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RICARDO RENDÓN PENDURADO POR UM FIO

Em individual na Zipper Galeria, em São Paulo, obras do artista mexicano contemplam as formas visuais e metafóricas da presença e da ausência

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LAURA BARDIER

Tudo falha. Ricardo Rendón sabe disso. Como o modelo de gestão de riscos originalmente proposto por Dante Orlandella e James T. Reason, da Universidade de Manchester, e comumente chamado de Teoria do Queijo Suíço para causas de acidentes, o princípio por trás do trabalho de Rendón é o efeito cumulativo das camadas. Seu trabalho se relaciona intrinsecamente a sistemas complexos, em que diversas camadas são arranjadas lado a lado, organizadas como uma estrutura de defesa contra o fracasso. O artista escolhe materiais bióticos e inorgânicos, como madeira, compensado, fibras naturais, granito, calcário, cobre ou papelão. Com eles cria composições formadas por elementos que sofreram perfurações, cortes e recortes. Tudo vaza. Todos os materiais são cheios de buracos e, com frequ-

Momento de Relação (2015), da série Memória Possível, evoca efeito de delicado equilíbrio em sistema visual instável e precário

ência, dispostos em camadas. Os buracos debilitam os elementos e representam fraquezas nas partes individuais de um sistema. Além disso, as fissuras constantemente variam de tamanho e de posição nas fatias. Nessas estruturas, modeladas como séries de obstáculos ou fatias, o risco de uma ameaça se tornar realidade é atenuado pelos diferentes tipos e camadas de defesas, que são “ocultadas” umas atrás das outras. Portanto, lapsos e fraquezas em uma defesa não permitem que o risco se materialize, já que existem outras defesas, para evitar que se forme um ponto único de fraqueza. O sistema produzido só falhará se os buracos de cada fatia se alinharem momentaneamente, permitindo que uma trajetória de oportunidade de acidente ou risco atravesse todas as fatias. Mesmo que falhas ativas e latentes coexistam, o resultado é uma configuração forte e resiliente.

PRESENÇA DA AUSÊNCIA

Por outro lado, devemos enfocar e repensar o que não está presente. Para onde foram os pedaços redondos? Onde acabaram os grandes confetes de madeira? O trabalho de Rendón consiste em elementos com mais buracos que matéria. E não somos capazes de ver o componente todo, às vezes só o que restou de um processo de corte, às vezes uma vaga silhueta, ou absolutamente nada, por isso nunca temos certeza se o objeto estava lá ou se, de fato, existiu. Suas obras contemplam as formas visuais e metafóricas da presença e da ausência. Como disse Lyotard em Discourse, Figure: “O que é cuspido é o que é cuspido, e não mais existe para o corpo do prazer: é obliterado. Pois, para que aquilo que foi rejeitado seja algo, de todo modo, o ímpeto para destruir deve ser suplementado pelo poder oposto de apresentar ausência. Então, a perda pode ser contada como perda, a presença de uma ausência, e o objeto pode contar como realidade, algo que está presente mesmo quando não está. Mas o que é exatamente esse poder de tornar presente, de ‘reproduzir como representação’ um objeto ausente?” Por meio de sua obra, o artista apresenta duas faces da realidade, com base na oposição entre ausência e presença, que incorpora ambos os sistemas de significado e designação. Ela valoriza o que permanece oculto – a força que a ausência não é autorizada a mostrar. E isso não é uma reconciliação melancólica de uma situação impossível, mas a afirmação daquilo que está ausente: o que nos lembra que sempre há “algo em vez de nada” e que qualquer compreensão supostamente total é ilusória. Noções de ausência e presença, visibilidade e invi-

Noções de visibilidade e invisibilidade, na obra de Rendón, assumem significados de alta carga política quando consideradas no contexto do Brasil ou da América do Sul, onde o fenômeno dos “desaparecidos” criou uma cultura caracterizada por perdas profundas

sibilidade em uma escala global são muitas vezes refletidas por cismas do conhecimento percebido, e foram abordadas historicamente por artistas de todas as partes do mundo. Isso assume significados de alta carga política quando considerado no contexto do Brasil ou da América do Sul, onde o fenômeno generalizado dos “desaparecidos” criou uma cultura caracterizada por perdas profundas. Referências a essas práticas podem ser contempladas, por exemplo, na obra Aire (2003), de Teresa Margolles, ou mesmo na exposição fundamental Doris Salcedo, Presenting Absence, no Museu de Arte Contemporânea de Chicago.

ABRAÇO RADICAL DO VAZIO

Outras práticas como a célebre exposição Le Vide, de Yves Klein, de 1958, ou Experimental Situation, de Robert Irwin, de 1970, em que o abraço radical do

Na página à esquerda, Instável I; acima Acumulado II vazio nominal foi rapidamente adotado por outros artistas e ainda repercute nas estratégias expositivas de numerosas figuras contemporâneas. A obra de Rendón diverge do demagógico e sua pesquisa e processos adotam o abstrato como instrumento essencial do fazer artístico. Um exemplo é uma de suas últimas peças, Momento de Relação (da série Memória Possível), em exibição na Zipper Galeria, em São Paulo, que evoca um sistema visual instável e precário – mas profundamente elegante –, em que dois objetos estão pendurados por uma linha fina. Duas pesadas pedras retangulares com buracos estruturais são sobrepostas e suspensas por um fio de aço, dando o efeito de potencial movimento e delicado equilíbrio, conforme o espectador se aproxima. Também na individual na Zipper há esculturas que podem ser interpretadas como evoluções do movimento latino-americano de abstração geométrica.

SÃO PAULO REENCENAÇÕES DA ARTE

PAULA ALZUGARAY

Filme-ensaio de Dora Longo Bahia, que inaugura sala de projeção da Vermelho, analisa o papel da arte e a condição do artista a partir de uma interpretação da histeria

O Caso Dora, primeiro longa-metragem de Dora Longo Bahia, faz referência ao primeiro caso publicado por Sigmund Freud em 1905, em que o psicanalista expõe as condições de tratamento de uma paciente de 18 anos, diagnosticada com histeria. Por resultar de pesquisa acadêmica (na Faculdade de Filosofia da USP), o filme tem uma densidade incomum. De fato, devem-se contabilizar aqui não apenas os dois anos de estudo pós-doutoral, mas camadas de pesquisas acumuladas em trabalhos anteriores, que conferem à presente obra de Dora Longo Bahia uma dupla condição de maturidade e frescor. As identidades complexas e complementares de seus objetos de estudo anteriores – Marcelo do Campo 1968-1975 (2006) e Do Campo à Cidade (2010) – se sobrepõem para formar a identidade difusa da personagem protagonista de O Caso Dora, Rosa. “Essencialmente dividida e alienada, torna-se o locus de uma identidade impossível”, define a artista no relatório final da tese. “Enterra-se em realidades falsificadas, queima-se em revoluções impossíveis e afoga-se em reencenações.”

O Caso Dora é construído com imagens de arquivo e reencenações de obras da história da arte, como Olympia, de Manet, que, na versão de Dora Longo Bahia, lê o Petit Livre Rouge de Mao deitada em um divã

O Caso Dora,

Sala de Projeção, Galeria Vermelho, de 8/4 a 4/6, Rua Minas Gerais, 350, http:// www.galeriavermelho. com.br/ Se para Freud a histeria é uma patologia que gira em torno da problemática da identidade de gênero feminina, para compor esse alter ego com o difícil papel de fazer uma reflexão autobiográfica sobre a posição do artista na contemporaneidade, Dora Longo Bahia se serve do conceito de histeria de Lacan. Segundo o discípulo de Freud, o histérico é o indivíduo que apresenta um desconforto em relação ao seu papel simbólico. Essa personagem de máscara simbólica indefinida e rarefeita criada por Longo Bahia, portanto, coloca a arte no divã e questiona seu papel de artista. O filme é construído em dois tempos “simétricos” e três eixos “que se intercalam e contaminam – ficção, documentação e falsificação”, define a artista. A primeira parte diz respeito aos acontecimentos derivados de maio de 68, das estratégias de controle social e das teorias da Sociedade do Espetáculo – exploradas previamente em Marcelo do Campo. A segunda parte atualiza essas questões no contexto do Movimento Passe Livre, em junho de 2013, São Paulo. Em um hábil jogo de espelhamentos, o filme sobrepõe tempos e espaços, trazendo para essa sessão de análise da condição do artista contemporâneo elementos como a peça Ricardo II, de Shakespeare, O Livro Verde do ditador líbio Muammar Kaddafi, e A Negra, de Carmela Gross – editados e recontextualizados em uma narrativa fragmentária composta no rastro das Passagens de Walter Benjamin. No contexto de distopia e desilusão que o brasileiro vive hoje em relação às instituições políticas, o filme traz respostas, afirmando a arte e a rua como lugares de liberdade e propondo a arte contemporânea como “o último refúgio do pensamento revolucionário”.

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