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posa para PODER em seu primeiro ensaio fotográfico
BRAÇO FORTE, MÃO AMIGA, VOZ SUAVE
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BRAÇO FORTE, MÃO AMIGA, VOZ SUAVE
Setor ponderado do governo, militares mostram capacidade argumentativa e despreocupação com o marxismo cultural, o mal favorito do clã Bolsonaro. Modernização das academias que formam oficiais do Exército é uma das razões do novo momento
No catadão ministerial do presidente Jair Bolsonaro, que inclui o “posto Ipiranga”, tementes a Deus, ideólogos antiglobalistas, amigos do agronegócio e militares, estes últimos têm se revelado a voz ponderada do governo.
Pode-se argumentar que diante das diatribes da Damares, dos arroubos telúrico-nacionalistas dos ministros Ernesto Araújo e Ricardo Vélez e da própria obliteração discursiva do presidente, mostrar-se mais sensato do que os colegas é menos proeza que obrigação. Mas cumpre reconhecer que diversos militares de instâncias e estamentos diferentes, do vice-presidente e general da reserva do Exército Hamilton Mourão ao tenente Pedro Aihara, porta-voz do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, apresentado ao Brasil com a tragédia de Brumadinho, vêm se destacando não só pelos discursos bem articulados como pela inesperada intimidade com câmeras e microfones. Assim, quem apostou que a ocupação castrense dos primeiros escalões do governo Bolsonaro traria de volta os cenhos franzidos e os “nadas a declarar” da ditadura parece ter perdido dinheiro.
Ainda que media training não faça parte do currículo escolar das escolas de formação de oficiais do Exército, como a septuagenária Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), de Resende, no Rio, onde se graduaram, entre outros, Bolsonaro, Mourão, o ministro da Secretaria de Governo Carlos Alberto dos Santos Cruz e Edson Leal Pujol, atual comandante do Exército, analistas ouvidos pela PODER são unânimes em afirmar que a instituição se modernizou nas últimas décadas, tendo a geração de oficiais hoje no comando se beneficiado de missões militares como as do Haiti, que durou 13 anos e trouxe certa internacionalização à arma; no front interno também contou pontos a progressiva abertura da Aman a cadetes estrangeiros e, nos últimos anos, às mulheres. O sistema disciplinar rígido e a estrutura de internato da escola, contudo, não mudou. “O Exército segue sendo uma instituição total, fechada, que cultua valores e rituais próprios”, disse a PODER o professor Eduardo Raposo, do departamento de ciências sociais da PUC-RJ. “Mas o mundo globalizado, em que todo cadete tem um smartphone, traz abertura.”
Outro sociólogo, Maurício Santoro, professor de relações internacionais (RI) da Uerj, é ele próprio um signo dessa abertura, já que no começo da década ajudou a implantar na Aman sua disciplina. Para ele, o curso dado lá é “muito semelhante” ao de uma faculdade comum, sem qualquer ingerência superior na bibliografia estudada e com debates em clas
Marco Aurélio Nogueira, sociólogo e professor da Unesp
se de “alto nível”. “Acho que membros do Exército têm hoje um discurso menos ideológico e mais ponderado do que muitos civis, que mergulharam na polarização dos últimos anos”, disse. “E a experiência internacional dos militares supera a de muitos civis”, assinala.“O [Hamilton] Mourão fala fluentemente inglês e espanhol, o que não é comum entre nossos políticos”, diz. Para ele, “a abertura comercial maior e a própria classe média fazendo viagens ao exterior com mais frequência, esse movimento da sociedade brasileira também se reflete no Exército”.
Alunos da Aman, Jair Bolsonaro com o ortodoxo ministro Ernesto Araújo (dir.) e Hamilton Mourão, o vicepresidente que causa comoção no governo
FIXAÇÃO
A fixação pelo que se convencionou chamar de “marxismo cultural” talvez seja uma das principais linhas divisórias a separar “paisanos” e militares do governo. Se os últimos são pouco ou nada impressionáveis, os primeiros, escorados no pensamento do ideólogo-mor da direita Olavo de Carvalho, levam a conversa a um nível próximo da histeria. Em seu discurso de posse, Bolsonaro optou pelo dramático verbo “libertar” ao dizer querer “libertar o país do ‘socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto’”. Marxismo cultural na veia, a julgar por um texto ensaístico de Ernesto Araújo, documento que certamente o ajudou a pavimentar seu caminho para o Ministério das Relações Exteriores – além da indicação de Olavo. “O marxismo cultural busca enfraquecer o ser humano, torná-lo uma paçoca maleável incapaz de resistir ao poder do estado, criar pessoas inseguras, desconectadas, incapazes de assumir um papel social próprio ou de ter ideias que não sejam os chavões politicamente corretos veiculados na mídia”, escreveu. Mas combater os tais marxistas, ou “vermelhos”, como
Cadetes mulheres, uma novidade na Aman, a escola preparatória de oficiais por onde passaram Bolsonaro, Mourão e outras figuras de proa do governo
diria Bolsonaro, já não é mais a grande preocupação “verde-oliva”. Piero Leirner, antropólogo e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), autor do livro Meia-Volta, Volver: Um Estudo Antropológico sobre a Hierarquia Militar, não acredita que o marxismo cultural seja estudado na Aman. “Tenho a impressão que diretamente não vão colocar essa literatura e essas ideias na ‘ordem do dia’. Agora, se algum professor resolver dar Olavo de Carvalho, aí é com ele. O comando veta? Não sei. O que sei é que jamais vetou Bolsonaro fazendo campanha política dentro das academias desde 2014, pelo menos.”
Em contrapartida, Leirner vê digitais militares claras na campanha eleitoral, em táticas de contrainformação que ele acredita terem sido empregadas, por
MORDE E ASSOPRA
Se o clã Bolsonaro faz questão de mostrar os caninos para a imprensa – exceto aquela invariavelmente servil --, os militares do primeiro escalão têm cortejado jornalistas, a ponto de sublinhar a importância desses profissionais, como fez em seu discurso de posse o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva. Mas é o vice- -presidente, Hamilton Mourão, que mais causa comoção ao ir contra o pensamento reinante no círculo governamental. Mourão lançou uma bomba ao manifestar ao jornal O Globo uma visão bastante liberal sobre o aborto, tema particularmente caro aos bolsonaristas ortodoxos. Para o antropólogo Piero Leirner, não dá para refutar de antemão a hipótese de que as “dissonâncias” entre os setores do governo não sejam “fabricadas”. “Seria como uma extensão da campanha, que se pautou pela contradição”, diz. Mas o acadêmico abre a porta oposta. ‘‘Pode também ser consequência da junção de coisas que não combinam muito.” exemplo, nos vários discursos contraditórios emitidos por Bolsonaro e Mourão. E essas estratégias, segundo ele, já podem aparecer nas salas de aula da Eceme, a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. “Há muita expertise que vem pronta, de fora. Os manuais de “OPSi” [operações psicológicas] aproveitam farta bibliografia estrangeira, como os “field manuals” americanos. Isso é assim em qualquer Força Armada, diga-se de passagem.”
Com a ressalva de jamais ter estudado a caserna em profundidade, o sociólogo Marco Aurélio Nogueira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é mais um a ver certo descompasso no discurso entre civis e militares. “Dá para dizer que nas últimas décadas o Exército evoluiu política e tecnicamente, e se soltou da visão de salvador da pátria, de estar sempre pronto a intervir quando os civis perdem a condição de governar”, disse. “Se é assim, o tema do anticomunismo, agora do antimarxismo, tão caro a este governo, não entra com tanta facilidade nas Forças Armadas.” Para quem se interessa pelo tema, um livro que deve sair ainda este semestre pela editora da PUC-Rio trará algo da ideologia militar. A partir de entrevistas feitas com quase 3 mil oficiais, grande parte deles da ativa, os cientistas sociais Eduardo Raposo e Maria Alice Rezende de Carvalho, da PUC, e Sarita Schaffel mapearam o pensamento dos quartéis. Entre as revelações, o fato de a corrupção não ser o principal mal do país para os entrevistados – fica atrás do baixo nível educacional dos brasileiros; além disso, 93,4% da população, segundo os militares, não sabe votar. Os questionários foram respondidos, é importante que se diga, antes de Jair Bolsonaro viabilizar-se como candidato presidencial.