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Clara Rocha

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Rita Patrício

Rita Patrício

“O EMOCIONAL DESENHO PURO”: A POESIA DA TÁVOLA REDONDA

/ CLARA ROCHA

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Távola Redonda, surgida em Lisboa em 1950, foi o lugar de afirmação dum grupo de jovens poetas irmanados num propósito de revalorização do lirismo enquanto expressão primeira da criação poética, de fidelidade à exigência estética e de regresso às formas da tradição literária, em ruptura com o movimento de ideias que dominou o panorama cultural, literário e artístico português nos anos de 1940. Dirigida por António Manuel Couto Viana, David Mourão-Ferreira, Luiz de Macedo e António Vaz Pereira (este último na parte artística), a revista contou com um núcleo inicial de colaboradores do qual faziam parte, além dos directores, Sebastião da Gama, Fernanda Botelho, Fernando de Paços, Daniel Filipe e Alberto de Lacerda. De acordo com o testemunho de David Mourão-Ferreira (MOURÃO-FERREIRA, s/d., p. 390-396), esse “núcleo central” alargou-se depois a outros nomes, entre os quais Carlos de Macedo, Maria Manuela Couto Viana, Goulart Nogueira, Fernando Guedes, Marcos Leal, Henrique Jorge e José António Ribeiro. Colaboraram ainda na Távola os poetas Luís Amaro, José Aurélio, Matilde Rosa Araújo, Cristóvam Pavia e António Luís Moita. Como recorda David Mourão-Ferreira,

Nascidos todos entre 1920 e 1930, oriundos alguns deles de pontos muito afastados, diferenciadíssimos pela formação cultural, religiosa e política – reunira-os, mais do que um favorável conjunto de circunstâncias exteriores, uma concepção semelhante do fenómeno poético e, sobretudo, o desejo de reagir contra algumas tendências da produção poética da época, nomeadamente contra certa imediatez da inspiração e contra o impuro aproveitamento da poesia para fins sociais. E a tentativa de revalorização de um amplo conceito de lirismo foi o primeiro baluarte destes jovens poetas; procurando “o equilíbrio, a coerência ou a proporção entre os motivos e a técnica, entre os temas e as formas” [...] (MOURÃO-FERREIRA, s/d., p. 392).

Com o subtítulo “folhas de poesia”, que a isentava da autorização prévia da Censura, a revista teve 20 fascículos, publicados entre janeiro de 1950 e julho de 1954. A escolha do subtítulo era também uma homenagem à coimbrã Presença, que entre 1927 e 1940 se apresentou como “folha de arte e crítica” e concedeu amplo espaço à crítica literária, focada sobretudo na revalorização e na divulgação do Modernismo português. O título Távola Redonda, que retomava o de um poema de António Manuel Couto Viana datado de 1949, evocava a matéria da Bretanha e o código de cavalaria do ciclo arturiano, com os seus tópicos morais de lealdade, justiça e busca da perfeição. Como refere João Bigotte Chorão no prefácio à edição fac-similada da revista,

se a designação ‘folhas de poesia’ exprimia um propósito quase modesto, sugerindo, mais do que uma revista, escritos volantes à mercê do vento, já o nome da publicação – Távola Redonda – revelava uma outra ambição, qual era a demanda do Graal ou da (im)possível harmonia, numa aventura de alto significado espiritual. (CHORÃO, 1989, s. p.).

O poema de António Manuel Couto Viana, que viria a ser publicado no fascículo 7, consignava essa aventura, apelando à comunhão fraterna em nome de um ideal poético:

Poetas: vamos dar as mãos! De novo/ Se escute em nós uma canção de ronda./ Poesia – única távola redonda/ Com pão e vinho para todo o povo.// Quem tiver sede, beba deste vinho./ Quem tiver fome, coma deste pão./ Só o poeta vivo é nosso irmão;/ P’ra ele, nada é fim, mas sim caminho.// Há flores no centro? Vou chamar-lhes fé./ Flori com elas vossa botoeira:/ A voz do poeta é pura e verdadeira/ Se – em Deus? em si? nos outros? – sonha e crê.1

Impressos em papel pardo “de embrulho” (como duas décadas antes acontecera também com Presença), os 20 números da Távola são profusamente ilustrados com desenhos a preto, sépia, azul ou verde, que separam os poemas ou se entrelaçam na sua mancha gráfica. O diálogo entre palavras e imagens é um aspecto essencial da revista, situando-a na linha de outras publicações periódicas novecentistas que não dispensaram a componente plástica e se reclamaram dum grafismo exigente e original. Além de pontuais colaborações

1 Távola Redonda, fascículo 7, p. 6.

de José Régio (fascículo 8), Júlio (fascículo 10) e António Manuel Couto Viana (passim), a maior parte das ilustrações é da autoria de António Vaz Pereira, que, como mais tarde recordaria Couto Viana num depoimento sobre a revista, era “capaz de, sem emenda, desenhar directamente numa chapa litográfica, evitando a despesa incomportável com as reproduções em gravura” (apud PIRES, 2000, p. 548). Do seu traço pessoalíssimo saíram búzios, conchas, estrelas do mar, medusas, golfinhos, sereias, barcos, pássaros, árvores, folhas, rostos e corpos femininos, castelos, figuras aladas, cavalos, centauros, hipocampos e outras criaturas mitológicas, toda uma féerie que, para lá da simples função decorativa, convoca uma leitura atenta às diversas experiências da subjectividade na criação artística e ao jogo de reflexos entre a poesia e a arte do desenho. Num balanço intitulado “A poesia da Távola”2 , Goulart Nogueira destaca precisamente a “poesia plástica” de António Vaz Pereira e o modo como dela “irrompe a iluminação vulcânica, a imaginária barroca que poderíamos ver a circular subterraneamente em vários poetas da Távola”3 . Távola Redonda não foi um movimento literário nem apresentou um “programa”, como outras publicações periódicas que a precederam, mas regeuse por um conjunto de princípios que poderiam resumir-se na procura da voz “pura e verdadeira” a que aludia o poema homónimo de António Manuel Couto Viana e num comum desejo de servir, “acima de tudo, a Poesia”4. Dois textos publicados no primeiro fascículo dão conta dessas linhas de orientação e fazem as vezes de “editoriais”: o primeiro é assinado por Alberto de Lacerda, que assumiu as funções de secretário até o fascículo 5 e depois se afastou da revista, e o segundo por David Mourão-Ferreira. Em “Um lugar para a Poesia”, Alberto de Lacerda faz o balanço da poesia portuguesa da primeira metade do século XX e retoma a questão da “poesia subjectiva” e da “poesia social”, que a partir de meados da década de 1930 opôs neorrealistas e presencistas. Assinalando o “fracasso” de uma “tendência social de expressão do colectivo”, que “não chegou a concretizar-se devidamente, nem pela realização estética, nem pela lucidez crítica”5, Alberto de Lacerda cita o prefácio aos Versos (1944) de Casais Monteiro para argumentar em defesa do imperativo estético na arte,

2 Goulart Nogueira, “A poesia da Távola.” Távola Redonda, fascículos 19-20, pp. 4, 14 e 15. 3 Ibid., p. 15. 4 Alberto de Lacerda, “Um lugar para a Poesia.” Távola Redonda, fascículo 1, p. 3. 5 Ibid.

mesmo quando ela é posta ao serviço da “mais bela das causas” sociais. O afastamento do programa neorrealista passa pela recuperação das propostas consagradas pela Presença (o “mistério da poesia”, o poema nascido “do próprio cerne da personalidade” e não determinado pelas circunstâncias que lhe são exteriores), mas Alberto de Lacerda vai mais longe ao definir um conjunto de preocupações que norteiam os poetas da Távola:

[...] a conquista do poético sem preconceitos de antigo ou de moderno, de temas ou até de palavras, dentro da liberdade essencial ligada à criação e à vida da obra de arte; variedade na forma, sabendo, sobretudo, que ela existe, e desejo consciente de a dominar com beleza; inquietação social sem desgosto estético; revalorização do mito.6

Por sua vez, o artigo de David Mourão-Ferreira “Lirismo ou haverá outro caminho?” destaca o carácter excepcional, involuntário e gratuito da atitude lírica, partindo da definição de lirismo como “desenvolvimento de uma exclamação”, segundo a conhecida fórmula de Paul Valéry. O autor assinala o modo obscuro como os motivos são dados (ou se impõem) ao poeta, mas sublinha também a importância da construção técnico-formal do poema, num processo que exige uma “correspondência harmoniosa” entre os temas e os procedimentos específicos da criação literária. As grandes épocas e os mais altos momentos líricos caracterizam-se, segundo ele, por esse “equilíbrio, [...] coerência ou proporção, entre os motivos e a técnica”7. Mistério (na sua génese) e exigência formal (no seu progresso) são as duas faces da experiência lírica, que implica “um momento, a-consciente e misterioso, de imposição de motivos, e os momentos, conscientes e deliberados, do seu desenvolvimento ulterior”8. A argumentação de David Mourão-Ferreira sublinha o primado do lirismo na criação poética, a sua “involuntariedade urgente na origem” e a sua “gratuitidade fundamental nos objectivos”9. De acordo com a lição presencista, sobrepõe o “eu individual” ao “eu social” e refuta o aproveitamento da poesia para outros fins que não os da “pura descarga emotiva”. A conclusão do texto reitera a ideia de que “(...) toda a Poesia, além de começar por ser lírica, o

6 Ibid.

7 David Mourão-Ferreira, “Lirismo ou haverá outro caminho?” Távola Redonda, fascículo 1, p. 8. 8 Ibid.

9 Ibid.

volta sempre a ser, nos seus mais altos momentos; que são líricas não só as primeiras, mas também as melhores, manifestações poéticas de um povo, de uma geração ou de um indivíduo”10 . Se o “caminho” proposto por David Mourão-Ferreira representa uma clara tomada de posição num contexto histórico-literário – a defesa de um lirismo tradicional mas não antimodernista – , não devemos esquecer que é também a resposta a um tempo histórico-político que deixou profundas marcas na sua geração. A extensão das destruições causadas pela Segunda Guerra Mundial, a descoberta do horror dos campos de concentração, a divisão da Europa em dois blocos (que Churchill resumiu, num discurso proferido nos Estados Unidos em 1946, numa fórmula célebre: “De Stettin, no Báltico, a Trieste, no Adriático, desceu sobre o continente uma cortina de ferro”), a Guerra Fria e a ameaça nuclear obcecaram o mundo a partir da segunda metade dos anos de 1940. O “golpe de Praga” em 1948, o bloqueio de Berlim e a divisão da Alemanha acentuaram ainda mais a tensão entre as grandes potências, e a década de 1950 foi assombrada pelo espectro do perigo atómico e pela iminência de uma nova catástrofe mundial. A poesia da Távola Redonda espelha essa realidade histórica, seja quando explicita a consciência apocalíptica de toda uma geração, seja quando procura um “caminho” de fuga no ensimesmamento lírico, na quietação ou no isolamento. O poema de David Mourão-Ferreira “O bombardeiro no crepúsculo”, publicado nos fascículos 19-20 da revista, e mais tarde incluído no volume Os Quatro Cantos do Tempo (1958) com uma dedicatória aos “companheiros da Távola Redonda”, é o paradigma da angústia e da radical negatividade de um tempo onde “tudo é incerto”, ao projectar no vulto do “Anjo anunciador do Apocalipse” a imagem duma humanidade capaz de se autodestruir: “Antes da noite vir, virá o véu/ das suas asas de alumínio [...]”11 . Nesse contexto de sombras, a geração da Távola Redonda procura na “alta linguagem” da poesia uma forma de libertação ou de redenção. Em “Poesia”, por exemplo, António Manuel Couto Viana define o gesto poético como uma demanda pela qual o sujeito se transcende e deixa a sua ténue marca humana no mundo:

10 Ibid.

11 David Mourão-Ferreira, “O bombardeiro no crepúsculo.” Távola Redonda , fascículos 19-20, p. 11.

Com mão alada procuro/ O emocional desenho puro:/ A linha é frágil; o verso é duro.// A claridade dos cimos!/ Por alcançar nos desmedimos:/ Turvam a fonte os humanos limos.// Fique meu gesto suspenso/ Como o branco sinal dum lenço/ Por sobre o mundo nocturno e imenso.12

O poema, mais tarde publicado no volume A Face Nua (1954), caracteriza também o trabalho poético: a luta contra o “verso duro” e o domínio da emoção pelo rigor da forma (a busca do “emocional desenho puro”). O refúgio na interioridade do ‘eu’ é um leitmotiv na poesia da Távola. O poema “Interior”, também de Couto Viana, dá conta de uma atitude intimista sempre presente ao longo das “folhas de poesia”:

Por trás dos muros da nossa casa/ Estamos tão juntos que nos tocamos:/ O vento é brisa e a brisa é asa./ Por trás dos muros de nossa casa/ Todos os frutos ficam nos ramos.// Vivamos, pois, dentro de nós,/ Deixando aos outros o gesto e a voz.13

No poema “Libertação”, Luiz de Macedo traduz em quatro versos breves o desejo de recolhimento e quietação: “Silêncio profundo...// Fechei a porta.// (Madeira morta/ Entre mim e o mundo)”.14 “Canção pateta”, do mesmo autor, é um texto mais discursivo que se foca na imagem do bicho de conta enrolado sobre si próprio. Por sua vez, Luís Amaro retoma no poema “Fuga” os tópicos do isolamento e da evasão, contrapondo com delicada sensibilidade “a música do instante que passa” às agressões do mundo exterior, “(...) esse mar de desventuras/ Em que voga ao sabor de torvas ondas/ Meu coração”15 . Outra noção chave na produção da Távola é a de poesia como “trabalho” e recompensa. Recorde-se o poema “Recompensa”, de António Manuel Couto Viana: “Venha um momento de Poesia:/ Que eu sinta essa alegria casta e saborosa/ De quem lidou todo o dia/ E pediu, como paga, uma pequena rosa! (...)”16. Contra “certa imediatez da inspiração”, que no seu depoimento sobre a revista David Mourão-Ferreira associou a “algumas tendências da produção poética da época”, Távola Redonda valorizou a consciência oficinal como

12 António Manuel Couto Viana, “Poesia”, Távola Redonda, fascículo 15, p. 4. 13 Id., “Interior”, Távola Redonda, fascículo 1, p. 1. 14 Luiz de Macedo, “Libertação”, ibid., p. 5. 15 Luís Amaro, “Fuga”, Távola Redonda, fascículo 2, p. 3. 16 António Manuel Couto Viana, “Recompensa”, Távola Redonda, fascículo 1, p. 1.

pedra de toque da criação artística, conciliando “autenticidade” expressiva e disciplina da construção formal. A “presença da regra”17 é assinalada por Goulart Nogueira, no seu texto sobre “A Poesia da Távola”, como uma das características agregadoras do grupo, a par da “conquista da própria expressão” individual e da “dialéctica do movimento e do equilíbrio”. A consciência técnica que caracteriza a poesia da Távola Redonda passa também pela valorização (e recriação) das diversas formas da tradição literária e folclórica. A originalidade da revista deve-se, em parte, ao modo como os seus poetas recuperam a tradição lírica, oral e culta, desde os cancioneiros medievais até à poesia de Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda e Camões, sem esquecer os romanceiros românticos. A “lição do nosso lirismo perene”18 que, nas palavras de Vitorino Nemésio, atravessa a poesia da Távola está presente, por exemplo, nos títulos que integram referências de género, como “Cantar de amigo”, “Vilancete”, “Canção deserta”, “Epitáfio”, “Écloga ou canção abandonada”, “Canção da manhã fria”, “Rimance da Beira-Tejo”, “Xácara do cavaleiro indiferente”, “Rimance da Rosa”, “Elegia para uma gaivota”, “Quatro odes” ou “Elegia”, para apenas citar alguns; mas também na regularidade estrófica e métrica dos poemas, na preferência por formas como a quadra e o soneto, na presença da rima, dos paralelismos e das repetições. A obra poética de David Mourão-Ferreira publicada em volume (A Secreta Viagem, Tempestade de Verão e Os Quatro Cantos do Tempo, na década de 1950) é exemplar no modo como convoca as matrizes formais e os grandes temas da tradição lírica do Ocidente – o amor, o erotismo, a morte, a consciência do tempo – , inscrevendo esse diálogo nos títulos (“Epigrama para uma despedida”, “Epigrama em verde e branco”, “Epitáfio”, “Écloga”, “Romance da morte de Tristão numa rua de Lisboa”, “Soneto dos quartos de aluguer”, “Écloga em tempo de guerra”, “Elegia do ciúme”, “Soneto do cativo”, “Ode”, etc.), nas opções estróficas (dísticos, quadras, sextinas, etc.), nas alusões, nas evocações de lugares e noutras referências ao thesaurus literário europeu e português. Como revista exclusivamente dedicada à poesia, Távola Redonda publicou poemas de autores contemporâneos (incluindo alguns ligados a outras revistas e tendências), inéditos de poetas mais velhos, poemas de autores estrangeiros (espanhóis, belgas e sobretudo brasileiros, como Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles e Terezinha Éboli), traduções (de T. S. Eliot e Ezra

17 Goulart Nogueira, “A Poesia da Távola”, Távola Redonda, fascículos 19-20, p. 15. 18 Apud Goulart Nogueira, ibid., p. 14.

Pound), estudos e notas de leitura. No domínio da crítica literária, cumpre destacar a colaboração de Adolfo Casais Monteiro, Alberto de Lacerda, David Mourão-Ferreira, José Régio, Alfredo Margarido, Goulart Nogueira, Hernâni Cidade, Jacinto do Prado Coelho, Manuel Antunes, Luís de Macedo, Matilde Rosa Araújo e Tomás Ribas. Num propósito de “revisão crítica” e em “testemunho de apreço a alguns Poetas contemporâneos mais significativos”19, a revista prestou homenagem a vários poetas de gerações anteriores, como José Régio, Vitorino Nemésio, Pedro Homem de Melo, Cabral do Nascimento, António de Sousa, Saul Dias, Alberto de Serpa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Tomás Kim, Jorge de Lima e Cecília Meireles. Na pequena nota intitulada “Auto-crítica”, publicada nos fascículos 19-20, os directores da Távola reiteram esse espírito de admiração e recordam o legado de outros poetas que gostariam de ter incluído no seu tributo, como Almada Negreiros, Afonso Duarte, Miguel Torga, António Botto, Adolfo Casais Monteiro, António de Navarro, João de Castro Osório, José Gomes Ferreira, Armindo Rodrigues, Jorge de Sena, Natércia Freire e Ruy Cinatti. Távola Redonda publicou alguns números sobre temas ou autores, sendo de assinalar os que dedicou a Régio (fascículo 8), ao mito de Pasárgada (fascículo 9) e a Sebastião da Gama (fascículos 16-17). No fascículo 9, vários textos em prosa e em verso glosam o mito pasargadiano, a partir do emblemático poema de Manuel Bandeira publicado em 1930 no volume Libertinagem. Recorde-se a evocação que o próprio Bandeira faz da génese do seu poema:

Quando eu tinha os meus quinze anos e traduzia na classe de grego do Pedro II a Ciropedia fiquei encantado com esse nome de uma cidadezinha fundada por Ciro, o Antigo, nas montanhas do sul da Pérsia, para lá passar os verões. A minha imaginação de adolescente começou a trabalhar, e eu vi Pasárgada e vivi durante alguns anos em Pasárgada. Mais de vinte anos depois, num momento de profundo cafard e desânimo, saltou-me do subconsciente este grito de evasão: “Vou-me embora pra Pasárgada!” Imediatamente senti que era a célula de um poema. Peguei do lápis e do papel, mas o poema não veio. Não pensei mais nisso. Uns cinco anos mais tarde, o mesmo grito de evasão nas mesmas circunstâncias. Desta vez o poema saiu quase ao correr da pena. (...) Não construí o poema; ele construiu-se em mim nos recessos do subconsciente, utilizando as reminiscências da infância (...). (BANDEIRA, 1990, p. 26).

19 “Jornal”, ibid., p. 12.

Pasárgada é a fórmula da evasão, o refúgio imaginário, o lugar dos sonhos e da possível felicidade. Escrito numa circunstância biográfica de desalento, solidão e doença, o poema de Manuel Bandeira acabaria por se tornar, nas palavras de Mário de Andrade, “a cristalização mais perfeita” do estado de espírito dos poetas brasileiros contemporâneos e da sua “vontade amarga de dar de ombros” (ANDRADE in BANDEIRA, 1990, p. 202). Távola Redonda recupera o mito que o título-refrão do poema tornou universal, e com ele diz também, mesmo quando o faz no registo cáustico da alusão e da blague, o sentimento duma geração amarrada a um quotidiano de chumbo, o desejo de partir e o sonho de libertação. Os fascículos 16-17 da Távola são dedicados a Sebastião da Gama, colaborador da revista desde o primeiro número e presença marcante para todos os seus companheiros de geração, pela simplicidade afável e fraterna, pelo amor à vida, pela funda sensibilidade poética e pela dedicação do seu trabalho como professor (patente nas páginas do seu Diário). A sua morte prematura, ocorrida em 1952, foi sentidamente evocada nesse número duplo de homenagem, que inclui, além dum inédito (“Soneto do guarda-chuva”), vários poemas dedicados ao amigo desaparecido, depoimentos de José Régio, Hernâni Cidade e Matilde Rosa Araújo, um estudo de David Mourão-Ferreira (“Para uma interpretação da poesia do Sebastião da Gama”) e uma ficha biobibliográfica sobre o autor. Todos esses textos sublinham a dignidade do exemplo humano e a qualidade de uma obra poética que, aberta a influências presencistas, celebra a poesia como dádiva divina e se reparte entre o confessionalismo e a atitude contemplativa, a exaltação da natureza e o diálogo com Deus. Do mesmo modo, são traços essenciais dessa obra a consciência de íntimas tensões, a confiança e o desalento, o enraizamento telúrico (o amor à Arrábida, a “Serra-Mãe” à qual o autor esteve profundamente ligado), a alegria da vivência amorosa e a tonalidade elegíaca da presciência da morte. Refira-se, por fim, a actividade editorial de Távola Redonda, que se desenvolveu a partir de dezembro de 1950 sob a direcção de Daniel Filipe e a orientação artística de António Vaz Pereira. A revista deu a sua chancela a duas séries de edições de poesia, tendo publicado livros de David MourãoFerreira (A Secreta Viagem), Luiz de Macedo (Se o Silêncio Viesse e Silêncio Pressentido), Fernanda Botelho (As Coordenadas Líricas), Daniel Filipe (O Viageiro Solitário), António Manuel Couto Viana (O Coração e a Espada e A Face Nua), Terezinha Éboli (Andante Tranquilo), Fernando de Paços (O Fértil

Jardim), Carlos de Macedo (Jogo de Palavras), Henrique Jorge (Emigrantes do Céu) e José António Ribeiro (O Último Vivo da Cidade). O lugar da Távola no contexto epocal nunca deixou de ser objecto de revisão à medida que foram saindo os seus 20 fascículos. Em breves notas redactoriais ou mais demorados balanços, que dão conta duma marcada vocação crítica, a revista reiterou o seu propósito inicial:

Távola Redonda apareceu com o simples intuito de ser um órgão vivo de poesia, um testemunho da Poesia do seu tempo. Apenas se pedia e apenas se pede: autenticidade. Sempre se afirmou que não representávamos corrente alguma; sempre se insistiu em que se não impunha nenhum formulário. Na Távola, todos tinham e todos têm o seu lugar – desde que em nome da Poesia, e só em nome dela, o solicitassem ou solicitem. (...) Expressões como – “Poesia da Távola”, “Poesia no género da Távola”, “Poesia no estilo da Távola” – não têm, portanto, nenhuma razão de ser. À Távola Redonda não interessa Poesia de determinado género ou estilo, mas puramente, simplesmente – Poesia.20

Em 1956, a revista Graal retomou o projecto a que a Távola tinha dado voz entre 1950 e 1954. Dirigida por António Manuel Couto Viana e António Vaz Pereira, com o subtítulo “Poesia, teatro, ficção, ensaio, crítica”, apresentavase como “uma revista de geração, da chamada geração de 50” e dela saíram quatro números, até junho de 1957. A sua ligação com a Távola era manifesta no próprio título, “símbolo multissecular da aventura com finalidade, da busca e do desígnio”, como se lia na nota preambular do primeiro número. A continuidade era também assegurada pelo elenco dos colaboradores, do qual faziam parte David Mourão-Ferreira, Fernando de Paços, Goulart Nogueira, Luís de Macedo, Fernando Guedes, Fernanda Botelho, Matilde Rosa Araújo, Maria Manuela Couto Viana e Tomás Kim. Mais efémera do que a sua antecessora, sem a sua coesão doutrinária e aberta a outros campos de interesse (como a ficção e o teatro), Graal resgatou da Távola Redonda o sentimento de pertença geracional, os tópicos da liberdade criadora, do “ofício” poético e da realização de “um comum ideal de cultura”, bem como a consciência duma civilização em perigo, ameaçada por novos condicionalismos histórico-políticos, que encontra a sua maior intensidade expressiva nas metáforas do terramoto, do abismo e da noite.

20 “Jornal”, Távola Redonda, fascículo 12, p. 15.

Referências

ANDRADE, M. de. Nota preliminar a Libertinagem. In: BANDEIRA, M. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1990.

BANDEIRA, M. Biografia de Pasárgada. In: BANDEIRA, M. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1990.

CHORÃO, J. B. Távola Redonda ou da (im)possível harmonia. Távola Redonda, ed. facsimilada. Lisboa: Contexto, 1989.

MOURÃO-FERREIRA, D. Notícia sobre a Távola Redonda. In: BARRETO, Costa (org.) Estrada Larga. Porto: Porto Editora, s/d. v. III

PIRES, D. Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974). Lisboa: Grifo, 2000. v. II, t. 2.

TÁVOLA REDONDA. [s.n] ed. fac-similada. Lisboa: Contexto, 1989. 20 fascículos.

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