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PEQUENA ÁFRICA CARIOCA

A PRIMEIRA PERIFERIA URBANA DO BRASIL NASCEU NO TRECHO DO LITO-

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RAL DA BAÍA DE GUANABARA que corresponde, hoje, aos bairros da Saúde, da Gamboa e do Santo Cristo. Antes dos aterros realizados em função do reaparelhamento do porto, na primeira década do século 20, aquele era um litoral sinuoso e recortado por sacos, praias e ilhas com nomes pitorescos, como Ilha das Moças e Ilha dos Melões. Com o aumento das atividades portuárias, o carregamento de mercadorias passou do antigo cais próximo ao Largo do Paço (atual Praça XV) para a Prainha (hoje Praça Mauá). Não somente ouro e diamantes escoados de Minas Gerais, como também a carga humana trazida da África, faziam parte desse tráfico de coisas e de gente. Ao longo do tempo, foi sendo transferida para a região uma série de atribuições indesejáveis para a porção nobre da cidade. O mercado de escravos, por exemplo,

Nos arredores dos antigos mercados de escravos, cais do Valongo e Cemitério dos Pretos Novos nasceu a primeira periferia urbana brasileira

que no século 18 se estabeleceu na Rua do Valongo, seguido de perto pelo Cemitério dos Pretos Novos. Ali, entre 1789 e 1830, africanos recém-chegados foram enterrados em valas comuns. O local foi redescoberto acidentalmente em 1996 e abriga hoje o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN). Os chamados “usos sujos” se multiplicavam. A prisão do Aljube foi instalada em 1733, enquanto o Hospital da Saúde – para doenças contagiosas – tinha sua localização próxima ao Cemitério dos Ingleses. Volta e meia, a Forca Pública era armada na Prainha e os condenados levados à Igreja de Santa Rita para receber as últimas consolações. Por entre processos de marginalização e degradação, a região foi se transformando em lugar de pobreza, violência e morte. A desigualdade entre essa e outras partes da cidade foi confirmada, no fim do século 19, pelo surgimento da primeira favela, no Morro

À esquerda, da série Morro da Favela (2009), de Maurício Horta, da Coleção MAR; na página ao lado, retrato de Elias Aparecido Dias “Cuca”, morador do Morro da Providência (2014), em foto de VHILS tirada da laje do MAR/ Escola do Olhar

da Providência, a poucos metros de onde antes existiu o mercado de escravos. Diante desse cenário, no início do século 20, a Saúde era o local mais temido da cidade. Seus “bambas”, “malandros” e “capoeiras” eram o assunto predileto das reportagens policiais. Ali, a meio caminho entre o porto e a favela, na chamada Pequena África, entre o preconceito e a resistência à dura realidade social, sobreviveram e foram reinventadas diversas práticas culturais africanas – dos terreiros de candomblé à capoeira – e nasceu o samba, acalantado pelos estivadores e pelas prostitutas. Embora seja uma das regiões mais centrais e antigas da cidade, são poucos os que compreendem as quebradas de suas ruas e os sentidos de suas inversões. Mistérios do Rio. Segredos da Pequena África.

Edição de textos de Clarissa Diniz e Rafael Cardoso, publicados no catálogo Do Valongo à Favela: Imaginário e Periferia (Instituto Odeon/ MAR)

UM MUSEU PARA DAR CONTA DO VALOR CULTURAL DO VALONGO

CLARISSA DINIZ

Ainda que muito jovem, com três anos de existência, e situado física e simbolicamente na interseção entre os campos da cultura e da política, já é possível perceber nos percursos do Museu de Arte do Rio (MAR) uma articulação colaborativa de respostas produtivas às muitas questões que perpassam sua inserção na cidade. Imaginado por Paulo Herkenhoff como um museu poroso – que se quer constituir através da participação direta da sociedade –, o MAR tem aprendido que o seu local de fala só existe na mesma medida de sua capacidade de escuta. Na aparente solidez de sua arquitetura, abrimos fissuras para alargar a visão do que está fisicamente “por trás” do museu (se considerada sua perspectiva frontal, tomada da renovada Praça Mauá), mas social e culturalmente por toda a parte: a história da Pequena África, seu presente, suas pelejas e os modos pelos quais ela deve se projetar no dia a dia de uma instituição museológica que passa a habitar esse território. No que concerne ao seu papel na Pequena África, o museu leva em consideração as dimensões arqueológicas, históricas e vivas da herança africana, conforme pautadas pela carta Recomendações do Valongo, elaborada em junho de 2012 por instituições e especialistas vinculados ao movimento negro e à Política de Igualdade Racial que compuseram o Grupo Curatorial do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana, constituído para orientar o trabalho relativo às redescobertas do sistema econômico da escravidão no Porto do Rio de Janeiro, envolvendo pontos como o Cais do Valongo, o Cemitério dos Pretos Novos, a Pedra do Sal e o Largo do Depósito. Em sua atuação educacional e cultural, trabalha na problematização e na ativação dessa história, como demonstra a formação da coleção, que atualmente reúne centenas de manuscritos relativos à economia da escravidão; iconografia dos séculos

18 a 20 em torno de questões étnicas, sociais e culturais da presença negra no Brasil; obras de artistas afrodescendentes e africanos; objetos de práticas religiosas; trajes; trabalhos de artistas contemporâneos; elementos da cultura material, entre outros, num conjunto que já ultrapassa 500 itens e que está estreitamente imbricado ao programa curatorial do MAR, com exposições como Do Valongo à Favela: Imaginário e Periferia (2014). De vertebral importância é, ainda, o Programa Vizinhos do MAR, principal interface do museu com a comunidade e seus parceiros da região – moradores, artistas, lideranças comunitárias, produtores e coordenadores de projetos culturais e sociais. Além da gratuidade garantida aos moradores do bairro da Saúde, do Santo Cristo, da Gamboa e do Caju, há dois anos o Programa estabelece uma rede de interlocução e trocas, nos quais se constitui uma agenda comum de projetos e atividades que surgem do imbricamento dos interesses e das oportunidades da vizinhança. Multiplicam-se conversas de galeria, visitas educativas, mostras de filmes, oficinas do projeto Ofícios e Saberes da região, seminários, performances, encontros, exposições, fóruns e outras ações em torno de aspectos culturais, sociais e políticos, como a capoeira, a religiosidade, o feminismo, a favela, a história da resistência, o samba e Tia Ciata, entre tantos outros. Essas e outras ações têm conformado um MAR atento ao seu lugar na Pequena África. Essas trocas ajustam a política cultural do Museu de Arte do Rio a partir de perspectivas cruzadas: aquela dos movimentos sociais e a perspectiva da arte, nem sempre consensuais em suas escolhas e estratégias. Por sua vez, em acordo com o crítico Mário Pedrosa, para o qual “em tempo de crise é preciso estar com os artistas”, o MAR finca sua posição junto à inventividade, à liberdade e à ambiguidade crítica da arte, enquanto se compromete com a capacidade de endereçamento e transformação dos movimentos sociais. As equivalências entre as importâncias e ambições do programa curatorial e educacional do MAR são, para tanto, fundamentais. Pluralizando os ouvidos, amplia-se a escuta e diversifica-se aquilo que se ouve. Decerto o MAR amplificou sua escuta nesses três anos e, como consequência, tem expandido o alcance de sua voz. Aos poucos desconstrói a prévia imagem de “intruso” para consolidar-se como mais um habitante dessa região, cujas singularidades não permitem que ocupe espaços já existentes, mas que forje novas espacialidades dentro e para além da Pequena África. Pois o território do MAR não é somente o da doída história da formação social do Brasil, como também o da fragilidade das políticas públicas para a cultura do País e, em especial, do Rio de Janeiro. Nesse sentido, deve politizar também o seu papel institucional no campo da cultura, tensionando e lutando em prol da autonomia, da profissionalização, da capilarização, da longevidade e do adensamento das instituições culturais brasileiras. Sem se afastar do compromisso de, como museu, “colecionar, registrar, conservar, pesquisar, publicar, exibir, comunicar e educar”, como previsto em seus documentos fundacionais. Pois a concretude e a estabilidade institucionais são, antes mesmo de suas demais vocações, o primeiro “serviço” do MAR ao Valongo – da capacidade de empregar os moradores da Pequena África à constituição de uma biblioteca dedicada à cidade e àqueles que cotidianamente fazem dessa região um território ímpar para a humanidade.

Leia o texto na íntegra no site da seLecT: http://bit.ly/pequena-africa

WASHINGTON FAJARDO

A MELHOR CIDADE É A CIDADE QUE EXISTE

O curador do Brasil na Bienal de Arquitetura de Veneza fala das relações entre Patrimônio Cultural e planejamento urbano, do Circuito Histórico da Herança Africana no Rio de Janeiro e adianta alguns destaques do pavilhão brasileiro, como Ana Maria Tavares

GISELLE BEIGUELMAN

O ARQUITETO WASHINGTON FAJARDO, 43, PRESIDENTE DO INSTITUTO RIO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE E UM DOS EXPOENTES DO

PROJETO PORTO MARAVILHA, é o curador do Pavilhão do Brasil na Bienal de Arquitetura de Veneza, que inaugura em 25 de maio. Nesta entrevista concedida com exclusividade à seLecT, Fajardo reconhece as conquistas e as fragilidades da revitalização do patrimônio cultural da área do Porto do Rio. Eloquente e articulado, ele frisa: “A melhor cidade é a cidade que existe. É nela que estão as soluções para os nossos problemas. Os grandes centros urbanos têm potencial para muito mais que habitações sociais. Eles têm potencial para que possamos estar juntos no espaço público”.

Qual o projeto do Brasil para a Bienal de Arquitetura de Veneza?

O pavilhão se chama Juntos e está organizado a partir do cruzamento de três dimensões: Encruzilhadas, Ecos e Juntos. A primeira parte, Encruzilhadas, é um espaço dedicado a um tipo de arquitetura que tinha uma curiosidade genuína sobre a dimensão da cultura popular brasileira. Para tanto, vou falar de duas casas. A Casa da Flor, um bem cultural do Rio, e a Casa do Jardim dos Cristais, projetada por Lina Bo Bardi, no Morumbi, em São Paulo. A primeira, a Casa da Flor, é do século 19 e é uma arquitetura onírica feita por um senhor local, um operário, filho de escravos, Gabriel Joaquim da Silva, que um dia tem um sonho de uma casa e passa a vida inteira construindo essa casa. Já a segunda é uma casa projetada por uma arquiteta, no século 20. Mas essas casas compartilham a mesma textura, a mesma palheta de cor, a mesma materialidade. E é muito interessante comparar duas casas em lugares diferentes, com histórias radicalmente diferentes. Do ponto de vista expográfico, será uma sala cheia de fios, onde o visitante terá de procurar um caminho até encontrar essas casas e, logo depois, ao lado, está a sala dos Ecos. Nessa sala, o que está em pauta são os centros urbanos das cidades brasileiras. Trata de ressonâncias, reverberações, onde estamos sempre tentando resolver o problema dos centros urbanos com abordagens da modernidade. Apesar das lutas de reformas urbanas, da Constituição, do estatuto das cidades, esses centros históricos urbanos estão relegados ao acaso, com muitas propriedades abandonadas, a despeito de serem ainda o símbolo e o centro de nossa vitalidade política. Nós recorremos a eles para fazer valer nossas vontades coletivas, mas esse capital simbólico não reverbera na ocupação do espaço público.

“Por que no espaço público não temos a representação da cultura negra? Essa é a pergunta que começamos a fazer aqui no Patrimônio Cultural do Rio, em função do Porto Maravilha, e quero levar para o Pavilhão”

Quais são os projetos apresentados nesse eixo? Quero mostrar nesse bloco as fraturas sobre os grandes centros urbanos: o estudo da Lina Bo Bardi para o Centro de Salvador e o corredor cultural no Rio de Janeiro, mas também a intervenção no Sambódromo de Oscar Niemeyer. Isso criou, ao mesmo tempo, lugar para a distribuição de um grande conteúdo cultural, realizou a espetacularização do carnaval e do samba, estabeleceu um contato com a cultura negra, mas também desarticulou totalmente o bairro do Catumbi, como se pode ver no trabalho de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Quando A Rua Vira Casa. Nesse setor, o foco é também a cultura negra. Porque esses centros urbanos eram ocupados pela presença dos escravos, que dominavam e tinham a utilização e o controle da definição do próprio espaço público no País. Acontece que essas populações são afastadas dos centros urbanos e, em cidades como o Rio, vivemos neles um alto grau de potência e, ao mesmo tempo, um sinal de fracasso. O Porto do Rio é emble-

mático disso. Lá ocorre uma grande transformação e há uma especial atenção nossa voltada para a proteção dessa cultura negra que é originária e está até hoje presente ali. Temos um potencial de realizar uma ideia de América, ou seja, um amálgama de diferentes sociedades no Brasil, entretanto, não falamos abertamente sobre racismo, sobre inclusão e, como arquiteto, penso que não falamos sobre isso no espaço público. A busca de defesa de inclusão e dos direitos dos negros é ainda uma luta voltada para o acesso às dimensões privadas do espaço. Por que no espaço público não temos a representação da cultura negra? Essa é a pergunta que começamos a fazer aqui no Patrimônio Cultural do Rio, em função do Porto Maravilha, e quero levar para o Pavilhão.

E o que acontece quando tudo se junta?

A terceira dimensão, Juntos, que faz a amarração entre as duas primeiras, são os ativistas culturais que trabalham para a proteção de bens culturais, para a criação de espaço para os valores culturais e que, nessa busca, acabam por criar arquitetura. São 15 trabalhos. Nesse bloco, quero falar de pessoas. Não se trata de depreciar a figura do arquiteto, mas de fazer uma reflexão sobre nosso papel na sociedade. Quero destacar a arquitetura que é feita lentamente, com muito tempo, dos projetos que levam 20 anos para ser concluídos. Não quero falar de nada que é feito em cinco anos. Destaco o caso da Dione. Ela é uma dançarina que se dedicou ao Jongo da Serrinha, em Madureira, no Rio de Janeiro, por mais de 15 anos. Isso implica também a recuperação não só do Jongo e do saber fazer o Jongo, mas de reconstituição de toda uma trama social. Em um dado momento, ela consegue conquistar uma arquitetura, um edifício. Tem também o programa Vivenda, que é um negócio social, iniciado por um empreendedor de São Paulo. Eles vendem kits de reforma e atuam em favelas. Esse projeto é muito interessante porque mostra a necessidade de falar do parque de habitação informal que existe hoje. Falamos tanto, e muito equivocadamente no Minha Casa Minha Vida como alternativa para solucionar o déficit habitacional, mas, hoje, o parque de habitações informais é quatro vezes superior ao déficit habitacional! Temos mais de 25 milhões de habitações precárias e informais que necessitam de melhorias. Precisamos falar dessas melhorias habitacionais, e é interessantíssimo esse caso do Vivenda. Especialmente porque isso é um negócio. É um business social. Não envolve recursos públicos, eles trabalham com microcrédito, assumem compromissos de fazer obras que duram uma semana e oferecem kits: kit cozinha, kit banheiro, kit sala, kit ventilação, e trazem qualidade de fato para essas casas. O impacto é muito interessante, porque você vê as pessoas conquistando qualidade nas suas casas. Não é uma solução fordista, mas sim um caminho para trabalhar com os problemas. Outro caso é o do Jardim Edite, também em São Paulo, projeto do MMBB e de Elisabete França, porque é muito importante falar dos formuladores de políticas urbanas.

Quais outros projetos de formuladores de políticas urbanas estarão em pauta na Bienal?

Temos um caso autorreferencial, que é o corredor cultural do Rio e o circuito da herança africana, com a proposta de formular uma política de urbanização que colocasse em circulação esses valores culturais de matriz africana e que esses códigos pudessem ter rebatimento no espaço público. Como quando se anda na Liberdade, em São Paulo, e se reconhece a presença oriental na cidade.

O Circuito Histórico Arqueológico de Celebração da Herança Africana é um projeto seu, não é?

É um projeto do Patrimônio Cultural Municipal. O primeiro plano da prefeitura do Rio para a revitalização do Porto data de 1979. E muitas das ações que estamos fazendo têm suas técnicas básicas assentadas na gestão anterior. O grande diferencial do que estamos fazendo é, em termos de gestão, dar continuidade a um projeto anterior, e sua metodologia. Ela envolveu um grupo de trabalho formado pela Secretaria de Cultura e pela Secretaria de Habitação, entre outras, com seus corpos técnicos, e muitas audiências públicas. Apontamos, desde o início, o potencial arqueológico, o potencial de memória da existência da cultura negra e fizemos a defesa do orçamento para essas intervenções. Essa é a dimensão pragmática que aprendi no trabalho: a diferença entre o discurso e a realidade é o orçamento. Com isso, mobilizamos R$ 110 milhões para o Patrimônio Cultural da área do Porto. É até hoje o maior investimento por metro quadrado em patrimônio cultural na história do País. Isso foi uma conquista nossa. Mas que atendia, sobretudo, a duas reivindicações da comunidade: o clamor por melhorias e a exigência do resguardo de seu direito de não ser “zoologificada”. Isso nos permitiu obter muitos recursos e deveria ter servido à habitação popular. E essa é a grande fragilidade do projeto.

Qual foi o impacto desse processo do ponto de vista do mercado imobiliário?

Houve, sim, valorização das terras e das propriedades na região portuária. Mas temos de considerar algumas questões. Essa área é a de menor densidade demográfica da cidade. Tem 5 milhões de metros quadrados e apenas 28 mil habitantes. É uma área de muitas ociosidades. Essas ociosidades jogavam o valor da terra lá embaixo. Isso cria uma falsa ilusão de acesso. Porque esse suposto acesso está ligado a um processo de degradação do território. Houve, de fato, valorização de quase 100% em toda região central, entre 2010 e 2011. E isso está vinculado ao início dessa operação. Isso, somado às Olimpíadas, levou o Rio de Janeiro, até 2014, a números, em termos de mercado imobiliário, um tanto irreais. Mas hoje eles já começam a se normalizar. Por abrigar a Olimpíada e ter tido um papel de destaque na Copa do Mundo, o Rio tornou-se o barômetro de toda a pressão imobiliária. É nesse sentido que se revela a fragilidade do tema habitacional.

Que outras cidades serão abordadas no Pavilhão do Brasil, além do Rio?

Projetos propriamente ditos serão apresentados apenas no setor Juntos. Nos outros, serão referências. Nele, vamos mostrar a Escola Mangue do Recife, um projeto da comunidade com o escritório O Norte; Vila Flores, um trabalho de Patrimônio Cultural muito interessante em Porto Alegre, feito por um coletivo de São Paulo, o Goma Oficina, que rompe com o fetiche da restauração, trabalhando em um imóvel ocupado. E o projeto Piseagrama, de Belo Horizonte, que é também uma revista. De São Paulo, levaremos a casa para uma empregada doméstica, dona Dalva Borges Ramos, na zona leste de São Paulo, projetada pelo escritório Terra e Tuma (ganhador de prêmios como o da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura, AsBEA) e representante do Brasil em bienais no Equador e na Holanda. Em síntese, é uma seleção que privilegiou os projetos que tratam a arquitetura como mídia, os seja sobre o próprio processo de educação para a arquitetura.

DIAS & RIEDWEG O ATELIÊ É A RUA, A OBRA É A VIDA

Como uma dupla de artistas do mundo se radicou no Rio de Janeiro e tirou poesia, filosofia e lições de vida dos dramas, da desigualdade, da marginalidade e da violência

MÁRION STRECKER

MAURICIO DIAS E WALTER RIEDWEG ES-

TÃO OTIMISTAS COM O RIO, onde vivem desde 2000, sabe-se lá até quando. Dias é carioca e Riedweg é suíço. Eles se conheceram na Europa, foram um casal por dez anos, se separaram, mas continuam a morar e trabalhar juntos, agora numa grande casa em Santa Teresa, no Centro do Rio. A propriedade inclui o ateliê, a pousada em que recebem hóspedes e a família expandida que formaram desde que, há sete anos, Mauricio Dias adotou (ou foi adotado por) duas crianças que conheceu na Favela de Santa Marta, que na época tinham 10 anos. As crianças agora estão com 17. Os dois trabalham juntos há 22 anos. Suas obras estiveram nas bienais de Veneza, de São Paulo e na Documenta de Kassel, e também fazem parte de acervos de instituições importantes no Brasil, na Europa e nas Américas. A bibliografia sobre a dupla é extensa e envolve a atenção de críticos como Mary Jane Jacob, Catherine David, Paulo Herkenhoff e Guy Brett, entre muitos outros. Seus trabalhos são projetos de longo prazo e incluem a participação intensa de outras pessoas, como imigrantes, porteiros, travestis, crianças de rua, pacientes psiquiátricos, presidiários ou de outras pessoas que eles vão conhecendo no percurso. Riedweg é músico e veio também do teatro. Dias começou com gravura e pintura. Juntos eles criam performances, desenvolvem laboratórios e filmam, antes de editar as imagens e preparar suas instalações, que são expostas em museus, galerias ou outros lugares. Nesta entrevista, eles falam de filosofia, da conceituação do trabalho, da relação com o Rio, da evolução da cidade e da vida que vivem.

Mauricio Dias: Em 1994, a gente veio para o Rio trabalhar pela primeira vez em Devotionalia. Coletamos 1.286 cópias de cera, como se fosse tradição de ex-votos. Essa era a época da Chacina da Candelária (oito jovens sem-teto foram executados por policiais militares), da Chacina de Vigário Geral (21 moradores da favela também foram mortos por policiais militares), em que o Rio de Janeiro estava em plena guerra civil. Essas crianças que viviam na rua, e eram muitas, mais ainda do que hoje, a gente propunha que elas mesmas fizessem cópias dos pés e das mãos. A gente ia com um carrinho velho cheio de argila e gesso, cera de parafina e um fogareiro e ficava estacionado duas semanas em cada lugar, debaixo de viaduto, em favelas, em praças. E gravava essas conversas em vídeo. Esse projeto durou um ano e foi uma libertação. Na verdade, a gente queria ficar na rua. Até então, nunca tínhamos pego uma câmera.

Vocês filmam com câmeras fotográficas?

MD: Sim. A gente faz tudo: filma, edita, conceitua. Cada trabalho tem um jeito de edição diferente, que já é determinado na maneira de filmar. Não fazemos vídeo documentário. Walter Riedweg: Tivemos aprendizagens paralelas. Na Basileia (Suíça) havia um coletivo de vídeo chamado VIA. Eu fiz parte desse coletivo. Pipilotti Rist fazia parte desse coletivo. Ele ainda existe. Nessa época não havia esses equipamentos tão facilmente. Lá se formaram as primeiras classes de videoarte. MD: A gente só mudou de vez para o Rio em 2000. Recebíamos todo tipo de convite: fazer projeto na fronteira do México, resi-

“Aqueles que viviam do tráfico de repente se viram sem emprego. Alguns caíram no crack, outros na Igreja evangélica”, diz Maurício Dias

dência na África do Sul, no outro mês era Veneza, sempre envolvendo pessoas locais, questões locais. Em 2002, fizemos uma primeira individual com trabalhos de diversos lugares, e pela primeira vez as pessoas viram que esses trabalhos eram, sim, relacionados. As maiores influências vêm da época em que a gente trabalhava em salas de aula na Suíça e éramos literalmente postos para apagar incêndios de professores que entravam em curtos-circuitos com turmas que não tinham uma língua comum.

Como as pessoas se relacionam com o trabalho de que participam? Sentem-se coautoras?

MD: Depende. Quando o trabalho termina, os vínculos se guardam com algumas pessoas. De vez em quando encontramos alguém

Na página à esquerda, a dupla Dias & Riedweg durante a performance Nada Quase Nada (2016); abaixo, cena de Corpo Santo (2012), realizada com pacientes psiquiátricos; na página anterior, Caminhão de Mudança (2009-10) de Devotionalia. Teve uma situação engraçada: um menino uma vez foi assaltar o Walter, lembrou e falou: “Ô, tio!” Ou então a gente vai num Bob’s da vida e encontra um deles. Eu adotei duas crianças que saíram de um trabalho e vivem comigo há sete anos. Não tem regra. A gente não põe regra. Isso é a vida. Seria uma mentira querer moralizar isso. WR: A gente faz um trabalho que se baseia nesse conflito, nessa tensão, na colaboração com os participantes. Seria possível fazer sem eles? Para eles seria possível fazer sem a gente? Então se cria algo além da gente e além deles também.

Por que decidiram morar no Rio?

MD: Em Devotionalia a gente passou nove meses indo para comunidades no Rio, luga-

res onde nem eu tinha ido. Para mim foi um período de gestação. Como uma gravidez do Brasil. Eu estava há 13 anos fora. Quando saí, era muito difícil ser artista aqui. Era uma coisa da elite. Vim de classe média baixa, minha mãe era professora, meu pai era agente imobiliário, classe média da zona norte. Eu morava longe da arte e a arte morava longe de mim. Ir para a Europa foi um atalho para virar artista. E voltar para cá foi uma descoberta totalmente inesperada. A gente foi vindo pouco a pouco, à medida que foram aparecendo trabalhos aqui. As entradas que a gente teve no Brasil foram muito fortes: Devotionalia no MAM (19951996) e Porteiros na Bienal de São Paulo (1998). A gente estava cansado de viver numa mala. WR: Durante quatro anos administramos três apartamentos alugados e sublocados em três continentes: Basileia, Nova York e Rio. A decisão foi de tentar montar uma base no Rio. Devotionalia foi uma experiência muito intensa como porta de entrada para esta cidade. Eu tenho uma segurança de andar por aqui que veio desse projeto. Aqui me sinto, sim, em casa.

Como é essa história de que seus filhos saíram de um trabalho?

MD: O trabalho que a gente fez para a Documenta (2007) chama Funk Staden, que reconta a história de Hans Staden, que nasceu em Kassel. Ele naufragou na costa brasileira, foi capturado e solto pelos tupinambás porque não falava português. De volta à Europa, escreveu um livro que foi um dos primeiros best sellers. A Documenta colocou Funk Staden ao lado de pinturas do século 15, portanto, antes da época dos Descobrimentos. Essa coisa da floresta, Adão e Eva expulsos do paraíso. O paraíso era o trópico. O inferno, ao mesmo tempo, era o trópico, porque o selvagem que comia carne humana era o demônio. Nessa época do funk comendo solto aqui no Rio, a gente queria filmar. Mas apontar uma câmera nesses bailes era como apontar uma arma, porque eram financiados por traficantes. (...) A gente refez as xilogravuras do livro do Hans Staden em tableau vivant numa laje do Morro Dona Marta (onde fica a Favela Santa Marta). Escolhemos um capítulo que conta o ritual do festim antropofágico. A gente vê os funkeiros como se fossem os tupinambás. Eles atacam bonecas infláveis de sex shop, esse modelo do branco. O grito do tupinambá é revivido na cultura funk.

Assim conheceram os meninos?

MD: Nesse contexto eu conheci a família dos meninos. Eles eram muito pequenos, tinham uns 5 anos. Alguns anos depois, quando estávamos gravando Pequenas Histórias de Modéstia e Dúvida, o Rio estava vivendo uma grande transformação, com o processo de pacificação nas favelas. Muita gente é muito crítica desse processo de pacificação, dizendo que é um processo de redominação, de constrangimento. Mas quem viveu o Rio de Janeiro 40 anos sem isso, viu que esse processo de pacificação é, sim, um caminho. A gente chegou a subir o Morro do Alemão na época de Devotionalia e o caminho para subir era por onde o cocô descia, não tinha outro caminho. Hoje em dia, você tem teleférico, estradas, banco, cinema. Esse é um processo muito longo. Não é só um make-up da cidade para os Jogos Olímpicos.

“A implosão da perimetral foi muito importante, porque abriu a Praça XV, o Porto. Acho fantástico

terem recuperado uma visão que não existia mais”, diz Riedweg

WR: A matança de jovens masculinos no Rio foi pior que o índice de guerras que houve no mundo. Isso diminuiu drasticamente. Na Baixada ainda é assim e ninguém fala nada, mas no Centro da cidade já houve um progresso muito grande.

Como estão vendo a cidade?

MD: Acho que o Museu do Amanhã é um ponto turístico incrível. Mas, como artista, coloco questões práticas. Se a gente tem problema para manter o MAM, como vamos manter o Museu do Amanhã com aquela arquitetura impossível de ser mantida? É caríssimo. É um museu que não tem conteúdo. Em matéria de contexto, acho muito fraco. Se fosse concebido para ser um espaço de feira, seria mais feliz. Agora, a carcaça acho legal. Parece um osso de baleia. WR: A implosão da Perimetral foi muito importante, porque abriu a Praça XV, o Porto, a Praça Mauá. Acho fantástico o fato de terem recuperado uma visão que não existia mais. E com a pacificação do Alemão e agora da Maré, lentamente, seguindo pela Baixada, está se formando uma nova visão da própria cidade. Espero que essa nova juventude que vem daí, que não tem ambição de morar na zona sul, tenha ambição de fazer algo lá, que transforme. O Parque Madureira, por exemplo. MD: Você já foi no Parque Madureira? É um parque longilíneo maior que o Aterro do Flamengo. Esse povo que pegava trem para andar de skate agora tem a maior pista de skate do Rio de Janeiro. Tem um monte de cachoeiras, um piscinão. Fui no fim de semana antes do Natal e fiquei passado com o que vi. O parque estava cheio, rolando samba, as pessoas atravessavam a rua levando seu isopor, um barato! WR: Meu parceiro tem um grupo de dança em Nilópolis e eles se qualificaram para ir para um festival na Argentina. Como pagar as passagens? Esses jovens se plantaram no Parque Madureira durante dois meses, todo fim de semana, passando o chapéu. Levantaram R$ 4 mil. Para eles, o lugar de fazer isso era lá, e não em Copacabana. Para mim, isso é uma transformação.

Na página à esquerda, detalhe da instalação Devotionalia (1994-2004), o primeiro projeto realizado pela dupla no Rio; abaixo, cena do vídeo O Espelho e a Tarde (2011)

Fiquei com a impressão de que você não acabou de contar a história das crianças.

MD: Entre 2008 e 2010, fizemos vários trabalhos nesse contexto do funk e fez as Malas para Marcel. São 12 malas. A gente as colocava no espaço público, deixava as pessoas levarem e filmava atrás. Essas malas nos levaram de novo para o Dona Marta. Depois começamos a frequentar as favelas em pleno processo de pacificação e foi aí que conhecemos o Vitor, que estava com 10 anos, e chegou em frente à câmera e falou para mim: “Eu vou te adotar”. E me adotou. Adotou a gente, o trabalho, a casa, e aos poucos ele veio morar aqui. Ele tem uma irmã gêmea, que é a Vitória. E a mãe queria que eles viessem embora e aí eles vieram e estão aí. O Vitor está no Sesi, começando a fazer Comunicação Visual. A Vitória vai fazer Escola Normal. WR: Ele tinha uma condição difícil em casa, a família não tinha mais sustento, uma situação desesperadora. MD: Aqueles que viviam do tráfico de repente se viram sem emprego. Alguns caíram no crack, outros caíram na Igreja Evangélica, a maioria caiu nos dois, de um pro outro. É o caso da mãe do Vitor. Ela passa de Testemunha de Jeová para o crack, vai e volta, e tem dez filhos. O Vitor tinha 10 anos e ele é um conversador, um sedutor. Acho que ele viu na gente uma possibilidade. Ele tem uma coisa forte com desenho, com imagem, com teatro, é um contador de piadas nato. Era uma coisa estranha e ele gosta de coisas estranhas, como todo mundo. Como Oswald de Andrade: “Quero tudo aquilo que não me pertence, tudo aquilo que eu não sou”. Outras vezes que a gente foi filmar, ele estava lá de novo, depois descobriu meu telefone, começou a me ligar. Um dia ele disse: “Quando é que você vem me buscar?” Aí eu falei: eu vou te levar pra passear. Cheguei lá e ele estava de banho tomado, de tênis, e falou: “Estou pronto e essa é a Vitória, minha irmã gêmea, ela também vai te adotar”. E aí começou. Foi que nem uma história de amor básica. Tudo o que eu fazia eu achava muito melhor com eles. Se eu fosse ao cinema, à praia, a um restaurante, tudo era mais legal com eles. E eu fiquei apaixonado, e eles ficaram apaixonados e essa paixão virou uma família.

Funk Staden (2007) reencena no Morro Santa Marta episódios de texto do navegador alemão Hans Staden. Ao aproximar o universo do funk à descrição de rituais de canibalismo dos índios tupinambás, a obra denuncia preconceito contra o movimento carioca WR: Eles transformaram toda a vida nessa casa, transformaram a nossa relação com o entorno da casa, eu conheço todos os jovens de Santa Teresa. Eles nos presentearam com uma vida normal. MD: Pequenas Histórias de Modéstia e Dúvida foi feito nos lugares onde eles nos levaram nessa época que estavam entrando na nossa vida. Sábado à noite no parquinho da favela era um programa com Vitor e Vitória. A cidade fora dela é o anoitecer da birosca de Santa Marta.

Agora vocês têm trabalhado com pacientes psiquiátricos, envolvendo encenação e riscos.

MD: Em 2012, recebemos um convite da Coleção Prinzhorn, que é um museu de art brut na Alemanha, que tem a famosa coleção de pacientes psiquiátricos que Hitler colocou com os modernistas para fazer a exposição da Arte Degenerada, em Munique. Esse museu foi fundado por um psiquiatra, precursor de Nise da Silveira, que começou a inserir essas questões da arte como possibilidade terapêutica. Quando fizeram 150 anos, eles pediram a vários artistas contemporâneos trabalhos que refletissem a coleção. O que nos chamou a atenção foi a representação da indumentária, muito exuberante. Traziam os arquétipos da farda militar, roupa de mãe, viúva, sacerdotes, mas de forma muito burlesca. Refizemos as roupas com carnavalescos e propôs fazer um vídeo com pacientes internados em um hospício aqui no Rio, o Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (Ipub), atualmente UFRJ. Achamos em um dos pátios do hospício um teatro do século 19, lindo, com palco italiano, que se chamava Corpo Santo. Estava interditado, repleto de latrinas, uma pirâmide de escombros. Usamos durante meses para fazer ioga, exercícios de teatro. Um belo dia, quando os loucos entraram lá, encontraram uma penteadeira e um espelho. Em volta, 20 dessas roupas exuberantes. Não precisamos dizer nada. Cada um pegou uma roupa. A gente gravava, eles gravavam e tudo era aplaudido por eles mesmos. Usamos o vídeo como se fosse um cabaré de sketches. Na única externa, eles estão com as roupas e entram no mar. Virou uma coisa operística e profunda, co-

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