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Ida Alves e Joana Matos Frias

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Sobre os autores

Sobre os autores

APRESENTAÇÃO

/ IDA ALVES / JOANA MATOS FRIAS

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No seu Dicionário das revistas literárias portuguesas do século XX, Daniel Pires expõe que “os periódicos literários são um testemunho elucidativo de uma época, do pulsar do tecido social, das suas contradições” e “constituem, no dizer de Paul Valéry, um laboratório onde se experimentam novas ideias e formas, onde se confrontam as mundividências e se ensaiam outras maneiras de as explicitar” (1986, p. 19). Do lado brasileiro, Maria Lucia de Barros Camargo, com tantos estudos sobre as revistas de poesia brasileiras, também enfatiza o interesse desse estudo para compreender a partilha de experiências literárias, os objetos e objetivos poéticos que se divulgam em suas páginas, a contribuição para a formação de um público leitor, para o confronto criativo e mesmo para a resistência de uma produção poética que se mantém à margem do circuito comercial. As revistas de poesia ora se organizam à volta de um grupo de poetas ora à volta de um projeto singular. Com poucas exceções, duram somente alguns números, mas muitas foram determinantes para transformações estéticas ao longo do tempo. Para mensurar a intervenção dessas revistas e compreender as questões e as práticas poéticas que assumiram, é necessário conhecê-las com paciência, rever seus números, folhear suas páginas e analisar suas vozes mais constantes, as redes de leitura que suscitam. Algumas assumem um perfil acentuadamente crítico, com ensaios ou outros textos de reflexão sobre as muitas faces do poético; outras, só pretendem publicar poemas, traduções, entrevistas com escritores, afirmando o trabalho dos poetas que lhe interessam. Assim, as redes de sociabilidade literária vão também sendo tecidas e diálogos são motivados. Ao longo do século XX, seja no Brasil, seja nos países africanos de língua portuguesa, seja em Portugal, muitas revistas literárias ou de poesia alcançaram maior visibilidade e marcaram seu contexto de publicação. Algumas duraram

poucos números, outras prolongaram-se no tempo até constituindo séries, mas todas, ao nosso olhar de hoje, contribuíram de alguma forma decisiva para a produção lírica e sua reflexão. Constituem, na verdade, um vasto arquivo cultural. Retomar uma revista de poesia e analisá-la é acionar um contexto de produção e reencontrar poetas e suas obras, projetos, polêmicas, diálogos ou rejeições. Testemunham a poesia que vai sendo criada e suas ramificações. Tornam-se também, aos olhos futuros, documentos de um tempo literário, questionamentos de tradições e rupturas. Com esse horizonte de interesse, pensamos a realização deste livro. Não se trata de um novo dicionário ou catálogo, não é uma exaustiva pesquisa de revistas de poesia, mas uma reunião possível de estudos sobre determinadas revistas que foram ou são ainda importantes para compreensão da poesia que se escreve em português. São poucos ainda os projetos acadêmicos na área dos estudos de poesia que buscam o diálogo entre os diferentes países de língua portuguesa. Pela própria natureza do nosso trabalho universitário, no campo das literaturas de língua portuguesa e sobre poesia do século XX e XXI, resolvemos provocar essa conversa entre revistas a partir de ensaios diversos que solicitamos a pesquisadores/investigadores brasileiros, africanos e portugueses que se interessam por esse campo de observação. Solicitamos a cada um sua contribuição sobre alguma revista que considerasse importante conhecer e discutir no âmbito dos estudos sobre poesia moderna e contemporânea de língua portuguesa. Gostaríamos de ter recebido contribuições sobre revistas de todos os países de língua portuguesa, mas a maior resposta ao nosso projeto centrou-se em revistas do Brasil e de Portugal. Para marcar, porém, a importância de que, em outra oportunidade, possamos conhecer mais sobre as revistas africanas de poesia, integramos a contribuição de duas autoras brasileiras que, em coautoria, apresentam-nos uma revista moçambicana de grande interesse. Todos os trabalhos articulam cenas de escrita e de leitura, na invocação de comunidades de leitores ou no diálogo interno entre poetas e entre leituras. Examinam práticas, as materialidades textuais, aproximações e afastamento de vozes poéticas, a partir de escolhas e enunciados críticos. Nosso sumário reúne, assim, estudos sobre revistas brasileiras, portuguesas e uma moçambicana a partir de questões diversas. Não vamos aqui resumir os estudos, que esperam leitores atentos, mas vale destacar quais revistas são abordadas e algumas das questões propostas. A apresentação dos capítulos segue ordenamento temporal a respeito da publicação das revistas examinadas. Mirhiane Mendes de Abreu abre o

conjunto brasileiro, examinando Klaxon e Festa, dois marcos da década de 1920 com seus “discursos fortemente inscritos pelas propostas da vida urbana da época”. Marcia Arruda Franco destaca a figura do modernista Antonio Alcantara Machado e a contribuição da revista Terra Roxa e Outras Terras, “projeto antropofágico latente”, que contou com a participação de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e mesmo Drummond, entre outros poetas do modernismo brasileiro. Valéria Lamego faz a recuperação crítica do editor Vicente do Rego Monteiro, o qual criou e dirigiu a revista Renovação, de 1939 a 1942. Nela colaboraram poetas jovens de então, como João Cabral, Jorge de Lima e Ledo Ivo. Jorge Wolf analisa Joaquim, editada por Dalton Trevisan e Poty Lazzarotto, em Curitiba, de 1946 a 1948. Destaca o questionamento do seu neoparnasianismo e antimodernismo. Solange Fiuza, estudiosa da obra de João Cabral de Melo Neto e de sua correspondência com o escritor português e presencista, Alberto de Serpa, explica o projeto de uma revista antológica que Cabral desejava criar: “De fato, entre os anos 1947 e 1950, Cabral parece ter sido tomado pela ideia fixa de organizar uma revista antológica, como se pode acompanhar em cartas do poeta a amigos”. Descreve essa troca de cartas e as ideias de criação, analisando a noção de antologia como crítica silenciosa, do ponto de vista cabralino. Noigrandes e Invenção, “as duas revistas da vanguarda concretista”, são o foco de Susana Scramim, as quais, sob seu ponto de vista analítico, por sua divulgação e assimilação, discutindo questões de criação poética e teorias da linguagem, “promoveram uma alteração nos programas de ensino dos cursos de Letras com suas interfaces no Brasil da década de 1960 e 70”. Ao final da década de 1990, a revista Inimigo Rumor representa, segundo Marcos Siscar, uma “aventura pioneira da ideia crítica de pluralidade”. Com a duração de 20 números, essa revista também marcou em nossa contemporaneidade um diálogo mais atualizado entre poetas brasileiros e portugueses, cujas implicações ainda podem ser constatadas a respeito de maior presença de alguns poetas portugueses dos anos 1980 e 1990 para o leitor brasileiro de poesia. Claudio Alexandre de Barros Teixeira, o conhecido poeta Claudio Daniel, descreve de perto algumas revistas mais recentes em que participou ou mesmo editou/edita. Seu ensaio testemunha a formação de algumas, seus impasses e a migração para o meio eletrônico. Além de apontar títulos como Coyote, Inimigo Rumor, mira as que estão online como Germina, Musa Rara, Mallamargens, Ruído Manifesto e Sibila. De Curitiba e nos anos 1998/2000, Marcelo Sandmann comenta Medusa, que marcou de forma bem visível sua contribuição para deslocar a cena cultural de São Paulo e Rio de

Janeiro. Paloma Roriz investe na leitura crítica da revista Cacto, lançada em 2002, e a respeito dela discute certa ideia de anacronismo e a aproximação com o trabalho realizado pela Inimigo Rumor. Esse conjunto de revistas brasileiras é fechado com o estudo de Luciana di Leone sobre o que poderia ser considerado uma “não-revista”, uma produção coletiva por mão de mulher que surge em uma newsletter, em 2015. A autora examina esse trabalho de escrita de mulheres “como gesto político e estético”. Da passagem das revistas brasileiras para as portuguesas, uma parada em Moçambique, com a Folha Literária Msaho, de 1952. Com um único número editado com 2 mil exemplares, as autoras Carmen Lucia Tindó Secco e Marinei Almeida demonstram seu “percurso de cariz africano” e como promoveu uma ruptura formal com a literatura colonial. No campo português, iniciamos com um texto-memória assinado por Nuno Júdice, poeta que, em 2022, completa 50 anos de trabalho poético. Aborda a importância da imprensa literária, das revistas e jornais de que participou ou que importaram para sua formação estética, considerando como tais publicações deram e dão o “retrato da vida social e dos temas dominantes em cada época”. A seguir, em estudos específicos, Raquel S. Madanêlo Souza, que, no Brasil, tem se dedicado à análise das revistas portuguesas das primeiras décadas do século XX, retoma Orpheu em diálogo com A Águia. Examina sua importância vanguardista e sobretudo o impacto de publicação de textos de Pessoa e de Mario de Sá-Carneiro, como pensamento gerador do modernismo. “Orpheu permanece, compondo, junto a outras publicações periódicas literárias da época, como Contemporânea, Athena, Portugal futurista e Presença, para citar alguns exemplos, uma espécie de cânone da modernidade portuguesa. A ponto de transformar-se em um marco […].” Outra revista, dirigida por Pessoa e Rui Vaz, de 1924-1924, exerceu papel central para a reflexão do sistema da heteronímia. Trata-se de Athena. Como escreve Pedro Sepúlveda: “Ao longo da segunda metade da década de 1910, o poeta [Pessoa] elabora diversas listas de projetos em que Athena designa uma «revista», «cadernos de cultura superior» ou «cadernos de reconstrução pagã». Estas listas agrupam em torno de Athena a poesia de Caeiro e Reis, assim como ensaios de António Mora sobre o NeoPaganismo ou a posição da Alemanha na Primeira Grande Guerra, surgindo por vezes Mora como o seu diretor”. Ao analisar documentos do espólio pessoano, Sepúlveda analisa o projeto e sua realização nas páginas de Athena, na qual os heterônimos discutem princípios e suas perspectivas de criação. De 1937 a 1940, é publicada a Revista de Portugal, tendo como figura central o poeta,

ensaísta, professor Vitorino Nemésio. Rita Patrício procura demonstrar como essa revista questionou a hegemonia de outra revista e seus valores estéticos, Presença, dirigida por José Régio, de longa duração e grande impacto como folha de arte e crítica. Em seguida, contamos com a colaboração de Clara Rocha, nome incontornável sobre estudo de revistas literárias portuguesas. Impossível não referir sua obra Revistas literárias do século XX em Portugal, publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em 1985. No ensaio aqui incluído, a ensaísta examina Távola Redonda, publicada de 1950 a 1954, considerando-a “um testemunho de poesia no seu tempo”. Também considera a importância de outra revista, Graal, que resgatou a perspectiva da Távola Redonda. Já Mônica Simas, professora brasileira, discute a modernidade nas páginas de Unicórnio e suas metamórficas Bicórnio, Tricórnio, Tetracórnio e Pentacórnio, no período de 1951 a 1956. Mais para o final do século XX, Fernando Cabral Martins aborda a revista Grifo, de 1970, cujas páginas discutem práticas surrealistas, mas “longe do Surrealismo canônico”. Para fechar esse conjunto de estudos de revistas portuguesas, Julio Cattapan, que defendeu sua tese de doutorado no PPG Estudos de Literatura da UFF exatamente sobre uma revista contemporânea bem atual, Cão Celeste, apresenta as questões literárias e éticas que movem seus participantes, a começar pelo seu coeditor, Manuel de Freitas, poeta bastante presente na cena literária atual. Nas páginas dessa revista, o leitor pode seguir a discussão sobre o lugar da poesia no tempo presente, tão excessivamente marcado pelo consumismo e pela massificação de informações. Reúnem-se, portanto, ensaístas de diferentes espaços críticos para tratar desse tipo de publicação literária que é, por um lado, frágil e instável e, por outro, atuante e afirmativa para exposição de ideias, vozes e realizações. Por meio das revistas citadas, descritas, analisadas, discutidas, outras são convocadas, mostrando-se a rede de produção de pensamento sobre poesia por quem cria e lê, em contínuo movimento de interpelação e de transformação. Por isso, agradecemos aos Colegas que aceitaram participar deste projeto dialogante e necessário para sedimentar cada vez mais o estudo de fontes e a pesquisa de arquivos literários, o que significa mover memórias e rever avaliações parciais ou insuficientes. Este livro resulta também do trabalho conjunto sobre as relações lusoafro-brasileiras que são desenvolvidos por docentes brasileiros e portugueses de diferentes universidades e seus grupos de pesquisa. Na origem da organização deste volume, o fortalecimento da rede de pesquisa/investigação que une as

organizadoras e seus respectivos Centros de Estudos. Do lado brasileiro, o Programa de Pós-Graduação Estudos de Literatura UFF, o Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana – NEPA/UFF e o Polo de Pesquisas LusoBrasileiras – PPLB, do Real Gabinete Português de Leitura; do lado português, o Instituto de Literatura Comparada Margarida Llosa da Universidade do Porto e o Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa. Interlocução que integra o Projeto PRINT Letras CAPES/UFF, “História, circulação e análise de discursos literários, artísticos e sociais”, que vem sendo desenvolvido desde 2018.

Abril de 2022.

brasil

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