A colheita dos dias

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A C O L H E I TA D O S D I A S



VALESCA DE ASSIS

A colheita dos dias



Para Carlos Jorge Appel.


© Valesca de Assis, 2012 Coordenação editorial Elaine Maritza da Silveira Capa, projeto gráfico e editoração Juliana Dischke Revisão Mariane Rauber – Conforme Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

A848c

Assis, Valesca de. A Colheita dos Dias / Valesca de Assis. 3ªed. – Porto Alegre: 8Inverso, 2012. 112 p. ISBN 978-85-62696-20-6 1.Literatura brasileira : romance. I. Título. CDU 869.0(81)-1

Cip – Catalogação na Publicação

Vanessa I. de Souza CRB10/1468

Reservados todos os direitos de publicação a Editora 8INVERSO Rua Comendador Rheingantz, 50 cj. 303 Cep 90450-020 – Porto Alegre, RS F.: 51 3237.9588 8inverso@8inverso.com.br www.8inverso.com.br IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRASIL ISBN 978-85-62696-20-6


Tarde eu te amei, beleza tão antiga e tão nova. Eis que habitavas dentro de mim, e eu lá fora a procurar-te. Santo Agostinho, Confissões



Capítulo I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. 11 Capítulo II . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. 17 Capítulo III . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. 29 Capítulo IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. 39 Capítulo V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. 51 Capítulo VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. 61 Capítulo VII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................. 75 Capítulo VIII . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................ 85 Capítulo IX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ................ 99 Capítulo X . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............... 103



Capítulo I

Não pude olhar enquanto o trabalho era feito. Insuportável a visão do que restou: tão parcos e reduzidos ossos, cabiam todos na pequena urna quase igual à caixa de ferramentas do avô. Mas estive aqui o tempo inteiro, Virgínia, e os movimentos às minhas costas, os ruídos surdos, as conversas banais dos operários desataram novas culpas. A um aviso silencioso, voltei-me para acolhê-la. Agora que outra vez estamos juntas, tentarei explicar: sua mãe, querida, viveu anos e anos num estojo macio, confortável, longe do mau e do bom tempo. De repente, Diogo apareceu, e com duras palavras e frágeis papéis destroçoume o abrigo. A vida, então, apareceu por todos os lados. Não foi bonito o que vi – coisas que havia esquecido, acontecimentos empurrados para águas muito escuras. Mas tive


de ouvir e acreditar, porque se tratava de Diogo, o querido Diogo de antigamente, e outro Diogo, novo e mau. Por que você, filha? E tão somente agora? É de você que eu preciso, de sua ajuda para lembrar o que falta ser lembrado, e fazer o que tem de ser feito. Tivesse eu todas as certezas, meus pensamentos não teimariam em voltar – como agora – aos dias inocentes, antes de Diogo aparecer. Ficou boa, muito boa, a gravação no mármore polido: apenas o nome – Modesto Manoel da Câmara – sem datas nem fatos. No correr das linhas, o friso dourado e a pequena dobra que Modesto fazia no cartão de visitas, antes de oferecê-lo a um novo conhecido, ou a uma autoridade qualquer, entre as tantas com quem se relacionava. Confirmo ao marmorista: está exatamente como eu imaginei. Agradeço com uma cédula de razoável valor. Ele já se despede, entre mesuras, quando Alvarina chega com as orquídeas combinadas. Em silente harmonia, ornamentamos as floreiras. “Eram as preferidas de Modesto. Não são mesmo lindas?” Alvarina concorda, num leve aceno de cabeça, sem desconfiar que seriam as últimas (seus grandes olhos 12

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me fitando com piedade). Querida Alvarina, a quem Modesto chamava minha irmã de criação, que era, na verdade, a empregada das empregadas, a que não tinha horários nem vontades, os dias e noites sempre iguais: recolher brinquedos espalhados pela casa, alcançar a escarradeira à bisavó, limpar-lhe as imundícies, providenciar o leite noturno e morno em cada quarto habitado; depois, algumas horas de sonhos na estreita e solteira cama. Alvarina, que nos últimos trinta anos banhou e vestiu os mortos da família, conservou de cada um o mais simples objeto: um pregador quebrado, um bibelô sem valor, uma santinha de gesso. De tamanha e tão longa dedicação, sobrou-lhe – afora o baú de recordações – um marido arranjado a caro custo, quando ela já ameaçava encalhar naquela vida peã, e dois filhos tardios, inúteis na luta contra números e letras, incompatíveis com o menor trabalho. Estreito Alvarina num difícil abraço e peço que me aguarde lá embaixo; preciso ficar um pouco a sós com Modesto. Ela compreende, e se vai. Deixo-me, então, olhar para o retângulo frio, cujo real sentido não quero entender. Súbito, uma inclinação do sol poente movimenta os veios rosados do mármore: um sangue, uma seiva, um sinal de A COLHEITA DOS DIAS

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