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INFLUÊNCIA DO JORNAL VERSUS

HAMILTON CARDOSO E O MNU

FLAVIO CARRANÇA, COM COLABORAÇÃO DE FÁBIO NOGUEIRA DE OLIVEIRA*

Hamilton Cardoso foi um dos mais talentosos representantes da geração de ativistas do Movimento Negro Brasileiro dos anos 1970/80. Durante a ditadura imposta pelo golpe civil-militar de 31 de março de 1964, ele esteve no centro de uma série de atividades que deram impulso à luta antirracista no Brasil, como parte do movimento pela redemocratização do país. Teve também expressiva participação na imprensa alternativa e na grande imprensa paulista, além de manter um constante diálogo com intelectuais negros e não negros dos movimentos sociais e do meio acadêmico. Hamilton viveu intensamente seu tempo, tendo participado da campanha pela anistia, da articulação do movimento “Diretas Já”, do processo da Constituinte, da reorganização do movimento sindical e da construção do Partido dos Trabalhadores (PT), além de atuar na esfera internacional.

Nascido em 10 de julho de 1954 em Catanduva, noroeste do estado de São Paulo, Hamilton Bernardes Cardoso foi o segundo filho de uma família composta por mais três irmãos: Airton, o mais velho, Arlete, a terceira, e Auriluce, a caçula, além da mãe, dona Deolinda Bernardes, e do pai, Onofre Cardoso, um músico trombonista de orquestras. Hamilton viveu pouco tempo em Catanduva, passou a maior parte de sua infância já na capital. Em 1955, a escassez de apresentações nas orquestras do interior do estado levou Onofre Cardoso e sua família a mudarem definitivamente para a cidade de São Paulo. Logo que chegaram, foram morar no Ipiranga, na zona sul, e depois na Casa Verde, na zona norte, bairro com grande concentração de população negra.

* FLAVIO CARRANÇA É FORMADO EM JORNALISMO PELA FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL CÁSPER LÍBERO EM 1980. TRABALHA ATUALMENTE COM REVISÃO E PREPARAÇÃO DE TEXTOS ACADÊMICOS, LIVROS E RELATÓRIOS DE EMPRESAS E ONGS, ENTRE OUTROS. É DIRETOR DO SINDICATO DOS JORNALISTAS NO ESTADO DE SÃO PAULO, ONDE COORDENA A COMISSÃO DE JORNALISTAS PELA IGUALDADE RACIAL – COJIRA SP. PELA IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO (IMESP) E POR GELEDÉS – INSTITUTO DA MULHER NEGRA, PUBLICOU A COLETÂNEA ESPELHO INFIEL: O NEGRO NO JORNALISMO BRASILEIRO, ORGANIZADA EM PARCERIA COM ROSANE DA SILVA BORGES. PELO CENTRO DE ESTUDOS DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E DESIGUALDADES (CEERT), COM APOIO DA FORD FOUNDATION, PUBLICOU DIVERSIDADE NAS EMPRESAS & EQUIDADE RACIAL, COLETÂNEA ORGANIZADA EM PARCERIA COM MARIA APARECIDA DA SILVA BENTO.

FÁBIO NOGUEIRA DE OLIVEIRA É PROFESSOR ASSISTENTE DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA (UNEB) CAMPUS XXIII – SEABRA. DOUTOR EM SOCIOLOGIA PELA USP, MESTRE EM SOCIOLOGIA E DIREITO PELA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF) E GRADUADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS PELA USP.

Teatro e Consciência Negra

As atividades culturais e artísticas foram o principal caminho para muitos jovens negros refletirem sobre sua identidade étnica e ingressarem na militância antirracista. A trajetória de Hamilton é um exemplo disso. Em 1970, participou como ator da peça de teatro E agora falamos nós, escrita e dirigida pelo sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira e pela atriz Tereza Santos, como parte das atividades do Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), entidade criada por ambos em 1969. A peça teve especial importância por causa das pessoas envolvidas em sua elaboração e também pelo fato de ter sido encenada durante três meses no Museu de Arte de São Paulo (MASP).

Entre 1970 e 1980, o teatro negro recebeu um novo alento na capital e nas cidades do interior paulista. De maneira geral, os grupos eram informais, sem estatutos e registro legal, apresentando-se, de forma bastante precária, em espaços não tradicionalmente dedicados às artes cênicas (como praças públicas, salões de baile, clubes etc.). A preocupação da maior parte das montagens era fazer uma “revisão histórica” do papel do negro e denunciar as manifestações do racismo na sociedade brasileira. No entanto, a vida desses grupos foi efêmera, constituindo, muitas vezes, uma etapa da organização das entidades negras que se formaram no processo de reconstituição do Movimento Negro durante os anos 1970. Nesse teatro de protesto, Hamilton Cardoso, além de se descobrir negro, teve despertado o desejo de ser ator. Ele deixou registrada essa aspiração no poema Vontade, publicado sob o pseudônimo de Zulu Nguxi na seção Afro-Latino-América do jornal Versus:

Eu quero subir num palco Pintado de branco, preto e vermelho, com a cara pintada e o cabelo trançado. Quero representar minha vida falar de meus pais, de meus amigos falar de meus irmãos, de meus inimigos, Quero contar as histórias falar desta vida: Eu quero subir num palco. Ouvir aplausos e cantar cantigas pintado de branco, pintado de preto Quero ostentar minha pele negra, meu nariz chato e arrebitado com meus cabelos duros à mostra Quero escrever do meu jeito. Quero ser ator Quero subir num palco me ver rodeado de amigos De meus pais, meus irmãos Agradecer a Olorum pela vida concedida Agradecer ao povo a presença concedida

Quero falar de meu povo, de minha gente Quero falar de mim Quero subir num palco Quero subir porque é bonito Quero subir porque quero Simplesmente quero. 34

São Paulo negra

José Correia Leite 35 conta que, na época do Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas, negras e negros de São Paulo faziam um footing (passeio) na rua Direita que chegou a ser proibido, a pedido dos comerciantes locais. Isso provocou revolta na comunidade, que passou a se encontrar no vale do Anhangabaú, entre a parte de baixo do viaduto do Chá e a avenida São João. Entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1970, alguns desses pontos tradicionais voltaram a ser espaços de encontro da comunidade negra da cidade. Eram locais em que rapazes e moças se conheciam, namoravam e ficavam sabendo dos bailes e outras atividades do circuito cultural negro.

Um evento que traduzia essa atmosfera era a Feira Hippie, que, no final da década de 1960,

34. Versus, n. 12, jul/ago 1977, p. 33. 35. Luiz Silva (Cuti), E disse o velho militante José Correia Leite, São Paulo: Noovha América, 2007.

começou a ser realizada aos domingos na praça da República, onde pintores, escultores e artesãos, muitos deles negros, expunham e vendiam seus trabalhos. O fato é que desses encontros de domingo participavam tanto ativistas mais novos, como Hamilton, Ivair dos Santos, Milton Barbosa e Rafael Pinto, quanto gente mais velha, como Solano Trindade, Raquel Trindade, Ciro Nascimento, Odacir de Mattos, Jangada e a doutora Maria da Penha. Conta Rafael Pinto:

Nós nos encontrávamos lá na praça da República para bater papo. Estávamos debaixo de uma ditadura severíssima, que era a do Médici, e ali era um local para muita conversa e troca de informações. O Aristides Barbosa tinha lido muito, feito muita atividade, então passava para nós indicações de alguns livros, alguma coisa da literatura brasileira, tipo ler o Artur Ramos, o Bastide, alguma coisa do Eldridge Cleaver do período em que ele era black panther, James Baldwin, por aí.

No início da década de 1970, o Clube Coimbra, localizado na avenida São João, tornou-se o novo ponto de encontro de uma juventude negra intelectualizada e progressista, que ali se reunia para discutir política e cultura. Em depoimento, Ivair Augusto dos

Santos confirma que essa juventude construía uma identidade negra que transcendia o âmbito nacional, situando-se já na esfera da diáspora africana, a exemplo do que aconteceu com os movimentos do pan-africanismo, da negritude e dos direitos civis.

Outro ponto de encontro desses jovens era a Casa da Cultura e do Progresso (Cacupro), entidade sediada no bairro do Ipiranga dirigida por Estevão Maya Maya e Agnaldo Avelar, que trabalhava com crianças fazendo uma complementação escolar com elementos afro-negros. Também foi muito importante para os jovens negros paulistanos desse período o estímulo proporcionado pelo Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros (Geteplun), criado na década de 1960, na vila Prudente, pela doutora Iracema de Almeida, uma das primeiras médicas negras da cidade. Era uma época em que atividades culturais e políticas voltadas para a busca da identidade eclodiam em pontos diversos da cidade de São Paulo, e, como é natural em um processo desse tipo, as pessoas com interesses comuns acabavam por se encontrar.

Nas escolas, nas ruas...

O contato da juventude negra universitária com as correntes de pensamento de esquerda marcou profundamente a fisionomia do Movimento Negro Brasileiro. Como se sabe, o movimento estudantil protagonizou inicialmente a luta pelo fim da ditadura e pela democratização do país. Na década de 1970, os estudantes reconstruíram seus mecanismos de representação e saíram às ruas, enfrentando o aparelho repressivo e propondo mudanças estruturais na sociedade. As manifestações de protesto contra a morte do estudante de geologia da USP Alexandre Vannuchi Leme, em 1973, do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, em 1976, foram momentos importantes dessa retomada do movimento de massas no país. Ainda que em pequeno número, os estudantes negros participaram ativamente desse processo e dentro dele amadureceram intelectual e politicamente.

Militante do movimento estudantil, sem vínculos com a vida sociocultural do meio negro paulistano, entrei (eu, Carrança) em contato com a discussão da temática racial por volta de 1974, período em que participava, junto com Milton Barbosa, de uma gestão do Centro Acadêmico Visconde de Cairu da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP, diretoria integrada em grande parte por ativistas que iriam participar da construção da tendência estudantil Liberdade e Luta, ligada à corrente

política do jornal O Trabalho. A partir desse contato, conheci Jamu Minka, Rafael Pinto e Wanderlei José Maria, também estudantes da universidade, e passei a receber o jornal Árvore das Palavras 36 , fortalecendo vínculos pessoais e políticos que me levariam anos depois a participar do Movimento Negro Unificado (MNU).

Entre os diversos grupos políticos que atuavam no movimento estudantil nessa época, a Liga Operária era o que mais se abria para a reflexão sobre a questão racial. Fundada na Argentina em 1974 por cinco exilados brasileiros, a organização constituiu seus primeiros núcleos em Santo André e na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Concentrando a formação de suas células junto às entidades do movimento estudantil, a Liga estabelece um diálogo com a classe média negra que começa a ter acesso às instituições de ensino superior. Astrogildo Esteves, Milton Babosa, Rafael Pinto, Odacir de Mattos e Isidoro Telles fizeram parte da primeira geração de militantes negros da Liga Operária, na qual discutiam a questão racial. “O Astrogildo – conta Milton

36. A Árvore das Palavras foi provavelmente o primeiro jornal da imprensa negra da década de 1970. Era feito por estudantes da USP, entre os quais estavam Jamu Minka, Rafael Pinto, Milton Barbosa e Wanderlei José Maria. Começou a circular em 1974, sendo distribuído dentro da universidade e nos pontos de encontro da juventude negra.

Barbosa – foi quem nos puxou para a Liga Operária, isso em torno de 1974. Começamos a montar uma proposta sobre a questão racial.” Segundo Milton, tanto Odacir quanto Isidoro, mais velhos, não tinham uma ligação especial com o trotskismo, mas ingressaram na organização para “tomar conta da molecada”.

Nesse período, Hamilton Cardoso ainda não estava na Liga, tendo ingressado na organização depois da saída desse grupo.

Nós começamos a discutir Frantz Fanon – prossegue Milton –, aprofundamos essa discussão e, depois disso, a gente não aceitava que os brancos, embora pessoas inteligentes e decentes, ficassem nos dando linha, nos centralizando em termos políticos, e aí acabamos rompendo com eles, depois de alguns acontecimentos. O Hamilton entra nessa nova leva, do Afro-Latino-América, junto com Wanderlei José Maria, Adãozinho (José Adão de Oliveira), Marcos Vinícius, Neusa Maria Pereira e outros.

Imprensa alternativa

Um papel importante desempenhado por Hamilton e seu grupo foi o de ter incluído a questão racial na pauta de um expressivo órgão

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