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RIO DE JANEIRO

O FUTURO DESAPARECEU, CREIO NO AMANHÃ

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ULISSES CARRILHO

Um jogo de forças políticas tensiona as possibilidades artísticas de construir um mundo além do presente

A instabilidade do atual cenário político, que atinge proporções olímpicas e requer propostas emergenciais, é o contexto em que a curadora Daniela Labra organizou a exposição Depois do Futuro, na EAV Parque Lage. A mostra não acontece apenas em uma escola, mas foi concebida para ela, tendo como lastro um processo pedagógico que aposta em novos modos de viver em sociedade. Assustadoramente coerente e fundamental para o amanhã, a quarta exposição do programa Curador Visitante é resultado de uma consistente pesquisa pós-doutoral. A mostra revela uma potência da arte, aventa cenários em que a espécie humana consegue driblar massacres cotidianos. A cadência narrada em uma das salas – vejo uma casa de máquinas – inicia-se pela sucessão das imagens pós-nucleares de Alice Miceli, sucedida pelo instrumento sonoro de Tiago Rubini. A peça ecoa um zumbido que, ao soar, revela sempre ter existido – se não em som, na indeterminação do tempo presente. Ao fundo, a escultura de Guto Nóbrega apoia-se na cinética para resguardar-se da escuridão provocada pelo corpo do visitante. Num movimento estratégico, vai ao encontro de seu direito à luz. De Franz Manata e Saulo Laudares, Bandeira é um alvo bicolor que grita em denúncia, acompanhado do sutil e potente trabalho de Runo Lagomarsino, We Support.

Fotografia da série Não é um motim (2014), de Pedro Victor Brandão.

Depois do Futuro,

até 1º/5, EAV Parque Lage, Rua Jardim Botânico, 414, RJ, http://eavparquelage. rj.gov.br/ Tamíris Spinelli transfere a responsabilidade de construir futuros aos corpos, um exemplo contundente da possibilidade poética do ativismo. Nas Cavalariças, o trabalho de Ricardo Càstro transborda um tom ritualístico numa alegoria do porvir. A pulverização das categorias estéticas é um dado real, é notável como a indignação perante o mundo ganha na pesquisa de Labra ao apresentar-se como resistência clubber, com o vídeo Donde na Ocurre (2012) da espanhola Irene de Andrés. A obra de Cristiano Lenhardt, instalada na primeira sala do Palacete, tem o mérito de dessacralizar o ambiente institucional com uma projeção de imagens que habitam nosso mundo-jegue. A globalização não acontece de forma igual para todos. Uma problematização de poderes relacionados ao direito à terra encontra-se na potente O Artista como Bandeirante, de Maria Thereza Alves. A bandeira do colombiano Leonardo Herrero, que poderia ser desfraldada em meio à Floresta da Tijuca, lembra ao visitante as idiossincrasias de uma América Latina que sofre com tráficos que se atualizam cotidianamente. Esperávamos o futuro, o progresso, e nada chegou – nem a revolução. Se não foi o tempo que trouxe a esperança, a desilusão não pode ser constante. Depois do Futuro planta a criação como uma possibilidade real, incisiva, de construir mundos outros em que cooperação e subsistência estejam na ordem do dia. Ao sair, o luminoso EXST nos lembra, sobretudo, de resistir.

REVIEWS

LIVROS

DISTOPIA CÍNICA E SEXY

LUCIANA PAREJA NORBIATO

Em saga sobre o mundo pós-contemporâneo, Fausto Fawcett cola SP no Rio e descarta noções apaziguadoras em troca da inquietude de estar vivo

Em Favelost deve-se entrar com os dois pés, e de sola. Nada de leitura estrutural, pausada e densa, como pedem textos de pensadores frankfurtianos que o autor, Fausto Fawcett, critica mais de uma vez na narrativa. Para alcançar a ascese que o livro constrói em seu ritmo frenético, é preciso fazer o trajeto entre Rio e São Paulo de um só fôlego. Nessa distopia cínica e sexy, as duas cidades já não existem separadas, tornaram-se Rio Paulo de Janeiro São, ligadas por um conglomerado de casas paupérrimas, microindústrias clandestinas e pontos comerciais que tomaram a Via Dutra. Ou Favelost, território da hipérbole capitalista tecnológica por excelência. Quase como um ritual alucinógeno, o livro rompe as sinapses coloquiais do leitor. Como um Bret Easton Ellis futurista brasileiro, Fawcett consegue esse efeito pela saturação estilística de sua verborragia pulsante, em mash-ups de referências pop; de períodos históricos; de gadgets; de práticas sexuais das mais comuns às mais bizarras; de correntes políticas, sociais, místicas e filosóficas; de cânones culturais; e uma infinidade mais de temas. Depois de tantas imagens bizarras maximizadas e perfiladas sem descanso uma após a outra, quem mergulha na aventura de Júpiter Alighieri e Eminência Paula sai num leve nirvana, em paz com o caos da existência diária.

Favelost (The Book),

Fausto Fawcett, 2012, Martins Fontes – Selo Martins, 244 págs., R$ 40 Os protagonistas são membros de uma organização chamada Intensidade Vital, que deve manter a ordem entre a população de Favelost. Esse conglomerado urbano, meio clandestino, meio Eldorado do mal, não é aberto a qualquer um. Só às pessoas que buscam o Mefistófeles em cada entrada escondida, tentando arrefecer um desejo indefinido e angustiante para o qual as benesses da vida comum não bastam. E o casal humano, mas com um quê de Blade Runner, tem 24 horas para se encontrar, fazer sexo e chegar ao orgasmo que vai desarmar o chip autodestrutivo implantado em seus corpos. Com agudeza e sem dó, Fawcett desmonta as certezas atávicas da normatividade ao construir um caleidoscópio de imagens sedutoras e horripilantes, a exemplo de sua declarada inspiração, Hyeronimus Bosch e seu Jardim das Delícias Terrenas (que ilustra a capa do livro). A cada instante o leitor é confrontado com suas próprias pulsões diante de cenas de vingança, sexo, fraqueza ou nostalgia. Assim é levado a questões complexas que o autor enxerta subliminarmente na ação. Se o niilismo anda à espreita a cada curva, há sempre o contato humano, coroado pelo sexo, para lembrar a graça da vida. Como Fawcett define, cria-se o território da disputopia.

SÃO PAULO GAME-EDUCAÇÃO

Status Quo é o vilão combatido em jogo criado por Stephan Doitschinoff para exposição sobre arte e educação

Entre as contribuições de Paulo Freire à pedagogia no Brasil está a concepção da educação como prática de liberdade e o jogo como condição para o aprendizado. O videogame como instrumento mediador de formação e veículo para a construção de conhecimento e autonomia é hoje um debate mundial, entre várias linhas pedagógicas. A questão está em pauta também no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), que realiza uma exposição para marcar os 20 anos de seu setor Educativo e reafirmar sua premissa de que “um museu de arte tem como missão fundamental a educação”. A mostra reúne sete artistas contemporâneos que utilizam processos educativos em suas produções. A estrutura lúdica do jogo entra nas propostas de Luis Camnitzer – referência mundial quando o assunto é arte e educação –, Amilcar Packer e, mais especificamente, na obra concebida pelo artista paulistano Stephan Doitschinoff, uma game-instalação. Consumo, religião e tradição militar são instituições subvertidas nos trabalhos de Doitschinoff. A esse tripé que tradicionalmente sustenta os valores do establishment agrega-se hoje o sistema educacional. O game 3 Planets – Panoptic Wave (2016) convida o usuário a se ajoelhar para jogar e o coloca diante de um enredo fictício em que a escolarização, financiada pelo capitalismo, atende a leis formatadas por um modelo de produção industrial. Segundo o modo de funcionamento básico de um game – que coloca o usuário na posição de mocinho lutando contra vilões –, o jogador deve driblar todo tipo de estratégia macabra de manipulação de sua formação intelectual e de cerceamento de sua liberdade de escolha. O projeto de Doitschinoff inclui uma performance, em 4/4, com a presença de seis músicos, entre eles, a cantora Lia Paris. Aqui a instituição apropriada e subvertida será o hino, peça composta especificamente para louvor ou adoração patriótica e religiosa. PA

Educação como Matéria-Prima,

curadoria Felipe Chaimovich e Daina Leyton, até 5/6, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Parque do Ibirapuera, s/nº, Portão 3, http://mam.org.br/

3 Planets – Panoptic Wave (2016), game de Stephan Doitschinoff

LIVROS À SOMBRA DO CASTELO

Coleção “exuma” crônicas, textos de teatro, folhetim de João do Rio, inventor do jornalismo moderno brasileiro

Entre março de 2016, quando a repórter Malu Gaspar escreveu para a piauí sobre o prefeito Eduardo Paes e sua máquina urbana movida a combustível olímpico (O Samba do Prefeito), e maio de 1903, quando o jornal Gazeta de Notícias publicou uma crônica de João do Rio sobre o prefeito Pereira Passos (A Vida do Rio – O Prefeito), o Rio de Janeiro viveu as três maiores “cirurgias” de sua história (a segunda teve assinatura de Carlos Lacerda, que expandiu a cidade para a Barra da Tijuca). Na alvorada do século 20, sob a poeira levantada pelo desmantelamento do Morro do Castelo, o jornalista Paulo Barreto inventou o autor que varreria ruas e subterrâneos do Rio, dando protagonismo aos personagens de uma cidade em transformação. A Cidade, coluna diária assinada pelo pseudônimo João do Rio, foi criada para acompanhar o passo a passo do “renascimento”. O texto de estreia tratava o Rio de Janeiro como convalescente, sob os cuidados do médico e da família. “Um aviso, um conselho, um reparo, uma censura, um elogio – tudo haverá, de quando em quando, nesta curta e sóbria coluna”, escrevia o autor. “Os médicos têm bastante competência, mas nunca é demais a solicitude de um filho carinhoso.” Foram justamente os carinhos desse filho pródigo do Rio que produziram não apenas o mais precioso documento da vida carioca do início do século passado, como vieram a inaugurar o jornalismo moderno brasileiro. “Se a minha ação no jornalismo brasileiro pode ser notada é apenas porque desde o meu primeiro artigo assinado João do Rio eu nunca separei jornalismo de literatura, e procurei sempre fazer do jornalismo grande arte”, dizia o autor em texto encontrado entre seus arquivos, dois anos após sua morte, em 1921. Escrita quase sempre na forma de diálogos travados com interlocutores que lhe servem de “guias”, a crônica de João do Rio relata suas saídas a campo com sabor e estilo únicos. Nela está documentada a cidade doente e sua “pobre gente”, vivenciada nos presídios, nas ruelas insalubres ao sopé do Morro do Castelo, no interior das fumeries de ópio traficado por chineses, ou na favela – foi o primeiro repórter a subir o Morro da Providência. Mas é nessa crônica que também se revela a “frívola city” e as altas rodas de uma sociedade habituada a destilar uma língua “marchetada de palavras estrangeiras, que fala com grande conhecimento da Europa, da vida elegante da Riviera, das croisières em yachts pelos mares do Norte”. Sob a caneta de João do Rio se delinearam características marcantes do carioca. Seu gosto por espiar à janela, por exemplo – detectado pelo estrangeiro que passeava de carro com o jornalista pela Avenida Beira-Mar –, anteciparia a poderosa cultura da telenovela, nascida no Rio nos anos 1960 e exportada para o mundo como traço indelével da sociedade brasileira. PA

REVIEWS

João do Rio, em caricatura de Emilio Cardoso Ayres, 1911

Coleção João do Rio

– Crônica, Folhetim, Teatro (3 volumes), Seleção e apresentação Graziela Beting, Editora Carambaia, R$ 149,90, 2015

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