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HAMILTON CARDOSO E O MNU
Para elucidar melhor tais diferenças entre processo e ato, vale o debate sobre a noção de genocídio. O entendimento comum sobre o que seria genocídio está muito associado a eventos tópicos, intervenções últimas, meios extremos e terminativos que resultam na eliminação – ou tentativa de – exterminar um povo. Assim o é a chamada Decisão final do III Reich Alemão, por exemplo, fato que hegemoniza a memória do que seria um genocídio. Contudo, para a denúncia do Movimento Negro no Brasil nos últimos quarenta anos, a ideia de genocídio sempre esteve associada à de processo, como estabelece o subtítulo do livro de Abdias Nascimento O genocídio do negro brasileiro – processo de um racismo mascarado. Desde lá a ideia de genocídio vem desassociada de eventos cirúrgicos como viveram os judeus na Alemanha já nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Para Abdias, o processo que vivenciou o negro no Brasil é de longo termo e estaria espraiado em diversas esferas da vida social, mas principalmente na cultura.
Ao longo dos anos nos protestos negros, o que vimos foi, por um lado, a manutenção da ideia de genocídio como processo, mas por outro, a aproximação desse processo a temas mais afins com a eliminação direta de vidas. É esse o fundamento que o chamado genocídio da juventude negra expõe. A essa ideia são associados outros problemas sociais que não estavam presentes no livro de Abdias, como os homicídios, a letalidade policial, o hiperencarceramento, além, é claro, da discriminação e da desigualdade racial. A estruturação desse processo, que envolveria desde as mortes de autoria de agentes do Estado até as desigualdades de renda, de educação, de oportunidades, dar-se-ia por vias das dinâmicas raciais da sociedade brasileira. É nosso intento reconstruir o sentido histórico dessa denúncia para criar o sentido sociológico do fenômeno das lutas por reconhecimento em torno do chamado genocídio da juventude negra. Baseamo-nos nos panfletos manifestos e outros documentos de autoria coletiva de organizações do Movimento Negro que registram esse tema.
Em que pese a contradição da expressão “genocídio da juventude negra” – “geno” é povo, e não faixa etária –, vale retomar sólidas interpretações sobre o mais notável caso de genocídio, o nazismo, como a de Michel Foucault (em especial, no livro Em defesa da sociedade) e, mais recentemente, a de Aquile Mbembe (no livro Necropolítica), no intento de ponderarmos a extensão da aplicabilidade de suas formulações. Além da interpretação sobre o genocídio, tais autores foram fundamentais
para a edificação dos estudos sobre violência e trazem consigo articulações sobre raça, racismo e racialização que dialogam com as relações raciais no Brasil.
A contribuição de Abdias Nascimento expõe o caráter histórico e subjetivo da experiência de negação de direitos da população negra no Brasil. Histórico pois deita raízes desde o século XIX; subjetivo por ter ênfase no discurso sobre a nação. A despeito da radicalidade do termo, Nascimento não falava de mortes em massa. No mesmo sentido, Frantz Fanon – de Pele negras, máscaras brancas – deslinda o mundo colonial por meio da análise das interações subjetivas dos sujeitos, com base na dialética senhor-escravo hegeliana. Ele demonstra a consistente e resistente negação existencial do preto haitiano. Trata-se de uma regular e ordinária ausência de reconhecimento. Para o Fanon de Os condenados da terra, tal cenário alimenta uma “violência atmosférica”, pronta para se insurgir em rebelião política e guerra política interna. No entanto, em uma leitura mais contemporânea, Aquile Mbembe entende que tal violência converteu-se mais em massacre do que em conflito de potências simétricas. Para este camaronês, a violência sistêmica do mundo colonial irrompe-se como uma política de produção industrial da morte, uma necropolítica.
A violência reportada pelo Movimento Negro por meio dos tropos discriminação racial, violência racial ou genocídio negro não é explicada por nenhum desses autores em separado. O que se vê nos documentos do Movimento Negro é mais complexo, pois o esforço de aliança dos atores é também um esforço de sintetizar o sofrimento do povo negro ao ter sua entrada barrada na loja, ao ter o salário médio inferior ao dos brancos, ao ser morto pela polícia gratuitamente, ou ao ver seu povo morrer em massa nas periferias das cidades.
Assim, a violência sempre foi associada, articulada, conectada com outros tantos problemas da vida negra nas cidades e nos campos do Brasil, promovida por uma política que limita e nega o acesso aos direitos sociais e ao trabalho; segrega a população territorialmente; nega o conhecimento à sua própria história; invisibiliza sua produção cultural; encarcera e mata. É uma política que impede a vida subjetiva, legal e material, agindo sobre o indivíduo e sobre o coletivo. Da discriminação, à violência, do genocídio como processo à violência sistemática, algo que poderíamos chamar de sistema de encerramento de corpos, pois atua sobre o coletivo da população negra, dá fim a vidas e limita, cercando as possibilidades ao ponto de não deixar viver.