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Israel Hands

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Biografias

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Como se atendesse aos nossos desejos, o vento rodou para oeste. Podíamos percorrer com muito mais facilidade a costa nordeste da ilha até a entrada da Enseada do Norte. Só que havia tempo de sobra, pois não tínhamos como ancorar e não me atreveria a encalhar na praia antes da maré subir um pouco mais. O timoneiro me ensinou a parar a embarcação, o que consegui após algumas tentativas. Depois, nos sentamos em silêncio para outra refeição. — Capitão — disse afinal, com aquele mesmo sorriso incômodo —, suponho que poderíamos jogar o cadáver de O’Brien ao mar. Eu não tenho nenhum remorso por tê-lo mandado para o inferno, mas não é algo agradável de se ver, não acha? — Não tenho força suficiente para levantá-lo, além de não gostar nada do serviço. Se depender de mim, vai ficar ali mesmo. — Ora! — disse. — Deixe estar, então. De qualquer jeito, espíritos não me importam, depois de tudo o que já vi. Jim, seria

muito gentil da sua parte se descesse até aquela cabine e pegasse uma garrafa de vinho... Esse conhaque aqui é muito forte e está me dando dor de cabeça.

Não acreditei nem um instante naquela história de ele preferir vinho a conhaque. Sabia que era um pretexto para que eu deixasse o convés. Só não sabia qual seria sua intenção. Ele desviava seu olhar do meu e sorria o tempo todo, pondo a língua de fora com tal ar de culpa e embaraço que até uma criança notaria que estava tentando esconder algo. Vi onde residia minha vantagem. Era um sujeito tão estúpido que eu poderia ocultar minhas suspeitas até o final. — Um pouco de vinho? — disse. — Está bem. Você prefere tinto ou branco? — Não vejo diferença, camarada — replicou. — Se for forte e a garrafa estiver cheia, o que mais importa? — Então, vou lhe trazer vinho do Porto, senhor Hands — respondi. — Mas vou precisar procurar um pouco. Desci a escada fazendo todo o barulho que podia, tirei meus sapatos, corri em silêncio pela estreita galeria, subi a escada do castelo de proa e coloquei a cabeça para fora pela abertura no convés. Sabia que ele não esperava me ver ali, mas mesmo assim tomei todas as precauções possíveis. Minhas suspeitas se confirmaram.

Ele estava engatinhando e, ainda que sua perna doesse visivelmente quando se movia, se arrastou pelo convés com

uma boa velocidade. Chegou aos embornais de bombordo e tirou de dentro de um rolo de corda uma faca longa manchada de sangue até o cabo. Olhou para ela por um momento, testou seu fio com a palma da mão e, depois de escondê-la com pressa no forro da jaqueta, arrastou-se de volta ao lugar original encostado na amurada.

Era tudo o que precisava saber. Israel podia se mover e agora estava armado. E estava claro quem seria sua vítima. O que ele faria depois, se tentaria atravessar a ilha rastejando, da Enseada do Norte até o acampamento por dentro dos pântanos, ou se iria disparar o canhão, confiando em que seus camaradas viessem socorrê-lo, eu não tinha como saber.

Mas, ainda assim, podia contar com ele para uma coisa, já que nossos interesses convergiam sobre o destino da escuna. Ambos desejávamos que ela encalhasse em segurança, num lugar abrigado, de forma que, na hora certa, ela pudesse ser desencalhada para navegar novamente. Até que isso fosse feito, podia considerar que minha vida seria poupada.

Enquanto minha cabeça pensava nisso, voltei até a cabine, calcei os sapatos de volta, peguei uma garrafa ao acaso e reapareci no convés.

Hands estava deitado onde o tinha deixado, caído como um monte de roupas sujas, com os olhos meio fechados, fingindo estar fraco demais para encarar a luz. No entanto, levantou o olhar quando cheguei. Quebrou o gargalo da garrafa

e tomou um belo gole. Ficou quieto por um tempo e então, sacando um pedaço de fumo de rolo, me pediu que cortasse uma lasca. — Corta um naco disso para mim— disse —, pois não tenho faca nem força para cortar. É, Jim, acho que estou nas últimas. — Bem — respondi —, vou cortar algum fumo, mas, se fosse você e pensasse estar tão mal, me dedicaria às orações, como um cristão. — Durante 30 anos — disse — naveguei por esses mares e vi o bem e o mal, o melhor e o pior, tempo bom e traiçoeiro, provisões terminando, facas voando e tudo o que se possa imaginar. Bem, vou lhe contar uma coisa, ainda não vi sair boa coisa de bondade. Quem ataca primeiro sobrevive, homem morto não morde, é nisso que acredito. De repente, mudou o tom de voz: — Agora, veja bem — continuou —, a maré já subiu o bastante. Faça o que eu lhe disser, capitão Hawkins, e vamos terminar logo com isso.

Tínhamos pouco menos que 2 milhas para percorrer, mas a navegação era delicada, a entrada do ancoradouro ao norte era bem mais estreita e rasa. Creio ter sido um ótimo ajudante, e tenho certeza de que Hands era um excelente piloto, pois fomos com extremo cuidado, desviando dos bancos de areia, com precisão e habilidade que dava gosto de ver.

Assim que passamos pela ponta dos promontórios nos vimos cercados por terra por todos os lados. A costa da Enseada do Norte tinha bosques tão densos quanto os da ancoragem ao sul, mas era muito mais longa e estreita, parecendo mais com o estuário de um rio.

Logo à nossa frente, no extremo sul da enseada, vimos o casco de um navio naufragado em seus últimos estágios de decadência. Havia sido uma bela nave de três mastros, mas tinha ficado tanto tempo exposta às intempéries que estava coberta por grossas camadas de algas marinhas, e seu convés estava tomado por vegetação de restinga que agora crescia espessa e florida. Era uma visão triste, mas nos mostrou que era um ancoradouro protegido. — Agora — disse Hands — olhe só, esse é um lugar perfeito para encalhar um navio. Praia de areia plana, mar calmo e espelhado, árvores ao redor e flores que parecem um jardim naquele navio velho. — Depois que a escuna estiver encalhada — perguntei —, como vamos fazer para tirá-la daqui? — É simples — respondeu. — Na maré baixa, leve um cabo até aquele ponto da costa, passe-o por trás de um daqueles pinheiros maiores, traga-o de volta, passe-o em torno de um cabrestante e espere pela maré. Quando ela estiver cheia, todas as mãos a bordo fazem força puxando o cabo, e a embarcação vai girar docilmente. Agora, garoto, fique atento. Estamos

quase agarrando no fundo, e ela está com muito impulso. Um pouco para estibordo, assim... Firme... Estibordo... Um pouquinho pra bombordo... Firme! Firme!

E foi dando os comandos, aos quais obedeci sem respirar, até que, de repente, gritou: — Agora, capitão, orce! Puxei o leme com força, e a Hispaniola girou rapidamente e foi a toda velocidade em direção à costa.

A excitação com essas últimas manobras interromperam a vigília que vinha mantendo sobre o timoneiro. Estava tão interessado na pilotagem, esperando o toque do casco no fundo, que me distraí e fiquei me esticando sobre a amurada de estibordo, vendo as ondas causadas pela proa. Teria caído sem chance de reagir, se não tivesse sido tomado por um instinto e virado a cabeça. Talvez tenha ouvido algum estalo ou visto alguma sombra se movendo com o canto do olho. Ou foi como o instinto de um gato. Mas, com certeza, quando me virei, lá estava Hands, já na metade do caminho, com o punhal na mão direita.

Na mesma hora em que ele avançou, pulei para o lado na direção da proa. Ao fazer isso, larguei a cana do leme que voltou com toda a força para sotavento, e eu acho que foi o que salvou minha vida, pois acertou Hands no meio do peito e o deixou imóvel por um momento.

Consegui sair do canto onde estava encurralado e escapei para o deque do convés. Parei bem em frente do mastro

principal e saquei uma pistola do bolso. Mirei com frieza, ainda que ele já tivesse se levantado e viesse na minha direção, e puxei o gatilho. O cão da arma bateu, mas não veio nem o clarão nem o estampido. A espoleta tinha estragado com a água salgada. Amaldiçoei a mim mesmo por ser tão negligente. Por que não tinha, muito antes, trocado a espoleta e recarregado minhas próprias armas? Não estaria naquela situação vulnerável.

Ferido como estava, ainda assim ele se movia rápido. Eu não tinha tempo para usar a outra pistola, nem muita vontade, pois certamente estaria imprestável também. Uma coisa estava clara: não adiantava apenas recuar, pois acabaria sendo encurralado na proa, da mesma maneira que quase tinha me cercado na popa um pouco antes. Apoiei as palmas das mãos contra o mastro principal, que era bem grande, e esperei, com os músculos tensionados.

Vendo que ia me esquivar, ele também parou. Tentou algumas fintas que respondi com movimentos rápidos. Parecia até um jogo que brincava em casa, sobre as pedras da enseada da Ponta Negra. Só que pode ter certeza de que meu coração nunca esteve tão disparado. No entanto, era apenas um jogo de meninos, e confiava bastante na minha capacidade diante de um velho marujo com um ferimento na coxa. Comecei a pensar em formas de escapar. Por mais que acreditasse poder girar em torno do mastro por algum tempo, não via como lograr uma fuga definitiva.

De repente a Hispaniola bateu, cambaleou, se apoiou por um instante na areia e então, num só golpe, se inclinou sobre o costado de bombordo, até que o convés ficou em um ângulo de 45 graus. Um monte de água entrou pelos embornais e encheu uma verdadeira piscina entre o deque e a amurada.

Nós dois caímos e rolamos quase juntos até os embornais. O defunto de gorro vermelho, com os dois braços ainda abertos, veio rolando todo duro por cima de nós. Mesmo meio tonto, me levantei primeiro, pois Hands tinha se embolado com o cadáver. A repentina inclinação do navio fez do convés um lugar onde era impossível correr. Tinha de encontrar outro meio de fugir e não podia demorar, pois meu inimigo estava quase me pegando. Rápido como pensamento, pulei nos brandais da mezena, usei mãos e pés para me arrastar engatinhando pela escada improvisada e só parei para respirar quando me encarapitei na última verga.

Fui salvo pela minha pronta reação. Consegui chegar ao alto do mastro, e lá embaixo estava Hands com a boca aberta e a cara virada para mim, muito surpreso e decepcionado.

Agora que tinha um momento de sossego, não perdi tempo e mudei logo a espoleta da pistola. Depois que terminei de deixar uma pronta para o serviço, por garantia, troquei a da outra e comecei a recarregar as duas com munição nova.

Isso deixou Hands ouriçado. Depois de hesitar um pouco, ele também se suspendeu pesadamente nos brandais e, com

o punhal entre os dentes, começou a subir. Levou algum tempo e gemeu de dor enquanto fazia isso, e tive tempo para terminar de me preparar antes que ele chegasse a um terço do trajeto. Então, com uma pistola em cada mão, me dirigi a ele: — Pare, senhor Hands — avisei —, ou vou estourar seus miolos! Homens mortos não mordem, você sabe muito bem!

Parou de imediato. Tentou pensar, mas era claro que tinha dificuldades para tal. Finalmente, depois de engolir em seco uma ou duas

vezes, falou, ainda com o mesmo ar perplexo.

Para poder falar, tirou a adaga 7 da boca, mas de

resto, permaneceu imóvel. — Jim — disse —, nós dois estamos em

maus lençóis aqui e devíamos fazer um acordo. Se não fosse aquela guinada, teria pegado você, mas não tive sorte. Vou ter de atacar, e não tem como comparar a força de um marinheiro experiente com a de um novato a bordo como você, Jim.

Eu estava saboreando suas palavras e sorrindo, vaidoso como um galo em cima de um muro, quando sua mão direita fez um

7 Adaga: espécie de punhal mais largo e pontiagudo.

movimento rápido sobre o ombro esquerdo. Alguma coisa zuniu como uma flecha pelo ar. Senti um golpe seguido de uma dor lancinante, e lá estava eu espetado pelo ombro no mastro. Tomado pelo sofrimento e pela surpresa do momento, mal posso dizer se foi intencional, mas minhas duas pistolas dispararam e ambas caíram das minhas mãos. Com um grito sufocado, o timoneiro soltou as mãos que agarravam o brandal e mergulhou de cabeça na água.

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