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HISTÓRIA

COMO UM JUDEU MARROQUINO CELEBROU A LIBERAÇÃO DE HITLER COM UMA HAGADÁ

Por Martin Lockshin (Fonte: Jerusalem Post. 3 de julho de 2021)

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Em 1943, um judeu marroquino celebrou o fim da ocupação publicando um livro inspirado na Hagadá de Pessach.

Os nazistas na Segunda Guerra Mundial se concentraram, principalmente, em assassinar judeus da Europa Central e do Leste. O sofrimento do meio milhão de judeu do Marrocos, da Tunísia, Argélia e Líbia sob domínio nazi é menos conhecido.

Depois de anos de relativa negligência acadêmica, pesquisadores começaram a prestar mais atenção na experiência desses judeus durante a ocupação dos alemães, dos italianos e no governo pró-nazi de Vichy. Segundo o site de Yad Vashem, “Muitas das leis de Nuremberg promulgadas contra os judeus da Alemanha em meados dos anos 30 foram copiadas no Marrocos e na Argélia e os judeus se encontraram em situação desesperadora”. Página da Hagadá de Hitler, em judeu-árabe, com a passagem do “Bibhilu”, tradicional do costume marroquino. As exitosas campanhas militares dos Aliados em 1942 e no início de 1943 culminaram com a rendição das potências do Eixo no Norte da África,

Capa da Hagadá de Hitler, de Nissim Ben Shimon, publicada em 1943, em Rabat, no Marrocos.

colocando fim ao tormento dos judeus na região ainda antes do que na Europa Central e Oriental.

Em 1943, um judeu marroquino celebrou o fim da ocupação compondo e publicando um livro inspirado na Hagadá de Pessach, porém escrito no seu próprio idioma, o judeu-árabe.

Judeus que viviam em países de fala árabe escreveram neste idioma durante mais de 1000 anos.

A capa em hebraico assinala como autor Nissim Ben Shimon, um nome que não conhecemos de nenhuma outra fonte. O nome Simon Coiffeur (o editor? o pai do autor?) aparece em letras latinas.

O título A Hagadá de Hitler é impactante; o autor aparentemente quis dizer “uma Hagadá que celebra a vitória sobre Hitler”.

A Hagadá de Nissim há pouco foi reimpressa numa edição acadêmica. O original judeu-árabe é acompanhado de tradução ao hebraico (por Avishai Bar-Asher) e ao inglês (por Adi e Jonnie Schnytzer). Vários ensaios breves, também em hebraico e inglês, tratam sobre a Hagadá. O texto em si é uma interpretação espirituosa, reconhecível por qualquer um que esteja familiarizado com a tradicional Hagadá de Pessach.

As Hagadot do Norte da África costumam começar com a frase: “Partimos do Egito com muita pressa”. A Hagadá de Hitler começa: “Os americanos chegaram com toda a pressa”.

A Hagadá tradicional apresenta uma discussão dos quatro tipos de filhos: o sábio, o mau, o ingênuo e o que não sabe perguntar, e o enfoque que um pai deve adotar para cada um. Na Hagadá de Hitler, a passagem diz: “A Torá fala de quatro filhos: Inglaterra, o sábio. Hitler, o malvado. Estados Unidos, os bons. E Mussolini, que não é digno de nossas palavras.”

Mesmo que não seja encontrada nas primeiras Hagadot, a oração Vehi sheamda, que afirma a inevitabilidade e universalidade do antissemitismo, é fundamental para muitos judeus. “Não foi só um (tirano) que tentou nos destruir. Em cada geração tentam nos destruir. Porém, o Bendito Santo nos salva de suas garras.” A palavra hebraica “hi” (que significa “ela” ou “isso”), no começo da oração, sempre desafiou os intérpretes da Hagadá, já que não tem um antecedente óbvio. A Hagadá de Hitler enche este vazio: “Ela é a Rússia que defendeu nossos pais e a nós”. Porque não só Hitler tentou nos destruir, mas também Mussolini e outros, muitos outros tentaram nos destruir. E os benditos Aliados nos salvaram de suas garras.”

A Hagadá tradicional afirma: “Clamamos ao Senhor, D’us de nossos pais, como se diz: Durante este longo período, o rei do Egito morreu, e os filhos de Israel gemeram de sofrimento e gritaram e os clamores de sua servidão se elevaram até D’us.” A Hagadá de Hitler diz: “Clamamos a Roosevelt, bendito seja, como está escrito: E Hyndenburg morreu e Hitler se levantou de suas ruínas e os israelitas gemeram de sofrimento e gritaram e Roosevelt escutou seus gritos sob a tensão da opressão”.

Onde a Hagadá tradicional fala do poder divino, da compaixão e da salvação de D’us, Nissim foca nos seres humanos. Os judeus clamam a Roosevelt, que escuta seus gritos. Nissim inclusive se refere ao presidente Roosevelt como “tabaraka shemiyato” (itbarach shemó, em hebraico) “que seu nome seja bendito”, uma frase geralmente reservada a D’us. Roosevelt não é o único líder aliado que ocupa o lugar de D’us. Mais adiante na Hagadá de

Nissim, se lê: “Portanto, devemos agradecer à Rússia, honrar e glorificar

Stálin”. Nos tempos modernos, particularmente nos ciclos sionistas seculares, reescrever Hagadot para concentrar-se não em D’us, se não nas vitórias dos líderes judeus do passado (Moisés, Miriam etc.) ou inclusive do presente (os pioneiros sionistas), não é tão incomum.

Colocar os líderes não judeus no cenário central da Hagadá, sim, é. Se bem que não se pode culpar Nissim por sua ignorância sobre o futuro. Em retrospectiva, seu estado de ânimo festivo sobre a derrota de Hitler no Norte da África em 1943 é discordante, já que milhões de judeus ainda estavam por morrer na Europa, nas mãos de Hitler. A dissonância faz com que o trabalho de Nissim seja ainda mais fascinante. Mostra como um judeu não europeu naquele período podia estar tão isolado e, ao mesmo tempo, ser tão atrevidamente secularizado e moderno.

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