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FARINHA DE OUTRO SACO
Amarílio Macêdo, presidente do conselho de administração do Grupo J.Macêdo, fez da difícil e desejada articulação entre os mundos empresarial e político seu cartão de visitas, sustando assim a vaidade e a vontade de ser governador do Ceará. Tucano de primeira hora, hoje lidera a expansão da empresa da família, detentora das marcas Sol e Dona Benta, que investe pesadamente pelo Brasil
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por paulo vieira fotos roberto setton
ão tivessem os muitos políticos brasilei
Nros a habilidade para sobreviver que têm, é possível que a sociedade já se sentisse representada nas decisões tomadas na praça dos Três Poderes. A voz forte de entidades que surgiram após as manifestações de 2013, ganharam corpo no impeachment e ainda fazem muito barulho, especialmente nas redes sociais, não ecoou no Executivo, Legislativo e em enormes porções do Judiciário, cujos integrantes, para ainda não se começar aqui a falar de política (e corrupção), aferram-se a quinquênios, auxílios-moradia, gatilhos, pedágios e outras extravagâncias de caráter público-privado.
Faz sentido que, assim, volte-se a idealizar figuras de fora do ambiente político tradicional, como a de Luciano Huck ou Joaquim Barbosa. Há certo messianismo nesses nomes, mas cumpre notar que há refletida aí uma demanda da sociedade que é sistematicamente reprimida pelos partidos políticos.Com tudo isso, chega a ser chocante saber que um dia governantes e sociedade civil ensaiaram uma proveitosa e longeva parceria, não só na teoria como na prática. Sim, isso já existiu.
Corta para o Ceará, começo dos anos 1990. O empresário Amarílio Macêdo, executivo e herdeiro do grupo
empresarial J.Macêdo, das farinhas de trigo Sol e Dona Benta, liderava então um acordo, o Pacto de Cooperação, entre o empresariado cearense e o governo estadual que, entre outros resultados, fortaleceu setores do agronegócio apenas com inteligência tributária e lançou bases para o extraordinário salto na educação do Ceará. Nas palavras do executivo Edson Vaz Musa, ex-presidente da Rhodia, um potentado daqueles tempos, tratava-se de uma “revolução de gestão para promover um verdadeiro salto qualitativo” no estado.
VOTO GUARDADO
Há empresários que abraçaram – ou tentaram abraçar – a política, ingressando e saindo rapidamente dela após campanhas eleitorais frustradas, como o industrial paulistano Antônio Ermírio de Moraes (1928- 2014) e o apresentador Silvio Santos. E há quem, como Amarílio, está sempre a bordejar a política, sem, no entanto, partir para as vias de fato. Não que não tenha desejado. Fundador do PSDB do Ceará, Amarílio esperava, em 1997, ser aclamado candidato pelo partido ao governo do Ceará para a sucessão do hoje senador Tasso Jereissati. Mas o estatuto da reeleição acabava de ser aprovado e Tasso ganhara enorme capital político em seu primeiro mandato, o que fez o empresário abortar a pretensão – e Tasso fazer cara de paisagem e esquecer a promessa de largar o osso. “Tem gente que me encontra e diz ‘seu voto está guardado’. Minha resposta clássica é ‘já sarei’”, disse Amarílio a PODER, em sua sala na sede do J.Macêdo, em São Paulo. “Tenho 72 anos. Agora, se houver um chamamento, só de Deus.”
Foi exatamente na gestação do Pacto de Cooperação que Tasso e Amarílio encetaram um caminho político comum. Jovens representantes de famílias industriais do estado, estavam sedentos pela renovação dos costumes políticos do Ceará, então useiro e vezeiro do voto de cabresto e das práticas clientelistas. Mais tarde, em 1987, Amarílio se afastaria do dia a dia do J.Macêdo por seis meses para se tornar coordenador da campanha que levaria Tasso à primeira vitória para o Palácio da Abolição, sede do Executivo cearense. Seu homólogo na empreitada foi Sérgio Machado, que se tornaria deputado federal e senador e hoje cumpre prisão domiciliar, consequência de sua gestão na Transpetro e do famoso acordo de delação que implicou os senadores Renan Calheiros, José Sarney e Romero Jucá.
Mesmo com uma carrada de razões para ter se decepcionado com o casamento de Tasso com a franga, é exatamente Tasso o recipiente dos elogios de Amarílio. “Existem políticos que não estão envolvidos em nenhum tipo de desvio. Dos que acompanho mais proximamente, Tasso é um que está na política por espírito público, não por interesse pessoal”, diz. Curiosamente, não foi ele, mas seu sucessor no governo do Ceará, Ciro Gomes, que fez o elogio público mais eloquente ao empresário. “A economia do estado e a reflexão sobre a nossa estratégia mudaram de qualidade quando um jovem empresário cearense me apresentou a ideia de organizar as lideranças empresariais num lugar específico que permitisse uma instantânea interação, da instância pública com o setor privado. Refiro-me a Amarílio Macêdo, a quem o Ceará muito deve.”
Se hoje está distante da política, Amarílio ainda quer ver concretizado um velho ideal, quase uma utopia no Brasil, o da sociedade menos desigual. “O plural deve vir antes do individual. A facilidade que há de dividir o país entre apartados e beneficiados não leva a nada.”
Amarílio em sua sala em São Paulo, decorada com imagens do pai, José Dias de Macêdo. Na charge, o fundador do J.Macêdo conduz suas muitas marcas num Jeep, que ele revendeu no Brasil
Amarílio está agora dedicado à vida empresarial e já acumula oito anos como presidente do conselho de administração do J.Macêdo, que se consolida como líder nacional não só do setor de farinha de trigo, com suas marcas tradicionais, como também de mistura para bolos; a empresa ainda é player importante em massas – a famosa marca Petybon, fabricada em São José dos Campos (SP), é mais uma do portfólio dos cearenses.
Embora não seja responsável pelas operações no dia a dia, o empresário passa a semana toda em São Paulo, onde fica a sede do grupo, voltando a Fortaleza e à família apenas nos fins de semana. Mas talvez seja ele, mais do que o presidente Luiz Henrique Lissoni, a figura mais proeminente do grupo. Amarílio esteve em setembro na inauguração do novo farol do Mucuripe, em Fortaleza, sexto maior do mundo com seus 71,1 metros – altura equivalente a de um prédio de 23 andares –, que foi bancado inteiramente pelo J.Macêdo para a Marinha. Ele substitui o equipamento anterior, de 1958, com 22 metros de altura e, dessa forma, permite a ampliação do gabarito das construções da orla, antes limitadas ao alcance do facho luminoso do antigo farol. Importante, isso permitiu a ampliação das instalações fabris do J.Macêdo na cidade, que vai ganhar quatro novos silos de 75 metros de altura, com 23 mil toneladas de capacidade de armazenamento, num investimento divulgado de R$ 57,4 milhões – dez vezes o valor empenhado no farol.
O J.Macêdo também reservou R$ 350 milhões para seus negócios na Bahia – segundo estado em importância para o grupo. A parte do leão, R$ 220 milhões, vai para o aumento da capacidade de produção da indústria de massas e biscoitos de Simões Filho, na Grande Salvador, enquanto outros R$ 103 milhões se destinam à automatização dos processos de produção do moinho de Salvador. Final
mente, R$ 27,5 milhões foram empenhados na modernização do terminal de grãos do porto de Salvador, que teve dobrada sua capacidade de descarregamento mecânico. O plano de expansão da empresa totaliza investimentos de R$ 550 milhões em cinco anos, um valor considerável para um grupo que teve, em 2016, receita líquida de R$ 1,6 bilhão. Face a esses números, o velho postulado de que o setor de alimentos sobrevive melhor que os demais às crises parece fazer bastante sentido. Mas como santo de casa não faz milagre (nem na Bahia), o faturamento de 2017, ainda não divulgado, não deve manter o ritmo de 2016. Para fazer frente aos novos tempos, o J.Macêdo entrou em outro setor, o de bebidas, com o refresco em pó Sol – nome de uma de suas marcas clássicas.
Se Amarílio acabou por jamais submeter seu nome às urnas, seu pai, José Dias de Macêdo, que em 1939 fundou a representação comercial que daria origem ao grupo, foi deputado federal pelo Ceará por três mandatos consecutivos, de 1959 a 1971, o último deles pela Arena, o partido governista a que se filiou
DONA BENTA FOR FREE
Quanto custa colocar o nome Dona Benta num pacote de farinha? Para o J.Macêdo, muito pouco. Por um golpe de sorte – ou de competência – a empresa conseguiu, em 1979, usar o nome de uma das mais famosas personagens do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, em seu principal produto, sem desembolsar nada além do registro convencional. Não havia por parte de quem detinha os direitos de licenciamento, que segundo Amarílio era a editora Globo, a extensão da proteção para produtos alimentícios. Amarílio conta que chegou a receber em sua fazenda herdeiros de Monteiro Lobato e que teve conversas para a utilização dos nomes de todos os personagens do Sítio, mas o acordo não prosperou pois não havia uma linha de produtos grande o suficiente para dar a “velocidade” exigida pelo licenciante. O empresário diz que não chegou a pensar que produtos poderiam levar a marca “Saci”, digamos, mas o Dona Benta foi definitivamente estratégico: com esse nome o J.Macêdo unificou todas as farinhas de trigo do portfólio, que antes chamavam Jangada, Fama etc. por conta das origens distintas. com o advento do bipartidarismo imposto pela ditadura. Hoje com 98 anos e retirado, ainda é chamado por funcionários do grupo por “deputado” – alguns o tratam por “senador”, já que também chegou a ser suplente na câmara alta. Foi apenas em 1954, 15 anos após a fundação do J.Macêdo, portanto, que a empresa entrou no negócio da farinha, importando os equipamentos necessários para a construção de seu primeiro moinho, em Fortaleza. Curiosamente, seu principal concorrente, o grupo M. Dias Branco, também do Ceará, foi por bastante tempo cliente da farinha de trigo dos Macêdo. Trata-se de um concorrente forte e inquieto – em janeiro, aliás, adquiriu a tradicional marca Piraquê por R$ 1,55 bilhão. A expansão do J.Macêdo se deveu bastante às compras de moinhos pelo Brasil, como o Fama, de Santos, o Atlântico, de Niterói, e o Salvador, da capital baiana. Esse modelo de crescimento via aquisições é comum no setor de alimentos – algo similar ocorreu com a 3 Corações, player no beneficiamento e comercialização de café, dona de várias marcas diferentes pelo Brasil.
BOLA DE CRISTAL
Num exercício de futurologia, quando se imaginam os cenários para daqui a 20 ou 50 anos, é difícil conceber que uma empresa que fabrica farinha de trigo, biscoitos e massas vai manter certa proeminência. Mas Amarílio discorda. “Fazemos um alimento que é essencial para a humanidade desde os egípcios, não consigo ver a substituição de seu consumo.” A saída dos Macêdo desse negócio também não está em pauta. “O desejo do meu pai é que a empresa não só seja perenizada como mantida com a família.” O que não significa, de todo modo, não “ir a mercado”, como diz o empresário, quando precisar “acelerar o desenvolvimento e crescimento” da companhia. Um cenário de internacionalização também não é provável na opinião de Amarílio. “A farinha é um produto de baixo valor agregado, não muito diferente daquele que os egípcios comiam. Para um estrangeiro sair de onde está ele precisa enxergar rentabilidade, e isso normalmente se dá com produtos de valor agregado.”
A NOVA GERAÇÃO
O ex-goleiro Rogério Ceni não está no negócio de farinha, mas sua jovem carreira de técnico de futebol se cruzou de alguma forma com o J.Macêdo. Depois de receber ano passado o bilhete azul do clube que lhe deu projeção, o São Paulo, Ceni desembarcou no Fortaleza, segunda principal força futebolística do Ceará. Um dos homens que apostam no sucesso do treinador é Omar Macêdo, um dos dois filhos de Amarílio, diretor administrativo do Fortaleza. O outro filho do empresário, Ravi, desde 2017 é analista sênior de desenvolvimento de negócios da EY em São Paulo.
Embora fossem oito irmãos, apenas Amarílio e Roberto foram preparados pelo pai para assumir postos de comando no J.Macêdo. Passaram por diversas áreas de negócios – antes de se concentrar no ramo alimentício, o J.Macêdo teve revendas Jeep, uma fábrica de pneus na Bahia e um jornal em Fortaleza, entre outras empresas. A meritocracia, segundo Amarílio, era uma ideia presente no grupo desde os primórdios, e é isso que deve nortear o processo sucessório para a terceira geração. E é bom que seja assim: o chamado “consórcio de primos” é numeroso. Só Roberto tem quatro filhos. Nenhum deles, contudo, trabalha no grupo.
Se o trigo ainda é o mesmo dos tempos antediluvianos, certas pressões da sociedade mudaram. O estabelecimento das causas da doença celíaca é algo contemporâneo, mas temer sem mais aquela o glúten, a proteína presente no trigo causadora desse mal autoimune, não é pertinente para Amarílio. “É preciso respeitar a preocupação de quem tem a doença celíaca, mas fora disso é bom lembrar que as populações ao longo da história que usaram o trigo na alimentação tiveram desenvolvimento intelectual e físico maior.”
Mesmo com toda a ancestralidade de sua principal matéria-prima – e, para usar um trocadilho, seu ganha-pão –, o J.Macêdo não dá sinais de querer dormir em manjedoura esplêndida. Anunciou recentemente que pretende, até 2025, utilizar apenas ovos de galinhas criadas fora do confinamento, o que terá impacto significativo no custo de seus produtos – custo que Amarílio é incapaz de calcular hoje, pois para cumprir esse compromisso de bem-estar animal ele depende de um súbito aumento da oferta de ovos gerados nessas condições. Amarílio também gostaria de saber um pouco mais sobre a utilização de agrotóxicos no trigo produzido no Brasil – 60% do que utiliza é plantado aqui –, mas no mercado de commodities, segundo ele, é bem complicado rastrear a origem do produto, pois enormes volumes de trigo são comprados de pouquíssimos intermediários, que fazem o “blend” dos grãos de diversos fornecedores. “No Brasil ainda estamos bastante atrasados nisso.”
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