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Convite à leitura
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A Ilha do Tesouro é um dos clássicos juvenis mais elogiados e influentes, um absoluto favorito entre os romances de aventuras. Escrito pelo escocês Robert Louis Stevenson, viajou muito além das fronteiras de seu país, aclamado em toda parte, recebendo rasgados elogios dos maiores escritores da literatura internacional.
Nada em sua origem fazia pensar que teria tamanho êxito. Na verdade, surgiu despretensiosamente de uma brincadeira num dia de muita chuva, na segunda metade do século XIX. Sem poder sair de casa e querendo distrair seu enteado, Stevenson desenhou com ele o mapa de uma ilha imaginária e começou a fantasiar uma história que se passasse nela. Empolgado com o que ia inventando, desenvolveu essa ideia e a foi fixando no papel, escrevendo durante 15 dias seguidos os 15 primeiros capítulos. A partir da ideia inicial do mapa, pensou em fazer o que se costuma chamar de “romance de formação”, um livro que conta a história de como um adolescente vai se tornando adulto e amadurecendo enquanto se desenrolam as peripécias do enredo. Mas Stevenson logo teve de interromper esse fluxo de escrita porque adoeceu e em seguida teve de viajar para Londres. Só algum tempo depois dessa interrupção foi possível continuar o trabalho. Nesse intervalo, ainda que não houvesse escrito, Stevenson elaborara um pouco mais aquilo que iria contar.
A ideia de uma ilha deserta não era original e já vinha sendo explorada pela literatura desde que Daniel Defoe publicara
Robinson Crusoé em 1719 e fizera muito sucesso. Piratas e tesouros também já faziam parte do repertório do romance de aventuras em meados do século XIX e, com certeza, Stevenson também se inspirou nessas narrativas. Mas o tratamento que deu a todos esses temas é que o tornou único e lhe garantiu enorme sucesso, de público e de crítica, quando passou a publicar o romance em capítulos pela imprensa em 1881-1882. Um sucesso tão grande que logo em seguida foi editado como livro que começou a correr o mundo.
Alguns dos motivos explorados por Stevenson em A Ilha do Tesouro se tornaram absolutamente indispensáveis em qualquer história de bucaneiros surgida depois e sempre reaparecem nelas: o mapa do tesouro, o pirata da perna de pau, o papagaio de pirata, o baú do morto e os esqueletos junto a ele, as canções de bebedeiras, escunas à deriva, ilhas tropicais com coqueiros e praias de areias claras, ameaças de motim a bordo...
No entanto, debaixo das aparências superficiais de ser apenas mais uma história de piratas como tantas outras, alguns aspectos da narrativa de Stevenson foram se revelando como traços especiais que acabaram por distingui-la.
Nesse contexto, vale a pena chamar a atenção para a psicologia dos personagens, muito variada e coerente, nascida de um autor que sabia observar a natureza humana e refletir sobre ela.
Veja-se o caso de Jim Hawkins, por exemplo, o adolescente que começa narrando a história em primeira pessoa. É um menino
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entusiasmado por aventuras, feliz por ter a chance de se fazer ao mar, mas modesto e sem nenhuma gabolice — não se acha o maior por ser tão corajoso e é capaz de perceber como seus impulsos súbitos podem ser perigosos e poderiam ter graves consequências.
O doutor é alguém sensato, rea lista, capaz de discernir em quem se pode confiar, procurando ser justo, oscilando entre o excessivamente cuidadoso e o ingênuo. Por sua vez, Long John Silver é um personagem impressionante e inesquecível, rico em aspectos contraditórios e, ao mesmo tempo, coerente em sua ambiguidade. Já foi classificado por um crítico como “o vilão mais memorável de toda a literatura”. Para o leitor que vai travando conhecimento com a história, é impossível confiar nele, mas também é impossível escapar à sua atração e não admirá-lo.
Para construir essa constelação de personagens tão diferentes entre si, o relato de Stevenson alterna a descrição minuciosa, por meio de traços e gestos mostrados de forma objetiva, com uma leve ironia que por vezes se manifesta quase zombeteira. Além disso, utiliza muito bem uma notável
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variação de pontos de vista narrativos, fazendo com que de vez em quando a voz que vem contando seja interrompida para que outro personagem possa também trazer seu testemunho do que viu e viveu de modo a relativizar aquilo que, de outra maneira, poderia se apresentar como verdade absoluta. Dessa forma, multiplica os ângulos em que os personagens e os fatos são mostrados e permite que transpareçam opiniões diferentes sobre o que acontece.
Por tudo isso, a narrativa é muito forte, direta e cheia de possibilidades oferecidas ao leitor atento, para que perceba sutilezas e entenda mais do que está apenas sendo apresentado na superfície. Um mérito desta tradução e adaptação que agora lhe trazemos foi justamente o de procurar interferir o menos possível nesses procedimentos e buscar manter a riqueza dessas entrelinhas, de modo que A Ilha do Tesouro possa se mostrar em todo seu esplendor. 33
Ana Maria Machado Oc upa a cadeira número um da Academia Brasileira de Letras, e no ano 2000 ganhou o Prêmio Hans Christian Andersen.
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