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GÊNERO
JUDAÍSMO E FEMINISMO
Muitas são as personagens e temáticas envolvidas na história de Pessach, mas destaco aqui a personagem Miriam, irmã de Moisés e Aarão. Diversas são as histórias e características das mulheres citadas na Bíblia, mas Miriam, apesar de ser retratada com sua feminilidade aflorada, é identificada com características que geralmente são atribuídas a homens: coragem e liderança.
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Caroline Beraja*
Miriam tocando o pandeiro Marc Chagall, 1966.
Miriam era muito mais que apenas irmã de Moisés e Aarão: ela tinha um papel importante na organização social da época, era uma liderança comunitária. Miriam fazia parte da tomada de decisões do povo de Israel, além de auxiliar na execução das resoluções. No livro Êxodo, há um trecho que conta que o povo teve medo de atravessar o Mar Vermelho e paralisou em frente ao caminho aberto com a cajadada de Moisés. Foi Miriam que, seguida por outras mulheres, que iniciou a travessia cantando e dançando e convenceu o povo a segui-la.
“E tomou Miriam, a profetisa, irmã de Aarão, o adufe (pandeiro) na mão, e saíram todas as mulheres atrás dela, com adufes e danças e Miriam lhes dizia: Cantai ao Senhor, porque gloriosamente triunfou e precipitou no mar, o cavalo e seu cavaleiro.” (ÊXODO XV: 20).
Esse ato de coragem e encorajador é uma inspiração para mulheres judias e de todos os credos, tornando Miriam uma personagem de representatividade feminista.
Assim como o Judaísmo, o Feminismo é um conceito em disputa. Não há um consenso sobre qual das diferentes definições de Feminismo é a mais correta, mas há um ideal comum entre as que se consideram feministas: igualdade de direitos e oportunidades entre os gêneros. Para atingir tal ideal, diferentes pensadores ao longo da história analisaram relações e padrões sociais de gênero, além de relativizar o próprio conceito de gênero. O feminismo, porém, apenas se estruturou como movimento social no século XX, com ações e organizações no Reino Unido e nos Estados Unidos que espalharam seus ideais por diversos países. É importante lembrar que os movimentos sociais, como conhecemos hoje no Brasil, são um modelo ocidental moderno. Logo, mulheres que subvertem as relações sociais de gênero antes do século XX e/ou no mundo nãoocidental, além dos escritos que questionam tais relações, podem ser categorizadas como feministas mesmo que não se identifiquem dessa forma. Muitas dessas mulheres, inclusive, são importantes símbolos de representatividade para o movimento social feminista. É importante lembrar, também, que o Feminismo não se refere à feminilidade. A feminilidade é um conjunto de características designadas ao gênero feminino na sociedade. A feminilidade é, inclusive, questionada pelas feministas, seja por ser uma imposição da sociedade para o comportamento das mulheres ou por ser um conjunto de características que a sociedade identifica como frágeis, principalmente se atribuídas a homens. As interpretações de diferentes religiões sofreram impacto do feminismo. É possível encontrar, na historiografia, desde o século XV, interpretações religiosas de cunho feminista. O impacto de maior proporção, porém, teve
início no contexto social e político da Revolução Francesa (1789-1799) e, portanto, do Iluminismo. Neste momento, com a incorporação do princípio de Egalité, todos os cidadãos passam a ter direitos iguais, perante o Estado francês, o que gerou mudanças significativas para os menos favorecidos, assim como para os judeus e outros grupos minoritários, mas, principalmente, para as mulheres. As mudanças sociais para as mulheres e o desenvolvimento do pensamento liberal, impulsionaram o pensamento feminista, que impactou as interpretações religiosas e se espalhou para além da França. Tal impacto gerou diversas consequências: do abandono de qualquer fé religiosa pelas mulheres à criação de espaços feministas de espiritualidade de vários tipos. Desde então, o pensamento feminista nas interpretações religiosas tem ganhado espaço e acompanhado as mudanças sociais no mundo todo. Diversas foram as críticas elaboradas a partir desse pensamento: a imagem masculina de divindade; a figura submissa e virginal de Maria; a imagem pecadora de Eva; as interpretações sexistas das principais fontes das religiões (a Torá, a Bíblia, o Alcorão, os escritos do Budismo, etc.); entre outras. Diversas teólogas partem de tais críticas para propor uma transformação de seu próprio credo religioso, para a criação de grupos novos, fundados sobre antigas crenças, para a recuperação de figuras femininas de matriarcas, deusas e até bruxas. Outra área que foi alvo de críticas do pensamento feminista foi o poder institucional e os efeitos sociais e políticos da implicação religiosa das mulheres. “A crítica feminista à sociologia das organizações sociais ofereceu os elementos necessários à crítica da análise das instituições religiosas. No campo católico, por exemplo, o uso genérico de categorias como clero, hierarquia, sem referência ao fato de que se referem a um grupo exclusivamente masculino impede a análise das relações de poder que presidem a organização dessa instituição religiosa.” (ROSALDO, 2001). Já no caso judaico, a designação tradicional das mulheres na vida judaica era o lar. As atividades religiosas que ocorriam
Asenath Barzane. Ilustração de Yehuda Blum . Primeira rabina mulher da História.
na esfera pública, fora do lar (como realização de casamentos, circuncisões, bar mitzvot, enterros e condução de rezas comemorativas), eram designadas aos homens; os trabalhos e tradições domésticos às mulheres. Era o rabino que regulava a prática da kashrut (leis de alimentação judaicas), porém era função das mulheres preparar as refeições. O ensino superior religioso era restrito aos homens, sendo papel da mulher a educação primária da prole. Estudo e oração eram práticas obrigatórias apenas para os homens e, apesar de as mulheres poderem realizá-las, um serviço religioso só poderia ser iniciado se houvessem 10 homens presentes. Os conselhos comunitários e os comércios eram, em esmagadora maioria, liderados por homens, restando às mulheres funções como costureiras, cozinheiras e parteiras. As reflexões e regras escritas em fontes judaicas sobre o comportamento feminino eram escritas por homens, mesmo os temas como menstruação e gravidez. Claro, as tradições variavam nas diferentes comunidades e diferentes épocas, mas as comunidades conservadoras mantinham (e, algumas, ainda mantém) as designações femininas. Não que estas não fossem importantes para a comunidade. Pelo contrário: compunham o leque de elementos culturais que foi transmitido através das gerações e ajudaram a manter a identidade judaica das famílias. Eram, porém, limitantes e, muitas vezes, não concedia às mulheres poder de escolha sobre suas próprias vidas. É importante ressaltar, também, que nem todas as mulheres se encaixavam. Apesar do apagamento e invisibilização das biografias de mulheres, há registros de algumas que subvertiam as relações sociais, como é o caso de Asenath Barzani (1590-1670), judia curda considerada a primeira mulher a estudar no ensino superior religioso e se tornar rabina, ou de Glueckel of Hameln (1645–1724), judia alemã que, após o falecimento do marido, passou a coordenar os negócios da família e escreveu um livro onde, entre outros temas, expõe suas reflexões sobre a tradições e ética judaicas. A grande maioria das mulheres, porém, estava imersa nas designações femininas.
Cientista política, Hannah Arendt
Rabina Sandra Lowson
Para emergir, muitas mulheres abandonavam sua fé religiosa e suas comunidades, buscando assimilar-se à sociedade geral. Foi com o encontro entre o judaísmo e o pensamento feminista (ainda que não nomeado dessa forma) que as mulheres buscaram contrapor tal lógica. Cada vez mais, as mulheres judias buscaram ocupar espaços e escrever suas próprias histórias, sem abdicar de suas identidades judaicas: foram feitas revisões interpretativas dos principais temas da Torá, resignificando os textos e tradições judaicos a partir de uma perspectiva feminista; para que as práticas judaicas refletissem a experiência da feminilidade judaica, grupos de oração e de estudo de mulheres foram criados (muitos reunidos em torno do Rosh-Chodesh, o primeiro dia de cada mês lunar, uma ocasião para observar a lua nova e celebrar os ciclos corporais das mulheres); personagens bíblicas femininas passaram a ser analisadas com afinco; e cada vez mais, mulheres passaram a ocupar cargos de liderança política e institucional nas comunidades. Grace Aguilar (1816-1847), por exemplo, foi uma judia inglesa que escreveu diversos livros de reflexão sobre as tradições e ensinamentos judaicos sob a perspectiva feminina. Assim como Rayna Batya Berlin (aproximadamente 1817-1875), judia lituana comprometida com o estudo religioso que questionou os homens de sua comunidade alegando que as mulheres deveriam poder estudar a Torá e o Talmude. Com o avanço da Modernidade, as mulheres passaram a repensar seu papel, não apenas na religião, mas também em outros aspectos da identidade judaica e na sociedade geral. A conquista do direito a voto feminino no Segundo Congresso Sionista Mundial (1898), por exemplo, foi essencial para a construção do movimento sionista e, posteriormente, do Estado de Israel. Diversas mulheres judias foram essenciais para a ciência e para a política mundial, ao longo do século XX. No âmbito da ciência, Hannah Arendt (1906–1975) teve grande contribuição nas Ciências Políticas e foi a primeira mulher a se tornar professora titular na Universidade de Princeton. Na sociedade brasileira, Olga Benário Prestes (1908-1942) lutou contra a ditadura de Getúlio Vargas. Hoje, existem diversas mulheres judias atuando em prol da igualdade de gênero. A rabina estadunidense Sandra Lawson, por exemplo, atua em prol da visibilidade das mulheres negras no judaísmo. A antropóloga brasileira Lilia Schwarcz contribui amplamente com os estudos de Sociologia no Brasil. Em Israel, a luta e judaísmo feministas também conquistaram espaços. As Nashot haKotel (Mulheres do Kotel) são um exemplo de organização que luta pelos direitos das mulheres em Israel, mais especificamente, no Kotel (o chamado “Muro das Lamentações”). Elas reivindicam a autorização de se levarem livros sagrados para a parte
feminina do muro, além da ampliação deste espaço que é muito menor do que a parte masculina. Todos os meses, elas fazem o serviço de RoshChodesh em frente ao Muro. Estas são apenas alguns exemplos entre as incontáveis mulheres judias que influenciaram o pensamento judaico, produziram uma vasta bibliografia e realizaram grandes feitos. As mulheres judias vêm protagonizando inúmeras formas de judaísmo, liderando instituições religiosas, comunitárias e sionistas, atuando em importantes setores na sociedade para além da comunidade judaica ou apenas buscando levar um modo de vida igualitário. Ainda há, porém, muitos padrões sociais de desigualdade de gênero a serem enfrentados. Que neste Pessach, tomemos Miriam como inspiração e nos o esforcemos para tornar a cultura judaica um espaço mais igualitário, onde o gênero não é um fator limitante, um ambiente feminista.
FONTES
BÍBLIA, A. T. Êxodo. In BÍBLIA. Português. Bíblia King James Atualizada. Abba Press, 2008. FEMINISM AND JUDAISM. The Pluralism Project. Harvard University. Disponível em: https:// pluralism.org/feminismand-judaism. Acesso: 30 de jul. de 2021. JEWISH WOMEN’S ARCHIVE. Disponível em: https://jwa.org/. Acesso: 30 de jul. de 2021. KOCHMANN, Sandra Kochmann. O Lugar da Mulher no Judaísmo. Revista de Estudos da Religião, No. 2, p. 35-45, 2005. Disponível em: https://www. pucsp.br/rever/rv2_2005/p_ kochmann.pdf. Acesso: 30 de jul. de 2021. LEWIN, Helena. Judaísmo: Memória e Identidade. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Vol. II, p. 107109, 1997. ROSADO, Maria José. O impacto do feminismo sobre o estudo das religiões. Dossiê: Feminismo em questão, questões do feminismo. 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/ a/YnYKS3QPKG5YhdjXbz Wnhdw/?lang=pt. Acesso: 30 de jul. de 2021. WEINBERG, Sheila Peltz. Creating a New Paradigm. Genesis 2, Nova Iorque, Vol. 15, No. 5, p. 12, Abril, 1984. Disponível em: http://bcrw.barnard.edu/ archive/religion/Genesis_ Judiasm_and_Feminism. pdf. Acesso: 30 de jul. de 2021.
CAROLINE BERAJA
Internacionalista e graduanda em Geografia, foi da liderança nacional do Movimento Juvenil Habonim Dror. É parte da equipe profissional do Instituto Brasil-Israel e Diretora de Juventude na Federação Israelita de São Paulo. Judia cultural humanista, feminista e educadora.