12 minute read
RESGATE
CERTAS MULHERES QUE VIERAM DE LONGE: AS “POBRES MULHERES” SEPULTADAS NO CEMITÉRIO SÃO JOÃO BATISTA DE MANAUS
Por Maximiliano Ponte* Fonte: Boletim Informativo – Arquivo Histórico Judaico Brsileiro, No.48
Advertisement
Nas páginas amareladas do Livro de Inumações do Cemitério São João Batista (CSJB) de Manaus, está registrado que, no dia 04 de abril de 1915, foi sepultada uma mulher nascida na Rússia, cujos pais são desconhecidos
Acausa de sua morte foi “asfixia por estrangulamento”. E, estranhamente, no campo reservado para o estado civil, encontra-se registrado “meretriz” (ver 1ª ilustração). Na lápide da sepultura, abaixo de uma grande estrela de David, observam-se claramente letras do alfabeto hebraico. Não há dúvidas que se trata de uma sepultura de uma mulher judia. Em hebraico, com certa dificuldade, pode-se ler o que aqui apresento de modo transliterado, ishá aluvá, que pode ser traduzido, de diferentes formas, como ocorre usualmente quando se trata deste antigo idioma semítico.
Poderia ser traduzido como “a pobre mulher”, como “a mulher sem honra” ou como “a mulher indigna”. A seguir, encontra-se grafado um nome feminino, desacompanhado do nome do pai, como é tradicionalmente usado, ou seja, não se observa, após o nome da falecida, a expressão bat (filha de) Fulano. Mais à frente, as letras em hebraico estão bem gastas e é difícil compreender o que está escrito. Mais abaixo, em português, lê-se “aqui jaz” e segue um nome feminino acompanhado por um sobrenome com muitas consoantes e poucas vogais, bem ao modo de alguns sobrenomes adotados
por judeus asquenazitas oriundos do leste da Europa. Como registrado na lápide, ela morreu aos (sic) “42 anos de edade”.
Muito longe do seu local de nascimento, esta judia morreu de modo violento. Trágico fim, embora não infrequente para mulheres que exercem a comumente estigmatizada “mais antiga das profissões”. Neste caso específico, o estigma era de tal ordem que, para os funcionários do cemitério, ela não era casada, solteira ou viúva; ela era “meretriz”. E, na placa de pedra, seus patrícios não a identificaram como uma eshet chail (esposa virtuosa), mas como ishá aluvá. Ainda mais, ninguém registrou, para posteridade, a saudade que sua morte causaria.
Montagem do livro de “Inhumações” do cemitério São João Batista de Manaus
Em destaque o estado civil de “meretriz”, a origem russa, e a causa da morte da “HAISHA HALUVAH” citada no texto.
Hotel Cassina/Cabaré Chinelo
Foto tirada possivelmente no começo do século XX. No prédioretratado, localizado no centro de Manaus, funcionou ao longo dos anos um hotel e diferentes“casas de tolerância”. Para muitos, este prédio é um ícone do boom e débâcle (queda) da chama-da Belle Époque manaura, associada ao ciclo de exploração da borracha. A mudança dos nomesdas “casas de tolerância” que ali funcionaram reflete bem este processo. Nos tempos áureos, alifuncionava o Hotel Cassina (Cassina era o sobrenome do proprietário de origem italiana). Poste-riormente, e ainda nos tempos de bonança, mantendo o antigo nome do hotel, mas funcionandocomo “casa de tolerância” era freqüentado por seringalistas, os barões da borracha, que vinhamdos municípios do interior para capital para beber bons vinhos, jogar carteado, e, sobretudoprocurar os “serviços” das cocotes, principalmente daquelas de origem européia, entre as quaisse encontrariam possivelmente mulheres judias, como as que tratamos no texto. Com a ruínaeconômica, após abrigar por certo tempo uma pensão, passou a funcionar ali o “Cabaré Chine-lo”, em clara alusão ao baixo nível do estabelecimento que passou a ali existir a partir de então.
Lápide da sepultura de Sarah Beila, cemitério São João Batista de Manaus
Na foto pode-se visualizar o nome escrito em hebraico, a ausência de referencia a família, a data do óbito nocomeço da segunda década do século passado, o registro de “saudade de suas amigas
Esta judia era uma daquelas mulheres que ficaram genericamente conhecidas como “polacas”, em alusão à origem polonesa de parte delas. Ao longo dos anos, este termo se foi tornando pejorativo.
Neste texto, de modo alternativo, e em homenagem à judia cuja lápide descrevemos no início, nós as chamaremos de “pobres mulheres” (as que não forem identificadas como deste subgrupo serão designadas de “não pobres mulheres”).
Elas eram judias oriundas em geral do leste europeu, que foram, no mais das vezes, vítimas do que modernamente se chama de tráfico internacional de mulheres para exploração sexual, efetuado por quadrilhas com participação de judeus (GRUMAN, 2006).
No final do século XIX e início do século XX, época de uma sociedade francófila, estas europeias brancas muitas vezes se passavam, nas elegantes “casas de tolerância” existentes na cidade (ver 2º ilustração), por francesas, “produto” valorizado, sobretudo nos tempos áureos de ciclo da borracha na região amazônica1 (SANTOS, 2007).
Embora a migração judaica para a Amazônia tenha mais de 200 anos, seu incremento se deu sem dúvida com o advento do ciclo da borracha, sendo marcada pela expressiva participação de judeus sefaraditas, do norte da África, em especial do Marrocos. Benchimol (2008) narra que o destino inicial principal dos imigrantes judeus na Amazônia era o interior dos estados do Pará e do Amazonas. Com o início do declínio do ciclo da borracha, muito judeus migraram para as capitais; outros, depois de certo tempo, foram para outras regiões, em busca de melhores condições de vida. Tanto é assim que, até 1928, não havia em Manaus um Cemitério Israelita, evidenciando a pouca articulação comunitária até aquele momento. Antes deste ano, em Manaus, os judeus eram sepultados no CSJB. Deste modo, o fato de nossa ishá aluvá não ter sido sepultada no Cemitério Israelita nada tem a ver com eventuais restrições de cunho moral ou religioso.
Benchimol (2008) ainda refere que haveria 94 sepulturas judaicas no CSJB. Em levantamento recente realizado pelo Comitê Israelita do Amazonas, puderam-se localizar sepulturas e documentos relativos a um total de 85 destes judeus. O primeiro judeu sepultado neste cemitério foi Abraham S. Israel, que faleceu em 1892. Já o último
Documentos ainda não plenamente analisados apontam para a possível existência de uma complexa, embora velada, interação entre as “pobres mulheres” e a comunidade judaica local em formação. Há indícios de que membros desta comunidade auxiliaram na compra de sepulturas e disponibilizaram o ritual judaico de sepultamento para elas. Por outro lado, outras evidências apontam que elas possivelmente fizeram doações financeiras, colaborando, de algum modo, com a comunidade judaica da época. Ademais, relatos orais de pessoas mais velhas da comunidade informam que, nas décadas seguintes, as analisadas no texto, algumas destas “pobres mulheres” por vezes buscavam e conseguiam apoio espiritual junto ao rabino da comunidade. Tais aspetos, se devidamente corroborados por pesquisas mais aprofundadas, poderão colocar em xeque o entendimento amplamente difundido na literatura de que haveria uma quase instransponível barreira social entre a comunidade judaica manauara, altamente endogâmica e conservadora, e as “pobres mulheres”, desenraizadas e “de vida fácil” (ORUM, 2012).
ocorreu em 1968, quarenta anos após a fundação do Cemitério Israelita. O motivo pelo qual houve alguns sepultamentos fora do Cemitério Israelita após 1928, ao que se costuma comentar, deu-se sobretudo por decisões familiares. Entretanto, a grande maioria das sepulturas (78 casos; 91,7%) são de judeus falecidos no período de 1900 a 1927.
Considerando como universo estes 78 casos ocorridos entre 1900 e 1927, observou-se um ligeiro predomínio de pessoas do sexo masculino (44; 56,4%), o que é razoável de se esperar, tanto pela reconhecida sobre mortalidade masculina, como pelo fato que nos fenômenos migratórios a população de homens tende a ser maior. Dentre as 34 mulheres, encontraram-se indícios (país de origem, inscrições nas lápides, estado civil, entre outros fatores) de que 14 (41,2%) poderiam ser consideradas “pobres mulheres”, o que não pode ser considerado um percentual pequeno. De fato, a maioria, dez, era de russas; apenas três eram polonesas e uma era suíça. Enquanto dez “não-pobres mulheres” (76,9%) eram casadas, nove das trezes “pobres mulheres” para as quais se tinha informação sobre o estado civil (69,3%) eram solteiras. Tais números evidenciam diferenças importantes nas redes de relacionamento e nos laços familiares que estas mulheres mantinham em seus cotidianos, em um local tão longe de seus locais de origem.
Nas lápides das sepulturas das “não-pobres mulheres”, comumente leem-se mensagens de familiares, tanto do ciclo familiar primário – tais como “recordação de sua mãe e irmãos”; “saudade de seus irmãos”, como também do secundário, como “saudade eterna de seus inconsoláveis esposo e filhos”; “eterna saudade do teu filho” “saudades de seu esposo e família”; “eterna recordação de seu esposo, mãe e irmãos”.
Por outro lado, nas lápides das “pobres mulheres”, tal como visto em relação ao caso da ishá aluvá, raramente há os nomes dos pais, ou menção à família. Nas lápides, encontram-se, sobretudo, expressões de saudade e perda por parte de “amigas” e “patrícias”. Expressões “saudades de tuas amigas e patrícias” ou “suas amigas” eram recorrentes (ver 3ª ilustração). Noutras ocasiões, amigas específicas eram citadas, tais como: “lembrança de sua amiga Dora”; “lembrança de sua patrícia Cecília”; “muita saudade de tua amiga Schneider”. Tais citações parecem apontar para a existência de redes de solidariedade entre estas “pobres mulheres”, na medida em que “amigas” e “patrícias” providenciavam, de algum modo, o sepultamento umas das outras. Em alguns locais, sabe-se da existência de verdadeiras confrarias de ajuda mútua, incluindo para o auxílio funeral a ser realizado dentro da tradição judaica (KUSHNIR, 1996).
Não temos dados concretos que possam afirmar a existência dessas instituições em Manaus, mas as inscrições nas lápides, com letras em hebraico e outros símbolos judaicos, parecem apontar nesta direção.
É interessante também destacar dois casos atípicos, nos quais, a despeito de não se identificarem as sepulturas como sendo de “pobres mulheres”, encontram-se grafadas mensagens que se assemelham às encontradas nas delas. O primeiro se trata de homem jovem, com um sobrenome tipicamente alemão, que faleceu vitimado de febre amarela, em 1913, aos 24 anos.
Em sua lápide, encontra-se escrito, entre outros dizeres, “saudade de suas amigas e patrícias”. O segundo se trata de uma menina de quatro anos, cuja procedência registrada é “alemã”, falecida em 1920, devido a uma “infecção intestinal”. Em sua lápide, está escrito “recordações de sua mãe. Saudades de um seu amigo”.
Seria o jovem alguém relacionado de algum modo ao ciclo das “pobres mulheres”? Que tipo de amizade teria com elas? Seria um aliciador ou um cliente que, por algum motivo, era por elas tido como benevolente, e talvez, também, como elas, desprovido de laços familiares naquela Manaus do início do século XX? E a menina, seria ela filha de uma “pobre mulher”, e o “amigo” algum protetor, ou até mesmo seu pai? Encontrar respostas a estas perguntas não é um exercício simples, porém, ao examinar estes casos atípicos, podemos sugerir que as “pobres mulheres”, em sua permanência em Manaus, não apenas desenvolveram laços de solidariedade entre si, mas também com outros judeus, e possivelmente com outras pessoas. Estando correta esta suposição, demarcase a capacidade, possivelmente aliada à necessidade, destas mulheres se adaptarem à vida em condições adversas, longe de suas casas e de suas famílias.
Todas as mulheres identificadas como “pobres mulheres” morreram na década de 1910 a 1919. Esta década coincide justamente com o período que se segue ao princípio da derrocada do preço internacional da borracha. Tal fato levou a um incremento da migração dos seringais no interior do Estado para a capital, o que pode ter contribuído para um aumento da população judaica na cidade. Este incremento populacional associado a uma possível uma precarização das condições de vida na capital, poderia explicar, pelo menos em parte, a concentração das mortes das “polacas” nesta década, especialmente por se tratar de um grupo especialmente vulnerável. Tal hipótese parece ser razoável, na medida em que, também para o grupo geral de 78 judeus tomados como universo, foi neste mesmo período em que ocorreu o maior número de sepultamentos no CSJB (55,1%).
As principais causas de morte entre os judeus sepultados naquela época foram as doenças infecciosas, com especial destaque para a febre amarela (22 casos; 32,4%); malária e disenteria/infecção intestinal (ambas com 7 casos; 10,3%). De modo coincidente, a principal causa de morte entre as “pobres mulheres” também foi a febre amarela, responsável por metade das mortes entre elas.
Entretanto, as causas externas (violências) apareceram em segundo lugar, na medida em que dois casos foram associados a este grupo de causa.
Além da morte por estrangulamento já descrita para a ishá aluvá, outra judia também russa de cerca de 40 anos morreu por “ferimento por arma de fogo”, no ano de 1916. Interessante destacar que, entre os judeus do sexo masculino sepultados no CSJB, cujo número é mais do que três vezes maior que o das “pobres mulheres”, encontrou-se apenas uma morte por causa violenta. Esta ocorreu em 1918, quando um judeu sefardita-marroquino, de cerca de 20 anos, faleceu devido a “ferimento por arma de fogo”. Outro aspecto interessante a comentar, em relação ao perfil de causas de morte entre as “pobres mulheres”, é que a
única morte por “siphiles” ocorreu em uma delas em 1915, evidenciando mais uma especificidade deste grupo, como dito anteriormente, sobretudo vulnerável.
Por meio destes breves comentários, pretendi colaborar para o não esquecimento destas mulheres que vieram de longe para Amazônia, que morreram como seus demais patrícios, acometidas de febres e doenças tropicais, além de padecerem em decorrência das condições especialmente vulneráveis nas quais viveram. Também pretendia evidenciar que, neste triste momento da história judaica, estas mulheres foram, pode-se dizer, resilientes e obstinadas, para, no contexto de perdas de laços familiares, reordenar e reinventar suas redes de solidariedade.
Se não puderam viver plenamente como judias, buscaram e obtiveram meios para serem sepultadas como tal. E hoje, mais de um século depois da morte de algumas, podemos contar uma parte, mesmo que pequena, desta história judaica.
E como quase todas as histórias judaicas, esta, que teve como cenário a distante (pelo menos da Europa) Amazônia, é marcada por dor, morte, perda, superação, erros e concertos. Embora não estejam sepultadas no Cemitério Israelita, como, aliás, não estão todos aqueles judeus que faleceram antes de 1928, suas sepulturas como as dos demais foram ao longo dos anos compradas e hoje pertencem ao Comitê Israelita do Amazonas. Em tempos mais recentes, seus nomes também são lembrados nos informativos semanais da comunidade, que informam os nomes dos falecidos a cada semana do ano. Assim, espera-se que elas não sejam esquecidas, pois, como dizem os sábios, a verdadeira morte é o esquecimento.
AGRADECIMENTO
Ao Comitê Israelita do Amazonas pelo acesso aos documentos.
A Anne Benzecry Benchimol pela leitura crítica do texto, bem como pelo auxilio na escolha das figuras que ilustram o texto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENCHIMOL, Samuel. Eretz Amazônia: Os judeus na Amazônia. 3ª edição. Manaus: Valer, 2008. KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras. Mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996. ORUM, Thomas T. As Mulheres das Portas Abertas: judias no submundo da Belle Époque amazônica, 1890-1920. Revista Estudos Amazônicos, v. VII, n. 1, p. 1-23, (2012). SANTOS, Fabiane V. Sexualidade e civilização nos trópicos: gênero, medicina e moral na imprensa de Manaus (18951915). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.14, suplemento, p.73-94, 2007. SANTOS JR, Paulo M. Pobreza e prostituição na Belle Époque manauara: 1890 – 1917. Revista de História Regional, v. 10, n. 2, p. 87-108, 2005. (*) Médico-Psiquiatria Instituto Leônidas e Maria Deane –Fundação Oswaldo Cruz