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Nuno Júdice
UMA VIAGEM PESSOAL PELA IMPRENSA LITERÁRIA1
/ NUNO JÚDICE
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Ao olhar para trás, dou-me conta de que tenho um longo período de intervenção em revistas, desde aquelas em que me limitei ao papel de colaborador até outras em que desempenhei funções mais ou menos prolongadas de redactor e, nalguns casos, responsável (a palavra talvez seja excessiva porque, numa revista, essa responsabilidade é sempre partilhada) pela linha editorial. Não vou falar de O Tempo e o Modo (Lisboa, 1963-1984)2 em que entrei, em 1969, para uma actividade em que literatura e política se confundiam, embora tenha sido aí que tive a minha primeira experiência de participação num corpo redactorial; mas poderei referir a Loreto 13, revista da Associação Portuguesa de Escritores, em que participei na sua primeira série de 1978 a 1981 sendo, com Casimiro de Brito, o responsável pela coordenação literária da revista. Foram três anos em que a revista ocupou um espaço importante pela diversidade das colaborações e, numa época ainda marcada por sectarismos que vinham dos anos quentes pós-25 de abril, não discriminou escritores pela sua cor política tendo, como único critério, a qualidade dos textos. A segunda revista em que tive um papel mais activo como director, do número 0 de 1996 até ao número 8 de 1999, foi a Tabacaria, da Casa Fernando Pessoa, publicada quando a Casa foi dirigida por Manuela Júdice. Fi-lo a título gracioso e o convite foi-me dirigido pelo Presidente da Câmara de Lisboa, João Soares, a quem eu sugerira a utilização daquele prédio de Campo de Ourique intimamente ligado a Pessoa para um espaço da poesia, ideia que ele aceitou imediatamente ainda enquanto vereador da Cultura. A revista publicou-se
1 Este capítulo segue a norma ortográfica portuguesa. 2 Revista disponível em edição digital fac-similada em http://ric.slhi.pt/O_Tempo_e_o_Modo/revista.
sob minha direcção de 1996 a 1999 e nela colaboraram os mais importantes poetas desse período, além de ensaístas, não se limitando ao espaço português, contando com uma ampla colaboração internacional e tendo, além disso, em cada número, a presença de artistas plásticos, pintores e fotógrafos, que lhe imprimiram uma marca única de qualidade nesses anos.
Figura 1. O Tempo e o Modo, n. 1, 1963.
Se usei por duas vezes a palavra qualidade, isso não se deve ao acaso, mas ao facto de, no meu longo contacto com as revistas literárias ao longo do século XX, e em particular no período que vai do nosso simbolismo, com a Ave azul (1899-1900)3, até à revista Presença (1927-1940)4, com particular incidência no período do Modernismo e na fase do Futurismo, me ter apercebido de que as revistas não se afi rmam pela negativa, isto é, pelo ataque polémico e pela
3 Revista disponível em edição digital fac-similada em http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/periodicos/ aveazul/aveazul.htm.
4 Revista disponível em edição digital fac-similada em https://digitalis-dsp.uc.pt/bg4/UCBG-RP-1-5-s1_3/
UCBG-RP-1-5-s1_3_item1/index.html.
Figura 2. Ave azul, n. 1, 1899.
Figura 3. Presença, n. 1, 1927.
destruição do que está a ser feito naquele momento, mas antes pela forma como conseguem impor uma linguagem própria, uma estética original, um caminho de invenção e de criação que seja capaz de deixar um sinal na afirmação de cada época. Em todas, ou quase todas as que contam, a colaboração é feita por escritores que imprimiram um sinal de talento, para não falar dos génios que passaram por algumas delas, de Camilo Pessanha e Pascoaes a Sá-Carneiro ou Fernando Pessoa, que marcou a revitalização da cultura em sucessivas décadas do século XX. Claro que não é só pela afirmação, mas também pela negação, que essas gerações literárias se vão sucedendo, e muitas vezes os manifestos e textos programáticos, em particular nos momentos radicais do Futurismo ao Surrealismo, passando pela Dadaísmo, recorrem ao ataque e à rejeição de correntes e escritores que fazem parte do chamado establishment desses períodos. É lamentável, no entanto, que Almada seja mais conhecido pela “Manifesto Anti-Dantas” do que pela “Engomadeira” ou pela “Judite Nome de Guerra”, e ainda hoje não creio que essa situação se tenha alterado. Já Pessoa, bem mais astuto na construção do seu personagem marginal, pouco se envolveu nessa “vida literária”, e os seus textos programáticos, desde os artigos sobre “a nova poesia portuguesa” publicados na Águia em 1912 até aos “Apontamentos para uma estética não aristotélica” de Álvaro de Campos, publicados em 1924-25 na Athena, intitulada “Revista de Arte”, dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz, da qual saíram cinco números entre 1924 e 1925, e que ultrapassam largamente os ataques pontuais e fundamentados de carácter filosófico que ali se encontram. Foi com base nessas minhas experiências, em momentos e contextos bem diferenciados, que aceitei prontamente o convite da Fundação Gulbenkian, feito através de Eduardo Lourenço e de Eduardo Marçal Grilo, para dar continuidade à revista Colóquio-Letras que corria sérios riscos neste ano de 2009 em que iniciei funções como Director. Ao assumir as funções, lembrei-me da repulsa de Jacinto do Prado Coelho, seu primeiro director ao lado de Hernâni Cidade, pela crítica “terrorista”, ou seja, por uma crítica que não ensina a ler e a interpretar uma obra mas a fazê-la explodir através de leituras implosivas. Sabia que essa crítica talibanesca fazia parte da nossa tradição do século XX, tomando como modelo o pouco modelar Luiz Pacheco, e continua a ter alguns representantes, mas obviamente que a pus de lado e tomei como código de conduta os princípios que, no início da Colóquio-Letras, o seu primeiro
Director colocara como princípios orientadores dos artigos e recensões que ali se iriam publicar. Julgo que, com raríssimas excepções, mais lapsos do que excepções, essa orientação foi seguida. E se não faz sentido, numa revista como esta, sair desta norma, é porque também penso que qualquer crítica negativa deveria ter o direito de resposta. Numa revista semanal ou mensal ainda se pode admitir essa “polémica à portuguesa”, como é chamada; numa publicação quadrimestral, publicar uma resposta quatro meses depois daquilo que a motivou, não fará sentido, até pelo facto de poder haver uma contrarresposta, etc. E tomei como modelo aquele que, para mim, foi um dos grandes críticos do século XX: o meu amigo Eduardo Prado Coelho. Nos seus ensaios e críticas, ele fala dos livros e dos autores de que gosta, apesar de algumas polémicas em que entrou para responder a ataques que lhe foram feitos devido às suas opções estéticas ou políticas, não sendo esse aspecto, porém, o que melhor sobrevive à sua obra, mas sim a forma como fez da crítica uma expressão do seu envolvimento na leitura, no sentido de se deixar seduzir pela obra que analisava. Não será este, hoje, um modo “mediático” de fazer as coisas, numa época em que a agressão, tantas vezes, arbitrária, apenas porque é suposto ser isso que atrai o demónio da popularidade, é a regra. E julgo ter sido esse critério que esteve na base do papel que a revista desempenhou, desde a sua criação em 1972, no mundo das culturas portuguesa e lusófona, onde é praticamente o único veículo de transmissão quer dos temas e autores das suas literaturas quer da informação sobre a edição literária, tratando de livros que, muitas vezes, não têm qualquer eco crítico na imprensa, como é o caso de ensaio especializado, de edições críticas, de autores fora desse universo jornalístico. Mantê-la não é apenas uma rotina, pelo contrário, é ir ao encontro daquilo que sucede no nosso mundo literário, quer através de números dedicados a escritores de quem se celebram efemérides que importa lembrar, quer também de autores vivos e de temas que são objecto de estudo. Também este equilíbrio entre aquilo que se apresenta em cada revista está na base da reflexão que conduz à sua preparação. Importaria aqui referir dois outros aspectos que distinguem a ColóquioLetras, desde o tempo em que Luís Amaro imprimiu um rigor de estilo e de seriedade editorial no plano de total verificação de fontes e de bibliografia, muitas vezes objecto de lapsos ou incorrecções pontuais. Também esta é uma preocupação constante nos revisores que lhe sucederam, de que destaco Luís
Miguel Gaspar, que tem um cuidado minucioso nessa verificação. Assim, a publicação que chega às mãos do leitor é o resultado de um longo trabalho que faz da revista um objecto fidedigno e, em muitos dos seus números, de referência nos nossos estudos literários. Usei a palavra estilo, tão desacreditada em determinado momento da vida universitária: aqui, isto significa não levar a revista para um plano demasiado hermético e rebuscado na linguagem e na exposição, o que implica que, muitas vezes, o autor participa neste trabalho de revisão que tem como objectivo fazer com que os textos possam ser lidos “fluentemente” mesmo por leitores pouco familiarizados com os conceitos e as teorias de dado período, muitas vezes de efémera duração. Ao longo desse tempo, como não pode deixar de ser, apercebi-me da diferença entre o que fica e o que passa. Temos, em primeiro lugar, o ensaio e a crítica, que constituem trabalhos que vão acompanhando o curso do conhecimento sobre a literatura e que podem sobreviver como testemunho do avanço (ou recuo) da forma como ela é vista, apreciada ou rejeitada pelos contemporâneos. Um exemplo é o título do artigo de Eduardo Lourenço sobre a Presença, “Presença ou a contra-revolução do Modernismo”, que começa por ser uma afirmação na primeira publicação, em 12/1/1960, no suplemento “Cultura e Arte” do Comércio do Porto, e que é mudado para “Presença ou a contra-revolução do Modernismo português?” quando integra o livro Tempo e poesia, publicado em 1974 na Editorial Inova, na sua forma integral, sem os cortes, provavelmente da Censura, na sua primeira edição. O ponto de interrogação no título do ensaio revisto em 1974, transforma obviamente o que seria uma “condenação” da Presença como retrocesso estético num questionamento daquilo que o próprio autor tão definitivamente defendera uns anos antes, e que o tempo acaba por corrigir na sua nova leitura. A questão que posso hoje colocar em relação a todos os textos que fui publicando ao longo de várias décadas em revistas e jornais é a de quais os que podem sobreviver à circunstância da sua motivação. Pondo de parte as recensões e estudos de carácter literário, aqueles que poderão entrar sob a categoria de um género criativo são as crónicas. Muitos escritores se dedicaram a elas, sobretudo aqueles que conciliaram jornalismo e literatura, e foram e são muitos os que na crónica encontraram uma forma de expressão de grande valor literário. O facto de muitos jornais as acolherem significa que há um público para elas, e constituem por vezes o melhor retrato da vida social e dos temas dominantes em cada época desde que, no século XIX, com o advento
e triunfo da imprensa democrática, ganharam um estatuto popular. E será o género cronístico uma das razões que poderá ajudar ao futuro da imprensa escrita, com um prestígio que acabou por encontrar um prolongamento na internet através dos blogues que, nos melhores (mas também nos piores) casos, acabam por ter edição impressa.