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Carmen Lucia Tindó Secco e Marinei Almeida
FOLHA LITERÁRIA MSAHO: POESIA E VANGUARDA EM MOÇAMBIQUE
/ CARMEN LUCIA TINDÓ SECCO / MARINEI ALMEIDA
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Notas iniciais
Virgílio de Lemos, poeta de vários eus, teve uma atuação estética e política que rompeu com parâmetros e cânones coloniais vigentes em Moçambique nos anos 1950-1952. Para abordar a importância dele e de seu papel de intervenção na imprensa e literatura moçambicanas, redigimos um texto a duas mãos, dividindo nosso ensaio em quatro partes: O papel da folha literária Msaho no quadro da literatura colonial; Virgílio de Lemos e a criação de Msaho; Msaho e os diálogos com movimentos artísticos externos; Virgílio de Lemos, um poeta do Índico. As duas primeiras partes são de autoria de Marinei Almeida (Unemat), e as duas últimas, de Carmen Lucia Tindó Secco (UFRJ).
“Quem tem sede? Quem tem fome? Quem tem desejos ardentes?
Venham todos bater à minha porta” (Cordeiro de Brito)
Nas décadas de 1940 e 1950, houve a emergência, por parte de grupos de intelectuais, de pensar o destino de Moçambique (além da independência
política, a independência cultural). E a imprensa, nesse momento, representou um veículo bastante importante, para não dizer essencial, no aparecimento e na aglutinação de personagens que uniram forças para a exposição de pensamentos e proposições. Ato que acabou por dar um novo rumo não somente à produção literária moçambicana, mas também à empreitada de resistência ao colonialismo. Sentimento que “transita para as formas literárias, assumindo contornos ideológicos, que projectam a rejeição do caráter colonial do contacto com Portugal”, na opinião de Fátima Mendonça (2011, p. 63). Páginas de jornais, revistas e folhas literárias serviram de terreno fértil para o surgimento de uma literatura moçambicana que romperia “com o romantismo português” e começaria “a pensar África e (principalmente) Moçambique” por um viés crítico, relacionado “a questões do colonialismo”, conforme afirmam Tania Macêdo e Vera Maquea (2007, p. 32). Sobre a importância da imprensa em Moçambique, Francisco Noa (1996) observa que:
Cumprindo um papel particularmente decisivo no acompanhamento, por um lado, dos grandes cometimentos políticos e sociais e na divulgação, por outro, das fecundas realizações culturais, científicas dos sécs. XVIII e XIX no Ocidente, a Imprensa, que entretanto assenta arraiais em Moçambique por volta de 1854, torna-se gradualmente no centro ao mesmo tempo aglutinador e difusor das produções de espírito. (NOA, 1996, p. 237).
Se no Ocidente foi importante a chegada do romance e do jornal, no século XVIII, como forma de criação imaginária que, mais tarde, ofereceu meios técnicos para representar o espaço que corresponderia à nação “imaginada”, conforme defende Anderson (2008, p. 55), também em Moçambique o aparecimento de uma imprensa, logo, de uma literatura de cunho próprio, por meio dos periódicos literários, também foi importante para fomentar (e/ou produzir) uma ideia coletiva de nação. Nesse sentido, Bhabha (1999, p. 48) nos lembra que é “a partir das tradições do pensamento político e da linguagem literária que a nação surge”. O desejo de criação de um espaço literário e cultural próprio pensado por intelectuais em Moçambique caminha em simultâneo com o desejo de independência política da então colônia portuguesa, como já afirmamos, e, portanto, a veiculação de uma imprensa moçambicana, no final do século XIX1
1 A primeira edição do Boletim oficial, em 1854, é o despontar da imprensa em Moçambique. Em se tratando de “páginas literárias”, Nataniel Ngomane (1996, p. 231) dá notícia de que, no último quartel do século XIX
e início do século XX, teve um importante papel na criação de um ambiente capaz de não só refletir, mas propor novos delineamentos estéticos e uma tomada de posição política contra a máquina opressora colonial. “Também foi relevante o desempenho da imprensa na construção do nacionalismo em Moçambique no período pré-independência, uma vez que esta funcionou como o grupo de pressão mais atuante no período” (NOA, 2008, p. 36). Dessa maneira, foi importante o surgimento do Itinerário: publicação mensal de letras, arte, ciência e crítica, em 1941. Segundo opinião de Francisco Noa (1996, p. 238), esse periódico, que circulou até 1955, deve “ser visto como suporte de um certo vanguardismo estético, ideológico e cultural em Moçambique”, sobretudo porque foi nele que se projetou uma das figuras “mais prolixas” do cenário literário e cultural de Moçambique – colônia portuguesa: o poeta Rui Knopfli. É emblemático observar que, antes mesmo de o último número do Itinerário vir a lume, no desejo e urgência de um espaço literário próprio (MENDONÇA, 2011, p. 64), movida por um espírito contestador e político de um pós-guerra mundial,2 surgiu, também em Lourenço Marques, em 25 de outubro de 1952, Msaho – folha de poesia em fascículos, seguindo um percurso “de cariz africano”, ou melhor, “de imprensa produzida por africanos” (CAPELA, 1996, p. 13). Esse percurso já havia sido iniciado pelos jornais O africano, em 1908, e O brado africano, em 1918, pelos irmãos João e José Albasini, cujo gesto marcou o “precoce aparecimento de uma imprensa em que pontificam, como sujeito e como objetos, os africanos”, ainda segundo opinião de José Capela (1996, p. 13). O africano foi o primeiro jornal a trazer em suas páginas uma língua local, o ronga, e ser “dedicado à vida e condição da população indígena” (CHABAL, 1994, p. 41). Assim, o espaço da imprensa literária em Moçambique, nas décadas que antecedem a luta pela independência, foi grafado com produções assinadas por nomes como o de Noémia de Sousa, Rui Knopfli, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Orlando Mendes, Virgílio de Lemos (entre outros). De um ponto de vista global, para Noa (1996, p. 239), nesses escritores refletiu-se “uma preocupação cada vez mais indisfarçável de manter viva a chama de
(1881-1887), houve o aparecimento da primeira delas em Moçambique: a Revista africana. 2 Segundo observa Francisco Noa, Moçambique não ficou indiferente ao resultado impactante da II Guerra
Mundial; tal evento, em sua opinião, “constitui uma das etapas mais marcantes para a mundialização do planeta e que colocaria a intelectualidade nascente em Moçambique em diapasão com o movimento espiritual da época” (1996, p. 238).
uma literatura personalizada e marcada pela singularidade de um contexto africano”. As páginas literárias, nesse momento, se colocaram como “campo de batalha onde se ensaiam soluções, se definem alianças, se trocam experiências, se buscam caminhos”, segundo opinião de José Luís Cabaço (2004, p. 64). Com a sobrevivência de um único número, Msaho foi lançada por um grupo de jovens. Virgílio de Lemos figura como um dos principais idealizadores dessa folha de poesia em fascículo, que teve como diretora Maria Eugénia de Paulo. Além de publicar poemas no periódico (sob o heterônimo de Duarte Galvão), Virgílio de Lemos atuou também como editor, juntamente com Domingos de Azevedo e Reinaldo Ferreira. Antero Machado foi o diretor artístico, e Eugénio de Lemos, o secretário. Nessa edição colaboraram, ainda, Noémia de Sousa, Rui Guerra, Alberto Lacerda, Santos Abranches, Reinaldo Ferreira e Cordeiro de Brito. Msaho foi impressa em papel amarelo com letras negras. Suas ilustrações foram feitas por Antero Machado e João Ayres. Foram vendidos 2 mil exemplares na sua primeira e única edição. Censurado, o periódico não pôde mais circular, apesar de contar com vários números já prontos ou planejados. Como afirmou Virgílio em entrevista a Carmen Tindó Secco (1999, p. 19-20), “Msaho seria, como seu nome indica, movimento, ritmo, canto, dança, poesia, um hino à cultura chopi do sul de Moçambique [...] um hino à negritude”. Denominado por “barroco estético”, Msaho teve a intenção de promover uma ruptura formal com a literatura colonial, pois “buscava a libertação da literatura moçambicana dos moldes coloniais”, por meio de uma “linguagem inovadora, labiríntica, dissonante, rebelde, transgressora”, ainda segundo seu idealizador (idem). A proposta de Msaho é explicitamente declarada também em forma de versos, como se verifica em um dos vários poemas que levam o mesmo nome:
(msaho, ritmo, estética sobretudo ética de um movimento, novas sobrevivências contra o sobreviver, o tédio a concentração dentro e fora do espaço colonial caleidoscópio cultural antropofágico
à maneira dos paulistas modernistas, lúdicos arcos, enfunadas velas na busca d’espaços não visitados do corpo e da alma, incoerência e lucidez vertigem, msaho)
(LEMOS apud LEITE, 2018, p. 212-213)
Virgílio de Lemos e a criação de Msaho
Virgílio de Lemos nasceu na ilha de Ibo, norte de Moçambique, espaço de mestiçagens afro-orientais, que foi habitado por árabes antes da ocupação portuguesa. Cresceu em Lourenço Marques, onde fez seus estudos. Em Joanesburgo, Virgílio de Lemos estudou na Universidade Wits. Na cidade, teve contato com o bas-fond do jazz negro sul-africano e “tomou contato com a discriminação e o apartheid” (LEITE, 2018, p. 212). Considerado um vanguardista e pai da lírica moçambicana, Virgílio de Lemos teve um papel fundamental para o fomento de um espaço literário revolucionário e político, que estava sendo iniciado naquele momento. Moçambique vivia um processo de periferização causado pela dominação colonial (CABAÇO, 2004, p. 63) antes da independência, um contexto em que mais de 90% de seus habitantes eram analfabetos. Portanto, tratava-se de uma colônia imersa em uma segregação cultural não somente no âmbito de uma referência universal, mas sobretudo de referência local, levando em consideração que um dos artifícios de subjugação utilizados pela empreitada colonialista, segundo Fanon (2005), é a desvalorização dos sujeitos e de seu passado histórico. O colonialismo, afirma Fanon,
[...] não se contenta com impor a sua lei ao presente e ao futuro do dominado. O colonialismo não se satisfaz em prender o povo nas suas redes, com esvaziar o cérebro do colonizado de toda forma e de todo conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido e o distorce, desfigura e aniquila. (FANON, 2005, p. 244).
Nesse contexto, o papel do intelectual colonizado, assevera Fanon, será de suma importância na luta contra essa dominação. Sua reivindicação não será “um luxo, mas exigência de um programa coerente” (FANON, 2005, p. 244). “O escritor, uma vez confrontado com o problema da identidade, nunca mais dele se vai livrar. É esse o seu destino e é essa a riqueza da literatura de que é o sujeito e complemento”, na opinião de José Luís Cabaço (2004, p. 69). Dessa maneira, “guetizado na margem moderna da sociedade, o intelectual amadureceu a reflexão sobre sua condição, refinou o estilo, clandestinizou o gesto [e,] em buscas de novos caminhos, o jornalista torna-se escritor”, constata o mesmo autor (2004, p. 64), quando discute competentemente sobre a questão da diferença na literatura moçambicana e aponta a importância do movimento de cultura veiculado pela imprensa literária. É nesse terreno movediço e impreciso do contexto cultural e literário moçambicano que se situa Msaho, e, portanto, é nesse ambiente que Virgílio de Lemos assume o desafio da luta contra anos de segregação cultural. Parafraseando Said (2005, p. 40) diríamos que se trata de uma luta complexa e interessante, porque nesse primeiro momento essa proposição abrangerá “ideias, formas, imagens e representações”. No único número publicado, comparecem estampados às páginas de Msaho 13 poemas, algumas ilustrações e um editorial com o título “apresento”, assinado por Virgílio de Lemos (texto que retomaremos adiante). O conteúdo dos poemas distribuídos em Msaho representará, no âmbito daquela literatura e daquele momento, uma evidente ruptura com a literatura colonial, pelo tom ora contestador, ora metapoético, ora apontando para um “resgate” da tradição oral e, também, para uma esperança, um devir, como lemos nos versos que servem de epígrafe a este texto, retirados do poema “desprezo”, assinado por Cordeiro de Brito. Eles encabeçam a página de Mhaso e são aqui retomados: “Quem tem sede? Quem tem fome? / Quem tem desejos ardentes? // Venham todos bater à minha porta” (1952, p. 8). Assim, também lemos nos versos finais do “Poema da infância distante”, de Noémia de Sousa, estampado nas páginas do periódico: “Um dia, / o sol inundará a vida. / E terá como nova infância raiando para todos...” (1952, p. 5). O poema “Negro”, assinado por Duarte Galvão (um dos heterônimos criados por Virgílio de Lemos), traz uma denúncia em relação à condição humana e ao mesmo tempo tece uma dura crítica à resignação do sujeito negro que sofre:
Dorme a menina Enquanto o escravo vela E enquanto ela sonha Ele espreita a vida No limiar da janela
Como seus irmãos Que cruzam a estrada e arrastam grilhetas ele sente esmagada Suas mãos e sua alma. Como seus irmãos aprendeu a esconder a dor de sua dor. Aprendeu a sofrer E a sorrir sem rancor. (1952, p. 7)
Conferimos em Msaho uma ânsia de propor não apenas novos rumos estéticos e formais, mas também uma poesia que apresente ou represente o conhecimento, a vivência e o sentimento humano, como é o caso dos poemas curtos de Alberto Lacerda, dos quais tomamos como exemplo “sinal”:
Meus versos são símbolos de vivência secreta que eu tenho com as formas múltiplas da vida. Por eles, o Mistério voltará, no antigo véu, entre quem lê e eu.
Criar é uma forma de Conhecer e uma forma de Amar. (1952, p. 1)
Quanto à exposição de elementos da tradição oral de Moçambique, estes podem ser encontrados no “Poema da infância distante”, de Noémia de Sousa (já mencionado anteriormente), cujos versos apresentam um eu que, “drummondianamente”3, se recorda não apenas do dia e do ambiente em que nasceu, mas também dos companheiros que partilharam experiências,
3 Referência ao “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade (1930).
brincadeiras de infância e costumes tradicionais, como o ouvir histórias dos mais velhos:
Ah! Meus companheiros acocorados na roda maravilhada e boquiaberta do Karingana ua Karingana das histórias da cocuana de Maputo, em crepúsculos negros e terríveis de tempestade (o vento uivando no telhado de zinco, o mar ameaçando derrubar as escadas de madeira da varanda e casuarinas gemendo, gemendo, oh! inconsolavelmente gemendo, gemendo, acordando medos estranhos, inexplicáveis nas nossas almas cheias de xitucumulucumbas desdentadas e reis Massingas virados jibóias...) (1952, p. 4)
Há uma heterogeneidade tanto no que se refere a temas como ao modo estético da escrita dos poemas expostos nas páginas de Msaho. De forma geral, esses textos poéticos refletem aquilo que Virgílio de Lemos anunciou em “apresento”, texto que ocupa o lugar de um editorial, cujo papel diante de seu público é o de manifestar os objetivos a que se propõe: “diz[er] a que vem e como pretende ser, preocupando-se ainda, frequentemente, em justificar a sua aparição”, segundo afirma Elza Miné (2000, p. 171). Ao analisar estruturalmente cada parte constitutiva de uma revista (títulos, subtítulos, editoriais, sumários, temas, divisas, epígrafes, aspecto gráfico e outros elementos) e suas respectivas funções, a autora portuguesa Clara Rocha (1985, p. 33) classifica o texto editorial como o terceiro aspecto mais importante, pois este não só funciona como afirmação do programa, mas também traz as características principais do produto. Em se tratando de “apresento”, escrito em poucas e curtas linhas, com um discurso bastante direto, consideramos que esse texto interventivo ocupa um lugar de destaque e seria impossível relegá-lo a algum “terceiro” lugar na esteira de importância do conjunto dos elementos que compõem Msaho, pois é nele que não somente Virgílio de Lemos, mas todo o grupo vem se colocar de maneira engajada e audaciosa em um meio que reprimia a artística autêntica, um meio mergulhado num sistema de segregação e proibições decorrentes da censura colonial à imprensa, principalmente. Leva-se em consideração que Portugal, diferentemente da França ou Inglaterra, aplicava “uma ditadura
repressiva com pouca hipótese de expressão livre e uma sistemática censura”, afirma Patrick Chabal (1994, p. 31). Assim, em consequência de uma política colonial que negava inteiramente a noção de liberdade, continua Chabal, é que surge nos períodos de 1940 e 1950 uma literatura de resistência e de protesto (1994, p. 33). E é esse tom rebelde e transgressor que Virgílio dá ao texto “apresento”. Já no início do editorial, Virgílio de Lemos se coloca como um autor consciente de seu tempo e também reconhecedor de que aquela ação já havia sido iniciada, mesmo que timidamente (lembremos aqui o aparecimento de O africano e O brado africano), e localiza Msaho na esteira de outras ações que comungavam de um objetivo comum (ou parecido), sobretudo o de unir forças na gestação de um espaço próprio: “contra todas as previsões e contra toda a expectativa temos neste momento a consciência de que a poética de ‘Msaho’ não constitui uma corrente distinta e diferenciada com raízes vincadamente moçambicanas [...]” (1952, p. 2). Em seguida, ao apresentar os colaboradores das páginas de Msaho, Virgílio chama atenção para a heterogeneidade do grupo, valorizando a diversidade de tendências existentes: “[...] cada um dos poetas apresentados, possuindo características próprias, uns mais espontâneos outros mais artificiais, uns dominados ainda pela essência que glorificou os de ‘presença’, outros influenciados por escolas do após guerra [...]” (1952, p. 2). Em uma primeira impressão, tal apresentação do grupo de poetas pode nos possibilitar uma visão negativa da caracterização dos que formavam Msaho, já que o autor do texto editorial apontava para grandes diferenças entre eles, como certa artificialidade em uns, espontaneidade em outros e, sobretudo, em alguns influência presente de “escolas” literárias propostas pelo país colonizador, como era o caso da “Revista Presença, fundada em 1927, em Coimbra, por um grupo de poetas bastante expressivo, formado por José Régio, João Gaspar Simões, Branquinho da Fonseca, entre outros, que marcou positivamente a segunda fase modernista da literatura portuguesa e também levou adiante a herança deixada pelo grupo anterior, Orpheu, que se pautou, principalmente, por propalar uma literatura mais intimista” (ISQUIERDO, 2014, p. 1). Como referimos, se em uma primeira impressão a apresentação do grupo de poetas nos possibilita uma leitura negativa em relação à formação heterogênea dos que constituíam Msaho, reforçada no mesmo editorial, quando Virgílio afirma que naquela primeira edição comparece um “desencontro estético, formal ou expressivo”, diríamos também que naquele momento de
“recrutação” seria normal haver no grupo essas diversificações de qualidade, já que se tratava de um esforço enorme de congregar intelectuais, artistas e pensadores em uma colônia portuguesa, em que a grande maioria da população era analfabeta, como já apontamos. A esse respeito pensamos que nunca é demais voltarmos a lembrar o contexto em que foi formado o grupo de Msaho, ao qual Virgílio de Lemos se refere e do qual fazia parte. Como observa José Luís Cabaço:
A história recente de Moçambique, antes da independência, evidencia como as formas de expressão cultural pré-industriais foram irremediavelmente segregadas. Aquilo que o sistema português considerava “cultura”, sempre sob a austera vigilância da censura oficial, cingia-se à produção artística, literária e científica de matriz ocidental, levada a cabo na sociedade urbana. O espaço criativo, limitado pelos gostos de um público em que a cultura do ocupante era hegemônica, desempenhava, entre outras, a função de aproveitar os talentos e aptidões para afirmar a supremacia da cultura do colono junto das minorias africanas alfabetizadas e, deste modo, reforçar a política de assimilação. (CABAÇO, 2004, p. 63).
Nesse meio de segregação e negação, não restava outra atitude, por parte de um poeta como Virgílio de Lemos, a não ser a de uma ação de confrontação política e ao mesmo tempo criativa na proposição de contranarrativas coloniais. E a poesia, opção do grupo de Msaho, se encarregará de ocupar não só o espaço que abrigará essas contranarrativas coloniais, mas o espaço dos “modos de fazer mundos” possíveis (NOA, 2006, p. 265). Assim, em uma análise mais próxima tanto do texto “apresento” quanto dos poemas que constituem essa primeira folha de Msaho, constatamos exatamente aquilo que foi anunciado por Virgílio de Lemos e discutido ao longo de nossa reflexão. Então, indagamos: o que haverá de comum nesse grupo e que foi suficiente para marcar a presença dessa única edição na gestação de uma literatura própria e também na exposição de um discurso político contra o colonialismo? A resposta nos é dada pela voz de Virgílio de Lemos, nas próprias linhas do texto “apresento”, quando afirma que tanto os idealizadores quanto os poetas estavam “[...] dispostos a roubar ao dinâmico da vida presente um ritmo novo para sua poética, apenas um traço de ligação os amarra – a descoberta das incógnitas que constituem a verdade de que a vida é força de efeito permanente” (1952, p. 2).
Perguntamos ainda: então, qual era o projeto de continuidade de Msaho? Quais eram os propósitos para o futuro e como o grupo planejava atuar? A resposta para essas perguntas também estava explícita no texto de Virgílio de Lemos: “[...] numa segunda ou terceira folha poderá tornar-se homogénio4 e vir a definir uma força resultante do contacto com os elementos nativos que hoje ainda formam uma massa disforme, dependente e incolor” (1952, p. 2). Portanto, sob um discurso consciente das condições e dificuldades de seu momento, Virgílio de Lemos, por meio do texto que apresentou a folha de poesia Msaho, lançou um olhar utópico para o futuro das letras em Moçambique. O autor, portanto, terá não somente uma atuação de poeta vanguardista, mas também, como cidadão de um espaço cindindo, terá uma posição política e consciente em relação ao que era preciso fazer, pois, se para o “caminhante não há caminho, se faz caminho ao andar”5 (MACHADO, 1973, p. 158) – como aconselha o poeta Antonio Machado.
Msaho e os diálogos com movimentos artísticos externos
Msaho, contemporânea da revista Negritude, de Aimé Césaire, procurou enaltecer as culturas locais moçambicanas, criando uma poética que transgrediu os modelos literários impostos pela colonização. A grande novidade de Msaho era seu caráter plural, incorporando também propostas poéticas diversificadas: a poesia da Negritude, o lirismo de cariz existencial, a poesia surrealista, poemas dadaístas.
Msaho seria a grande ruptura, fundando, com avidez devoradora, uma antropofagia cultural, à maneira dos modernistas de São Paulo, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e também outros poetas das vanguardas europeias, da América Latina, da África, da Rússia, da Ásia, da China, do Japão, do mundo [...] Era preciso começar a valorizar os chopis, sempre criticados e vilipendiados pelos shanganes, os quais também não poupavam os rongas. Tínhamos de afastar o poder colonialista. Em suma, Msaho era um hino à Negritude. (LEMOS, 1999, p. 151).
4 Reproduzimos a grafia do original. 5 Poema XXIX de Proverbios y cantares: tradução nossa.
Virgílio de Lemos foi um poeta estilhaçado, que se repartiu em vários eus líricos: Duarte Galvão, Lee-Li Yang, Bruno dos Reis, Virgílio de Lemos ele mesmo e outros. Tal fragmentação, além de refletir o “descentramento do sujeito” e, por vezes, certos aspectos biográficos do próprio Virgílio, funcionava, também, como uma forma de escapar à censura e, mais que isso, abrir Moçambique ao mundo, trazendo-lhe ecos do Surrealismo, do Modernismo brasileiro de 1922, da Negritude, entre outras correntes literárias surgidas nas primeiras décadas do século XX. Eduardo Lourenço apontou Virgílio de Lemos como um dos poetas incontornáveis da literatura moçambicana, ao lado de José Craveirinha e Rui Knopfli.6 Conhecedor das propostas de Orpheu7, das vanguardas europeias, do movimento Pau-Brasil, Virgílio foi um dos introdutores da modernidade poética em Moçambique. Em uma entrevista, deixa clara sua proposta literária:
[...] eu percebia que era necessária uma outra respiração, uma ativa intertextualidade com as vanguardas europeia, brasileira: o diálogo com o dadaísmo, com o Surrealismo, com o Futurismo, com o movimento Pau-Brasil, com diferentes correntes da Negritude. Orpheu8 propunha o mergulho abissal na própria poesia e uma antropofagia cultural, capaz de libertar a literatura moçambicana dos parâmetros coloniais que a cercavam. (LEMOS, 1999, p. 149).
Virgílio de Lemos foi um dos grandes defensores da criação de uma autêntica poiesis moçambicana, antropofágica e descentrada em relação ao fazer literário veiculado pelos cânones coloniais. Propunha uma poesia rebelde, cujas imagens, ritmo e vocabulário revelassem os múltiplos sabores culturais presentes no tecido social moçambicano. A poesia de Virgílio nunca se circunscreveu apenas às cores locais, bebendo sempre de uma amplidão que a fazia dialogar intertextualmente com obras de poetas e intelectuais das vanguardas europeia e brasileira, da América Latina e do movimento da Negritude.
6 Comentário de Américo Nunes, no prefácio ao livro A dimensão do desejo, de Virgílio de Lemos. (Cf.
LEMOS, 2012, p. XV). 7 Virgílio de Lemos chamou de Orpheu o primeiro ciclo de sua poesia, uma alusão, talvez, à importância de “Orpheu Negro” – prefácio redigido por Sartre à Antologia da poesia negra e malgache, de Senghor. 8 Aqui, Virgílio de Lemos se refere a Orpheu, o primeiro ciclo de sua poesia.
Em entrevista a Michel Laban, Virgílio comenta sua ligação ao movimento da Negritude, quando, ainda em Moçambique, publicava no jornal O brado africano e em Msaho ao lado de Noémia de Sousa, entre outros, e, depois, em Paris, quando frequentava a Présence Africaine:
Na Présence Africaine, encontrava-me com Césaire, o Diop, Léon Damas... Aimé Césaire convidou-me a preparar o número “Nouvelle somme de poésie du monde noir” (n. 57, 1966). Coube-me a responsabilidade de toda a África lusófona.
Em Berlim, no Festival Internacional de Poesia(outubro de 1964), contactei ainda de mais perto com ele. [...] Ligado à Negritude, Aimé Césaire disseme: “Virgílio, é preciso uma África que liberte o homem negro. E não uma África estereotipada por modelos de desenvolvimento que transformam o homem em objecto: coletivismo e campos de prisioneiros”. (apud LABAN, 1998, v. I, p. 357).
Embora a poesia de Virgílio de Lemos não se alinhasse, em geral, a poéticas militantes que, expressamente, se vinculassem a causas sociais e a composições de cariz panfletário, alguns poemas seus, de seu heterônimo guerrilheiro, Duarte Galvão, denunciaram, criticamente, a exploração do trabalho escravo, a vida submissa dos negros em Moçambique e na diáspora:
Negro gigante teu músculo forte está a perder a modelação antiga e bela; no cais medonho as tuas mãos de aço já se habituaram a não ter descanso; [...] (LEMOS, 2009, p. 267)
Virgílio de Lemos afirma ter sido Duarte Galvão um poeta adepto da Negritude, conhecedor das poéticas de Léopold Senghor e Aimé Cesaire, tanto que se manifesta em prol da libertação do homem negro, em diversos poemas seus: “Negro” (1952), em que critica a escravidão, “Mãe negra” (1960), “Essa negra Tembê” (em intertextualidade com “Essa nega Fulô”, de Jorge de Lima), “Paisagem” (1960, em que o “negro gigante é explorado e definha nas minas do Rand), “Native Song n. 1” (1960, em intertextualidade com Noémia):
[...] Aqui os sonhos cresceram Porque os poemas verticais foram lidos, não se perderam. Noémia escreveu poemas vigorosos que religiosamente se leram. Anseios de sonhar com outro luar. com Mary Anderson e Nova Orleans, [...] (LEMOS, 2009, p. 270 -271)
De 1944 a 1952, Virgílio de Lemos conviveu, em Moçambique, com Noémia de Sousa, José Craveirinha e outros, pronunciando-se, também, como esses poetas, a favor dos movimentos do Renascimento Negro e da Negritude. Conhecia o Movimento Negro dos Estados Unidos, conforme declara em entrevista: “O Movimento Negro dos Estados Unidos aparece sobretudo através do jazz, o negro americano e tudo o que nós sabíamos da revolta negra. Muitos filmes sobre o que se passava nos Estados Unidos [...]” (LABAN, 1998. v. I, p. 416). Virgílio, conscientemente, incorporou em diversos poemas referências ao blues e ao jazz dos negros americanos, dando, assim, espaço a vozes representativas de músicas e ritmos africanos, como, por exemplo, as cantoras Mary Anderson, citada no poema anterior, e Billy Holiday, referida a seguir:
[...] Um blues is bom Nasceu um blues (lâmina de cobre) Um puzzle uma estrela Voz submersa Adolescente Que vem d’alma Billy Holiday De pés descalços Desolada chora [...] (LEMOS, 2009, p. 137)
O sujeito poético grita contra a fome dos marginalizados, dos negros em diáspora pelo mundo e dos que habitavam, nos anos do colonialismo, os bairros periféricos da capital moçambicana Lourenço Marques. Ao se referir ao blues, a poética virgiliana faz alusão aos negros do Harlem, do Caribe, colocando sua poética em consonância com os irmãos do Renascimento Negro e do Haiti:
[...] Cantemos com os poetas do Haiti Uma canção amarga que se não perca Cantemos em uníssono, porque lá ou aqui Os segredos são iguais, fundos de angústia, E os poemas verticais, também de desespero. (LEMOS, 2009, p. 266)
Virgílio de Lemos, entretanto, não se limitou apenas à Negritude. Tendo assumido uma atitude intelectual cosmopolita, foi um poeta do mundo, um poeta em constante errância, um “intelectual em trânsito”9. Trouxe para seus versos rica intertextualidade: com poetas moçambicanos; com poetas cabo-verdianos de Claridade; com poetas angolanos do movimento Vamos Descobrir Angola; com Camões, Antero de Quental, Fernando Pessoa, Herberto Helder; com Mallarmé, Valéry, Paul Eluard, Césaire, Rimbaud, Breton, Tzara, Withmann etc; com poetas brasileiros, entre os quais Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Jorge de Lima. No poema de 1951 “Insólito, um espanto espantado de si mesmo”, dedicado a Breton, a Pessoa, a Cabral e a sua mãe Ilda, Virgílio (assinando como Duarte Galvão) faz clara referência ao Surrealismo, ao Dadaísmo, à Antropofagia de Oswald de Andrade:
Quando eu nasci a vinte e nove, espanto meu Breton inquiria sobre o Amor no mundo. [...] Quando eu nasci em vinte e nove, grito de revolta a meio do mar, eu vela eu balão iboisado saudei o mundo
9 Termo empregado por Luciana Brandão Leal em artigo publicado (2013) e em sua tese de Doutorado (2018), ambos citados em nossas referências.
o dadaísmo Kafka Dostoiévski Tchekov Camões e Eça, Assis, Graciliano [e Pau-Brasil de Andrade. [...] Quando eu nasci surpresa rebentei a Bolsa a minha mãe olhos azuis e loura que tangava e sabia nadar e o craque fez valsar Chicago Londres Frankfurt [...] (LEMOS,1999, p. 24-25)
Virgílio de Lemos em várias entrevistas declara ter abraçado a estética surrealista, pois esta encontrava-se em sintonia com a subversão da lógica imposta pelo colonialismo. O Surrealismo, dando vazão ao inconsciente, liberta a linguagem estética e dá passagem aos sonhos e ao que está reprimido. Segundo Virgílio, em consonância com o manifesto de Breton, com as ideias de Jean Arp e Michel Leiris, a “liberação do inconsciente, a escrita automática fundavam um discurso poético que rompia com o império da razão” (LEMOS, 1999, p. 150). Além do Surrealismo, há na poética virgiliana o intercâmbio com outras vanguardas europeias e latino-americanas. A estética cubista, por exemplo, pode ser percebida em diversas de suas composições concretistas, em que a plasticidade das palavras constrói imagens visuais nos poemas:
sutrART
seu kama sutra sua kama sutra sua kama d’açúcar [...] amakART camART sutrART
(LEMOS, 2009, p. 328)
O processo criador de Virgílio de Lemos se inspira também nos brasileiros Oswald de Andrade e Mário de Andrade, propondo uma antropofagia cultural capaz de insurreição em relação aos parâmetros coloniais: uma “antropofagia
delirante” que efetue a sublevação na (da) língua do colonizador, inserindo nesta ritmos vertiginosos. Veja-se este poema assinado por Duarte Galvão:
Mas qual o poeta que não tem incestuosa, uma relação com a língua qual a língua que não devora o poeta? [...] (LEMOS, 2009, p. 67-68)
Subvertendo e estilhaçando as palavras, as sílabas destas, o sujeito poético cria novas combinações, explorando, a partir dos semas “kama sutra” e “Art”, sentidos eróticos da poesia. A sensação de simultaneidade, conseguida por meio dos jogos realizados com as decomposições e recomposições vocabulares e fonológicas, passa a ideia da arte cubista, plural e multifacetada. Exacerbando a proposta inovadora e rebelde de Msaho, Virgílio recorre a Tzara e ao manifesto Dadá. É Duarte Galvão, o heterônimo por excelência subversor, que abraça essa estética de inspiração dadaísta, cujo discurso se caracteriza por imagens caóticas e pela desordem do pensamento.
Msaho DADA msaho quimoéne – makwa swahili msaho da poesia chopi DADA alternativa TZARA [...] (LEMOS, 1999, p. 30-31)
Em trânsito permanente, os sujeitos poéticos virgilianos vão dialogando com poetas de todo o mundo. Desenraizado e cosmopolita, o eu lírico se estilhaça em vários eus, buscando, incessantemente, em cada eu, uma pluralidade identitária. Aproxima-se de Fernando Pessoa pelo gosto e pelo uso da heteronímia. Contudo, o processo heteronímico nos dois poetas é bem diferente. Virgílio de Lemos, em diversas entrevistas, se declarou um poeta “sem pátria”. Esta, para ele, era “uma folha de papel em branco”. Não afirmou, como Bernardo Soares – heterônimo de Pessoa –, que “sua pátria era a língua
portuguesa”. Talvez porque o francês já fosse uma língua também sua, tanto que tinha livros editados nesse idioma, no qual encontrara asilo e afeto quando deixara Moçambique. Mas o português, sua língua materna, era patrimônio seu, constituindo-se como matéria vertente de grande parte de sua poesia. Entre 1954 e 1963, Virgílio participou da resistência moçambicana, tendo colaborado em Brado africano, Tribuna, Agora, Itinerário, Notícias e A voz de Moçambique, um jornal de esquerda da época, pertencente à Associação dos Naturais de Moçambique. Datam desse período os poemas do ciclo do “Tempo agreste”, assinados por Duarte Galvão, um dos seus heterônimos, aquele cuja face mais se mostrou preocupada com as questões sociais, com os preconceitos étnicos, com a miséria e com as injustiças. Em 1960, esses poemas foram publicados numa antologia intitulada Poemas do tempo presente, obra apreendida pela Pide, órgão de censura do regime ditatorial português. Entre 1961 e 1962, Virgílio de Lemos ficou 14 meses preso, acusado de subversão que visaria à independência de Moçambique. Julgado por tribunal militar, ao ser libertado resolveu, em finais de 1963, devido ao irrespirável clima de repressão política, deixar o território moçambicano, indo viver em Paris, exercendo a profissão de jornalista, embora nunca tenha deixado o ofício da poesia. Passando a residir na França, Virgílio se tornou um poeta bilíngue; no entanto, sua paixão pela língua portuguesa nunca desapareceu, sendo, inclusive, um dos temas recorrentes de sua poesia, cujo erotismo se vale de um “cio marítimo” para expressar a sedução pelo mar, pelo verbo criador e pelo idioma português que Camões divulgou e muito contribuiu para renovar. As composições líricas de Virgílio (o ortônimo) se eletrizam pelo erotismo de algumas poucas palavras africanas infiltradas no idioma trazido pelo colonizador. Na relação entre poesia, navegação, liberdade criadora, há uma embriaguez dionisíaca dos sentidos que leva o leitor a poder experimentar o prazer estético. Por intermédio de construções, ritmos e musicalidades dissonantes, o inovador lirismo virgiliano conseguiu instalar a rebelião dentro da própria poesia, contribuindo para libertar a literatura moçambicana do assimilacionismo, adotado como uma das estratégias políticas da dominação colonial portuguesa. Erotizando a língua, a palavra poética, a poesia de Virgílio transgride os moldes coloniais, fundando o moderno lirismo moçambicano. Desconstrói, desse modo, paradigmas impostos, relendo moçambicanamente alguns emblemas literários lusitanos, como o do episódio da “ilha dos amores” cantado em Os lusíadas. Mergulhando nos profundos mares de seu inconsciente, o sujeito lírico elege outra ilha como a de seus
amores: a de Ibo, paixão primeva, berço-matriz, onde nasceu, aprendeu a silabar os primeiros sons em português e, depois, ouviu também palavras em swahili e em macua, devido ao plurilinguismo ali existente.
Nos teus bicos, teus lábios teus brincos se insularizam meus dedos, meus gritos [...] E na estatuária swahili de teu cio de ouro, súbita e singular és tu e não outra qualquer quem por mim viaja língua de fogos silabares [...] (LEMOS, 1999, p. 70)
Identificada ao mar e à ilha, a língua portuguesa, na obra de Virgílio de Lemos, se converte em moçambicana e, simultaneamente, cosmopolita viagem, entregando-se, sem limites, aos ventos da imaginação.
Virgílio de Lemos: um poeta do Índico, um poeta do mundo
Em quase toda produção poética de Virgílio de Lemos está presente o mar, cujas metafóricas imagens são múltiplas, abrindo-se em vertiginosos movimentos, que se voltam tanto para as oceânicas recordações do Índico natal, como para o azul infinito da imaginação criadora. O mar significa o inconsciente profundo do poeta, seu mergulho abissal em direção às matriciais origens, de onde retira elementos para as construções surreais que povoam seu universo poético. Fonte de erotismo primordial, o oceano desperta, na voz lírica, o permanente cio da linguagem que fecunda, com o sêmen da poesia, o ato da sua criação. Para entendermos melhor a forte presença marítima no imaginário literário do autor, faz-se necessário conhecer um pouco de sua história, saber que Virgílio de Lemos nasceu cercado de oceano, na ilha de Ibo, que faz parte do arquipélago coralino das Quirimbas, localizado na costa norte moçambicana. Filho de pais portugueses, familiares de funcionários da coroa, “ultramarinos” que viajaram no triângulo Lisboa, Rio e Goa, alguns dos quais se fixaram em Moçambique. Virgílio de Lemos carrega, desse modo, além da herança lusitana do sangue, longínquos legados da cultura oriental. Esse legado do
Oriente é ainda bastante vivo na cartografia de Ibo, ilha que foi habitada, antes da chegada dos portugueses, por árabes, e que procurou preservar as tradições mouras, já mescladas às africanas, tendo sido um dos últimos locais de resistência macua e swahili à colonização lusitana. Consciente do esgarçamento da própria identidade, Virgílio de Lemos buscava, através de cada uma das faces de seus heterônimos, as matrizes híbridas de sua ilha de Ibo, amalgamadas, no decorrer dos séculos, por várias culturas. Os poemas do ciclo de Lee-Li Yang representam essa certeza de que os sabores árabes, lusitanos e africanos não se perderam com o tempo, persistindo nas múltiplas cartografias moçambicanas. Lee-Li Yang é uma mulher originária da Ilha de Macau, metáfora da sensualidade oriental também ainda presente nas ilhas das Quirimbas. Simboliza uma das matrizes do desejo que move o humano em direção à vida, aos sonhos, à arte e à própria criação poética. Ela é a representação alegórica do gozo e do prazer estético. Constitui-se como metáfora dos instintos sexuais femininos reprimidos tanto pela religiosidade árabe como pela portuguesa. Macaísta de nascimento, mas de descendência alemã e inglesa, Lee-Li Yang é símbolo de uma grande hibridação cultural. Instruída e conhecedora de poetas de vários países, é uma mulher cosmopolita. Seu erotismo extrapola a sexualidade puramente genital, acumpliciando-se ao jogo lúdico do aprender, do saber e do criar. Nos 37 poemas do ciclo de Lee-Li Yang, a sensualidade da voz lírica feminina vem à tona e se confunde com os voos da sua própria imaginação poética, aberta a múltiplas intertextualidades. Nesse ciclo, a poesia do autor é de grande elaboração imagística, prenhe de conotações sensoriais que desafivelam o inconsciente. O sujeito lírico assume o seu “lado irracional”, desprezado pela Europa até o advento do Surrealismo. É principalmente como Lee-Li Yang que o lirismo de Virgílio de Lemos desreprime a voz e o corpo do poema, liberando a língua e os sentidos, em profundo êxtase estético. O Surrealismo da poesia virgiliana se afasta dos procedimentos próprios ao Surrealismo europeu, tendo em vista seu sentido eminentemente cósmico. No ciclo do mar e das ilhas, essa cosmicidade se plasma claramente relacionada à procura vertiginosa das origens. Ibo, espaço matricial, se torna o lugar da meditação e do reencontro com as paisagens africanas, cheias de luz e cor, de raios solares incandescentes. Desse local primevo, emergem a memória do azul, os sons do swahili, do oriente africano, as imagens de peixes e pássaros, de íbis cruzando os horizontes, que lembram ao eu lírico os quadros de Klee, Miró e Kandinsky. A intertextualidade da poesia virgiliana não se restringe,
apenas, à literatura; é mais ampla, estabelecendo diálogos e correspondências também com a moderna pintura europeia. Em fins de 1963, Virgílio de Lemos deixa Moçambique e também os antigos heterônimos, mas continua a compor pelo viés do erotismo, estreitamente vinculado à temática do mar. Adota, mais tarde, outros heterônimos e passa a escrever em francês. Como jornalista, passa a integrar a Rádio França Internacional. Em fins de 1964, entra para o Museu do Homem e vai trabalhar com Michel Leiris, no departamento de África Negra. Em entrevista a Michel Laban, comenta sua recepção em Paris e as perspectivas que lhe foram ofertadas pela imprensa francesa: “Fui bem recebido em França, em todo o lado dos sectores que se me abriram: dos jornais, o jornal Le monde, a revista Présence africaine e outras revistas que se interessaram por África” (apud LABAN, 1998, v. I, p. 419). À sua produção entre 1964 e 1998, que constitui o segundo grande ciclo de sua obra, Virgílio dá o título geral de “Errância: mais mar que ilhas”. Esse ciclo se subdivide em vários subciclos compostos de poemas em português e francês, cujos temas versam sobre o mar; o tempo; o amor; o nada; a vida; a morte; o absurdo da existência; a própria poesia; as viagens à Índia, ao Japão, a Buenos Aires, à Suécia, à Sicília, a Havana, entre outras. Como o próprio título desse segundo grande ciclo sugere, o eu lírico da poesia virgiliana assume, após 1964, a errância como uma das formas de indagação filosófica. Com a consciência do estilhaçamento interior, sabe que o tempo é fragmentário, que o ser humano “vive por pedaços”, numa instabilidade constante. Errante, no sentido dado por Nietzsche a esse conceito filosófico: o da permanente busca de si e do mundo. Por vezes, à luz da filosofia sartreana, também se depara com a ausência, com o vazio do ser diante do nada, com o efêmero da própria condição humana. Paradoxalmente, é essa lucidez frente à solidão existencial do homem que empurra o sujeito lírico a infinitas errâncias, fazendo-o sempre buscar o indizível, a perseguir o impalpável, a apreender o que de inefável existe sob a face oculta das palavras. O mar continua como magma de sua poesia, conotando não só o inconsciente do poeta, mas também o profundo reservatório de saberes que acumulou pela vida. Esse mar, então, traz reverberações filosóficas de grande profundidade. O mar do inconsciente jorra, surreal, fazendo transbordar as emoções submersas. Paixões que queimam como fogo, que se erigem sob o signo do conhecimento, mas cujos sentimentos vorazes instigam o ser, colocando-o em questão face à existência.
O oceano, fonte e símbolo de erotismo infindável, se espraia, então, simbolicamente, por toda a poiesis do autor. Com suas libidinosas espumas a acariciarem os mamilos azuis das matriciais origens, encharca o discurso poético de profunda sensualidade lírica. O Índico, presente em muitos poemas de Virgílio, é um oceano multicultural, apresentando-se não só como paisagem literária, mas também como espaço híbrido possibilitador de diversos trânsitos. A essa pluralidade de intercâmbios, Francisco Noa denomina “transnacionalidade índica” (NOA, 2012), ideia também defendida por Teresa Cunha em sua tese de doutorado em Sociologia, na Universidade de Coimbra:
[...] o Oceano Índico já era no século XV um espaço transnacional, uma cultura mundial cosmopolita com um sistema econômico integrado, constituindo [...] trocas, peregrinações e um mundo de diversidade, culturas, conhecimentos. [...] Para um vasto número de comunidades, o Oceano Índico significava uma oportunidade de viagem, intercâmbio e aprendizagem. (CUNHA, 2010, p. 12).
Para Virgílio e sua poesia vertiginosa, o Índico sempre foi esse lugar de erotismo e delírio, circulações e aprendizagens, viagens físicas, poéticas e existenciais, intercâmbios nacionais e transnacionais.
Considerações finais
A folha Msaho, embora censurada pela Pide, cumpriu seu objetivo maior de instaurar a modernidade na literatura moçambicana, contribuindo para a consolidação das tradições locais ao mesmo tempo em que alargou os horizontes de Moçambique, por meio de amplos diálogos com outras literaturas, com as vanguardas europeia, latino-americana, brasileira, com movimentos como a Negritude, o Surrealismo. A proposta inovadora de Msaho leva a literatura moçambicana a uma atitude transgressora e rebelde que põe em questão as práticas e estratégias coloniais, tanto no âmbito literário quanto político-cultural. Tendo assumido uma atitude intelectual cosmopolita, Virgílio de Lemos realizou em seus versos rica intertextualidade, colocando a literatura moçambicana em diálogo com o mundo. Nesse sentido, os ventos soprados por Msaho trouxeram a Moçambique um arejamento e renovação dos universos
estético, cultural e político ali presentes. Despertaram novo olhar, incorporando as diversidades culturais, alargando conceitos identitários a partir do oceano Índico, cujos hibridismos espelham trocas e entrecruzamentos vivenciados ao longo de séculos por povos diversos. O cio marítimo empreendido pela poesia de Virgílio de Lemos descoloniza e erotiza o panorama literário da época, abrindo-o a outros diálogos e caminhos.
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