EDITORA OLYMPIA
Capa:Pintura“SãoJorgeeodragão”deRafael Sanzio(1483-1520)comartedeRobertoPereira
F825 Franco, Carlos (organizador)
Editora Olympia, 2024, Uberlândia, MG
Pág.
ISBN 978-65-86241-16-7
1.1. Ficção brasileira — Contos I. Título
CDD B869.301
CDU 821.134.3 (81)
“Euandareivestidoearmadocomasarmas deSãoJorgeparaquemeusinimigos, tendopésnãomealcancem, tendomãosnãomepeguem, tendoolhosnãomevejam, enemempensamentoselespossammefazer mal.
Armasdefogoomeucorponãoalcançarão, facaselançassequebremsemomeucorpo tocar, cordasecorrentessearrebentemsemomeu corpoamarrar. ”
Trecho da oração de São Jorge
Sumário
Apresentação/Carlos Franco
Página 7
A fé que habita em mim/Thaís Moritz Cordeiro
Página 29
A grande peleja/William R.F. Ramires
Página 36
A medalha de São Jorge/Edmir Saint-Clair
Página 41
Guardião da lua/Matile Facó
Página 55
Ícaro e Ewa/Carlos Henrique dos Santos
Página 67
O Sancho Pança de São Jorge/Olivaldo Júnior
Página 75
ReEscrever/Cláudia Camilo
Página 84
“
Apresentação
LuadeSãoJorge,luadeslumbrante
Azulverdejante,caudadepavão LuadeSãoJorge,cheia,brancaeinteira
Oh,minhabandeirasoltanaamplidão
LuadeSãoJorge,luabrasileira
Luadomeucoração!”
Trechodacanção “LuadeSãoJorge”deCaetano
Veloso
CarlosFranco
Louvado nos templos católicos, nos terreiros de religiões de matriz africana, nos estádios de futebol, nas casas, nos bares, no comércio e nas quadras de escolas de samba, São Jorge está presente na vida de todos, inclusive por meio das lendas que o cercam, como o fato de ser o guardião da lua, de onde sua imagem é vista desde tempos imemoriais. Senhor dos exércitos e da turca Capadócia, patrono da Inglaterra, da Geórgia, da Lituânia, da Sérvia, de Montenegro e da Etiópia, é o protetor que, acredita-se, nos livra dos dragões da maldade que a todos cercam. Celebrado no Brasil em 23 de abril, São Jorge é patrono de inúmeras cavalarias ao redor do mundo por força de sua representação iconográfica, montado emum cavalo e derrotando
com sua poderosa lança o dragão com a força e a mística do guerreiro.
Este santo também é padroeiro de cidades como Londres, Moscou, Barcelona, Génova, Régio da Calábria, Ferrara, Friburgo e Beirute. É tão especialmente celebrado no Rio de Janeiro que muitos se esquecem que o padroeiro da cidade maravilhosa de encantos mil é São Sebastião, celebrado em 20 de janeiro na cidade fundada oficialmente em 1º de março de 1565 pelo português Estácio de Sá (1520-1567).
Explica-se: na predominância do inconsciente coletivo todos nós queremos a proteção de um guerreiro, um auxiliar divino que nos ajude a quebrar os obstáculos que surjam pela frente, enquanto São Sebastião, símbolo da resiliência e da aceitação pacífica da crueldade do mundo, não teria como nos livrar das lanças com as quais os inimigos da sua fé o abateram.
Presente nos belos pontos, como são chamados os cânticos de umbanda, a única religião genuinamente brasileira, que surgiu do sincretismo entre o catolicismo e as religiões ancestrais de matriz africana, que antecedem o cristianismo, São Jorge também conquistou lugar de destaque na música popular brasileira.
Compositores como Jorge Ben Jor, Caetano Veloso, Zeca Pagodinho, MC’s Racionais, Alceu
Valença, Djonga, intérpretes de primeira grandeza como Maria Bethânia e Alcione e uma legião de músicos de diferentes gêneros também o homenageiam e assinam canções que contribuem para tornar o santo guerreiro ainda mais presente na arte e na cultura brasileira.
É Maria Bethânia quem empresta a bela voz à emblemática música “Medalha de São Jorge” de Moacyr Luz:
MedalhadeSãoJorge
Ficaaomeulado,SãoJorgeGuerreiro
Comtuasarmas,teuperfilobstinado
Meguardaemti,meuSantoPadroeiro
Melevaaocéuemtuamontaria
Numavisitaaluacheia
QueéamedalhadaVirgemMaria
Dooutrolado,SãoJorgeGuerreiro
Põetuasarmasnamedalhaenluarada
Teguardoemmim,meuSantoPadroeiro
Aquemrecorroemhorasdeagonia
Tenhoamedalhadaluacheia
VocêcasadocomaVirgemMaria
OmareanoitelembramaBahia
Orgulhoeforça,marcasdomeuguia
Contocontigocontraosperigos
Contraoquebrantodeumapaixão
Deusmeperdoeessaintimidade
Jorgemeguardenocoração
Que a malvadeza desse mundo é grande em extensão
Emuitaveztemardeanjo
Egarrasdedragão
Já Zeca Pagodinho assina e interpreta “Pra São Jorge” numa sensível mensagem de agradecimento ao seu santo protetor: “Vou acender velas para São Jorge/ A ele eu quero agradecer/ E vou plantar comigo ninguém pode/ Para que o mal não possa então vencer/ Olho
grande em mim não pega/ Não pega não/ Não pega em quem tem fé/ No coração”.
Jorge Ben Jor ao homenagear o santo que é seu xará trouxe para a canção lançada em 1975 uma releitura da oração a que todos recorrem em momentos de aflição e que também foi entoada pelos Racionais MC’s na abertura do genial álbum “Sobrevivendo no inferno”:
JorgedaCapadócia
JorgeBenJor
JorgedeCapadócia
JorgedeCapadócia
JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)
JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)
JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)
JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)
Jorge
Jorgesentoupraçanacavalaria
Euestoufelizporque
Eutambémsoudasuacompanhia
Euestouvestidocomasroupaseasarmasde
Jorge
Paraquemeusinimigos
Tenhammãosenãometoquem
Paraquemeusinimigos
Tenhampésenãomealcancem
Paraquemeusinimigos
Tenhamolhosenãomevejam
Enemmesmopensamento
Elespossamterparamefazeremmal
Armasdefogo,meucorponãoalcançará
Espadas,facaselançassequebrem
Semomeucorpotocar
Cordas,correntessearrebentem
Semomeucorpoamarrar
Poiseuestouvestidocomasroupaseasarmas deJorge
Sensacional!
JorgeédeCapadócia,maravilha(vivaJorge!)
JorgeédeCapadócia,sensacional(salve,Jorge!)
Perseverança,ganhoudosórdidofingimento
Edissotudo,nasceuoamor
Perseverança,ganhoudosórdidofingimento (Emcima,uou!)
Edissotudo,uh,nasceuoamor
JorgedeCapadócia
JorgedeCapadócia
JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)
JorgedeCapadócia(salve,Jorge!)...
O pernambucano Alceu Valença, por sua vez e em “Chuvas de cajus”, recorre a São Jorge para
pedir proteção no álbum “Ciranda Mourisca”, de 2013: “Pastores da noite/ Meu São Jorge amado/ Livrai-me do ódio/ Dos abandonados”.
Coube à maranhense Alcione, uma das mais destacadas sambistas brasileiras, responsável pelo projeto Mangueira de Amanhã da tradicional agremiação carioca, trazer o São Jorge dos terreiros para o cancioneiro popular numa das mais belas composições em homenagem ao guerreiro:
Quandovimpraessechão
Foiprasermenestrel
Deviola,brasãoeanel
Cruzeimaresertão
Comumaestreladocéu
Reluzindonomeuchapéu
Vimmostrarbeleza
Massóvitristeza
Eessaestrelaacesa
Virounanoite,umfogaréu
Pralutarcontraomal
Metorneicapitão
Parabeloepunhalnamão
Pusemcadaarraial
Umaestrelanochão
Comapontadomeufacão
Noscamposdeguerra
Luteipormeusirmãos
Poressaterra(Ogunhê)
Tombeinaserra(Ogum)
Masmeusonhonão
Aruandachamou
Euvireiorixá
CavaleirodeOxalá
Hojeeusoudefensor
Guardiãodoluar
SouSãoJorge,OgumBeira-Mar
Aruandachamou
Euvireiorixá
CavaleirodeOxalá
Hojeeusoudefensor
Guardiãodoluar
SouSãoJorge,OgumBeira-Mar
Em 2007, Jorge Ben Jor se uniria a Jorge Aragão, Jorge Vercillo e Jorge Mautner para falar do guerreiro que lhes empresta os nomes, a identidade e a brasilidade em “Líder dos Templários” , canção que evoca a força protetora de Jorge, o Ogum dos terreiros do Brasil, o Oxóssi dos terreiros baianos.
Líderdostemplários
TemféqueJorgeédeajudar
AtodoBrasileiro,Brasileiroguerreiro
SãoJorgecavaleirodaflor, SãoJorgeprotetor,protetor,protetor
Oxóssidamata,OgumdoFerro
Salamâleico,âleicon,salamalan
EstóriasdeumSantolutador
Lidersoberanodostemplários
Nopovoasuaforçaseperpetuou
Ehojeviveemnossoimaginário,
Ehojeviveemnossoimaginário
Mastodoimagináriotemvalor
Epodetransformaressecenário
Amentecriadoraéumdommaior
Naquelesquesãorevolucionários
Naquelesquesãorevolucionários
TemféqueJorgeédeajudar
AtodoBrasileiro,Brasileiroguerreiro
Eusoucavaleirodaflor,
SãoJorgeprotetor,protetor,protetor
SãoJorgeprotetor,protetor,protetor
Oterrenoambíguo
Porqueeleéumherói
Eletempulsaçõeshumanas
Eéporissoqueeleátãoquerido
Emtodososlugares,
Pelascrianças,pelapopulação
EstóriasdeumSantolutador
Lídersoberanodostemplários
Nopovoasuaforçaseperpetuou
Ehojeviveemnossoimaginário, Ehojeviveemnossoimaginário
Mastodoimagináriotemvalor
Epodetransformaressecenário
Amentecriadoraéumdommaior
Naquelesquesãorevolucionários
Naquelesquesãorevolucionários
TemféqueJorgeédeajudar
Atodobrasileiro,brasileiroguerreiro
Eusoucavaleirodaflor
SãoJorgeprotetor,protetor
Protetor
TemféqueJorgeédeajudar
Atodobrasileiro,brasileiroguerreiro
Eusoucavaleirodaflor
SãoJorgeprotetor,protetor Protetor
SãoJorgeprotetor,protetor Protetor
SãoJorgeprotetor,protetor Protetor
DeCamõesaFernandoPessoa
Nóssomosresultado
Dessaperegrinaçãolongínqua
Decombatesedeglórias
Deafirmaçãodobemcontraomal, Emesmonaeracibernética, Nomundodigital,noholograma
AliestáSãoJorge
Triunfantelánafrentedetodosnós, Éapipocadapororocadaimaginação
TemféqueJorgeédeajudar
Atodobrasileiro,brasileiroguerreiro, Eusoucavaleirodaflor
SãoJorgeprotetor,protetor,protetor
TemféqueJorgeédeajudar
Atodobrasileiro,brasileiroguerreiro
SãoJorgecavaleirodaflor
SãoJorgeprotetor,protetor,protetor
SãoJorgeprotetor,protetor,protetor
SãoJorgeGuerreiro
Santosalvador
SARAVÁ,dorôfé,otumba
Vemnosajudar
Vemcurarador
Vemnosajudar
Salamâleico,âleicon,salamalan
Shalonshalon
Amém
SantoSalvador
O carioca de Belfort Roxo Jorge Mário da Silva, o Seu Jorge, também fez sua homenagem ao santo em “Alma de guerreiro” que ganhou grande repercussão ao integrar a trilha sonora da novela “Salve Jorge!” da TV Globo:
Almadeguerreiro
JorgevemdeládaCapadócia
Montadoemseucavalo
Namãoasualança
Defendendoopovodoperigo
Dasmazelasdoinimigo
Vemtrazendoaesperança
Jorge,nossopovobrasileiro
Temalmadeguerreiro
Nãocansadelutar
Enfrentandoumdragãopordia
Nasuacompanhia
Agentechegalá
Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)
Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorgenarua)
Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)
Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorge)
JorgevemdeládaCapadócia
Montadoemseucavalo
Namãoasualança
Defendendoopovodoperigo
Dasmazelasdoinimigo
Vemtrazendoaesperança
Jorge,nossopovobrasileiro
Temalmadeguerreiro
Nãocansadelutar
Enfrentandoumdragãopordia
Nasuacompanhia
Agentechegalá
Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)
Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorgenarua)
Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)
Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorgenarua)
Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)
Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorgenarua)
Olhandoparaocéueusoucapazdever (SalveJorgenalua)
Tropeçandoelevantandosemprecomvocê (SalveJorgenarua)
A novela Salve Jorge!, da TV Globo, exibida entre 22 de outubro de 2012 e 18 de maio de 2013, trouxe tema importante para a telinha dos televisores ao abordar o tráfico de escravas sexuais a partir do sonho de moradoras do Complexo do Alemão, uma das maiores populações faveladas da América Latina, em ganhar a vida no exterior. Escrita por Glória Perez, a trama enfatizou a força protetora de Jorge, neste caso de carne e osso, personificado por Théo, oficial da cavalaria do exército, devoto de São Jorge.
Mas é na poética “Lua de São Jorge” , do baiano Caetano Veloso que o santo guerreiro brilha no céu com todo o seu resplendor:
LuadeSãoJorge
Luadeslumbrante
Azulverdejante
Caldadepavão
LuadeSãoJorge
Cheia,branca,inteira
Óminhabandeira
Soltanaamplidão
LuadeSãoJorge
Luabrasileira
Luadomeucoração
LuadeSãoJorge
Luadeslumbrante
Azulverdejante
Caldadepavão
LuadeSãoJorge
Cheia,branca,inteira
Óminhabandeira
Soltanaamplidão
LuadeSãoJorge
Luabrasileira
Luadomeucoração
LuadeSãoJorge
Luamaravilha
LuadeSãoJorge
Mãe,irmãefilha
Detodoesplendor
LuadeSãoJorge
Brilhanosaltares
Brilhanoslugares
Ondeestouevou
LuadeSãoJorge
Brilhasobreosmares
Brilhasobreomeuamor
LuadeSãoJorge
Luasoberana
Nobreporcelana
Sobreasedaazul
LuadeSãoJorge
Luadaalegria
Nãosevêumdia
Clarocomotu
LuadeSãoJorge
Serásminhaguia
NoBrasildenorteasul
LuadeSãoJorge
Luadeslumbrante
Azulverdejante
Caldadepavão
LuadeSãoJorge
Cheia,branca,inteira
Óminhabandeira
Soltanaamplidão
LuadeSãoJorge
Luabrasileira
Luadomeucoração
LuadeSãoJorge
Luamaravilha
Mãe,irmãefilha
Detodoesplendor
LuadeSãoJorge
Brilhanosaltares
Brilhanoslugares
Ondeestouevou
LuadeSãoJorge
Brilhasobreosmares
Brilhasobreomeuamor
LuadeSãoJorge
Luasoberana
Nobreporcelana
Sobreasedaazul
LuadeSãoJorge
Luadaalegria
Nãosevêumdia
Clarocomotu
LuadeSãoJorge
Serásminhaguia
NoBrasildenorteasul
E foi, por meio da união de Zeca Pagodinho e Maria Bethânia no álbum “De Santo Amaro a Xerém” que, surgiu uma louvação que sintetiza a força do guerreiro na cultura popular:
Ogum/OraçãoaSãoJorge
EusoudescendenteZulu
SouumsoldadodeOgum
DevotonessaimensalegiãodeJorge
Eu,sincretizadonafé
Soucarregadodeaxé
Eprotegidoporumcavaleironobre
Sim,vounaigrejafestejarmeuprotetor
Eagradecerporeusermaisumvencedor
Naslutas,nasbatalhas
Sim,vounoterreiroprabateromeutambor
Batocabeçaefirmoponto,simsenhor
EucantopraOgum
umguerreirovalente
Quecuidadagentequesofredemais (Ogum)elevemdaLuanda
Elevencedemandadegentequefaz (Ogum)cavaleirodocéu
Escudeirofiel,mensageirodapaz (Ogum)
elenuncabalança
Elepeganalança,elemataodragão (Ogum)équemdáconfiança
Praumacriançavirarumleão (Ogum)éummardeesperança
Quetrazabonançapromeucoração (Ogum)
EusoudescendenteZulu
SouumsoldadodeOgum
DevotonessaimensalegiãodeJorge
Eu,sincretizadonafé
Soucarregadodeaxé
Eprotegidoporumcavaleironobre
Sim,vounaigrejafestejarmeuprotetor
Eagradecerporeusermaisumvencedor
Naslutas,nasbatalhas
Sim,vounoterreiroprabateromeutambor
Batocabeçaefirmoponto,simsenhor
EucantopraOgum
umguerreirovalente
Quecuidadagentequesofredemais (Ogum)elevemdaLuanda
Elevencedemandadegentequefaz (Ogum)cavaleirodocéu
Escudeirofiel,mensageirodapaz (Ogum)
elenuncabalança
Elepeganalança,elemataodragão (Ogum)équemdáconfiança
Praumacriançavirarumleão (Ogum)éummardeesperança
Quetrazabonançapromeucoração
Ogum
Jesusadiantepazeguia(Ogum)
Encomendo-meaDeuseavirgemMaria
Dozeapóstolosmeusirmãos
Euandareivestido,armado,cercado(Ogum)
ComasarmasdeSãoJorge
SãoJorgesentoupraçanacavalaria(Ogum)
Eeuestoufeliz
Porqueeutambémsoudasuacompanhia
Euestouvestido(Ogum)
ComasroupaseasarmasdeJorge paraquemeusinimigos,tendopés
Nãomealcancem
Tendomãosenãomepeguem(Ogum)
Tendoolhosnãomevejam
Enemempensamento
Elespossamterparamefazeremmal(Ogum)
Armasdefogoomeucorponãoalcançarão
(Ogum)facaselançassequebrem
Seemmeucorpotocar
(Ogum)cordasecorrentes
Searrebentemsemeucorpoamarrar
Poiseuestouvestido
ComasroupaseasarmasdeJorge(Ogum)
SalveJorge!
SalveSãoJorge!(Ogum)
JorgeédaCapadócia!
Ogum
E se o santo, originalmente católico, é envolto em contradições quanto ao tempo em que viveu e as lendas que o circundam, é senso comum que tenha nascido na turca Capadócia e falecido na cidade palestina de Lida, no território que, a partir da criação de Israel em 1947, ganhou o nome de Lod. É nesta cidade que fica a igreja tantas vezes destruída e reerguida no local onde o soldado guerreiro, defensor do cristianismo, teria sido sepultado após decapitado por ordem do imperador romano Diocleciano provavelmente em 23 de abril de 303. Enfatizamos aqui o provavelmente porque nada a que se refere ao santo guerreiro é preciso a não ser a fé que todos têm nele e que o tornou santo pelas igrejas católica, ortodoxa e anglicana.
Adotado no Brasil pelos belos e singelos cultos de matriz africana como Ogum, São Jorge tornou-se, assim, orixá guerreiro e protetor que vive e reina na lua e também no coração dos homens.
Salve Jorge! Ogunhê que é saudação de origem africana a este guerreiro com a qual intitulamos esta obra realça a sua brasilidade e atemporalidade, os laços laicos de nossas origens portuguesas, africanas e ameríndias.
Por fim, como organizador desta antologia, me cabe ressaltar que a Editora Olympia tem muito
orgulho em reunir novos e premiados talentos que, com seus textos, brindam os leitores com novas imagens e novas visões de mundo.
Saravá!
A fé que habita em mim
Thaís Moritz Cordeiro
Em uma pequena aldeia, entre verdejantes colinas e campos dourados semeados com trigo, vivia um jovem chamado William. Desde tenra idade, William era fascinado pelas histórias de grandes guerreiros, que enfrentavam com honra ecoragem os desafios que lhe eram impostos, apreciava especialmente as histórias sobre São Jorge, cuja lenda era reverenciada por todos de sua aldeia, que sempre lembravam delas com riqueza de detalhes. Nos dias ensolarados, William passava horas nos arredores dos campos de treinamento dos guerreiros, imaginando ser um deles, observando com total admiração os movimentos habilidosos e a coragem nos olhos daqueles homens que eram preparados para defender o reino.
No entanto, mesmo com desejo ardente em seu peito de seguir os passos dos heróis que tanto admirava, William enfrentava uma barreira interna que parecia insuperável: a falta de confiança em si mesmo. A coragem que ele contemplava nos outros homens, parecia um dom inatingível, um tesouro guardado em uma fortaleza repleta de obstáculos e dragões horrendos. Ele sempre se viu como mero
espectador, incapaz de se erguer e se juntar aos guerreiros que ele tanto idolatrava e poder, quem sabe, se igualar a bravura daquele que ele tinha tanta fé!
Com um velho cavalo, William andava pelos campos imaginando a ação ao seu redor, batalhas e lutas que ele jamais poderia vencer. Porém, neste mesmo dia, quando o sol estava se pondo, uma sombra sinistra começou a se espalhar sobre a aldeia como uma névoa negra. Os campos dourados, começaram a ficar brancos e turvos, ecoando murmúrios ansiosos e olhares temerosos dos aldeões. Rumores então começaram a circular sobre uma criatura monstruosa que vagueava pelas redondezas, uma ameaça que pairava sobre aquele lugar. Parecia que finalmente os guerreiros saberiam o porquê de tanto treinamento.
Os homens daquela aldeia foram convocados às pressas para enfrentar a ameaça, que até o momento, estava oculta em meio à escuridão. William, apesar de sentir um chamado profundo para agir, permaneceu imóvel, preso em sua própria hesitação. Ele se sentia impotente diante da magnitude da tarefa que se apresentava, mas em seu íntimo ele sabia que seria capaz de encontrar um pouco de coragem necessária. De cima de seu cavalo, William sussurrava para si mesmo:
Não vamos temer! São Jorge estará conosco! Ele não nos abandonará agora! Eu sei disso.
Enquanto a aldeia mergulhava cada vez mais na sombra do medo, William lutava contra seus próprios demônios internos no meio daquele campo. Ele sabia que não poderia continuar sendo apenas um mero observador enquanto sua comunidade enfrentava um grande perigo, mas o peso de sua insegurança parecia ainda esmagadora.
Foi então que um vendaval devastador destruiu tudo em seu caminho. William assistia de longe o que acontecia, ainda paralisado e rezando baixinho. Um rugido estrondoso ecoou pelos céus, um grande barulho de asas batendo, surgindo então um dragão colossal, com escamas negras como a noite, lançando fogo e destruição por onde passava. Vultos negros pairavam por detrás das árvores como uma maré negra que engolia tudo em seu caminho. Casas começaram a ser reduzidas a cinzas, os campos começaram a pegar fogo e os guerreiros que tentavam defender a aldeia foram derrubados como grãos de areia diante de uma tempestade. Enquanto o caos se desenrolava ao seu redor, William tremia em cima de seu cavalo, tudo estava desmoronando diante de seus olhos, e ele se viu incapaz de fazer qualquer coisa para detê-lo. Mas então, em meio
à escuridão e desespero, uma luz de esperança surgiu.
Uma chama de determinação começou a queimar no peito de William, alimentada pelo exemplo de coragem de quem ele tinha tanta fé. Era como se uma voz interior estivesse sussurrando-lhe de volta palavras de encorajamento, incitando-o a agir, a se erguer e enfrentar seus medos, mostrando-lhe do que era capaz. E assim, William tomou uma decisão. Sabia que não podia ficar ali parado e assistir tudo o que conhecia ser destruído. Pegou uma lança derrubada por um guerreiro e cavalgou em direção à aldeia gritando com fé de que era capaz de lutar e de vencer. Ele não estava sozinho!
E foi nesse momento, no calor da batalha, que William começou a entender a verdadeira natureza da coragem. Não era apenas uma questão de força física ou bravura audaciosa, mas sim de uma jornada contra si próprio, contra todos os medos e dúvidas que ele próprio lhe permitia assombrar.
Enquanto a batalha se intensificava e a aldeia tremia sobre a sombra da ameaça iminente de destruição, William lançou com toda força que podia a lança contra a criatura, que por sorte a atingira no peito. O dragão rugiu de dor, mas não se deu por derrotado, virou-se então para o jovem, pronto para retaliar o dano que ele lhe causara. Neste momento, William voltou a si e sentiu o
desespero se apoderar dele... Mas algo extraordinário aconteceu!
Uma presença familiar, uma aura de coragem e proteção envolveu William como um manto celestial. O jovem olhou ao redor, incrédulo e viu a figura majestosa emergindo das sombras por de trás dele, trajando uma armadura resplandecente e brandindo uma espada de prata reluzente.
Era São Jorge! Seu protetor! Que nunca o abandonara!
O santo guerreiro, cujas façanhas lendárias haviam inspirado William desde a infância estava ali diante dele, irradiando poder e determinação. Por um instante, todas as suas dúvidas e medos se dissiparam. Ele sentiu uma nova força, uma coragem renovava pulsando através de suas veias, como nunca havia sentido antes.
Com a fé inabalável em São Jorge e em sua própria capacidade de enfrentar o mal, William ergueu-se, com os olhos fixos no dragão que se aproximava ferozmente. Ele se viu revestido de uma determinação que não sabia que possuía, pronto para enfrentar a ameaça que estava ali diante dele. Enquanto o dragão avançava, São Jorge lutava ao lado de William, sua presença dava-lhe a coragem que precisava. Em movimentos espelhados, os dois lutaram contra o dragão que rugia de dor a cada golpe. E, cada
golpe desferido contra a criatura nada mais era que uma declaração de fé, de uma demonstração de que, juntos, eles eram mais fortes do que qualquer adversário que enfrentassem, bastava-lhe a fé.
As pessoas que observavam a batalha, mal podiam acreditar no que viam. Alguns juravam ter visto a imagem de São Jorge irradiando da própria forma de William, como se o santo guerreiro estivesse presente dentro dele, se tornando um só. E assim, William não estava mais sozinho, estava junto com São Jorge. E, quando a batalha chegou ao fim, o dragão foi derrotado, e William sabia que nunca mais seria o mesmo.
A fé que tinha em São Jorge juntamente com sua presença, o fortalecera trazendo à tona tudo o que ele jamais imaginaria ser. Ele, com um sorriso iluminado desceu de seu cavalo, abraçando o pescoço do animal e depois o resto da população que agora estava em volta dele em festa. Todos da aldeia que não acreditavam em William, o jovem franzino e covarde, neste momento puderam testemunhar que ele tinha salvado toda a aldeia com sua coragem e sua fé.
Muito tempo se passou, mas ainda dizem os mais velhos, que William nunca esteve sozinho, que São Jorge sempre o acompanhara desde sua infância e sempre ouviu suas preces, súplicas e orações, guiando-o e protegendo-o em sua
jornada. A sua fé em São Jorge e em si mesmo, o salvou e salvou também toda sua aldeia, que nunca mais ousaram ter dúvidas de que este Santo faz milagres!
A grande peleja
William R. F. RamiresQuando criança, Otávio foi criado em uma família católica. Não que isso significasse muita coisa, porque ali ninguém era praticante de verdade, seguiam alguns preceitos e se davam por satisfeitos.
Sua avó tinha duas imagens de santos que fascinavam a criança. Uma delas era São Sebastião. No tal pôster do santo, o sujeito estava com três ou quatro flechas fincadas em seu corpo, o pequeno ficava fascinado com aquilo. Como aquele moço sobreviveu àquelas flechadas? O desenho era fantástico, quase mágico. Aquele homem da imagem tinha um olhar sereno, mirava meio de lado, mas não demonstrava dor ou desespero e o sangue escorria dos ferimentos das flechas.
Passava horas olhando para aquilo, sem entender como aquele sujeito tomou tantas flechadas e tinha se tornado santo. Sua avó falava que era um mártir, alguém que pregava a palavra do senhor e por isso foi atacado e humilhado pelos romanos, mas mesmo assim não renunciou à sua fé.
Otávio quando pequeno achava que o sofrimento fazia parte da religião, afinal, havia um homem flechado, e, todos rezavam para um crucificado pregado em uma cruz, um instrumento de tortura e dor. Sentia calafrios só de imaginar aqueles grandes pregos enferrujados, penetrando as mãos e pés do infeliz, só via dor e sofrimento naquilo.
A outra imagem que sua avó tinha era mais fascinante, era um homem montado num grande e bonito cavalo, segurando uma enorme lança que estava furando um gigante dragão. O cavalo pisava no réptil alado que cuspia fogo, o cavaleiro tinha um semblante calmo e passivo enfiando a ponta de sua lança na garganta do maldoso. O dragão parecia sucumbir. A imagem deveria ter uma sequência, era o que a criança pensava, o pequeno queria saber que fim levou o cavaleiro e o dragão. Aquela luta ainda prometia reviravoltas, não deveria ser fácil matar um invencível dragão daquela maneira.
Ele dormia pensando nas imagens, aquilo não saia de sua cabeça. Às vezes sonhava com o flechado, outras vezes com a gloriosa luta do cavaleiro com o dragão.
Certa vez, sua avó contoua história, sobre a grande peleja do cavaleiro com o dragão, e de que forma foi que tudo aconteceu.
São Jorge saiu pelo mundo e passou a caminhar por terras e mares, pregando a palavra do senhor essa era a versão da avó, que adorava fantasiar suas histórias, o pequeno Otávio perguntava:
— Mas como ele andava pelos mares? A pé?
— Claro que não menino, com seu cavalo que era mágico e não afundava!
A avó não se abalava com as curiosas perguntas do jovem.
Um dia chegou à Lua.
O cavalo de São Jorge voava?
Se caminhava sobre a água, claro que voava!
O pequeno se encantava com aquela história de cavaleiro que caminhava sobre as águas e podia chegar na Lua, era uma verdadeira saga medieval, mesmo São Jorge tendo vivido no período romano.
— Na Lua, ele viu uma bela moça que seria levada para um sacrifício. O dragão exigia jovens donzelas para não matar todos que ali moravam.
Morava muita gente na Lua?
Oxé, a Lua estava entupida de gente naquela época. a avó falava e não escondia os risos de prazer.
— Continuando, o cavaleiro parou em frente à procissão e foi contra aquele sacrifício, então, decidiu matar o dragão. Tentaram convencer ele para não fazer aquilo, afinal o dragão tinha uma armadura impenetrável, mas São Jorge não se abalou.
A avó contava a fábula, sem tirar seus olhos do tricô que manipulava com extrema habilidade, a criança ficava impaciente.
Mas como foi que ele matou o dragão? Era tão feroz e protegido.
— Calma, rapaz, tá querendo atropelar as minhas palavras. Tenha paciência. Você já olhou para a Lua?
— Sim.
— Percebeu que ela está cheia de buracos?
— Sim.
Então, foi a terrível luta do cavaleiro com o dragão. Aquilo, sim, foi uma verdadeira batalha, foi uma poeira lunar se levantando de todos os
lugares e grandes buracos a cada peleja. Mas, enfim, o cavaleiro conseguiu com o seu cavalo pisar no temível dragão e percebeu que sua boca não tinha proteção, assim enfiou sua lança na garganta da fera, antes deste lhe chamuscar todo. Como naquela imagem pendurada.
— Entendi.
A criança cresceu, e como o tempo percebeu que sua avó aumentava um pouco a história, mas aquela lenda nunca o deixou de encantar. E para perpetuar seu fascínio pelo santo guerreiro começou a torcer pelo Corinthians, cujo padroeiro maior é o grande São Jorge, o matador de dragão. Salve Jorge! Viva o santo guerreiro, viva o Timão!
Hoje o homem, Otávio, é sempre visto nos estádios, vestindo a camisa com o santo guerreiro subjugando o dragão, com o distintivo do alvinegro no peito e sua inseparável bandeira do São Jorge usado a camiseta do Corinthians.
A medalha de São Jorge
Edmir Saint-Clair
A ansiedade era grande. Não via o filho há tempo demais. Saudade apertada, mais ainda quando faltam poucas horas para revê-lo. Diego não quis que Felipe fosse pegá-lo no aeroporto por conta da falta de previsão de tempo nas esperas entre conexões. Estava vindo de Beijing, depois de cinco anos na China.
Felipe resolveu descansar um pouco, a ansiedade desses últimos dias havia sido desgastante. Deitouse no sofá da sala e adormeceu. Passara a noite acordado, ansioso, pensando na volta do filho. Agora, cedia ao cansaço.
A campainha toca insistentemente. Ele levanta assustado e, ato reflexo, corre para a porta. O antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, marca 8h e 06m da manhã. Abre a porta.
Diego... Dá cá um abraço filhão!
Diego abraça o pai com força e saudade iguais e intensas. Um abraço longo, aconchegante e
familiar. Pai e filho que se querem tão bem quanto é possível. Surfistas, rubro-negros e cariocas. Um extenso rol de afinidades. Amor.
Felipe pega uma das malas enquanto o filho às outras. Pelo volume da bagagem, veio de vez. Tomara, pensou. Voos internacionais sempre chegam cedo pela manhã. A tempo de aproveitarem e brincar um pouco nas ondas do final do Leblon. Felipe mostra a Diego a prancha que mandou fazer de presente para o filho.
Diego fica emocionado com a recepção e o carinho do pai, e lhe dá mais um daquele demorado e saudoso abraço. Tem orgulho do pai.
A felicidade dos dois é transbordante. Aqueles momentos em que o sorriso não sai do rosto e parece que nunca vai sair. Olhar para o outro alimenta ambos os sorrisos. E o silêncio completa.
Ele é meu filho. Pensou.
Ele é meu pai. Pensou o filho no mesmo exato milésimo daquele silêncio sagrado. Certas emoções são grandes demais, não cabem em palavras.
A felicidade acontecia explicitamente naquele momento, pai e filho desfrutando a plenitude da
presença do outro. Combinaram que Diego ia dormir um pouco, viajara mais de 30 horas. Estava exausto. Felipe deu um beijo na testa do filho e saiu do quarto.
Diego não acordaria antes das 14h, ele tinha 6 horas pela frente. Seria bom almoçarem em casa para que Diego pudesse acordar com calma e sem pressa. Lembrou-se da feijoada de sábado do Degrau que sempre comeram desde que o filho era pequeno e ainda não gostava. Depois da separação, a feijoada tinha se tornado programa obrigatório dos dois. É a pedida perfeita para hoje. Ele volta até a porta do quarto do filho. Mas não a abre. É só a alegria que não está cabendo.
Uma feijoada e depois uma boa remada no mar de final de tarde de outono. A luz mais bonita do Rio de Janeiro. Seria perfeito se tivéssemos um baseado para fumar antes do surf. Há anos não fumava. Fumar um baseado com o filho tem um significado especial. Não é um consumo de drogas doentio. É um ritual. O preconceito é uma lente mal construída que torna tudo mais feio. Uma lente de enfeiar o mundo.
Havia algum tempo que Felipe não comprava maconha, e tinha perdido o contato com os
eventuais fornecedores do bairro. Nessa altura do fim de semana, se quisesse fumar um baseado antes da praia com o filho, teria que recorrer à Cruzada. Tudo bem, ali é tranquilo, pensou. Riu sozinho, a última vez que foi na Cruzada comprar um baseado deve ter sido há, pelo menos, uns 25 anos atrás.
Diego voltou três dias antes de completar 30 anos. Um adulto, profissional com formação altamente especializada. Apesar de sempre ter tido um quarto na casa do pai, não importa com quem o pai estivesse casado, só haviam morado juntos nos primeiros dois anos da vida dele. Época da qual, obviamente, o filho não se lembrava. Depois, eram fins de semana, férias e feriados, como todo pai separado. Pouco antes de viajar para a China, passaram onze meses juntos. O maior tempo que passaram até então. Os melhores também.
Felipe mora na Selva de Pedra. A Cruzada fica a um quarteirão. Antes, resolve passar no Degrau e deixar a feijoada reservada para viagem, e garantir que nada saísse errado. A feijoada de sábado do Degrau é concorrida no bairro e costuma acabar cedo. A ideia é, em vez de saírem para comê-la no restaurante, ele a servirá em casa, para que Diego
acorde com toda calma e a coma na maior preguiça que conseguir.
• * * *
Diego não conseguia parar de se mexer na cama, inquieto. Acordou incomodado, achou que fosse o frio do ar condicionado e se cobriu mais. Olhou a hora no celular, 11 horas da manhã. Dormira apenas 3 horas... isso não costumava acontecer. Geralmente, dormia 6 horas ininterruptas de um sono calmo. Sempre agradecia mentalmente o pai tê-lo introduzido na prática da meditação desde cedo. Atribuía a isso sua calma e equilíbrio. Mas, não naquele momento. Ainda cansado e sem conseguir adormecer novamente, sentia uma sensação estranha, ansiedade. Rolou na cama até o cansaço vencer. Adormeceu. Mas, o sono não seria repousante.
• * * *
Diego acorda sobressaltado de um sono rápido e agitado. Olha o celular, meio-dia. É certo que não conseguiria mais dormir, e ficar na cama seria pior. Atribuiu a angústia à excitação da chegada, ao fuso horário e a tudo junto, pensou. Não estava acostumado a sentir aquela inquietação interna remexendo seu estômago. Não estava acostumado
a sentir a sensação de ansiedade, sem motivo, sem sentido. Detestava se sentir confuso. Havia algo diferente e errado.
• * * *
Felipe atravessou a rua e seguiu na direção da Cruzada. Quando parou no cruzamento com a Av. Afrânio de Melo Franco, notou que a porta da Delegacia estava movimentada. O sinal abriu e ele atravessou. Chegando esquina oposta, viu Adilson acenando e saindo da Igreja Santos Anjos, ele acenou de volta. São amigos desde pequenos, jogaram juntos no time de futebol de praia e muitas peladas no Condomínio dos Jornalistas. Distanciaram-se quando chegaram à vida adulta.
Hoje, Felipe é arquiteto e Adilson motorista numa empresa estatal. Tem estabilidade no emprego e continua a morar na Cruzada, no apartamento que herdara dos pais. Apesar de ter tido amigos ali, Felipe entrara poucas vezes naquela comunidade.
No Leblon, geralmente, algum desses amigos que moravam lá, pegavam os baseados para os outros que não moravam. Faziam “um voo para os amigos”. Sempre foi assim. A certa altura de uma conversa formal, Felipe pergunta se Adilson poderia pegar uma Doleta. A reação foi
inesperada. Adilson mostrou-se visivelmente contrariado. Por certo momento, ofendido.
Felipe, sempre achei você um cara legal. Gosto de você... temos mais de 50 anos, nunca mais me peça isso. Nossas vidas são muito diferentes. Vamos guardar as boas lembranças. O tempo passou. Não tenho nada a ver com drogas, nem quero ter.
O constrangimento mútuo foi bastante incomodo. Os dois se conheciam desde pequenos. Naquele instante, uma distância nunca antes percebida deulhes um tapa na cara. A distância que sempre fingimos que não existia, como todos no Leblon, se escancarou ali na esquina da Igreja Santos Anjos.
Deram-se um aperto de mão e Adilson pôs-se a caminhar na direção de sua casa, a Cruzada.
Felipe demorou alguns minutos tentando compreender o que ocorrera. Ficou parado, na esquina, olhando Adilson que já ia vários metros à frente. Sentiu-se envergonhado. Mas, não sabia ao certo por que.
Recuperou-se quando lembrou que Diego o estava esperando. Teria que entrar na Cruzada
para comprar. Voltou a caminhar, cuidando para não ir nem rápido, nem devagar demais. Normal. Não estava acostumado. Estava se sentindo agoniado, lamentava ter ofendido o amigo, mesmo que involuntariamente.
Em seguida, ouviu dois ou três tiros que ele não soube precisar de que direção vinham. Não sabia que lado deveria proteger. Ouviu sirenes e barulho de carros vindos da direção da delegacia, os tiros aumentaram de intensidade. Percebeu que estava no meio do fogo cruzado. Imediatamente, sentiu algo rasgando e queimando sua barriga, uma dor profunda e o sangue quente jorrando e molhando-lhe os órgãos genitais e as pernas. Caiu com as mãos na barriga e a dor arrancou-lhe um gemido alto. Como se uma flecha de aço em brasa o tivesse penetrado fundo. Arrastou-se até um pilotis mais próximo. Era tudo que podia fazer naquele momento. Era surreal. Choro de crianças e gritos vindos de todas as direções. Os tiros continuavam, era desesperador sentir o sangue escorrer e nenhuma possibilidade de socorro. Pensou no filho e doeu-lhe a alma. Não podia morrer ali. Não hoje. Os tiros continuavam.
Diego adorava os requintes aos quais o pai se dedicava. Um bom café é um deles. Uma cafeteira de Expresso Italiano sempre com dezenas de opções e variedades de grãos de café que ele moía na hora. O café estava excelente, mas a ansiedade aumentara. Virou a xícara impaciente, sem degustar. Arrumou-se e resolveu descer. Diego salta do elevador e da portaria já ouve o barulho de algumas sirenes passando. A sensação de quem tem algo errado é cada vez mais intensa.
Felipe tenta manter a respiração sob controle enquanto pressiona o ferimento que continua sangrando, empoçando na laje da rua. Felipe sente que está enfraquecendo, sente medo. Tenta manter a clareza. Pensar. Os tiros parecem que pararam. Adilson é o primeiro a aparecer na sua frente.
Puta que pariu! Que merda meu véio!, gritou Adilson assustado, enquanto digitava o celular chamando o SAMU. Ali na Cruzada todos tem o número desse telefone. Após a ligação, Adilson agacha-se ao lado de Felipe que já está bastante pálido. O tiro era de grosso calibre e atingira o
lado direito do abdômen. A hemorragia era grande.
Felipe falou com a voz enfraquecida: Adilson, por favor, avisa meu filho.
Você ainda mora no mesmo endereço?
Felipe confirmou com um movimento de cabeça. Percebeu que Adilson estava chorando. Isso não era um bom sinal. Adilson arrancou um pingente do pescoço e partiu a medalha em dois:
Fica com isso na mão e pede pela sua vida. Do jeito que você souber rezar. Pra São Jorge de Ogum. Vou dar a outra metade para o Diego.
Apenas percebeu quando os enfermeiros abriram espaço e o colocaram na maca. Tudo parecia nebuloso e distante. Os sons e vozes tinham eco. Os paramédicos fizeram alguns procedimentos ali mesmo. Ainda deu tempo de reforçar o pedido a Adilson. Felipe apertou a metade da medalha nas mãos e começou a rezar do jeito que ainda se lembrava. Ossolavancos da maca sendo encaixada na ambulância fazem com que a dor volte intensa, mas ele solta apenas um leve gemido. Ele percebe que os paramédicos estão sérios e concentrados.
Apesar do tubo de oxigênio, sua respiração está acelerada e irregular. Ele tenta ficar acordado, mas as vozes e os ruídos se tornam cada vez mais distantes. Aperta a metade da medalha e faz força para coordenar os pensamentos tentando rezar. Não consegue mais manter a consciência. Sente literalmente a vida se esvaindo até desfalecer.
• * * *
Em poucos minutos vários moradores já estavam na rua, é sempre assim quando acontece alguma coisa extraordinária nessa parte do Leblon. A Selva de Pedra tem um jeito próprio de ser. Diego continuava cada vez mais ansioso e angustiado. Tentando entender algo daquela agitação, recebe uma explicação do porteiro do seu prédio. Troca de tiros na Cruzada com um baleado grave.
Diego sentiu um calafrio percorrer sua coluna como um bisturi gelado cortando suas costas. Percebeu um homem caminhando a passos rápidos vindo da praça na direção de sua portaria e o reconhece. É Adilson, amigo do pai que jogou futebol de praia com ele e morava na... Cruzada São Sebastião!
Sentiu as pernas se curvarem sem forças. Não podia ser., mas, quanto mais Adilson chegava
perto, mais seu olhar deixava claro quem era o baleado. Mas, não fazia sentido!
Adilson conhecera Diego desde que este nascera. Chegou perto e o tirou da presença de outras pessoas.
Diego, seu pai foi baleado. Está indo para o Hospital Miguel Couto e pediu para você ir para lá. Eu vou com você. Mas, antes ele pediu para você pegar os documentos dele que estão na mesinha de cabeceira.
É grave? Perguntou Diego.
Estava sangrando muito, os paramédicos não falaram nada.
Adilson toca o ombro de Diego antes que ele saísse em direção à portaria para pegar os documentos. Tira a outra metade da medalha de São Jorge de Ogum e a entrega a Diego.
Fica com isso na mão e pede pela vida do seu pai. Reza do jeito que você souber rezar. Para São Jorge de Ogum. A outra metade está com o Felipe. Agora vai, começa a rezar desde agora.
Diego está em estado de choque e procede como um robô, agindo mecanicamente. Ele não sabe
rezar. Nunca aprendeu, nunca o ensinaram. Mas, ele pede a São Jorge de Ogum, com todas as forças e com a fé que nunca soubera ter. O elevador chega. Ele entra, toca o número de seu andar e volta para sua reza improvisada, mas cheia de fé.
Fecha os olhos e imagina o pai sorrindo como há algumas horas atrás. Consegue sentir literalmente o abraço que se deram. Sua alma se acalmou, estranhamente, se acalmou. Quando abriu os olhos, ainda estava no segundo de dez andares. Parecia haver passado muito mais tempo. Abriu a mão e a metade da medalha havia marcado sua palma, tamanha a força com a qual a apertara.
O elevador chegou ao andar e ele abriu a porta. Quando saiu da cabine e olhou para a porta do apartamento de seu pai tomou um sustou que quase o derrubou. Suas malas estavam na porta.
Ele se olhou e estava com a mesma roupa de quando chegara pela manhã. O que era aquilo?
A única coisa que ainda estava ali era a metade da medalha, em sua mão marcada. Mas, não tinha tempo a perder, depois pensaria naquilo. Seu pai estava morrendo no hospital e precisava dele.
Buscou a chave do apartamento no bolso e não a encontrou. As suas malas ali na porta eram desconcertantes. Por impulso, tocou a campainha
e ouviu movimentos vindos do outro lado da porta. Tocou de novo. Ouviu o barulho da fechadura sendo aberta e, nesses infinitos milésimos de segundos, desejou o impossível. A porta se abriu e Felipe aparece com a cara mais assustada que ele já havia visto. Os dois se abraçam e choram. Cada um com a sua metade da medalha de São Jorge de Ogum na mão.
O antigo relógio de pêndulo da sala, herança do avô, marca 8h e 06m daquela manhã, pela segunda vez no mesmo dia.
Apenas abriram as mãos, ambos, e mostraram para o outro a sua metade da medalha. Não falaram nada. Nunca mais tocaram no assunto. Tinham medo. Nunca mais encontraram ou souberam notícias do Adilson.
Matile Facó
Guardião da Lua
Nas vielas estreitas de uma cidade de contrastes, onde os sinos das igrejas entoam cânticos ao lado dos atabaques dos terreiros, São Jorge mantinha sua presença firme e inabalável. Era o guardião da lua, a quem atribuíam a visão das estrelas mais distantes e o conhecimento dos segredos noturnos.
Numa noite de abril, quando as ruas exalavam o perfume das flores oferecidas em homenagem ao santo, uma senhora de longos cabelos brancos e olhos cintilantes caminhava em direção à igreja.
Dona Maria, a matriarca da comunidade, carregava nas mãos a fé que iluminava seu caminho, como uma vela acesa na escuridão.
São Jorge, imponente em sua estátua que adornava a entrada do templo, parecia sorrir para Dona Maria, reconhecendo-a como uma devota de coração sincero. Enquanto a cidade dormia, ele era o guardião silencioso das almas, o protetor que velava pelos sonhos e anseios de cada habitante.
Ao adentrar a igreja, Dona Maria acendeu uma vela em homenagem a São Jorge, cuja imagem refletia a luz dançante das chamas. A senhora, com sua voz suave e preces memorizadas, compartilhava suas histórias com o santo, como se ele fosse um confidente que entendia os segredos mais profundos do seu coração.
A celebração do santo guerreiro extrapolava os limites dos templos religiosos e se estendia pelos recantos mais inusitados da cidade. Nos terreiros, os atabaques ecoavam em harmonia com os cânticos, reverenciando São Jorge como um guardião dos rituais que conectavam o espiritual ao terreno.
Enquanto Dona Maria orava, nos estádios de futebol, os torcedores entoavam cânticos em homenagem ao seu santo padroeiro, buscando sua bênção para as partidas e vitórias. O sincretismo religioso se manifestava nas ruas, nas casas, nos barese nas quadras de escolas de samba, onde São Jorge era um elo que unia diferentes crenças e tradições.
A lua, alta no céu, testemunhava a devoção que transcendia as fronteiras do espaço e do tempo. São Jorge, venerado no Brasil em 23 de abril, era mais que um santo popular; era um símbolo de proteção que permeava a vida cotidiana, como
uma sombra benevolente que afastava os dragões da maldade.
Enquanto Dona Maria terminava suas preces, a estátua de São Jorge parecia ganhar vida, como se os olhos do santo, esculpidos em pedra, agradecessem a dedicação daquela devota fiel. Era o início de uma noite onde o guardião da lua velaria pelos sonhos da cidade, protegendo-a com a lâmina da fé contra as adversidades que o amanhecer poderia trazer.
Na manhã seguinte, o sol despontava no horizonte, lançando seus raios dourados sobre a cidade que despertava lentamente. Nas ruas, o murmúrio das preces noturnas ainda pairava no ar, como uma melodia suave entrelaçada com o canto dos pássaros que anunciavam o novo dia.
Dona Maria, envelhecida pela sabedoria e pela devoção, retornava à igreja para agradecer a São Jorge pelo amparo noturno. A vela que ela acendera na noite anterior agora era substituída por uma nova, simbolizando a continuidade da fé e da proteção que o santo proporcionava.
Ao redor da estátua de São Jorge, outras pessoas se reuniam, cada uma com sua história e suas súplicas. O guardião da lua era o confidente
silencioso para muitos, um símbolo de força e coragem diante dos desafios cotidianos.
Naquele dia, a cidade se vestia de festa em honra a São Jorge. Nos terreiros, as danças ganhavam ritmo, reverenciando o santo que, segundo a crença popular, protegia contra malefícios e conspirações. O sincretismo religioso manifestavase em cores vibrantes e cânticos que ecoavam pelos becos e vielas.
Nos estádios de futebol, os torcedores entoavam seus hinos com fervor renovado, invocando a bênção de São Jorge para os desafios que se apresentavam em campo. Ele era o patrono que, além de guardar a lua, era invocado para abençoar as disputas esportivas, criando uma ponte entre a espiritualidade e a paixão terrena.
Enquanto isso, nas quadras de escolas de samba, os ritmistas marcavam o compasso da devoção, entrelaçando-se com os passos graciosos dos dançarinos. São Jorge era o fio condutor que unia os movimentos, transformando a apresentação numa celebração vibrante e cheia de significado.
Em meio à diversidade de manifestações, São Jorge permanecia como o guardião que abraçava todas as vertentes da vida naquela cidade. A lua,
refletindo a luz do sol, era testemunha silenciosa de cada gesto de devoção e gratidão.
Dona Maria, após mais um dia de fervorosas preces e agradecimentos, sentiu-se envolvida por uma sensação de paz. O guardião da lua, cuja imagem pairava sobre o altar da igreja, era para ela um farol de esperança que iluminava os caminhos escuros da existência.
E assim, São Jorge seguia sendo o elo invisível que conectava cada aspecto da vida naquela cidade diversa. Na quietude da noite, sua imagem esculpida olhava para o horizonte, como se a lua fosse um portal mágico que transcendia as fronteiras do divino e do terreno. A cidade, sob sua proteção, dormia em paz, aguardando o retorno da lua e o ciclo renovado de devoção ao seu guardião.
No terceiro dia de celebração a São Jorge, acidade despertou envolta na aura de devoção. O sol, em sua jornada pelo céu, projetava uma luz dourada sobre a estátua do santo, que permanecia como um guardião impassível. As ruas, agora repletas de fiéis, ecoavam com cânticos e murmúrios de preces.
Dona Maria, guiada por uma devoção incansável, retornou à igreja com uma oferenda especial. Nas mãos, ela carregava uma espada de madeira, símbolo da bravura que atribuíam a São Jorge. A vela acesa lançava sombras dançantes sobre a estátua, criando uma atmosfera que oscilava entre o sagrado e o misterioso.
Ao entardecer, nos terreiros, a dança tornava-se uma expressão viva da conexão entre o divino e o humano. Os atabaques, como pulsos ritmados, reverenciavam São Jorge, enquanto os dançarinos moviam-se em harmonia, honrando o guardião da lua com seus passos marcados.
Nos estádios de futebol, os torcedores vestiam-se com as cores simbólicas do santo. Bandeiras e estandartes exibiam a imagem de São Jorge montado em seu cavalo branco, como um guerreiro que liderava as batalhas em nome da fé e da coragem.
Nas quadras de escolas de samba, os ensaios tomavam um ritmo mais intenso. Os passistas, em trajes deslumbrantes, moviam-se ao som dos tambores, entrelaçando a mitologia de São Jorge com a riqueza cultural do carnaval. Era uma homenagem que transcendia fronteiras, fundindo tradições numa dança que narrava a força do guardião da lua.
Enquanto a noite avançava, a cidade transformavase num palco iluminado pela devoção. O sincretismo religioso mostrava sua face mais resplandecente, pois São Jorge era o elo que conectava os diferentes credos e práticas, formando uma tapeçaria rica e diversa.
Dona Maria, no silêncio da igreja, depositou a espada de madeira aos pés da estátua de São Jorge. Era um gesto simbólico, uma forma de agradecimento pelo amparo e proteção que o santo oferecia à cidade. O reflexo da vela tremulava nos olhos de Dona Maria, misturandose com a luz da lua que espiava pelas frestas das janelas.
O terceiro dia de celebração chegava ao fim, mas a devoção a São Jorge continuava a ecoar nas mentes e corações da cidade. Era como se o guardião da lua, embora imóvel em sua imagem esculpida, pulsasse em cada respiração, lembrando a todos que a fé e a coragem eram armas poderosas contra os dragões da vida.
E assim, sob a tutela da lua e a proteção de São Jorge, a cidade seguia sua jornada, envolta na luz da devoção que, como um fio de prata, ligava cada um de seus habitantes ao guardião que velava na noite estrelada.
No quarto dia de celebração, acidade pulsava com uma energia renovada. O sol, radiante no céu, parecia se unir à reverência a São Jorge, lançando sua luz sobre os fiéis que inundavam as ruas. Nas igrejas, o aroma de incenso misturava-se com o cântico dos devotos, criando uma atmosfera sacra.
Dona Maria, firme em sua devoção, liderava uma procissão pelas ruas estreitas. A espada de madeira, símbolo da coragem do santo guerreiro, era erguida como uma bandeira de fé. Os fiéis acompanhavam, entoando hinos em louvor a São Jorge, cuja imagem era carregada com reverência no centro da procissão.
Nos terreiros, a celebração ganhava contornos vibrantes. Os atabaques ecoavam em ritmos crescentes, como batidas do coração que reverenciavam o guardião da lua. Os dançarinos, em transe, moviam-se ao som dos tambores, conectando-se espiritualmente com a divindade que protegia as noites da cidade.
Enquanto isso, nos estádios de futebol, a paixão pelo santo se manifestava de maneira intensa. Torcedores exibiam bandeiras e adereços com a imagem de São Jorge, buscando sua proteção para as partidas que se desenrolavam nos gramados. A devoção, agora expressa em gritos e cantos, era
uma manifestação do sincretismo que permeava a vida na cidade.
Nas quadras de escolas de samba, os ensaios alcançavam seu ápice. Os passistas, com suas coreografias elaboradas, prestavam homenagem a São Jorge, incorporando a figura do guerreiro celestial em seus movimentos graciosos. A fusão da mitologia com a celebração carnavalesca criava uma atmosfera única e envolvente.
Ao entardecer, Dona Maria conduziu a procissão de volta à igreja. A estátua de São Jorge, agora adornada com flores e fitas coloridas, emanava uma presença majestosa. A lua, no horizonte, começava sua ascensão, como se testemunhasse a festividade que se desenrolava em honra ao seu guardião.
Na quietude da igreja, as preces se misturavam ao crepitar das velas. Dona Maria, ao lado da imagem de São Jorge, agradecia pela proteção concedida e renovava seus votos de devoção. A espada de madeira, depositada aos pés do santo, agora era um símbolo de confiança nas batalhas que a vida poderia trazer.
O quarto dia de celebração chegava ao fim, mas a cidade permanecia envolta na magia de São Jorge. A lua, agora no auge de sua luminosidade, parecia
sorrir sobre a comunidade que, unida pela devoção, encontrava forças para enfrentar os desafios cotidianos.
E assim, sob a guarda da lua e a proteção de São Jorge, a cidade seguia sua jornada. A celebração continuava a tecer os fios invisíveis que conectavam cada canto da urbe ao guardião que velava durante as noites estreladas. O quarto dia, marcado pela intensidade das manifestações, cedia espaço à quietude noturna, onde as preces e a devoção eram sussurradas nos cantos mais recônditos da cidade.
No quinto e último dia da festividade em honra a São Jorge, a cidade vibrava com uma intensidade singular. O sol, em seu ocaso, pintava o céu com tons de laranja e rosa, como se testemunhasse a grandiosidade da celebração que se despediria sob sua luz derradeira.
Dona Maria, acompanhada pelos fiéis que nutriam a mesma devoção, retornou à igreja para a cerimônia final. A estátua de São Jorge, agora adornada com as oferendas dos devotos, emanava uma presença que transcendia o espaço sagrado. As velas acesas criavam uma atmosfera de solenidade e gratidão.
Na última procissão pelas ruas, a espada de madeira erguida por Dona Maria parecia cortar o ar, simbolizando a coragem e a fé que os habitantes depositavam no santo guerreiro. Os cânticos ecoavam como um coro uníssono, celebrando a conexão entre o divino e o humano, entre a cidade e seu guardião.
Nos terreiros, a energia pulsante dos atabaques e das danças alcançava seu ápice. São Jorge era reverenciado como o guardião da lua, aquele que velava pelas noites e afastava os dragões da escuridão. Cada passo, cada batida de tambor, era uma prece que ecoava na vastidão da noite.
Nos estádios de futebol, os torcedores exibiam seus últimos votos de devoção ao santo protetor. Bandeiras tremulavam como estandartes de fé, e os gritos entusiasmados reverberavam nas arquibancadas. A partida, além de uma competição esportiva, tornara-se um tributo à coragem e à perseverança.
Nas quadras de escolas de samba, o desfile final ganhava contornos épicos. Os passistas, agora mais enérgicos do que nunca, representavam a união da cidade em torno de São Jorge. O som dos tambores ecoava como o coração pulsante da metrópole, imbuído pela magia da celebração.
Ao final da procissão, Dona Maria, com lágrimas de gratidão nos olhos, depositou a espada de madeira aos pés da estátua de São Jorge. Era o gesto simbólico de encerramento, um ato que marcava o término da festividade e o início de um novo ciclo sob a proteção do guardião da lua.
A cidade, agora iluminada pela luz da lua cheia, despediu-se da celebração com um silêncio reverente. A estátua de São Jorge, com sua espada erguida e o olhar fixo no horizonte, parecia abençoar cada rua e cada morador. O sincretismo religioso, tão presente na vida cotidiana, revelavase como a essência que unia as diferentes faces da cidade.
E assim, sob a luminosidade da lua e a proteção de São Jorge, a metrópole adormecia em paz. O quinto dia, repleto de devoção e celebração, transformara-se numa memória que ecoaria pelos anos vindouros. A cidade, agora guardiã da lua, continuaria sua jornada sob o olhar benevolente de São Jorge, que, montado em seu cavalo branco, permanecia como o símbolo imortal da coragem que iluminava as noites estreladas.
Ícaro e Ewá
Carlos Henrique dos Santos
Invariavelmente, ao longo de alguns anos, era ao acordar que ela mais sentia a tristeza tomando conta de seu corpo e seus pensamentos. Abrir os olhos e ser golpeada pela luz forte que entrava pela janela trazia à sua memória a iluminação da sala de parto. Ali deitada, o que mais a incomodava não era a dor e sim a forte claridade que incidia sobre ela, quase cegando-a com tanta luz artificial. Não conseguia manter os olhos abertos por mais que alguns instantes e via-se obrigada a piscar insistentemente.
No decorrer dos últimos anos, ela acreditou que esse foi um dos motivos, se não o principal, que a fez esquecer, ou encobrir, as dores do parto em si. Mais do que contrações tendo origem em seu útero, passando por abdômen e percorrendo suas costas, quadril e coxas como um novelo de linha sendo desenrolado lentamente, foi nas luzes que ela se concentrou.
Sem querer, sem saber o porquê, sem entender a razão, desconhecendo os motivos e apenas olhando para o teto foi que ela de maneira inconsciente desviou a atenção do que acontecia com seu corpo e a concentrou em sua mente. Seus
pensamentos então a guiaram em direção a um passado bastante recente.
Sua lembrança das aulas de português, com o professor lendo uma história que falava de um jovem que podia voar. Enquanto lia o professor fazia comentários empolgados, dizia que as asas de cera e penas feitas pelo pai do jovem eram uma metáfora para o poder da liberdade. Um poder tênue e fugaz (palavras difíceis e que o professor rabiscava no quadro enquanto explicava seus sentidos, algo que pode ser fraco – o primeiro - ou passageiro – o segundo - como a vida, ele arrematava e sorria).
Então prosseguia dizendo que assim também era com a juventude, algo que passa, e passa rápido e de maneira intensa, sendo também fugaz. Comentava que a mocidade é marcada muitas vezespela ingenuidade e por isso o jovem se sentiu um tipo de deus, não obedeceu aos conselhos dados pelo pai e, ao voar perto demais do sol com suas asas de cera, teve um castigo e que esse era um tipo de lição, pois é preciso sabermos lidar com as liberdades, com os poderes que temos.
Deitada na sala de parto era nisso que ela pensava ao lembrar do pai do seu filho, sentiu que a luz que aos poucos embaçava sua visão era também fugaz, que entre o dia e a noite, a vida e a morte, há algo de tênue. Então teve medo, receou que a
criança nascesse morta, pensou em chorar mas sentiu uma pontada forte, algo como um chute, o último dado por ele em sua barriga, então a sala foi invadida por um som agudo, forte, estridente, era seu filho, ele que chorava, que dizia “oi” ao mundo em sua língua ainda incompreensível, ele que, a seu modo, dizia “oi” para sua mãe, era ele nos braços da médica, próximo da luz e que chegava aos seus braços, sujo de sangue, gritando, a espernear, entre a luz do teto e seus olhos ela o viu, ainda sombra, ainda vulto, ainda informe, ainda som, ainda um ente sem nome e foi assim, próximo da luz a se debater feito Ícaro ao redor do sol, que enfim ela o enxergou integralmente ele, seu filho, seu bebê, seu Ícaro, seu pequeno deus tênue e fugaz.
Tinha apenas dezesseis anos quando se tornou mãe. No princípio tudo era muito difícil, não sabia ao certo como agir, pensava que fosse possível ser guiada por algo como um instinto, o famoso instinto materno, só que isso não funcionava com ela. Pedia ajuda constantemente para a própria mãe, mas o problema é que esta era ocupada, saía de segunda a sábado para trabalhar e o máximo que podia era auxiliá-la à noite.
Passava então os dias sozinha com o filho e isso, de início, a sufocava, lentamente as horas iam depositando sobre ela um peso atroz, sentia um esgotamento como nunca antes sentira. Pensava
que não conseguiria aguentar por muito mais tempo antes de surtar, mas aguantou. Aos poucos foi descobrindo em si mesma formas de lidar com o filho, com a rotina, com a sobrevivência (sua e dele).
Decidiu retomar as visitas ao candomblé, que costumava frequentar com a mãe na infância, e de onde vinha se afastando desde o início da adolescência. Sentia-se em falta consigo mesma e procurou reparar esse desvio com mais compromisso. Ouvia atentamente os conselhos de sua mãe de santo e, procurando novamente se conectar com sua orixá, Ewá, listou três potencialidades que possuía e que buscava expandir, por isso manteve os estudos de casa no decorrer da licença maternidade, entregando pontualmente as avaliações na escola.
Aproveitou o curto tempo livre entre um sono e outro do bebê e fez um curso online, aprendendo técnicas de fotografia, algo que era um desejo antigo e que no entanto era sempre jogado para depois, como se houvesse sempre mais e mais tempo disponível, afinal, ela era jovem e a vida longa. Decidiu também que não permitiria que seu filho tivesse o mesmo destino de tantos jovens do bairro e que por ele lutaria vigorosamente. Pedia forças e proteção a São Jorge e contava sempre com a ajuda do santo no enfrentamento dos constantes desafios que a vida lhe oferecia.
A chegada do pequeno Ícaro acarretou algumas transformações em seu íntimo e, a partir de então, sua forma de olhar e, principalmente, de ver o mundo foi sendo alterada. O que antes era prioridade agora pouco lhe interessava, acreditava que era preciso mudar, pois sendo mãe havia a partir de agora um outro ser que dependia dela e, ao contrário do que pensava antes, ela era a principal responsável pelo próprio destino e cada vez mais tinha certeza de que tomar as decisões sobre a própria vida se tornaria uma constante e isso lhe parecia irreversível.
Ícaro foi crescendo saudável, um menino um pouco impaciente, mas bastante carinhoso e que dificilmente ficava doente. Ela acreditava que a falta de uma referência masculina na vida do menino poderia ser a causa da sua irritabilidade, já que mãe e avó, talvez por medo de frustrar ainda mais a criança, de tirar dela o pouco que possuía, acabavam se deixando levar por um sentimento de condescendência e, dessa forma, permitiam que ele exercesse, algumas vezes, sua vontade sobre a delas. O problema surgia quando essas vontades lhe eram negadas, ocasionando assim pirraças intensas, que por vezes surtiam efeitos imprevisíveis, como uma tv quebrada por um tênis arremessado e o vidro trincado de uma janela.
Essas ações um tanto destemperadas e até mesmo violentas do menino ligavam um sinal de alerta na
mãe, já que traziam à sua memória lembranças do pai do jovem que ela tentava manter soterradas.
Ícaro não conheceu o pai e às vezes demonstrava certa curiosidade sobre isso, fazendo perguntas, querendo saber mais sobre suas origens. Porém a mãe não abria espaço para esse tipo de diálogo, dizia apenas que o pai dele havia morrido e botava um ponto final na conversa. O que ela não contava era a causa da morte e muito menos a forma como essa se deu.
O pai de Ícaro, um rapaz trabalhador, que frequentava a igreja e não tinha vícios, mas que, após o falecimento da mãe, resolveu mudar radicalmente de vida e entrar para o tráfico. Foi um pouco antes dessa guinada que ela engravidou.
Depois da mudança que o acometeu. ela ainda tentou convencê-lo a voltar à antiga vida, sem sucesso. Ele se dizia frustrado e enraivecido com tudo que vinha acontecendo, culpava-se por não ter sido capaz de ajudar a mãe, se sentia explorado mas não vítima e queria viver de forma diferente agora, pois seguir o caminho justo e reto pregado pelos pastores não foi capaz de ajudá-lo a manter sua mãe viva:
De que adiantou trabalhar tanto desde os doze anos se nem consegui comprar os remédios que ela tanto precisava?
Ele indagava num misto de raiva e melancolia que doía fundo nela. Concordava em parte com os argumentos, mas sabia que a escolha dele não era a melhor e, ao saber-se grávida, teve ainda mais medo de onde todo aquele rancor o levaria.
Separaram-se alguns meses após a descoberta da gravidez e poucas semanas depois, num confronto com a polícia, ele foi morto. Ela estava com sete meses. Mesmo tomada por tristeza e indignação decidiu que seu filho não teria uma vida igual a sua, marcada por privações, mágoas e frustrações. Nessas horas ela voltava a se apegar a seu santo protetor e pedia discernimento para poder cuidar do filho que carregava no ventre.
Decidiu que finalizaria o curso de fotografia e assim o fez. Quando Ícaro, aos sete anos, pediu para treinar futebol num clube do bairro ela não só o matriculou como se tornou sua primeira e principal incentivadora. Anos depois, numa das primeiras entrevistas dadas por ele já como atleta profissional, foi a ela que dedicou o título conquistado:
—
Esse título é para a minha mãe, minha Ewá, aquela que sempre esteve ao meu lado e que, mesmo nos piores momentos, parecia enxergar meu futuro, não me deixando desistir e me fazendo acreditar que coisas boas estavam esperando por mim. Mãe, eu te amo, é nosso!!
Então erguia o troféu, que era iluminado pela luz do sol, e sorria feliz para a câmera.