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curadoria
FLUXOS,FIXOS E FLUÍDOS
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Esta frase serigrafada no vidro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro pelo artista Laercio Redondo, em sua recente exposição na cidade, atrita com o que vemos através: o deslumbramento moderno diante das curvas da natureza, que aqui é verde e concreta. Existe um Rio de Janeiro, um projeto de Rio de Janeiro, um passado do Rio de Janeiro. Tudo em uma linha só, cheia de C A N T O S. Desgovernada, cheia de fraturas. Assim a cidade avança sobre a paisagem natural, em uma espécie de confluência urbana do absurdo. As dobras, ladeiras e cantos são o meio perfeito para a proliferação de microrganismos perfeitos dentro da cidade imperfeita. Nos encontros fortuitos que surgem nos trânsitos e fluxos dessa cidade é que se instala o trabalho de Aleta Valente. Por meio de seu avatar no Instagram, EX_ MISS_FEBEM, a artista apropria-se do espaço virtual e faz dele arena, devir, cidade. O instantâneo, forte componente da vida social carioca, é a via para a materialização de um trabalho que se faz de unha-sangue-carne-osso – algo ainda estranho ao mundo digital envernizado. Não por acaso, ela foi banida do Facebook diversas vezes, em razão de denúncias de haters engajados (ou
O espaço público como componente ativo no trabalho de Aleta Valente, Cecilia Cipriano, Guga Ferraz e Opavivará! JOÃO PAULO QUINTELLA
com muito tempo livre) e de diretrizes impostas por pudores corporativos. No Instagram, o tempo é outro, mais colado à RL (realidade). Com o celular como dispositivo e uma plataforma como meio, o escoamento de imagens é mais natural. A superexposição fortalece os sinais vitais da EX_MISS_FEBEM. Os excessos conferem-lhe movimento. A profusão induz a um descontrole (ou seria fluidez?) necessário. E o trabalho de Aleta Valente se faz na diluição do sujeito na experiência, na fluidez corpo-cidade, quando os fluxos urbanos se confundem com os fluidos do corpo. Sedução e sexualidade desentopem veias. Quando gera um meme com uma foto de uma “quentinha” sobre seu corpo seminu, ela avança sobre o imaginário da figura feminina no Rio de Janeiro, escancarando os pontos de vista arcaicos que aparecem nos comentários. O trabalho faz-se também em suas respostas e nos diálogos sem travas que se desdobram na interface do dispositivo, onde pulsa um corpo vulnerável e exposto aos desfechos da cidade.
Acima, frame de Volcán (1979), filme super-8 de Ana Mendieta. À direita, O Triângulo Impossível da Judith Negra e a Sedução do Útero da Razão (2012), de Thiago Martins de Mello
APAGAR O FIXO
A tomada do espaço público como componente ativo do trabalho também acontece no coletivo Opavivará!, para quem a rua é lugar de criação. Seus projetos propõem arranjos, gestos, ritos que potencializam a experiência no espaço. Como os chuveiros instalados a céu aberto (Chuvaverão, 2014), que movimentam as águas paradas do Rio de Janeiro. Na experiência do banho coletivo, eles alternam prática íntima e situação pública. Sem essas dinâmicas que reviram a determinação da ordem urbana estanque, estaríamos fadados “à anulação daquilo que faz das vidas um evento singular no mundo”, como diz Moacir dos Anjos no texto Três Coisas Que Eu Acho Que Sei Sobre Opavivará!. Em Pula Cerca (2009), oito pares de escadas apontam o conflito de interesses no espaço público da Praça Tiradentes. As grades, hoje retiradas, geravam, na época em que o trabalho foi instalado, um impedimento de uso pela população. Com uma simples escada, o Opavivará! anulava a incongruência irônica de um espaço público com restrições ao uso público, suprimindo a estrutura fixa e propondo um novo fluxo.
Acima, frame de Volcán (1979), filme super-8 de Ana Mendieta. À direita, O Triângulo Impossível da Judith Negra e a Sedução do Útero da Razão (2012), de Thiago Martins de Mello
DEMARCAR O ESQUECIMENTO
Na contramão do apagamento e do esquecimento, Guga Ferraz desenvolve uma pesquisa sobre formas de materializar (tornar visíveis) geografias transplantadas do Rio de Janeiro. Ele parte das operações de remoção e movimentação de terra, que, ao longo da história, redesenharam o território da cidade em nome do desenvolvimento. Oitenta anos depois da passagem de Le Corbusier pelo Rio – deixando a proposta de um viaduto sinuoso e habitável –, o entendimento da cidade pelo poder público continua debruçado na opção rodoviária e na supressão da paisagem natural pelo cimento. Vide o projeto da via expressa Transolímpica, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, onde se concentram as obras para as Olimpíadas. Em Até Onde o Mar Vinha. Até Onde o Rio Ia. (2014), Guga Ferraz faz da ausência, presença. O projeto consiste em demarcar, com 3 toneladas de sal grosso, os limites da extinta Praia da Lapa, que tocava o Morro do Castelo. Foi ali que os portugueses expulsaram os franceses e retomaram o controle da costa brasileira, em 1560. “A pé, dali, era impossível avançar porque dariam naqueles mesmos pântanos que se interpunham entre a zona do delta e o Morro do Castelo. E as naus, isoladas na baía, não tinham como enfrentar a fortaleza.”, anota o escritor Alberto Mussa, em A Primeira História do Mundo (Record, 2014). O morro do Castelo era, portanto, uma geografia decisiva, subtraída a partir da vontade do Estado, em 1922.
CORTE ABERTO
Talvez o mais grave na história das alterações da paisagem urbana não sejam as remoções de terra, mas das casas e das famílias, atropeladas por projetos urbanísticos. Como revitalizar algo que está vivo permanece um mistério. Entre 2012 e 2015, a artista Cecilia Cipriano frequentou o Morro da Providência, localizado entre os bairros Santo Cristo e Gamboa, na zona central do Rio de Janeiro, onde um projeto de teleférico fazia parte da Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha. Cipriano acompanhou o processo de marcação das casas pela Secretaria Municipal de Habitação, que aconteceu com a pichação dos muros das casas com a sigla SMH. Ao contrário dessa tática embutida de terror psicológico, a artista desenvolveu uma relação baseada no afeto. Em diálogo com os moradores e em sintonia com suas vontades, propôs uma alteração arquitetônica nas casas condenadas ao desmanche. O Corte (2012-2015) permitiu novas perspectivas da cidade. “Pelas frestas abertas em dezembro de 2012, conseguimos dar o zoom na cidade atual, numa cidade refém do mercado, em detrimento do direito de seus cidadãos”, escreve Ana Hupe, artista e curadora da exposição resultante do projeto. A prática de Cecilia Cipriano é feita de visibilidade e não de supressão. Soma novos fluxos a espaços pulsantes. Adere à lógica das justaposições que determina a complexidade dessa metrópole. Em uma fase de intensas e profundas transformações urbanas está em jogo o estado das coisas na cidade.
TERRITÓRIOS
Da Louraça Belzebu de Fausto Fawcett às altas temperaturas do Piscinão de Ramos captadas pelas lentes de Julio Bittencourt, autores exaltam e transformam em poesia a face mundo-cão da Cidade Maravilhosa
RIO LADO B
LUCIANA PAREJA NORBIATO FOTOS JULIO BITTENCOURT GRAVURAS OSWALDO GOELDI
EM UM PONTO ANIMADO E DE ALTÍSSIMAS TEMPERATURAS, no imenso conglomerado urbano às margens da Avenida Brasil, o fotógrafo Julio Bittencourt foi buscar material humano para suas lentes. Mais precisamente, no famoso Piscinão de Ramos, um lago artificial com 26.414 metros quadrados e 30 milhões de litros de água salgada, construído ao lado da Baía de Guanabara, próximo ao Aeroporto do Galeão. Criado em 2001 como alternativa à poluída Praia de Ramos, está fechado para manutenção desde o fim de 2015. Num passado mais glorioso, chegou a receber 60 mil pessoas por fim de semana e foi cenário de novela da Globo, mas seu estado de conservação deteriorou de tal forma que a poluição se equiparou à da praia original, numa evolução em que o descaso do poder público alimentou o descuido da população local. Serviu de inspiração à nova praia artificial do Parque Madureira, inaugurada em outubro passado pela prefeitura do Rio.
Sega, still de Cinéma Casino. Em colaboração com Benjamin de Burca, 2015Ti nullori andebissunt ex eossitat. Conseni mperero
Acima, Perigo no Mar (1955), de Oswaldo Goeldi
O fotógrafo paulistano soube do Piscinão de Ramos por uma reportagem na ocasião de sua inauguração, quando ainda nem sonhava que viria a morar colado ao local. “Fotografei lá durante quatro anos, entre 2009 e 2012. Nos dois primeiros anos, ficava indo e vindo da zona sul, mas perdia muito tempo nos deslocamentos, no trânsito”, conta à seLecT. Na época estava saindo de projetos enfocando os moradores da ocupação do Edifício Prestes Maia (SP) e queria trabalhar em algo mais espontâneo. Uma praia foi o lugar perfeito. “Praia fala muito sobre cultura, é onde as pessoas são iguais. O Piscinão era ainda mais interessante, por não ser propriamente uma praia. A cultura ali é mais real, mais próxima da essência do Brasil.” As fotografias de Bittencourt traduzem em imagens voluptuosas essa realidade cheia de contradições. Nelas, pequenas multidões buscam seu lugar ao sol e se misturam sem preconceito, fazendo churrasco, usando descolorante de pelos e trazendo o cachorro a tiracolo. A singularidade do ensaio chamou a atenção do britânico Martin Parr, um dos papas da fotografia litorânea. Tanto que o veterano editou com Bittencourt o livro Ramos, lançado pela extinta Cosac Naify em 2015, assinando o texto de apresentação.
Bittencourt está em cartaz atualmente na Galeria da Gávea, com a expo Kamado, em que clicou cozinhas em uma ilha abandonada no Japão. Enfocando a ausência pelos rastros deixados por ex-habitantes, o ensaio é a antítese de Ramos.
“Praia fala sobre cultura, é onde as pessoas são iguais. O piscinão é ainda mais interessante, por não ser propriamente uma praia”, diz Bittencourt
DO IRAJÁ À COPA CYBERPUNK Quem já circula há mais tempo pelas sedutoras incongruências do subúrbio e do submundo carioca é o escritor Fausto Fawcett. O Irajá foi celebrizado na letra do funk Kátia Flávia (1986), “ex-miss Febem, encarnação do mundo-cão, louraça satanás, gostosona e provocante”, e Copacabana – com sua fértil fauna local – é sua menina dos olhos desde os anos 1980. “Gilberto Gil sempre disse que a Bahia lhe deu régua e compasso pra vida inteira. Gosto de dizer que Copacabana me deu a papelaria inteira, me preparando pra várias overdoses de vivências e surpresas existenciais”, diz Fawcett à seLecT. “Meus textos, meus temas e minha escrita estão ligados à alquimia peculiar de submundos e clandestinidades, escritórios, clínicas, consultórios, praia, montanha, todo tipo de gente, todo tipo de serviço, todo tipo de polícia e bandidagem, e paisagem imobiliária muito concentrada em 4 quilômetros e pouco de Copacabana.” Desse caldo saíram livros antológicos, como Santa Clara Poltergeist (1990) e o mais recente, Favelost (2012), uma distopia cyberpunk em que São Paulo e Rio viram uma só cidade pela continuidade do crescimento desordenado de suas periferias (leia Review na pág. 108). A literatura, que Fawcett tem como seu meio principal, é apenas uma entre as muitas mídias com que trabalha. Dos livros vieram performances que eternizaram musas do submundo, como Regininha Poltergeist. Das artes visuais vieram parceiros como Chelpa Ferro e Vivian Caccuri, com quem divide o palco em shows experimentais. Da música, coautorias como o hino Rio 40 Graus (1992), composto com Fernanda Abreu e Laufer, cujo título presta homenagem ao clássico cinematográfico de Nelson Pereira dos Santos, de 1955. Mas quem nunca largou do seu pé foi mesmo Kátia Flávia, a Godiva do Irajá, que matou o marido contraventor da Baixada Fluminense, fugiu para Copa e será a eterna Garota de Ipanema às avessas de Fausto Fawcett. “Não nego o orgulho de ter recolocado no mapa do imaginário pop nacional, mesmo por um tempo, Copacabana, que andava ali pelos anos 1980 esquecida ou reduzida a um estereótipo de decadência que fiz questão de dizer que era apenas uma camuflagem para o imenso
point urbano e humano que acontece no bairro. Outra coisa foi uma gostosona bandida na boca do povo, maldita querida e fêmea cheia de poder – e poder marginal – na boca do povo”, diz. Em 2016, a música faz 30 anos e a personagem deve virar filme. Fawcett lança livro novo, Cachorrada Doentia.
DA BELLE ÉPOQUE À SAPUCAÍ Divas underground são frequentadoras assíduas das páginas da literatura carioca há mais de cem anos. Nos contos do escritor e jornalista João do Rio (1881-1921), elas são acompanhadas por janotas, mas também por traficantes e cafetões, mães de santo e escravos, e transitam com sex-appeal pela região portuária e do Centro, na belle époque carioca. Na virada do século 19 para o 20, João do Rio chocava os eruditos com o calor das ruas, temperado pela homossexualidade, o dandismo exacerbado e a cor da miscigenação. Por suas incursões do grand monde aos antros do porto, soube traduzir esse universo em textos jornalísticos como “As Religiões do Rio” (1904) e “A Alma Encantadora das Ruas” (1908). Em contos como História de Gente Alegre, lançou um olhar afiado sobre as relações sorrateiras entre o povão e as elites deleitando-se às escondidas nos prazeres obscuros dos antros do Centro. Em 2016, nos 135 anos de seu nascimento, uma caixa recém-lançada pela Editora Carambaia traz três facetas de sua produção: crônica, teatro e folhetim. Outro ilustre frequentador do Centro e da região portuária foi Oswaldo Goeldi (1895-1961). A partir dos anos 1920, o artista enredava a narrativa sombria de suas gravuras entre os peixes e o mar do Leblon – então um areal isolado, onde o artista morava num quarto de fundos – e as noites boêmias na Lapa, retratando proscritos e prostitutas. “Não era um cara abandonado, solitário, mas se identificava com esses personagens”, diz Lani Goeldi, sobrinha-neta do artista. No aniversário de 55 anos de sua morte, ela prepara Repaginando a História, livro sobre os bastidores da vida de Goeldi, com lançamento previsto para o fim do ano. Uma exposição em Belém – onde o artista nascido no Rio morou em criança –, marcando também os 400 anos da cidade, e um documentário em cinco capítulos estão entre as homenagens. A inspiração também veio do outro lado da Floresta da Tijuca para Nelson Rodrigues (1912-1980). Mais precisamente, da infância passada na Aldeia Campista, na época uma cercania afastada num enclave entre os atuais Vila Isabel, Andaraí e Irajá (zona norte). As taras e vícios de uma sociedade dividida entre o pretenso cosmopolitismo de capital da República e o moralismo rigoroso do subúrbio ganharam status mítico por sua dramaturgia mordaz, recheada por pactos de morte, adultérios, subornos e casamentos de fachada, em peças como A Falecida (1953) e romances como Asfalto Selvagem (1959) – cuja protagonista, Engraçadinha, mora em Vaz Lobo, região de Madureira, onde hoje fica uma nova e tórrida praia artificial dos subúrbios. Alegoria de todas as histórias do Brasil e do Rio, a Marquês de Sapucaí não poderia ficar de fora dessa breve antologia dos cânticos aos submundos. Afinal, a Marquês já serviu de palco para o elogio da discrepância de classes, com o enredo Ratos e Urubus: Larguem Minha Fantasia, da Beija-Flor, vice-campeã em 1989. O autor da ousadia foi Joãosinho Trinta (1933-2011), que com os versos Sou na vida um mendigo, da folia eu sou rei traduziu o paradoxo do Carnaval, festa de luxo feita pelo cidadão de baixa renda. Num dos carros alegóricos, uma réplica do Cristo Redentor daria as costas a um cortejo de mendigos saltitantes, mas teve de ser coberta com plástico preto pela proibição da Igreja Católica. Saiu embrulhada, mas com uma placa dizendo “Mesmo proibido, Olhai por nós”. É dessas contradições de uma terra abençoada por Deus, mas deixada à mercê dos homens, que vem se nutrindo, ao longo dos anos, o panteão maldito da arte. Entre o distante Leblon e a boemia do Centro e da Lapa, Oswaldo Goeldi achou inspiração para retratar os proscritos, como pescadores, bêbados e prostitutas
À direita, Pescadores (1940), de Goeldi