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Do morro para o asfalto e da zona sul para a Baixada Fluminense há distâncias que parecem intransponíveis. A população das favelas e do aglomerado urbano da Avenida Brasil, de maioria negra, sente na pele o preconceito herdado do Brasil Colônia, quando seus antepassados foram escravizados. Espacialmente segregado e limitado a funções profissionais subalternas, o povo negro do Rio vive o avesso do cartãopostal e da pretensa democracia entre etnias, tão alardeada como chamariz turístico. Por essa razão, seLecT faz a pergunta que não quer calar:

O QUE FALTA PARA O RIO SER UMA REAL DEMOCRACIA RACIAL?

NEGA GIZZA

RAPPER, APRESENTADORA DA TV BRASIL E FUNDADORA DA CENTRAL ÚNICA DAS FAVELAS (CUFA)

No Rio de Janeiro, a miscigenação é muito forte e as pessoas não têm claro a qual grupo pertencem. Não conseguem se identificar “sou negro” ou “sou branco”, porque nas escolas, nas instituições e entre os políticos não há discussão sobre essa questão. O racismo é crime no Brasil, mas a pena ainda é muito leve. Com o pagamento de uma cesta básica, a pessoa sai livre. Para chegarmos a essa democracia racial no Rio é preciso falar mais sobre o assunto com brancos e pretos, falar sobre a questão dos escravos e de como se deu a mistura de raças. O IBGE precisa fazer uma pesquisa mais condizente com a realidade, com mais delicadeza de abordagem para as pessoas se sentirem mais à vontade para se identificar como negro. Minha filha é miscigenada, mistura de italiano com preto, então tem o cabelo mais liso, a pele mais clara, como meu filho. Meu filho, que tem 8 anos, identifica-se como negro, mesmo quando comentam sobre sua cor mais clara e cabelo “macio”. Você precisa saber de onde veio para ter clareza de como se identificar. Precisamos discutir mais o assunto, saber que vamos continuar pegando o mesmo ônibus, frequentando os mesmos lugares, que vamos para a zona sul, para a praia, e é preciso saber conviver. Essa é a cara do Rio de Janeiro, é uma cidade da mistura.

VIRGINIA DE MEDEIROS

ARTISTA

Como falar de uma “real democracia racial” hoje sem mergulhar nesse caldo complexo e composto, do qual emerge uma dimensão psicopolítica, micropolítica, biopolítica, afetiva, estética, psíquica, que, através de certos desarranjos e colapsos, denuncia os modos de produção de sentidos e de valores que caducaram? O termo “real democracia racial” está completamente esvaziado de sentido, esgotou-se. O que me interessa é aquilo que se insinua para além ou aquém de uma “real democracia racial”.

BERNARDO MOSQUEIRA

CURADOR

A desmilitarização e a profunda remodelação da Polícia Militar do Rio de Janeiro e o cumprimento de um plano de educação que valorize a cultura e a história do povo negro no Brasil são ações fundamentais para tornar possível a construção de uma democracia racial nessa cidade. É preciso aumentar a autoestima, a segurança, as oportunidades e a esperança da juventude negra carioca. O negro é tratado pelo Estado como potencial inimigo interno e não como legítimo sujeito de direito. Enquanto as famílias brancas têm renda média aproximadamente 70% maior do que as famílias negras, os jovens negros são mortos 70% mais do que os brancos. Nossa história resultou em uma estrutura social que nega aos negros a educação de qualidade e o acesso aos melhores postos de trabalho e aos locais dignos de habitação. É preciso que outros agentes do Estado diferentes de uma Polícia Militar treinada para matar possam estar presentes nas comunidades. É dever do Estado aumentar a oferta e a qualidade dos serviços básicos de forma a transformar todas as áreas da cidade em territórios férteis para o crescimentos das crianças e dos jovens negros. É preciso que haja a implementação de uma educação libertadora capaz de inspirar o orgulho negro e de desnaturalizar o racismo institucional além de estender para esses jovens de forma justa as oportunidades de trabalho.

THAMYRA THÂMARA

JORNALISTA E IDEALIZADORA DO PROJETO GATOMÍDIA

Nascer de novo (risos). A base da construção do Brasil é racista. O Rio de Janeiro, hoje, é uma cidade só para turistas, e não para os cariocas. Circular pela cidade para ter lazer e cultura é caro, o que contribui para a segregação da juventude negra na periferia, sem poder experimentar a cidade e sua vida. Na favela, o “pau come” e na pista o jovem preto continua sendo esculachado. Recentemente, foi divulgado que a Anatel autorizou as Forças Armadas a usarem Bloqueadores de Sinais de Radiocomunicação (BSRs) durante a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016. Essa medida, se realmente for levada adiante, só vai piorar a violação de direitos que acontece cotidianamente na cidade, porque a gente sabe que, hoje, as mídias sociais fazem esse papel de fiscalizar a ação policial nas ruas e em protestos. Além de ser crime contra o direito à informação e à comunicação. Fazer essa ideia maluca ser barrada já é um pequeno passo para a “democracia racial”.

ATLAS ARTÍSTICO E CULTURAL DO RIO

Entre novíssimos espaços criados e sítios arqueológicos redescobertos, o Rio de Janeiro é um universo cultural em permanente expansão. Confira os mapas e deixe-se perder

Rua Gonçalves Lêdo, 11/17, Centro http://agentilcarioca.com.br

5 Anita Schwartz Galeria de Arte

Rua José Roberto Macedo Soares, 30, Gávea www.anitaschwartz.com.br

8 Mais Um Galeria de Arte

Rua Garcia D’Ávila, 196, Ipanema

2 Portas Vilaseca Galeria

Avenida Ataulfo de Paiva, 1.079, Leblon www.portasvilaseca.com.br

6 Galeria Nara Roesler

Rua Redentor, 241, Ipanema www.nararoesler.com.br

9 Galeria Cavalo

Rua Sorocaba, 51, Botafogo www.galeriacavalo.com

12 Mercedes Viegas Arte Contemporânea

Rua João Borges, 86, Gávea www.mercedesviegas.com.br

13 Galeria da Gávea

Rua Marquês de São Vicente, 431, Lj. A, Gávea www. galeriadagavea.com.br Rua Abreu Filho, 11, Jardim Rua Siqueira Campos, 143, Botânico Copacabana www.hapgaleria.com.br www.arturfidalgo.com.br

7 Lurixs Arte Contemporânea

Rua Paulo Barreto, 76/77, Botafogo www.lurixs.com

10 Inox Galeria

Avenida Atlântica, 4.240, Shopping Cassino Atlântico, Copacabana www.galeriainox.com

4 Silvia Cintra + Box 4

Rua das Acácias, 104, Gávea www.silviacintra.com.br

Representante de nomes como Nelson Leirner (obra em destaque), Miguel Rio Branco, Ana Maria Tavares e Cristina Canale, a galeria promove um diálogo entre artistas consagrados e novos talentos.

11 Athena Contemporânea

Avenida Atlântica, 4.240, lojas210/211, Shopping Cassino Atlântico, Copacabana www.athenacontemporanea.com

14 Movimento Arte Contemporânea

Avenida Atlântica, 4.240, loja211 Shopping Cassino Atlântico, Copacabana www.galeriamovimento.com

Sob o comando de Ricardo Kimaid Jr, a galeria se dedica à street art, trazendo artistas emergentes ao mercado.

15 Luciana Caravello Arte Contemporânea

Rua Barão de Jaguaripe, 387 Ipanema www.lucianacaravello com.br

Fundado em 2011, o espaço reúne artistas com trajetórias, conceitos e poéticas variado. Nazareno, Afonso Tostes, Ana Linnemann e Gisele Camargo integram o time da galeria.

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CIRCUITO DE GALERIAS DE ARTE CONTEMPORÂNEA

1 Galeria 535 – Observatório de Favelas

Galeria com foco nos fotógrafos do Complexo da Maré Rua Teixeira Ribeiro, 535, Maré www.imagensdopovo.org. br/galeria535

7 Casa Nuvem

Espaço independente de arte e coworking, promove exposições, debates, festas e projetos semanais abertos ao público. É um dos Pontos de Cultura do MinC. Rua Morais e Vale, 18, Lapa www.casanuvem.com

13 Instituto Moreira Salles

Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea http://www.ims.com.br/ ims/instituto/unidades/

18 Escola de Artes Visuais Parque Lage

Rua Jardim Botânico, 414, Jardim Botânico www.eavparquelage. rj.gov.br Voltado para o registro e a preservação da história das comunidades do Complexo da Maré Rua Guilherme Maxwell, 26, Maré www.museudamare.org.br Os seis andares do prédio da antiga fábrica de chocolate abrigam estúdios de artistas, designers e fotógrafos, além de cafés, a editora-livraria Bolha e lojas autorais. Vivian Caccuri e Barrão estão entre os artistas que ocupam o espaço. Rua Orestes, 28, Santo Cristo www.fabricabhering.com

8 Studio X

Integrante de uma rede global da Escola de Arquitetura, Planejamento e Preservação da Universidade Colúmbia, de Nova York, o projeto dedica-se a pensar o futuro das cidades. Praça Tiradentes, 48, Centro www.studioxrio.org

14 Fundação Eva Klabin

Avenida Epitácio Pessoa, 2.480, Lagoa www.evaklabin.org.br

19 Centro Cultural Banco do Brasil

Rua 1º de Março, 66 Centro www.bb.com.br/cultura

21 Museu do Amanhã

Praça Mauá, 1, Centro www.museudoamanha.org.br Recém-aberto na histórica Praça Mauá, o empreendimento traz instalações interativas para questionar a noção de futuro

25 Paço Imperial

Praça XV de Novembro, 48, Centro www.pacoimperial.com.br

26 Galeria do Lago – Museu da República

Rua do Catete, 153, Catete www.museudarepublica. museus.gov.br/artecontemporanea

9 Espaço Cultural Olho da Rua

Local de eventos, galeria de arte, laboratório criativo e loja. Rua Bambina, 6 - Botafogo www.olhodarua.com.br

4 Largo das Artes | Despina

Sobrado reúne ateliês, residências, cursos e galeria, com cinco projetos expositivos anuais. O projeto integra a rede de parceiros internacionais da instituição holandesa Prince Claus Fund. Rua Luís de Camões, 2, Centro www.largodasartes. tumblr.com

10 Oi Futuro

Rua 2 de Dezembro, 63, Flamengo Rua Visconde de Pirajá, 54, Ipanema www.oifuturo.org.br

15 MAM Rio

Avenida Infante Dom Henrique, 85, Flamengo O museu de 65 anos tem um acervo de mais de 6,5 obras, além dos comodatos de Gilberto Chateaubriand e Joaquim Paiva Praça Mauá, s/n°, Centro www.museudeartedorio. org.br

11 Capacete

Misto de espaço cultural – com programação voltada para debates artísticos relacionados à cidade e a questões contemporâneas –, residência artística, espaço expositivo e bar. Rua Benjamin Constant, 131, Glória Hotel/ Residência: Ladeira dos Meireles, 150, Santa Teresa www.capacete.org

16 Lastro

Sem uma sede fixa, surgiu com o objetivo de estreitar relações entre profissionais da arte, em especial da América Latina, e promover intercâmbios culturais. A plataforma digital lastroarte.com reúne artistas, curadores e pesquisadores que disponibilizam material de consulta. www.lastroarte.com

22 Oi Futuro

Rua 2 de Dezembro, 63, Flamengo Rua Visconde de Pirajá, 54, Ipanema www.oifuturo.org.br

A instituição tem foco em artes visuais e tecnologia, além de um programa voltado à pesquisa e difusão da poesia visual

27 Caixa Cultural

Avenida Almirante Barroso, 25, esquina com Avenida Rio Branco, Centro www.caixacultural.com.br

28 MIS (Novo, em Copacabana)

Previsão de inauguração no fim de 2016 Avenida Atlântica, 3.432, Copacabana

29 Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica

Rua Luís de Camões, 68, Centro www.rio.rj.gov.br/web/ smc/centros-culturais Rua Visconde de Itaboraí, 78, Centro www.casafrancabrasil. rj.gov.br

12 Museu da Chácara do Céu

Rua Murtinho Nobre, 93, Santa Teresa www.museuscastromaya.com.br

17 Comuna

O espaço define-se como grupo multidisciplinar de gestão e produção cultural conectado com a economia criativa. Desenvolve projetos em rede nas áreas de música, arte, publicações e comida e bebida. Tem forte atuação como hamburgueria/bar. Rua Sorocaba, 585, Botafogo www.comuna.cc

20 Centro Cultural dos Correios

Rua Visconde de Itaboraí, 20, Centro www.correios.com.br

23 Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

Estrada Rodrigues Caldas, 3.400, Jacarepaguá www. museubispodorosario.com

24 Casa de Cultura Laura Alvim

Avenida Vieira Souto, 176,

Ipanema www.cultura. rj.gov.br/espaco/casa-decultura-laura-alvim

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CIRCUITO DE MUSEUS E ESPAÇOS CULTURAIS

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espaços independentes museus centros culturais

Rua Pedro Ernesto, 36, Gamboa Local de sepultamento precário de cerca de 6 mil corpos de escravos africanos recémchegados ao Porto do Rio, entre 1779 e 1830. Sua localização exata permaneceu um mistério até 1996, quando o casal Merced e Petruccio Guimarães começou uma reforma na casa recémcomprada. No local, instala-se hoje o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, que faz um trabalho exemplar em prol da memória das populações africanas escravizadas e seus desdobramentos nos dias atuais. Aberto à visitação.

4 Casa de Machado de Assis

Ladeira do Livramento, 77 Não há confirmação oficial, mas fala-se na região que um dos maiores escritores brasileiros, filho do mulato Francisco José de Assis, pintor de paredes e descendente de escravos alforriados, e da portuguesa Maria Leopoldina Machado, passou a infância na Ladeira Nova do Livramento.

8 Pedra do Sal

Fim da Rua Argemiro Bulcão, Morro da Conceição Local onde o sal era descarregado de navios por africanos escravizados no século 17, tornou-se, a partir da segunda metade do século 19, ponto de encontro e de festas de estivadores. Aqui surgiram os primeiros ranchos carnavalescos, afoxés e rodas de samba, frequentados por João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha e Donga.

5 Rua Barão de São Félix

Deve ser lembrado hoje como um símbolo da miscigenação, pois foi onde se instalaram as primeiras casas de santo – onde foi iniciada uma geração inteira de mães de santo atuantes na região –, e onde o islamismo foi praticado de forma discreta, em uma construção assobradada onde muçulmanos faziam suas orações.

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Teleférico do Morro da Providência (Antigo Morro da Favela)

A data simbólica da fundação da primeira favela do Brasil é 1897, quando veteranos retornados da Guerra de Canudos receberam permissão para construir moradias no Morro da Providência, rebatizado de Morro da Favela, em homenagem a um local de mesmo nome em Canudos (BA). O local já era habitado, desde o início da década de 1890, por movimentos migratórios que se seguiram à abolição. O novo teleférico, que liga a Praça Américo Brum, no alto do morro, à Central do Brasil e à Gamboa, atende os 5 mil moradores da comunidade e propicia uma vista aérea do local.

2 Centro Cultural Municipal José Bonifácio

Rua Pedro Ernesto, 80, Gamboa Batizado com o nome do Patriarca da Independência, é o Centro de Memória, Pesquisa e Documentação da Cultura Afro-Brasileira. Sua sede, em estilo neoclássico, foi construída em 1877 como uma escola, sendo hoje tombada pelo Patrimônio Histórico do Rio de Janeiro.

6 Jardim Supenso do Valongo

A antiga Rua do Valongo (atual Rua Camerino), que ligava o Cais do Valongo ao Largo do Depósito, foi o centro do comércio de escravos e de artigos relacionados à escravidão, onde se situava o mercado de negros, documentado em aquarelas e gravuras de Debret e Rugendas, em 1835. Em 1906, por ocasião do alargamento da via, foi construído o Jardim Suspenso do Valongo, projetado pelo arquitetopaisagista Luis Rey no Morro da Conceição, dentro do plano de remodelação da cidade pelo prefeito Pereira Passos.

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Praça Mauá, s/n°, Centro O Museu de Arte do Rio é uma ponte entre o circuito de arte e o circuito da herança africana. Em suas exposições promove uma leitura transversal da história da cidade, seu tecido social e sua vida simbólica. O museu tem também a importante missão de inscrever a arte no ensino público, por meio da Escola do Olhar.

11 Igreja de Santa Rita

Largo de Santa Rita, s/n, Centro Abrigava o antigo Cemitério de Escravos Ladinos e Pretos Novos antes de sua remoção para o Valongo, em 1769

3 Barricada da Saúde, Revolta da Vacina, 1904

Rua Pedro Ernesto Local onde atuou o negro Horácio José da Silva, vulgo Prata Preta, aclamado chefe das barricadas e trincheiras da então Rua da Harmonia, em resistência à obrigatoriedade da vacina contra a varíola (imposta pelo governo federal e por Oswaldo Cruz).

7 Cais do Valongo

Praça Jornal do Comércio, Avenida Barão de Tefé Construído em 1811 como local de desembarque de escravos, foi porta de entrada de mais de 500 mil africanos. Remodelado em 1843 para receber a futura mulher de D. Pedro II, Teresa Cristina, sendo rebatizado como Cais da Imperatriz, ainda conserva o obelisco dessa época. Aterrado nas reformas urbanas de 1911 e redescoberto um século depois, em 2011, durante as obras de reurbanização do porto..

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12 Igreja de Nossa Senhora do Rosário

Rua Uruguaiana, 77, Centro A antiga Rua da Vala abriga a Igreja do Rosário, sede da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. O templo católico foi construído lá em 1737 e era frequentado pela comunidade africana.

13 Rua da Quitanda

Entre a Rua do Ouvidor e a Rua 7 de Setembro, a Rua da Quitanda era área dos escravos de ganho, que trabalhavam como barbeiros, engraxates ou vendiam frutas e mercadorias em tabuleiros. Davam ao seu senhor parte dos proventos, quando se autossustentavam, ou repassavam toda a féria e eram sustentados. Foram largamente retratados por Jean-Baptiste Debret (1768-1848). Ladeada pela Rua 1º de Março (antes Rua Direita), paralela à via que ladeia o Porto do Rio de Janeiro, a praça fixou-se como ponto do mercado de escravos, além de ter sido palco da Revolta da Chibata (22/27 de novembro de 1910), contra as punições físicas sofridas pelos marinheiros. Acesso pela Sede da Escola Naval e fechada ao público, pode ser vista do alto dos aviões que pousam no Aeroporto Santos-Dummont ou por passeios de barco pela Baía de Guanabara. Abrigou um forte, alvo de inúmeras batalhas desde 1555 até 1895, e foi posto de quarentena aos navios negreiros para evitar a proliferação de varíola e escorbuto. A atual escola foi construída em 1938 sobre as ruínas da fortaleza.

CIRCUITO DA HERANÇA AFRICANA

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As reformas da Operação Urbana Porto Maravilha trouxeram à tona importantes memórias soterradas na região portuária conhecida como Valongo. Formado pelos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, o antigo Valongo foi berço do samba e da cultura afro-brasileira e tem roteiro histórico e arqueológico imprescindível

Na série Sugar Loafer, realizada desde o ponto de vista transitório da biclicleta, o artista exalta o que há de perene e de passageiro sob a pedra fundamental do Rio de Janeiro

MARCOS CHAVES POÉTICA DO ÓBVIO

PAULA ALZUGARAY

PARA O POETA JOSÉ LINO GRÜNEWALD, NELSON RODRIGUES ERA INSUPERÁVEL NO USO DE ADJETIVOS. De fato, ao nomear O Óbvio Ululante sua coletânea de crônicas do jornal O Globo, o escritor definiu o cúmulo da evidência. Conta Ruy Castro, organizador do livro de 1993, que a expressão refere-se ao Pão de Açúcar. Foi criada por Nelson Rodrigues ao comentar o susto que Otto Lara Resende teria levado ao notar a pedra desde a janela de seu carro, no mesmíssimo trajeto que realizava diariamente de casa para o trabalho. “Durante anos, o Pão de Açúcar, de tão óbvio, passou despercebido por Otto. Era como se não existisse. Mas um dia, enfim, Otto o enxergou. Era o óbvio ululante”, teria concluído. Como Nelson Rodrigues, Marcos Chaves faz a crônica cotidiana do que ulula no Rio de Janeiro. “Trabalho com o óbvio”, diz ele a seLecT. Os buracos nas ruas e as próteses

Foto da série Sugar Loafer destaca Hamilton, maranhemse de passagem pelo Rio, em uma de suas casas construídas na Baía de Guanabara

A habilidade construtiva dos moradores do Aterro do Flamengo evoca a lembrança de projetos de Hélio OIticica

nas paredes – fraturas e cicatrizes da cidade – são elementos familiares tanto na vida do carioca quanto na obra fotográfica do artista. Mas o óbvio ululante por excelência, o Pão de Açúcar, é de fato seu grande tema, explorado com esmero e à exaustão na série Sugar Loafer (iniciada em 2014 e em processo). Loafer, explica o artista, é a tradução para o inglês que o Google Translator dá para o francês flâneur, sujeito relativo ao verbo flâner, que significa passear, vagar. Exaltado na prosa de Baudelaire e na crítica de Walter Benjamin, o flâneur deambula pela cidade a fim de experimenta-la. Observador privilegiado da vida moderna parisiense do fim do século 19, se relaciona, com prazer voyeurístico, com os moradores da cidade em suas atividades diárias. A flânerie é antepassada das andanças de João do Rio pelas ruas do Cais do Porto carioca nos anos 1910 e da deriva embriagada de Hélio Oiticica pelas

A BICICLETA COMO VEÍCULO DE CRIAÇÃO

vias labirínticas da Favela da Mangueira, nos anos 1960. Ainda que a insegurança limite o disfrute do espaço público, o Rio de Janeiro sempre favoreceu a deriva. Este é o dispositivo disparador da atividade artística de Marcos Chaves de um modo geral e, especificamente, em Sugar Loafer. A série foi desenvolvida sobre duas rodas, ao longo do percurso que o artista faz de sua casa, em Santa Teresa, até Ipanema. “A bicicleta tem a velocidade perfeita para a observação”, diz. Desde um ponto de vista transitório, ele se relaciona com o que há de perene na paisagem – o Pão de Açúcar – e passageiro – as vidas e as coisas que passam sob a pedra. Em trânsito, enquadra o grande ícone da cidade entre as traves de um gol da Praia de Botafogo; ou o obstrui atrás das grades de aço de uma arquibancada em construção. No trajeto, ele reconhece os carroceiros, os andarilhos, os

moradores de rua. Descobre seus hábitos alimentares – pescar marisco nas pedras do quebra-mar e comer ali mesmo, em frente à Avenida Rui Barbosa – e suas invejáveis habilidades construtivas. Assim ele conheceu Hamilton, um maranhense de passagem pelo Rio, que lhe chamou a atenção pela engenhosidade de seus ninhos e suas tendas, fabricados com objetos catados. Fotografou três de suas casas, derrubadas e reconstruídas a cada batida policial. Da casa-totem, com a cópia da cadeira de Charles Eames pregada com fita durex a uma coluna, à casa-barco de isopor com barraca de sol, passaram-se semanas. Seu trânsito pelo Rio culminou com a casa-casulo, um objeto que o artista identificou como “helioiticiquiano”, em referência aos Ninhos (1969) que Hélio Oiticica criava em espaços arquitetônicos e urbanos. “Miséria? Que miséria?”, pergunta-se Marcos Chaves. Se o Rio de Janeiro é, desde sua fundação, ums cidade de paradoxos, da beleza que encobre uma pobreza sem-fim, Sugar Loafer inverte o jogo. Coloca a pedra fundamental como pano de fundo do grande teatro da vida como ela é. Enfocadas em primeiro plano – na praia, na água ou no quebra-mar – cenas que poderiam ser vistas como miséria e precariedade tornam-se liberdade e invenção. Caso da academia de ginástica ao ar livre do Aterro –, com seus equipamentos feitos com baldes, latas e cimento – criada e conservada por uma cooperativa da praia. O espaço entrou para a série Sugar Loafer e foi reinterpretado pelo artista na instalação Academia (2015), uma espécie de readymade das academias ao ar livre, feita com esculturas de cimento, tubos de ferros, madeira e tapewares. “A prefeitura instalou uma academia-padrão lá ao lado, mas ninguém usa. Só querem saber da academia dos Flintstones”, ri o artista, para quem o humor é uma arma eficaz de mudança de comportamento.

Se o Rio de Janeiro é conhecido

como um destino erótico, o Pão de Açúcar entra como um fator importante nessa consideração, diz Marcos Chaves

Vista obstruída do Pão de Açúcar, em foto da série Sugar Loafer, de Marcos Chaves

Fotografias colocam o Pão de Açúcar como um fato estético que exerce grande poder de sedução

CIDADE ERÓTICA

Opina o crítico Paulo Herkenhoff que o Pão de Açúcar é um problema pictórico antigo da cidade – de Taunay a Tarsila do Amaral, passando por Thimóteo da Costa e Guignard. Entende-se que é problema porque é assunto de relevância; um fato-estético da geografia que exerce grande poder de atração sobre quem passa por ali ou sobre ele ouve falar. Se o Rio de Janeiro é mundialmente conhecido como um destino erótico, o Pão de Açúcar entra como fator importante para essa consideração, coloca o artista. “Para mim, ele sempre foi um aliado, uma solução”, garante. O grande ícone já protagonizara um clássico de sua obra, “Eu Só Vendo a Vista” (1998) – para Herkenhoff o trabalho mais político de Marcos Chaves, “que aborda o colonialismo interno no País e no Rio em sua resistência ao capital imobiliário”. Depois, o Pão de Açúcar foi a imagem de abertura do vídeo Day and Nightshots (Oferta e Procura) (2015), exibido em Destricted.br, projeto coletivo sobre sexo, erotismo e pornografia, apresentado no Festival do Rio, em 2010, e n Galpão Fortes Vilaça, SP, em 2011. Na lenda do gigante que jaz adormecido nas montanhas do Rio – e que inspirou várias gerações de viajantes, do gravurista inglês John Landseer (1769-1852) à propaganda do uísque Johnnie Walker (2011) –, o Pão de Açúcar é o pé dessa figura deitada, enquanto a Pedra da Gávea é a cabeça e o Corcovado, o pênis. Mas no vídeo de Marcos Chaves, ele é promovido: assume a forma de um pênis e torna-se símbolo da paixão que irrompe no calor das praias cariocas, debaixo de calções apertados. Pé, pinto ou peito, o Pão de Açúcar de Marcos Chaves é a confirmação de que a percepção que o flâneur tem da cidade passa sempre pelo apelo erótico das coisas. Não podemos esquecer outro enamorado, desta vez um paulista, Oswald de Andrade, quem cantou pela primeira vez a poesia que há “no Pão de Açúcar de Cada Dia”. Depois veio João Bosco musicar o poema (Escapulário, Pau-Brasil, 1925) e completar que, “diante da pedra, são todos iguais”. Assim são as casas, os casulos, os carroceiros e os atletas abraçados diante da pedra e da câmera de Marcos Chaves. Óbvios, e todos iguais.

BONITO POR ARTIFÍCIO

Capital das imagens, o Rio de Janeiro naturaliza as mudanças na paisagem, transformando toda intervenção humana em marca registrada do lugar

GISELLE BEIGUELMAN

A modificação sistemática do território faz parte da retórica do urbanismo desde que o Barão Haussmann mandou disparar a primeira marretada na Paris do século 19. Mas, no Rio de Janeiro, essa prerrogativa ganhou tons muito particulares. Na cidade que já nasceu maravilhosa, toda intervenção humana torna-se a marca registrada do lugar. É como se a paisagem, sempre transformada, reagisse de uma forma tão integrada às loucuras da engenharia, que ela parece nunca ter sido outra. E isso sem esquecer das dores dos processos de exclusão embutidos que suas sucessivas reformas trouxeram. Duvida? Faça o teste. Seria possível ainda imaginar Copacabana como uma faixa estreita de areia coberta de restinga? O Flamengo invadido pelas ressacas do mar, antes do aterro? As águas da Baía de Guanabara batendo diretamente nas rocas que circundam os morros da Urca e do Pão de Açúcar, inviabilizando a construção do bairro? E como conceber a Floresta da Tijuca como uma mata que não é original? Ou lembrar que a Praça Mauá era praia? O Rio é uma cidade que vive no futuro do presente. Nada mais emblemático dessa situação que ter um museu inteiramente dedicado ao porvir, o Museu do Amanhã. Que outro lugar no mundo poderia ser mais adequado à paradoxal ideia de que “o amanhã é hoje”? Para quem nunca se acostumou ao incômodo das britadeiras e tratores que cruzam a zona portuária carioca há alguns anos, imobilizando o trânsito e perturbando o som, um aviso desalentador: sempre foi assim. Desde a sua fundação, a cidade é palco de intervenções que movem montanhas, encolhem mares e aterram praias. Não só sua paisagem física foi modificada ao longo dos séculos, mas também sua paisagem humana. Da presença indígena ficou apenas o gentílico carioca, que corresponde ao nome da maior aldeia tupinambá que ocupou o território do Rio antes do Rio. Desde os seus primórdios registrada em gravuras e desenhos de viajantes estrangeiros e pintores, a história da cidade confunde-se com a história da fotografia, do daguerreótipo à Realidade Virtual. Na vertigem que apaga a natureza original para renascer como confluência da técnica com o mar e a mata, o Rio impõe-se como capital das imagens e da privatização do olhar.

Visitante utiliza óculos de Realidade Virtual para acessar imagens da mata Atlântica na obra Phantom (Kingdom of All the Animals and All the Beasts is My Name), de Daniel Steegmann (2015)

MORRO DO CASTELO

Pode-se dizer que o Rio de Janeiro foi refundado duas vezes no mesmo lugar: o Morro do Castelo. A primeira, no século 16, quando o Castelo se torna a referência da ocupação colonial, depois da expulsão dos franceses pelos portugueses, no atual bairro da Urca, marco original da sua fundação. Outra, no início do século 20, quando o morro é desmontado. Hoje um dos ícones desse vasto terreno é o Aeroporto Santos-Dumont. Ele divide a esplanada com prédios coloniais, como a Santa Casa de Misericórdia e o Palácio Capanema, um dos marcos da arquitetura moderna brasileira. Até o fim do século 17 concentrava a vida administrativa e social carioca. Com a intensificação do comércio marítimo, essas funções se deslocam para a área da atual Praça XV. Na prefeitura de Pereira Passos, em 1904, parte do morro é demolida para a abertura da Avenida Central (hoje, Rio Branco), combinando políticas sanitárias com processos de higienização social. Em 1920, mais de 4 mil pessoas moravam ali em cortiços e habitações precárias. A pretexto da realização da Exposição Internacional em Comemoração ao Centenário da Independência (1922) começa a derrubada final, que implicou a erradicação dos miseráveis da área. Finda a exposição, ficou o vazio da Esplanada do Castelo e uma cidade urbanisticamente fraturada entre ricos e pobres.

Na página anterior e abaixo fotos de Augusto Malta documentam a demolição do Morro do Castelo em 1921 e em 1922. Nesta página, à direita, Copacabana, atual Posto 6, em 1895, com o Morro Dois Irmãos ao fundo, em foto de Marc Ferrez

COPACABANA

Os tupinambás a chamavam de Sacopenapan, que quer dizer caminho dos socós, um tipo de ave comum nas restingas que cobriam suas areias. A região era inóspita, de difícil acesso e a praia cortada por três pequenos morros de granito. Dois estão ocultos pelos prédios e o outro deu lugar à pérgula do Copacabana Palace. Foi só a partir do começo do século 20 que a famosa praia foi sistematicamente ocupada, beneficiando-se da nova infraestrutura urbana. Contribuiu para isso também a introdução dos novos comportamentos e hábitos de saúde que incorporavam o banho de mar, ainda que em horários controlados pela municipalidade, em nome do decoro. A inauguração do Copacabana Palace, em 1923, transformou-a em símbolo do turismo e espaço elitizado. Ao longo das décadas seguintes, o adensamento populacional é intenso e a orla modifica-se substancialmente com o erguimento de prédios e mais prédios. Nos anos 1970, sofre sua mais radical interferência. A Avenida Atlântica é alargada e duplicada com a implantação de um aterro hidráulico que resultou na “engorda” de suas areias. Nessa época, o bairro já havia se tornado um microcosmo da cidade, concentrando de inferninhos a hotéis de todos os portes. Hoje é o bairro mais populoso da zona sul e prepara-se para receber a nova sede do Museu da Imagem e do Som. Com arquitetura do escritório Diller Scofidio + Renfro, o projeto promete ser não apenas acervo, mas um novo mirante à beira-mar. Um museu do depois de amanhã.

Para quem nunca se acostumou ao incômodo das britadeiras que cruzam a zona portuária há anos, um aviso desalentador: sempre foi assim. Desde a sua fundação, a cidade é palco de intervenções que movem montanhas

CORCOVADO

Foi na Floresta das Paineiras, no Maciço da Tijuca – Paineiras, Corcovado, Tijuca, Gávea Pequena, Trapicheiro, Andaraí, Três Rios e Covanca – que, no século 17, se construiu o Aqueduto da Carioca. Primeira grande obra pública do Brasil, ele levava as águas da nascente desse rio, no sopé do Corcovado, até o centro da cidade velha. Hoje em grande parte subterrâneo, o Rio Carioca era a fonte de água limpa que abastecia os habitantes do Rio colonial. Com 710 metros de altura, o Corcovado domina a paisagem da cidade. No topo desse morro, em 1931, foi implantado o monumento ao Cristo Redentor, que hoje se confunde com a própria identidade da cidade. A esse monumento a artista Rosângela Rennó dedicou A Última Foto (2006). Nessa obra, toda a história da fotografia e sua relação com a indústria turística contemporânea são questionadas. Para realizar seu projeto, Rennó convidou 43 fotógrafos profissionais para registrar o Cristo Redentor, usando câmeras mecânicas de formatos diferentes, que ela havia colecionado ao longo de vários anos. O projeto consiste em 43 dípticos, cada qual pareando as câmeras com a última foto que haviam documentado. Concebido na época em que a Kodak anunciou que deixaria de vender os filmes tradicionalmente usados nas câmeras, esse projeto levantou questões perturbadoras: essas câmeras são capazes de armazenar a história da fotografia, cuja direção foi modificada pela digitalização das imagens? Além disso, com a crescente privatização da natureza e do que podemos ver, por quanto tempo a paisagem carioca continuará acessível aos nossos olhos? Chegará o dia em que a visão Rio de Janeiro só será possível com poderosos óculos de Realidade Virtual, como sugere Phantom (2015) de Daniel Steegmann?

À direita, Rosângela Rennó, A Última Foto (2006), díptico com foto de Zeca Linhares feita com câmera Contax III. Nesta página, foto de Augusto Malta retrata ressaca na Praia do Flamengo, no começo do século 20, antes da implantação do aterro nos anos 1950

62 O ARTISTA ENQUANTO ATLETA

Igor Vidor coloca-se fisicamente em processos de transformação na elaboração de projetos artísticos com engajamento social

PAULA ALZUGARAY

Alto verão, fim de semana no Parque do Flamengo. As pistas das vias de alta velocidade do Aterro estão interditadas para carros, abrindo espaço para a prática de esportes ao ar livre. Tudo é diversão, até que quatro garotos sem camisa passam correndo a toda velocidade. Sob gritos de “pega, pega”, eles se separam e cada qual desaparece em um percurso entre as palmeiras, os abricós-de-macaco e as abundantes espécies que fazem os caminhos sinuosos do parque idealizado em 1965 por Lota de Macedo Soares, com paisagismo de Burle Marx. A cena não é incomum. Confunde-se à rotina de esportistas ou às correrias que se seguem aos furtos, que nos últimos anos fazem a fama do local. No entanto, o evento descrito não era uma coisa nem outra, mas uma ação promovida pelo artista Igor Vidor com três jovens que trabalham com malabarismos nos semáforos da cidade. “Um mês antes, eu havia presenciado uma perseguição na Glória”, diz o artista à seLecT. “Quatro policiais, dois agentes oficiais e uma viatura do conselho tutelar abordaram um menino, que se recusou a acompanhá-los e escapou. Ele não havia roubado nada, era um jovem negro e levava bolinhas de tênis.” O acontecimento presenciado veio ao encontro de uma pesquisa que ele desenvolve com jovens em situação de risco, moradores de rua, em sua maioria negros ou pardos. A ação Corra Como se o Sol Pudesse Alcançar Você (2015) foi criada especificamente para observar as reações geradas diante dos corpos negros em movimento. O título da ação é uma apropriação do nome do programa esportivo de verão do Parque do Flamengo. “Apesar de estarem usando tênis novos e de cada um deles ter colocado sua melhor bermuda, uma concentração de garotos negros correndo sempre gera uma comoção”, diz Vidor, que comprou tênis para os garotos e também participou da ação. “Me pergunto o que legitima uma simples corrida, quais instâncias simbólicas cercam esse tipo de conclusão sobre o corpo negro em movimento.”

Igor Vidor durante treino de condicionamento físico para o projeto LPO (Levantamento de Peso Olímpico, 2016), a ser realizado durante as Olimpíadas

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A CIDADE MOVE

“A cidade do Rio me move muito”, diz esse paulista de 28 anos, que estava morando em Londres, quando foi convidado a integrar a equipe de educadores do Museu de Arte Rio. A performance do Parque do Flamengo tem relação direta com sua formação pessoal e histórico profissional. Ele foi atleta profissional de futebol até os 18 anos e depois trabalhou por seis anos em projetos educativos de instituições como a Bienal de São Paulo, o Itaú Cultural e o Instituto Tomie Ohtake (SP) e a Whitechapel Gallery (Londres). “Comecei a jogar aos 7 e a maioria dos meus amigos era de negros”, diz ele, que atuou no Corinthians, no São Caetano e no Juventude de Caxias (RS), onde foi convocado para a Seleção sub 18. Devido a políticas especulativas e desfavorecimentos provocados pela corrupção no futebol, Vidor foi impedido de participar do campeonato e acabou dispensado do clube. “Passei a maior parte da minha vida moldando meu corpo diariamente para uma única situação, e ver esse tipo de coisa acontecer era inadmissível.” Essa experiência envolvendo fracasso e desilusão foi decisiva para moldar a nova etapa. “Pra falar a verdade, acho que meu primeiro trabalho de arte foi abandonar o futebol”.

ROLAM AS PEDRAS

Metáforas da queda e do perigo surgiram logo nos primeiros trabalhos. Na individual intitulada O Sublime Como Possibilidade Diante da Morte, decorrente de residência artística no Ateliê Aberto (Campinas, 2011), Vidor apresentou dois vídeos que exploram as relações entre êxtase e terror na prática de esportes radicais. O texto Êxtase Sublime, em que o crítico Guy Amado discorre sobre a potência simbólica e visual do surfe de ondas gigantes, e publicado na edição 10 de seLecT (fev/ mar de 2013), foi usado pelo artista no trabalho de conclusão do Bacharelado em Artes Visuais no Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo. “Diz muito a respeito do que tenho pesquisado e, na época, foi um propul-

Polaridades como vantagem e desvantagem;, sucesso e fracasso pautam a série Anywhere is My Field (2016),

sor pra outras coisas.” As noções de sucesso e fracasso, vantagem e desvantagem – instâncias naturais do mundo do esporte –, continuam a pautar sua pesquisa. Elas se materializam em Anywhere is My Field (2016), projeto em que desenha campos de futebol em encostas de terrenos íngremes. O trabalho evoca a performatividade do jogo de futebol a partir das características do relevo. Traduz as inquietações do artista, enquanto jogador, ao comparar as topografias dos campos profissionais e de várzea. Mas essa obra também elabora uma base simbólica mais complexa. Ao desafiar o corpo do jogador a reagir às leis da gravidade, Vidor processa o mito de Sísifo, o titã condenado por Zeus a levar uma rocha sobre os ombros até o topo de uma montanha. Ao chegar lá, a pedra sempre volta a rolar para o vale, levando o titã a reiniciar a tarefa, ad infinitum.

FORÇA DE RESISTÊNCIA

Anywhere is My Field executa, em poucas linhas traçadas em terrenos acidentados, uma ideia de performance. O trabalho se dá como suspensão da realidade, ao promover uma performance imaginária, onde a ação é apenas sugerida e é lançada a pergunta: que desempenho teria o corpo em plena ribanceira? O corpo ganha protagonismo novamente no trabalho LPO (Levantamento de Peso Olímpico) – título provisório –, que está em pleno desenvolvimento na Vila Autódromo, comunidade ao lado do Parque Olímpico, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, onde se concentrarão as principais atividades dos Jogos Olímpicos. Sísifo continua atuante aqui. O trabalho tem como eixo o campo de alta-tensão gerado entre moradores e forças públicas, desde que se iniciaram as remoções e desapropriações daquela comunidade, em 2013. As histórias por trás de cada casa demolida, detalhes raramente lembrados nos planos de reformas urbanas e nas estatísticas, serão pano de fundo da ação de Igor Vidor, que deve ganhar a forma final de um filme-instalação na época das Olimpíadas. A força de vontade das cerca de 3 mil pessoas da comunidade original de Vila Autódromo, que vêm resistindo a sucessivos intentos de remoção ao longo dos últimos 20 anos, é traduzida pelo artista na forma do levantamento de pesos. O trabalho consiste em fazer 2.833 levantamentos de peso, no interior das casas que não foram demolidas. Esse era o número de pessoas que haviam sido removidas até a realização deste texto, quando Vidor conversou com seLecT. “Estou treinando há seis meses. Ganhei 6 quilos de musculatura e tenho hoje apenas 9% de gordura no corpo”, diz. Em LPO (2016) entra em ação um dispositivo de transferência socio-corporal. O trabalho se dá no embate físico do artista com o contexto social que ele quer abordar, na medida em que ele executa no próprio corpo a problemática vivida pelos moradores da zona em conflito. E, ao modelar seu corpo, de certa forma ele retoma os anos de treinamento intenso para a prática do futebol. A incorporação da realidade social, e a sua manifestação em performance, se dá ainda em outro trabalho em processo, que será apresentado na exposição Linguagens do Corpo, a partir de 17 de maio, no MAR. Com o título provisório de Corpo Fabélico (2016), o trabalho envolve 80 jovens de Vila Aliança, comunidade localizada no bairro de Bangu. Escalados do projeto de futebol Craques da Vila, os garotos estarão envolvidos em uma corrida, novamente sob os gritos “pega, pega!”. Só que, desta vez, seus movimentos serão condicionados em círculos, no espectro da Praça Mauá, o coração do novo Porto Maravilha.

Metáforas do perigo, da queda, do desafio e do fracasso aproximam o trabalho de Vidor com o universo do esporte

À direita, obra da série Anywhere is My Field (2016); abaixo, frame do vídeo Corra Como Se o Sol Pudesse Alcançar Você (2015), realizado durante ação no Aterro do Flamengo

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