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NASCE O MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO: UM SALTO DE QUALIDADE NO TEMPO E NA HISTÓRIA DEPOIMENTO DE NEUSA MARIA PEREIRA
dessa imprensa, o jornal Versus. O jornalista Bernardo Kucinski 37 afirma que Versus foi ao mesmo tempo uma alternativa de linguagem, de organização da produção jornalística e de proposta cultural, diferenciando-se de outros jornais alternativos do período por substituir o discurso político por uma narrativa mítica, operando no plano ideológico por meio de metáforas culturais e históricas. Definido pelo seu criador, Marcos Faerman, como um “jornal de reportagens, ideias e cultura”, Versus publicava poucas reportagens factuais, valorizando muito a forma, numa “fusão de elementos usados livremente: jornalismo, fotografia, desenho, história em quadrinhos, literatura, poesia” 38 .
Quando criou a publicação, em 1975, Faerman trabalhava no Jornal da Tarde, tendo como colega e amigo o jornalista e escritor Oswaldo de Camargo. Este conta que, a partir de um convite de Faerman, tomou a iniciativa de criar dentro de Versus uma seção dedicada à questão do negro e, para isso, reuniu em torno de si um grupo de jovens poetas e estudantes de jornalismo. Neusa Maria Pereira, no
37. Entrevista de Marcos Faerman em 16 ago. 1990. Bernardo Kucinski. “Versus: a política como metáfora”. In: Jornalistas e revolucionários nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Edusp, 2003. 38. Marcos Faerman. “A imprensa alternativa”. In: Cadernos de Comunicação Proal. São Paulo: 1977, n. 1.
entanto, diz que a participação mais efetiva dos jornalistas negros em Versus começou a partir da publicação de um artigo escrito por ela sobre a discriminação da mulher negra, e que logo em seguida também passaram a colaborar Hamilton Cardoso e Jamu Minka. Hamilton trabalhou na seção Afro-Latino-América de junho de 1978 até o fechamento do jornal, no final de 1979. No Versus, ele entraria em contato mais próximo com a esquerda e acabaria se tornando militante da Liga Operária. Numa entrevista que concedeu a Gevanilda Santos, ele afirmou: “Eu entrei para o Versus nessa época, junto com a Neusa Maria Pereira, o Jamu Minka, o Oswaldo de Camargo e a Tânia Regina Pinto. Nós fomos pra lá aprender jornalismo, e depois alguns foram cooptados pela Liga Operária”. A coordenação do Afro-Latino-América era formada originalmente por Hamilton Cardoso (sob o pseudônimo de Ndacaray Zulu Nguxi), Jamu Minka, Neusa Maria Pereira, Oswaldo Camargo e Tânia Regina Pinto. Essa primeira coordenação atuaria do número 12, de julho de 1977, até o número 18, de fevereiro de 1978, antes, portanto, do surgimento do MNU.
Discurso no corredor
A opção de Hamilton pelo jornalismo como profissão foi anterior à entrada
em Versus. Em 1974, ele ingressou no curso da Faculdade Cásper Líbero, à qual permaneceria vinculado até 1981. Vera Lúcia Benedito, que conheceu Hamilton na Cásper em 1977 e foi sua namorada, diz que, apesar de estar matriculado na faculdade, ele quase não frequentava as aulas, dedicando praticamente todo o seu tempo à militância política:
A ocasião em que o vi foi muito peculiar, porque ele estava fazendo um discurso contra a ditadura e falando em termos de revolução, de questão marxista de raça e classe, indo numa linha pouco convencional para a época, porque se discutia o capitalismo sob o prisma de classe. Dificilmente as pessoas colocavam a questão da raça. E o Hamilton apareceu fazendo um discurso no corredor da Cásper. Juntou muita gente para ouvilo, porque ele era muito eloquente nas suas colocações, e foi aí que parei para prestar atenção.
Hamilton não conseguiu terminar o curso na Cásper Líbero por causa da opção pela militância política. Foi jubilado e completou os estudos nessa área em 1982 no Instituto Rudge Ramos, atual Faculdade Metodista, de São Bernardo do Campo.
Primavera negra
A luta pela inclusão da questão racial entre as bandeiras dos movimentos em favor da democracia, nos anos 1970, fez amadurecer entre alguns militantes a ideia de que era preciso construir mecanismos autônomos, nos quais a questão racial ocupasse o centro do debate. As pesquisas sociológicas mostravam cada vez mais as distâncias entre negros e brancos, o que possibilitava que o debate sobre o racismo se tornasse um eixo norteador para a superação das desigualdades. Diferentes iniciativas apontam nesse sentido. Em 1970, no Rio Grande do Sul, forma-se o grupo Palmares, que em 1974 propõe que o dia da morte de Zumbi dos Palmares, 20 de novembro, se torne a data nacional dos afro-brasileiros, no lugar do 13 de maio. Em Salvador, no mesmo ano, surge a Sociedade Cultural Bloco Afro Ilê Aiyê. No Rio de Janeiro, a Sociedade de Intercâmbio Brasil- -África (Sinba) e o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN) desempenham um importante papel na reaglutinação do Movimento Negro fluminense. Ainda no Rio, em 1976, Lélia Gonzalez abre o curso de Cultura Negra da Escola de Artes Visuais, no momento em que aumenta o intercâmbio entre as organizações cariocas e paulistas.
Um antecedente importante foi a I Semana do Negro na Arte e na Cultura, realizada em maio de 1975. No início de 1976, aconteceu em São Carlos o I Encontro de Entidades Negras de São Paulo, Rio de Janeiro e Guanabara.
Após vários encontros de grupos de São Paulo e Rio de Janeiro realizados em 1976 e 1977, foi criada a Federação das Entidades Afro-Brasileiras do Estado de São Paulo (FEABESP). Dessa articulação surgiria a proposta de uma grande festa de confraternização que reunisse anualmente, em diferentes cidades do interior, em datas próximas a 20 de novembro, grupos e entidades negras de todo o estado para mostrar seus trabalhos culturais e trocar experiências de Movimento Negro. Nasce daí o Festival Comunitário Negro Zumbi (Feconezu), evento que teve sua primeira versão realizada em Araraquara em 1978.
Outro evento que marcou significativamente a retomada da consciência negra naquele período foi a Quinzena do Negro, um ciclo de estudos realizado no prédio da Faculdade de Psicologia da USP entre 22 de maio e 8 de junho de 1977. O objetivo da Quinzena foi reunir a intelectualidade negra para realizar discussões sobre a realidade da população afrodescendente na sociedade brasileira e procurar as alternativas para a superação das desigualdades raciais.
Cultura e política
As atividades culturais tiveram papel muito importante no processo de organização do negro brasileiro em diversos âmbitos. Teatro, literatura, dança, música e cinema foram expressões artístico-culturais que contribuíram significativamente para a reconstrução da identidade desse segmento, tornando-se ponto de partida para a atuação política. Um dos principais palcos desse debate foi o novo Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan). A entidade, que tinha sido desativada por Tereza Santos quando de sua ida para Angola, foi reativada em 1976, passando a funcionar em uma casa hoje demolida que ficava na rua Maria José, 450, no Bixiga, região central da cidade.
No grupo de pessoas que promoveu essa reorganização estavam Isidoro Telles de Souza, Maria Inês Barbosa, Maria Lúcia da Silva, Milton Barbosa, Odacir de Mattos e Rafael Pinto. Maria Lúcia observa que, no momento dessa reativação, o Movimento
Negro tinha uma perspectiva e um perfil mais cultural, a fim de recuperar a identidade, com grande influência dos movimentos de libertação da África e também da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos.
O Cecan – diz Lúcia – se configurou em um polo do Movimento Negro em São Paulo, no qual circulavam as notícias do que estava acontecendo. Eram grupos que desenvolviam atividades culturais por um lado e por outro discutiam a questão racial, procurando pensar estratégias para poder ampliar o debate na sociedade brasileira.
Ela lembra que havia toda uma articulação com o interior do estado: Campinas, Rio Claro, São Carlos e outras cidades.
Era um momento em que a gente começou a discutir o 20 de novembro e a fazer atividades nesse dia, como forma de fixação da data, de trazer uma data significativa para a população negra. Então o Feconezu nasce nessa perspectiva. O primeiro festival, realizado em 1978, já surgiu de um movimento articulado com os grupos do interior.
E acrescenta que os grupos jovens do interior estavam em geral ligados às organizações tradicionais da comunidade, como os clubes José do Patrocínio ou 13 de Maio, mas observa que em São Paulo as lideranças, principalmente os homens, mantinham intenso diálogo com o movimento político mais clandestino.
Eram militantes de esquerda, muitos universitários, que participavam das discussões nas universidades. E aí o Movimento Negro recebia toda a influência do movimento político da sociedade, da luta contra a ditadura.
O que fazer no 13 de maio? Em São Paulo, o debate político de maior importância entre os jovens militantes que se reuniam no Cecan ocorreu em maio de 1978 e teve como tema justamente as comemorações do 13 de maio. A posição defendida pela maioria dos participantes era de que na data deveria ser feita uma espécie de antimanifestação, ou seja, em protesto contra a falsa liberdade concedida pela Lei Áurea, a população deveria ser estimulada a não sair às ruas. A proposta contrária, defendida pelo Núcleo Negro Socialista, do qual Hamilton fazia parte, e pelo Grupo Decisão, em que estavam Rafael Pinto e Milton Barbosa, era de sair às ruas para denunciar o mito da
princesa Isabel como redentora, uma das bases da ideologia da democracia racial. O pressuposto era de que o 13 de maio ainda era uma data significativa para a população negra e seria comemorado de qualquer maneira, sendo melhor participar criticamente do que se omitir. Escreve Gevanilda Santos 39 :
A proposta do Núcleo Negro Socialista foi vitoriosa, e o 13 de maio entrou no calendário do Movimento Negro Brasileiro como Dia Nacional de Luta Contra o Racismo. Cabe salientar que, como contraponto, foi escolhida a data de 20 de novembro como elemento mítico para a luta da população negra, que ficou conhecida como Dia Nacional da Consciência Negra 40 .
Em entrevista concedida a Maria Ercília do Nascimento, em 29 de outubro de 1984, Hamilton Cardoso afirmava:
39. Gevanilda Santos, “Comentários” em: Octavio Ianni et al., O negro e o socialismo, São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2005 (Coleção Socialismo em Discussão). 40. A ideia de que 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares em 1695, deveria substituir o 13 de maio como data nacional da população negra foi lançada em 1971 pelo Grupo Palmares de Porto Alegre, liderado pelo poeta Oliveira Silveira. A proposta, definida a partir do consenso de que o Quilombo de Palmares foi o episódio mais importante da história do negro no Brasil, símbolo de resistência à opressão, foi acolhida pelos ativistas negros de todo o país.
O Núcleo Negro Socialista passou a atuar dentro do Cecan junto com o Grupo Decisão. O primeiro rompimento, a primeira derrota do Cecan, isto é, do grupo majoritário do Cecan, foi em relação às atividades do 13 de maio de 78. O Cecan pregava que os negros deveriam ficar em casa, pois a data não existia. O Núcleo Negro Socialista foi para o Cecan e propôs a realização de atividades; embora as vanguardas protestassem através da inércia, neste dia a grande massa negra trabalhava e continuava enfrentando a sociedade. Então, o Movimento Negro deveria ir para a rua e denunciar o 13 de maio (...). Enfim, transformar este dia num dia de denúncia contra o racismo. O 13 de maio foi a primeira mudança qualitativa.
Esse posicionamento levou a que se organizasse o primeiro ato do Movimento Negro, no largo do Paiçandu, em 13 de maio de 1978, durante as comemorações oficiais da atividade. Na concentração inicial, que reuniu cerca de 1.200 pessoas aos pés da escultura da Mãe Preta, vários oradores falaram, denunciando a situação marginal da população negra e a farsa do 13 de Maio. Além de ativistas e organizações do Movimento Negro, participaram