encontrava: “A vida me venceu”. Hamilton fez ainda uma segunda tentativa de suicídio, jogando-se nas águas do rio Tietê, ato que repetiu em 5 de novembro de 1999, quando faleceu.
Humberto Brown diz que, quando soube da sua morte, sentiu que perdeu um amigo que nunca chegou a conhecer como queria, e que o Movimento Negro havia perdido um grande líder. Brown observa que às vezes nosso movimento fracassa em apreciar os tesouros que temos, e a parte pessoal, íntima, o ser humano que existe para além do militante, do quadro político, do jornalista, que é o que precisamos e deveríamos entender quando pessoas como Hamilton estão em crise.
Creio que nós mesmos construímos essas barreiras, em que uma pessoa que teve reconhecimento, prestígio, visibilidade não sabe se o irão querer e respeitar quando não é mais o vencedor, o dirigente, o homem atraente e bonito, uma pessoa influente. Mas acredito que seu espírito permanece e que existem muitos Hamiltons dentro de cada um de nós.
LUTAS DE ONTEM, DE HOJE E DO AMANHÃ VIOLÊNCIA RACIAL EM TRÊS TEMPOS
PAULO RAMOS*
Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa. Lima Barreto
Aviolência contra pessoas negras sempre compôs a paleta temática do Movimento Negro Brasileiro desde a sua reorganização, nos anos 1970. A partir de 2007, nota-se em torno desse tema maior intensidade e campanhas sistemáticas do Movimento Negro e de outras organizações, de onde emerge o jargão “contra o genocídio da juventude negra”. A despeito da ampliação da renda, do acesso a direitos sociais e da participação política do último processo de democratização, houve um aumento significativo da violência policial, do encarceramento e dos homicídios em geral.
AGRESSÃO POLICIAL CONTRA UM JOVEM NEGRO, DURANTE A MANIFESTAÇÃO “OUTROS 500”, EM PORTO SEGURO, BAHIA, DIA 22 DE ABRIL DE 2000. ©SAMUEL TOSTA
Esse cenário desafia as ciências sociais brasileiras por explicações que digam mais que a subsunção dos conflitos raciais aos problemas de
* MESTRE PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS (UFSCAR). FOI CONSULTOR DA UNESCO E, ATUALMENTE, COORDENA O PROJETO RECONEXÃO PERIFERIAS, DA FPA.
classe (negros como pobres) ou de território (periferia). Propomos a interpretação da violência denunciada pelo Movimento Negro sob o nome de discriminação racial, violência racial ou “genocídio”, sendo registrada nas estatísticas pelo viés das relações raciais e relacionando a violência policial, os homicídios e o encarceramento às dinâmicas sociorraciais no Brasil.
Para tanto, aproximaremos os principais autores que inspiraram os estudos sobre violência no Brasil às principais teorias sobre relações raciais no contexto brasileiro, sob a teoria do reconhecimento de Axel Honneth e os debates sobre o racismo. Assim, buscamos um caminho para reconstruir o sentido da
PRIMEIRA MANIFESTAÇÃO NO DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA, EM 20/11/1979. POLICIAL PEDE IDENTIFICAÇÃO AO POETA ARNALDO XAVIER, MILITANTE FUNDADOR DO MNU, QUANDO A CAMINHADA DE ZUMBI CHEGA À PRAÇA RAMOS DE AZEVEDO. ©ENNIO BRAUNS/ FOTO&GRAFIA
denúncia da violência presente nos protestos negros desde o processo de redemocratização, observando as principais formas de categorizar a violência vivida pelos negros no Brasil – violência policial e crescente sobrerrepresentação nas taxas de homicídios e nas taxas de encarceramento.
O trajeto da reconstrução da gramática dos protestos negros deve percorrer o fio lógico que foi tecido da elaboração das pontes semânticas que foram elaboradas por entre conflitos e consensos 59 . Ao longo do período analisado, é possível rever momentos de confluência e dispersão da pauta negra diante da variação das pautas defendidas, o lugar que elas ocuparam e a posição delas na estrutura dos documentos. Assim, é possível afirmar que houve ao menos três momentos de consenso – ou confluência – em torno de
59. A. Honneth. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
categorias agregadoras das experiências de desrespeito vivenciadas pela população negra, designadas pela gramática negra. ACERVO SOWETO
A partir de 1978 vigora o termo discriminação racial englobando o conjunto das experiências de desrespeito expresso pelo protesto negro. Trata-se de um termo que reflete diretamente um ato da vida social e é resultado da prática do preconceito racial. O país vivia uma ditadura militar em decadência e havia uma ebulição de movimentos sociais a pressionar por democracia. Sob o signo da discriminação surge o Movimento Contra a Discriminação Racial. O termo ganha lastro na produção sociológica da época, desde os estudos da chamada escola paulista de sociologia até o livro contemporâneo da criação do MNU Discriminação e desigualdade racial, de Carlos Hasenbalg, de 1978. Nos últimos anos da ditadura militar, tomou posse o primeiro presidente civil, em 1985, e uma nova Carta Magna é construída democraticamente em 1988. A violência nas cidades e no campo tomam a atenção do noticiário. Grupos de extermínio, chacinas, pés-de-pato; Carecas do ABC, brigas de gangues de jovens. Toda sorte de problemas vinculados à experiência do racismo seria subsumida na ideia de violência racial. Houve um forte investimento das organizações negras em torno do tema da violência, tematizando, além desses problemas, propostas de esterilização de mulheres negras, de pena de morte, de exclusão da história da África dos currículos escolares, além do desemprego entre negros e outros temas. Essa agenda foi alimentada também por pesquisas sobre direitos humanos ligadas ao tema da segurança pública, entre as quais destacamos um trabalho realizado pelo Núcleo de Estudos sobre a Violência da Universidade de São Paulo (NEVUSP), que pioneiramente demonstrou a preferência de policiais em atirar letalmente em pessoas negras.
Em 2007, o início de um novo esforço coletivo atualiza o termo-síntese da mobilização negra ressignificando o termo genocídio e associando-o especificamente à
juventude negra. Desempenharam um papel de protagonismo e destaque jovens negros de todo o Brasil, em muitos casos formados pelo movimento hip hop, com a organização do 1º Encontro Nacional da juventude negra, que lançou a campanha contra o genocídio da juventude negra.
Era um período de democracia pulsante, de implementação de políticas públicas, de intensa interlocução entre sociedade e estado por meio de grandes conferências temáticas nacionais. A ideia de genocídio foi motivada pela escalada de homicídios em massa, mas foi associada também à escalada das taxas de encarceramento, à persistente desigualdade racial, à segregação territorial/racial, bem como às questões de gênero e representatividade. Em 2007, os mapeamentos sobre homicídios ou não existiam, como o Atlas da violência, ou não traziam com confiança o quesito raça/cor, como o Mapa da violência. Contudo, levantamentos preliminares davam conta da tragédia brasileira de aumento dos homicídios e da sua concentração entre jovens homens negros. Sob a ótica do corte etário, a ideia de genocídio surge nos anos 2000 ressignificado, acrescentando à argumentação de Abdias Nascimento problemas da violência policial, do encarceramento e dos homicídios em massa.
Todos os três termos, não nos seus significados originais, mas sim nos seus significados politicamente construídos pela mobilização negra, expressam uma noção ampla da experiência da violência e da racialização dos sujeitos envolvidos na denúncia. Discriminação racial, violência racial ou genocídio negro procuram abarcar não os atos isolados, eventuais – ainda que graves, ou intensos –, mas atos recorrentes e sistemáticos, diferentes entre si, mas conectados por um mesmo fio lógico. Tal fio lógico amarra cada denúncia específica – preconceito racial, desigualdade de renda, exclusão do mundo do trabalho, por exemplo – dentro de um sistema de exclusão e eliminação material e simbólica dos sujeitos negros. Por isso, não se trata de um ato isolado, nem um processo histórico, mas sim de um sistema que se atualiza e se reinventa a cada contexto e momento histórico.