Vento sobre terra vermelha

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VENTO SOBRE TERR A VER MELH A



Caio Riter


© Caio Riter, 2012 Coordenação editorial Elaine Maritza da Silveira Capa, projeto gráfico e editoração Juliana Dischke Revisão Mariane Rauber – Conforme Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

R611v Riter, Caio. Vento sobre Terra Vermelha / Caio Riter. – Porto Alegre: 8Inverso, 2012. 184 p. ISBN 978-85-62696-14-5 1.Literatura brasileira : conto. I. Título. CDU 869.0(81)-34 Cip – Catalogação na Publicação

Vanessa I. de Souza CRB10/1468

Reservados todos os direitos de publicação a Editora 8INVERSO Rua Comendador Rheingantz, 50 cj. 303 Cep 90450-020 – Porto Alegre, RS F.: 51 3237.9588 8inverso@8inverso.com.br www.8inverso.com.br IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRASIL ISBN 978-85-62696-14-5


Tantos anos vivi naquela cidade. Tantas histórias ouvi. E tantas outras inventei, que já nem sei se o que conto é ocorrido ou apenas desejo. Talvez o vento, que sempre soprou sobre aquelas terras vermelhas, tenha mesmo escolhido as narrativas que merecem contação. Quem sabe.



9 A casa amarelada 17 Eu, Linaura e o Outro 27 O colecionador de livros 35 Três marcas 47 A musa e as palavras 59 Estranho homem vindo no vento 75 Para além do inverno 91 Flor branca em solo seco 99 O dia em que o circo chegou àquela cidade que nunca tinha visto elefantes, leões e palhaços 113 Maria Santa, santa era 133 Um garoto quase homem 147 Encontro na estrada vermelha 159 Toda promessa tem seu tanto de acontecimento 169 A breve história de como Teresinha se tornou a Teresa cor-de-cuia 175 A árvore do Beato



A casa amarelada



A casa era grande. Dois pisos e um pequeno pátio com jardins floridos sempre. Mesmo quando o inverno rigoroso impedia os visitantes costumeiros. Nas noites frias, noites de vento desembestado, a casa amarelada só recebia um que outro perdido pelas estradas. Quer fugido da Justiça, quer escapulido de outros tentos, quer homem de trabalho, destes que se perdem na venda de roupas e outros e tantos pertences. E aquele que vinha, chegado à casa, na quase entrada da cidade, sempre recebido bem seria. Braços quentes de mulher. Eram algumas. A mais saliente no meio era Vera Assanhada. A primeira a habitar aquela moradia, dona da casa até, antes mesmo de mulher da vida ser. Amásia de Coronel, pai de família de nome honrado, que a quis bem longe da esposa, mulher religiosa, sim dado diante do próprio bispo, quando no há muito por aquelas bandas andou a distribuir sacramentos. A casa, graças a essas demandas de honradez, foi mandando construir. Vera, ela mesma pedinte, meio que meio instruída pela


Madrinha, mulher de lidas campeiras, de mãos de calos e cicatrizes, já que a própria Vera, menina no ainda, desentendia destas coisas de pedição. No porém, como a Madrinha ia no recomendado, era voz mansa de solicitação: Casa aceito. No todavia, quero casa de dois pisos. E com jardim todo cheio de flores. Sempre. Queria casa grande, com variados quartos, assim o amor não cairia na monotonia de união morna matrimonial. Era o que a Madrinha aconselhava. Casa de dois pisos, sim. Ia pedindo a Vera, ainda moçoila, conhecedora apenas dos bufos e dos suores do velho Coronel. Hálito de palheiro. Boca de dentes falhados, muito abertos entre si. Um de ouro, que ostentava o poder do velho, cuja família era sabedora das noites a resfolegar nos braços e amassos da mocinha Vera, filha do capataz, que entrara na casa grande no auxílio da velha Olália, que das vistas não andava muito boa não. Erro fatal da Sinhá, comentava a Olália, entre um descasque e outro de batatas e cenouras. Acolheu a filhote de caninana bem no dentro da sua própria casa. A cobrinha toda sorrateira foi se enfiando na cama da Sinhá e no por debaixo do marido foi se fazendo mulher. Cobra. Das mais traiçoeiras. Voz mansinha de pedição. Arranca tudo, se quiser. E calava, a Olália, temendo a Sinhá ser ouvidos. Porém, assim que via a menina, nova reprovação e alerta fazia, mais para si mesma do que para algum outro ouvinte qualquer. Mulher de fofocas não era a tal da Olália: Mas e posso deixar de ver o que vejo? Ah, isso não mesmo. 12

CAIO RITER


Pois, quando o Coronel resolveu construir a casa amarelada, lá para o longe da entrada da cidade, a esposa, mulher também honrada, rezadeira primeira nas missas da capela, ficou aliviada. Menos vergonha. Cansada andava, era certo, da desfaçatez do marido a quem prometera fidelidade entre rendas e flores de laranjeira. O bispo dando a bênção. Assim, menos afronta. E que ele se fosse, sempre que necessitado de mulher. Quanto mais a menina o servisse, menos teria ela que ser desfrute para os suores e bafos do velho. Nunca fora mulher de luxúrias e, se não era reclame do ato pecaminoso em noites pretéritas, era por saber de suas obrigações. E lá ficou a Vera. Na casa de dois pisos, jardineiro pago pelo Coronel no cultivo de variadas flores. Para todo o ano, gritava ela da sacada. A Madrinha bem ao lado. Precisada de uma ama que agora era, levara aquela que tanto bem lhe fizera ao abrir olhos para a casa. Deve ser grande, bem grande. Aí tu não te enjoas nas ausências do Coronel. E não é que a Madrinha tinha mesmo razão. Flores o ano todo eu quero. Repetia para o jardineiro. Té terra preta o Coronel mandara buscar em outras redondezas, já que ali aquele chão cor de sangue pouca vida gerava. Nas noites, gargalhava nos braços do velho e se julgava a rainha que ele dizia ela ser. Só foi perdendo o encanto e se dando conta do tudo, quando sentiu que no dentro de si já vivia um outro ser. Deu-se conta apenas no momento em que a mão, pesada mão, bateu-lhe no rosto e o Coronel berrou que filhos só tinha mesmo VENTO SOBRE TERR A VERMELHA

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