HASHI: UM ANJO NA PANDEMIA
B862 Brito, Wander Edney de Editora Olympia, 2024
Pág. 106
ISBN 978-65-86241-18-1
I.1Ficção brasileira -Romance I. Título
CDD B869.3
CDU821.134.3(81)
WANDER EDNEY DE BRITO
Esta é a história de vida de uma família na pandemia Covid19 e de como um anjo a ajudou.
“Ohh that’s what dreams are made of”
Van Halen
HASHI: UM ANJO NA PANDEMIA
SUMÁRIO
WANDER EDNEY DE BRITO
Introdução/Página7
Oinício/Página12
Vidanormal/Página16
Ovíruschegou/Página19
Avidanoiníciodapandemia/Página23
Ocomeçodaideia/Página29
Coisasdapandemia/Página33
Aprimeiradoença/Página36
OHashi/Página39
Larcomnovointegrante/Página42
Ocachorroator/Página46
Oesportista/Página49
Vítimanúmeroum/Página51
Natal/Página54
Umnovoano/Página57
HASHI: UM ANJO NA PANDEMIA
AsegundadoençadeSophia/Página61
Ogolpefatal/Página65
Diaadiacomhashi/Página70
Disformismocorporal/Página72
Pandemiaacalmando/Página76
Aaulainesquecível/Página79
Arotina/Página83
Maishistórias/Página87
Maisumadoença/Página90
Diasdifíceis/Página94
AFerraridoHashi/Página98
Acena/Página100
Valeuàpena?/Página104
Sobreoautor/Página106
INTRODUÇÃO
Este é um livro que vai contar a história de como uma família enfrentoua pandemia Covid-19 e de como um anjo de quatro patas entrou em suas vidas ajudando tremendamente no enfrentamento dos problemas que foram surgindo. E estes não foram poucos.
Inicialmente gostaria de explicar o motivo pelo qual estou escrevendo este livro.
Direto ao ponto: escrevo porque desejo ganhar bastante dinheiro para me aposentar, comprar uma casa de verão no Lago di Como na Itália e uma casa de inverno na Sicília. Gostaria também que este livro virasse um filme de Hollywood e que escolhessem um ator bonitão para fazer o meu papel, pode ser o Brad Pitt ou o Jason Momoa (este mais adequado, pois somos morenos, altos, bonitos e sensuais). Gostaria também que esse livro virasse um parque na Disney de Orlando, sendo que o castelo não precisa ser tão grande como o do Harry Potter.
Brincadeira, na verdade eu escrevi este livro para organizar minhas ideias e prestar uma homenagem ao ser canino que vocês conhecerão em breve.
O período da pandemia foi muito confuso e a ordem dos acontecimentos por vezes se embaralham. Então, eu senti necessidade de organizar isto na minha mente.
Como os acontecimentos são intensos e um pouco confusos, pedi a ajuda da minha esposa na elaboração desta obra. Muitos eventos foram pessoais e aconteceram dentro dos quartos, pois a solidão foi um tema
diário na pandemia. O que se tornou um enorme problema para muitaspessoas, principalmente para os adolescentes. Além do medo da mortee da perda de entes queridos, tinha a solidão. Acreditávamos que a tecnologia resolveria.
Afinal, podíamos nos conectar, inclusive por vídeo com qualquer lugar do mundo. Mas o ser humano precisa de contato físico. A tecnologia serve por pouco tempo. O olho no olho nunca será substituído.
E para situar todo mundo nesta história maravilhosa, eu gostaria de apresentar as pessoas participantes. Inicialmente tinha optado por colocar os nomes reais, mas como expunha muito a privacidade de todos, preferi usar nomes fictícios, escolhidos pela própria pessoa.
Então, vamos lá.
Meu nome é Ricardo. Sou ortopedista formado pela Unicamp e moro em Campinas - São Paulo. Trabalho em hospitais públicos, em consultórios privados e dou aula de ortopedia em uma Faculdade de Medicina da cidade. Gosto muito de ensinar ortopedia para os meus alunos. Tocar guitarra é o meu hobby diário. Tenho uma banda de médicos, que se encontra quando dá, quase nunca, mas que segue na música. Gosto de rock e frequentemente vou a shows com meu filho. Como todo médico da minha geração, tenho vários empregos. Eu e minha esposa trabalhamos muito, gostamos do que fazemos. Trabalho intenso e por vezes, desgastante, mas muito compensador pelo lado pessoal. Podemos viver com conforto.
Minha esposa se chama Ana. Médica pediatra (endócrino-pediatra especialista em tratamento de obesidade infantil. Guardem bem isto: especialista em obesidade infantil). Trabalha em consultório e na
medicina pública. Ana morria de medo de cachorro e oito anos atrás decidiu comprar um cachorrinho a pedido dos meus filhos, que foram muito insistentes por anos. Ainda bem para nós todos. Me lembro que até briguei em prédios que havia morado, pois moradores deixavam cachorros soltos no elevador ou na área comum e isto causava muito desconforto a ela. Compramos uma shih-tzu fêmea e demos o nome de Filó (Nome completo: Maria Filomena Cavassani de Brito), que foi uma benção para nossa família. E pra quem morria de medo de cachorro, hoje ela é uma amante ferrenha de cachorros. Preocupada com os fogos de artifício no ano novo e um cuidado exemplar com nossa Filó em todos os dias.
Tenho dois filhos. Minha alegria.
Francisco, estava com 18 anos no início desta aventura. Ele estava entusiasmado, iniciando a faculdade de Publicidade e Propaganda em São Paulo. Francisco sempre foi um aluno que nunca gostou de estudar. Brincamos que estudava para tirar a nota sete (média da escola) e por vezes a tirava. E no final do ano, a escola o passava. Na faculdade ele se achou e é um dos melhores alunos da sala. Superanimado, cheio de projetos. É muito bonito ver alguém se achando neste mundo confuso. Toca guitarra e canta maravilhosamente. Já nos apresentamos na faculdade para um público próximo de mil pessoas e, sem falsa modéstia, mandamos bem. Sempre envolvido em esportes, Francisco tinha até um canal no YouTube, o Linha Burra, que fez muito sucesso na época, contabilizando mais de 140.000 seguidores.
Minha filha mais nova, Sophia, no início desta aventura estava com 14 anos. Uma aluna super dedicada na escola. Já foi dançarina de balé, mas não gostava, preferia Kung Fu. Super ativa, super feliz. Branquinha de cabelo preto, quando era mais nova a chamávamos de Branca de
Neve. Extremamente feliz, muito amável com os amigos, muito estudiosa. Toca teclado, já tocou violino, ukulele e canta.
Faz aula de canto há anos e canta fantasticamente bem. Já nos apresentamos na faculdade também, eventos memoráveis. Sempre da área do esporte e das artes.
Então vocês puderam perceber que é uma família musical. Temos um quartinho no nosso apartamento onde ficam os instrumentos. De fácil acesso, em 30 segundos já está tudo ligado e pronto para o uso — e usamos diariamente. Temos algumas guitarras, violões, baixo, teclado, ukulele, flauta, violino e cajon. Música faz parte da vida da nossa família. Costumo falar para meus filhos que, quando temos um problema, sempre existe um solinho (solo de guitarra) ou uma música para nos acalmar e alegrar. Sempre marcamos de ir a shows de música, rock com meu filho, pop com minha filha e esposa.
A Filó foi nossa primeira cachorra. Dá para escrever outro livro apenas com as aventuras com esta ferinha. Mas isto fica para uma nova oportunidade. Carinhosa e possessiva, era impossível tirar alguma coisa da sua boca. Difícil dar medicação quando precisa. E muito fominha com os petiscos e também muito ativa e brincalhona.
Agora iniciaremos esta maravilhosa aventura cheia de trancos e barrancos. Momentos de alegria e outros nem tanto. Acho que pudemos crescer em família neste período de pandemia.
A primeira versão desta obra contava o mês a mês a partir do início da pandemia, mas a leitura ficou muito cansativa. Então optei por retirar o mês a mês da pandemia e iniciar este livro já próximo da chegada do cãozinho mais interessante que conhecemos.
WANDER
Achei que a humanidade cresceria, como raça, com as dificuldades da pandemia. Mas tenho a impressão que o egoísmo prevaleceu. E saímos da mesma maneira que entramos neste episódio da nossa história. Não foi o que aconteceu conosco em casa. O anjo que tivemos contato modificou nossa vida para melhor e de maneira eterna. Um toque de carinho que merece o registro.
OINÍCIO
Começamos 2020 passando a entrada de ano em Buenos Aires, na Argentina. A família estava quase completa, não fosse a Filó que tínhamos deixado em Campinas num hotelzinho para cães já conhecido por nós. Foi uma viagem cheia de aventuras, onde esqueci meu celular num táxi e meu filho gastou o “portunhol” no telefone para reavê-lo. Fiquei tenso e demos muita risada após a resolução desta encrenca.
Viagem regada à muita carne argentina e muito vinho. Fomos conhecero famoso estádio do Boca Júnior, La Bombonera, inclusive ficamos no hotel deste mesmo time. Deu para entender o porquê dos times rivais não gostarem de jogar lá, pois a torcida fica muito próxima do campo. Qualquer fala é facilmente ouvida dentro do campo. Coitadas das mães dos bandeirinhas.
A virada do ano passamos num restaurante no bairro de Porto Madeiro. Tudo muito bom e muito divertido. O ano prometia ser promissor a todos. Estávamos muito animados. Tínhamos comprado um terreno financiado em 12 anos e estávamos iniciando os projetos de construção de uma casa afastada da cidade. Morávamos na área central de Campinas, uma grande cidade, e queríamos um dia a dia mais calmo, menos poluído, onde o dia passasse mais vagarosamente e com mais atividade física em meio à natureza. Onde o pano de limpeza ficasse marrom e não preto.
Eu havia saído de um emprego em um hospital há três meses e a ideia era aumentar a dedicação ao consultório. Era uma aposta arriscada,
pois no hospital tinha o meu salário mensal fixo e no consultório eu ia ganhar por produção, mas com um incremento de horas dedicadas no consultório, eu acreditava que conseguiria empatar o ganho financeiro mensal e estaria em paz comigo mesmo. Estava confiante, com aquele friozinho básico na barriga. Barriga esta que estava grande. Estava com sobrepeso e, se não me cuidasse, logo meu IMC entraria em obesidade. Mas como estava com mais tempo, já estava fazendo exercícios em academia, e o regime apenas após a passagem pela Argentina. Afinal evitar carne, vinho e alfajores por lá é praticamente impossível.
Ana vinha de alguns anos ruins, com problemas de saúde. Necessitou de cirurgias nas vias nasais por duas vezes devido a um quadro alérgicoe tinha dificuldade com uma lombalgia crônica. Mas já estava apresentando melhoras com os tratamentos instituídos e a ideia era manter as atividades físicas já retomadas. E o ano parecia ser promissor, com muita esperança.
Francisco estava careca, pois havia passado na faculdade de publicidade em São Paulo e já tínhamos cortado seu cabelo em casa mesmo. Estava animado com isso: a ideia de um ano maravilhoso. Eu e minha esposa sempre contávamos para ele que a época de faculdade é ótima. Contamos que tínhamos nos conhecidos durante o curso de medicina e algumas peripécias que fizemos naqueles tempos. Nossos filhos sempre nos acompanhavam nos encontros de turma e podiam perceber a amizade e carinho que nutríamos pelas pessoas com as quais dividimos esta jornada. Estávamos nos informando sobre alistamentomilitar e eu brincava com meu filho que ele iria para a região da cabeça do cachorro (um lugar no meio da Amazônia, longe de tudo). Conseguimos uma kitnet no bairro Perdizes em São Paulo, bem segurae bem localizada, próxima da faculdade, dava 15 minutos de
caminhada. Um achado. E um novo futuro promissor se iniciava. A felicidade era visível na face de todos em casa.
Sophia estava muito animada, pois este ano aconteceria a esperada festa de 15 anos em setembro. Já havíamos planejado toda a programação, inclusive pago já uns 70% da festa. Estávamos escolhendo as músicas que dançaríamos. O lugar, a comida, o fotógrafo, os vestidos... tudo já agendado. Seria um evento incrível e já tínhamos ido à degustação de bebidas e docinhos, todos uma delícia.
Os noticiários falavam dos primeiros casos de uma gripe diferente que estava acontecendo na China desde dezembro, iniciada na cidade de Wuhan. Acreditavam que era causada por um vírus com comportamento mais agressivo. Cursava com pneumonia de rápida progressão em algumas pessoas. Ficamos sabendo pela mídia que tínhamos 34 brasileiros na região de Wuhan e o governo federal providenciara a repatriação desse pessoal. Ficaram em quarentena de 21 dias, sendo cuidados pelo Exército. Estes brasileiros apresentaram boa evolução, sem necessidade de internação ou mortes. Talvez um sinal que esta patologia não causaria tanto dano aos brasileiros em pleno verão.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) recomendou atenção à evolução desta doença. Casos de Covid-19 começaram a aparecer em pacientes que chegavam de viagem da China no mundo inteiro.
Meus amigos perguntavam sobre a possibilidade de sofrermos com esta doença. Não tínhamos a resposta. Precisaríamos ver a evolução dos acontecimentos. Lembrei que tinha assistido ao filme “Contágio” de 2011 e fiquei preocupado. Me lembrei das cenas de caos social, mortes e de entraves político-científicos.
Ainda em janeiro de 2020 fomos para a praia. Encontramos os primos da Ana lá. Passeamos muito com a Filó. Ela adora praia, a liberdade que o ambiente oferece. Andei muito de bicicleta já pensando em perder a barriga e melhorar a saúde. A proximidade dos 50 anos estava pesando. Dores nos calcanhares e nos dedos das mãos, mãos que uso diariamente para ajudar pessoas. Mas vamos mudar a rotina para envelhecer melhor. Falo para meus pacientes todos os dias que para envelhecer bem temos que fazer exercícios e controlar o peso. O segredo de envelhecer bem não está na farmácia e sim na academia.
E começamos fevereiro cheios de esperança de um ano bom. Participei como palestrante em um curso preparatório para admissão de novos especialistas em cirurgia do joelho em São Paulo, onde dei uma aula a respeito de alinhamento do membro em cirurgia de prótese de joelho. Meus três R4s (médicos especializando em cirurgia do joelho) estavam presentes. Fico muito feliz de poder dividir o meu conhecimento nesses eventos. Deus me deu inteligência e facilidade em passar conhecimento, então me sinto obrigado, junto a Ele, a passar adiante o que aprendi na minha profissão. Considero isto um dos meus propósitos de vida.
Participo de um grupo de estudos em ortopedia-joelho da minha cidade e estávamos tendo reuniões a respeito do nosso curso que ocorre a cada dois anos. Curso este que é um sucesso na área de cirurgia do joelho e ocorreria em abril daquele ano. Ideias de aulas e convidados nacionais e internacionais. Num destes cursos tive a oportunidade de convidar meu mentor americano de Pittsburgh-EUA para transmitir seus ensinamentos em território brasileiro. Uma figura importante para minha profissão e para minha família: Dr. Freddie Fu.
VIDANORMAL
Minha semana padrão era tomar um café da manhã com a minha esposa, andar com a Filó pelo bairro, pois ela não faz cocô nem xixi dentro de casa, então sempre temos um problema quando chove, pois, precisamos sair com ela na chuva mesmo. E são duas vezes ao dia. Um passeio geralmente calmo e que dura uns 30 minutos.
Depois levo minha filha na escola e vou trabalhar. Com estas mudanças de horário eu conseguia almoçar em casa todos os dias. Conseguia ir na academia antes do trabalho três vezes na semana. A noite andava novamente com a Filó pela vizinhança. Depois banho e jantar com família. Minha esposa sempre fez questão de jantar com todos à mesa.
Uma hora de conversar sobre como foi o dia. Importante para detectar problemas e instituirmos muito diálogo para um tentar ajudar o outro.
Uma rotina que considero acertada, principalmente neste mundo corrido de hoje.
Os finais de semana eram ótimos. Eu andava com as crianças, íamos ao clube, à academia e ainda agendávamos almoços e jantares com amigos. Um clássico era o café da manhã de domingo na padaria com minha esposa e a Filó. Por sinal, a Filó adorava. Esta saída durava umas duas horas e era visível a felicidade da nossa cadelinha.
Francisco começou a faculdade, estava indo para São Paulo com os olhos brilhantes. Numa segunda-feira em que estava indo para São Paulo de ônibus, ocorreu uma inundação naquela cidade devido as chuvas torrenciais e os passageiros precisaram voltar. Dificuldades dos
paulistanos.
Coisas a serem superadas.Sophia voltou para escola. Conseguia levá-la e buscá-la quase todos osdias. Como moramos bem perto da escola, os dias que não conseguimos fazer isso, ela vinha a pé mesmo por apenas quatro quadras. E ela ficava muito feliz quando saia para almoçar com as amigas nos dias que tinha aula o dia todo.
Filó seguia a sua vida comendo chinelos e tornando a casa mais feliz inclusive nos seus passeios pela manhã e final de tarde que, mais do que rotina, se tornaram um prazer desfrutado ao ar livre. Em casa, ela subia nos móveis em um pulo que lembrava um gato, e sempre silenciosa. Se bobeasse, ela subia na mesa e pegava comida. Uma safadinha. Muito saudável. Quase nunca ficava doente.
Ana começou o ano bem melhor. Os problemas de saúde melhorarame pensou até em reiniciar as atividades de Kung Fu. A família inteira tinha feito este esporte por um bom tempo. E tínhamos grande afeiçãopelos professores da academia.
Os amigos continuavam perguntando sobre a pandemia, se tínhamos alguma informação privilegiada por sermos médicos. Mas eu falava que precisávamos ficar de olho. Alguns colegas com contato com médicos da Europa começaram a falar que casos começaram aparecer em regiões da Itália e estavam com medo de colapso na saúde.
A OMS ainda não tinha decretado pandemia, mas o receito estava crescente. Uma mobilização no Congresso Nacional foi iniciada para aprovar algumas leis para promover um preparo dos órgãos públicos para a nova doença que ameaçava chegar.
A televisão mostrava a todo momento casos suspeitos no Brasil e que
HASHI: UM ANJO NA PANDEMIA
acabavam sendo descartados. Inclusive casos que ocorreram em um navio de cruzeiro. Em determinado momento, percebemos que nãoescaparíamos.
OVÍRUSCHEGOU
O primeiro caso no Brasil apareceu. Um senhor de 61 anos que havia viajado para Itália e estava sendo tratado em São Paulo. Os amigos perguntavam sobre a possibilidade de isso chegar em Campinas e eu falei que isso já era uma certeza.
O que parecia longe, estava batendo na nossa porta.
Resolvi comprar três galões de álcool gel, quatro galões de água de 5 litros e várias máscaras N95. Isto por causa do filme Contágio. Sempre compro na mesma loja os produtos médicos que preciso para a clínica. Na verdade, tinha ido comprar apenas gazes, faixas e seringas, mas o vendedor recomendou a compra de máscaras pois estavam acabando. Resolvi comprar máscaras N95 (aquela mais grossa) e máscaras cirúrgicas também. Comprei as últimas três caixas e achei que tinha comprado em demasia. Mas o vendedor me falou que duas empresas tinham comprado um lote imenso de máscaras.
As crianças acharam que eu era paranoico. Pensei no filme Contágio novamente. Fizemos uma compra enorme de mantimentos para a casa e orientamos os amigos e familiares a fazerem o mesmo. Compramos remédios de uso crônico e alguns de emergência (analgésicos e antibióticos).
Para os amigos, costumava falar que a pandemia era um barco enorme e descontrolado que estava vindo. Dava pra ver de longe, mas não tinha batido ainda no cais. Estava vindo com força e não tinha como parar. Não tínhamos a ideia do estrago que faria.
Fomos convidados para a festa de carnaval no clube, mas achamos melhor ficar em casa mesmo. Nos consideraram uns bundões.
Comecei o mês de março com o consultório bombando, muitas cirurgias e consultas. E fomos assim até a metade do mês. Quando nossa vida mudou drasticamente. Até a metade deste mês já tinha atendido e operado mais que a média de todos os meus meses anteriores de consultório. Isto me acalmava, pois estava já arrependido financeiramente de ter abandonado o emprego naquele hospital. Mas, ufa, estava melhorando a parte financeira.
Porém o barco atingiu o cais com força total e o medo tomou conta de todos.
Em 11 de março, a OMS decretou pandemia que já estava presente em 114 países e com um total de 4.000 mortos.
A televisão noticiava o Covid19 sem parar. Vários canais falavam apenasda pandemia em toda sua programação. Mostravam o caos que estavase transformando a Itália, com falta de insumos, médicos e profissionais de saúde. A contagem diária de mortos era terrível. Colegas contavamque médicos italianos estavam sofrendo com trabalho incessante e que profissionais especialistas em áreas diversas estavam sendo usados para tratar estes graves pacientes. Me imaginei trabalhando em uma UTI, coisa que não faço há mais de 20 anos.
No início de março ocorreu o primeiro caso interno de transmissão e começaram os isolamentos e quarentena. A ideia do isolamento social era aumentar o tempo de preparo para o enfrentamento da pandemia. Abastecendo os hospitais com insumos, respiradores, leitos e pessoal. Eu e minha esposa decidimos nos afastar do consultório por 2 semanas.
Voltamos depois, pois acreditamos ser mais seguro aos nossos pacientes serem atendidos em um ambiente não-hospitalar. Espaçamos os atendimentos para evitar aglomeração na recepção. O álcool spray não saia do nosso lado. Quando um paciente saia da sala os móveis tomavam banho de álcool. Com o tempo estes se envelheceram rapidamente. Foi tanto álcool que os aparelhos de leitura digital nos hospitais já não conseguiam ler minhas digitais, devido a lesão de pele que este provoca. No hospital continuava trabalhando. Com medo.
Foi decretado pandemia no Brasil, com várias mudanças. O governo federal liberou grande quantidade de dinheiro para estados. O Ministério do Trabalho pensou em suspender os pagamentos de salário por quatro meses, mas acabaram voltando atrás. Acabaram optando por outras medidas que parecem terem salvo uma quantidade grande de empregos.
O Ministro da Saúde pedia para ficar em casa e começaram as confusões da pandemia brasileira. Dr. Mandetta, o ministro da saúde, pedia pra ficar em casa, ir para hospital apenas se sentisse falta de ar. O presidente falava que não podia ficar em casa por causa da economia do país. E nós no meio sem saber o que fazer. Gostaríamos de mais informações científicas para saber o que fazer. O objetivo do “fique em casa, a economia a gente vê depois” era achatar a curva de transmissão e mortalidade, adequando o sistema de saúde que se preparava para o que estava por vir.
Analisávamos gráficos diariamente pela televisão. E todos ficamos craques em analisar gráficos de progressão da doença. Inclusive gráficos de projeções futuras que eram alarmantes.
Os velórios foram suspensos. Os familiares não podiam acompanhar os enterros que eram realizados em caixões fechados e, portanto, a despedida não podia mais existir. A solidão foi um dos grandes problemas desta pandemia. Os doentes não podiam receber visitas no hospital. Paramos de encontrar os amigos. Escolas fechadas. Os mortos iam para debaixo da terra sem a despedida essencial ao processo de luto. Imagem de centenas de valas abertas em alguns cemitérios eram chocantes.
O medo era visível no ar. Quando saia para passear com a Filó, não encontrava uma viva alma na rua. Andava usando máscara, mesmo sem ninguém na rua. O silêncio, mesmo nas grandes cidades, era doloroso. Imagens da Itália em caos total nos assustavam, principalmente aos meus colegas da área da saúde.
Maurício de Souza desenhou o primeiro banho do Cascão da turma da Mônica devido ao Covid-19. Muito legal. Fiquei emocionado.
AVIDANOINÍCIODAPANDEMIA
Com a pandemia chegando, resolvemos, na nossa cidade, nos antecipar e fazer algumas coisas, tomar algumas decisões.
Resolvi levar minha filha na faculdade de medicina onde dou aula, junto com um amigo dela. Os dois queriam fazer medicina e achei por bem levá-los antes que a pandemia se abatesse em Campinas. Até então, zero casos em minha cidade. Ela já tinha me pedido isto há um bom tempo. Eles adoraram a visita. Meu irmão, que trabalha na mesma faculdade,mostrou a faculdade enquanto eu dava minhas aulas.
Mas para nosso azar, naquele dia foi noticiado o primeiro caso de Covid-19 em Campinas. A vítima? Uma frequentadora do lugar onde havíamos passado a tarde. Me senti muito culpado por tê-los expostos. Até liguei para o pai do menino para pedir desculpas. Os pais nem sempre acertam mesmo tentando fazer o melhor. Mas nada grave aconteceu conosco. Mas serviu para ficarmos mais cuidadosos com nosso dia a dia.
Já estava usando máscara nos hospitais e orientei os residentes e alunosa usarem também. O diretor de um dos hospitais passou ao meu lado e falou:
Você está com Covid para estar usando máscara? — perguntou em tom irônico.
Não sei se estou com Covid. E você? — respondi em tom mais irônico.
Mal sabia ele que uso de máscara foi um dos símbolos obrigatórios desta pandemia.
Os filhos estavam com aulas online. Tiveram um curto período de adaptação. Me pareceu que, no início, até acharam bom. As notas das provas se elevaram. Mas com as semanas passando, a falta de aulas presenciais nas escolas com os amigos, agora apenas por computador começaram a ficarem chatas. E alguns médicos começaram a alertar sobre depressão e aumento dos maus tratos domiciliares nesta população. E o medo só aumentava.
Uma novidade. No jantar Sophia fala o seguinte:
— Não quero mais fazer faculdade de medicina. O Mandetta fala para não ir para hospitais ou postos de saúde. Apenas se estiver muito ruim. Morrendo. E vocês vão todos os dias para lá. Não quero isto para mim.
Ela falou decidida.
Filha, você tem que fazer o que você quiser. Não esquenta. Estamos passando por uma fase difícil. Agora você precisa pensar em uma alternativa. Mas tem tempo. Decida com calma e pensando bem, disse minha Ana.
É isso aí! — Falei.
Imagens da Itália assombravam o mundo. Médicos de todas as áreas estavam trabalhando no tratamento do Covid-19. Colegas que tinham contato com médicos da Itália comentavam que tinha até ortopedistas trabalhando em UTI, pois o sistema estava sobrecarregado com médicos doentes afastados. Fiquei com frio na espinha. Há mais de 20
anos, não atendia clínica médica. Me dedicava integralmente à ortopedia, sendo 90% a cirurgia do joelho. E isto não é como aprender a andar de bicicleta, se você ficar um tempo sem andar, você pega o jeito rapidinho. Uma doença grave nem tinha ideia em como tratar.
Imagens de profissionais da saúde sendo reverenciados, comparados ao Super-Homem, enchiam de orgulho todos nós, médicos. Por outro lado, pessoal do prédio onde eu morava e do mercado próximo de casa, nos olhavam com uma certa reserva. Reserva bem visível. A ponto de cobrirem a boca e se retirarem ao nos ver. Eu e minha esposa nos sentíamos orgulhosos pela nossa atividade, mas preocupados pela falta de respeito na área comum do prédio e lojas. Heróis na TV e vilões na vida real. Coisas da humanidade. Italianos cantavam nas sacadas e homenageavam os profissionais da saúde, e talvez fugissem do médico do bairro, como o diabo foge da cruz. Mas ficavam bem na foto ou vídeo das redes sociais.
A máscara cirúrgica simples era de fácil uso, já usava em cirurgias no dia a dia, estava acostumado. Mas operar com avental de chumbo e usando máscara N95 era difícil. Morria de calor e falta de ar. Então... vai com N95 e medo mesmo. Meus colegas anestesistas preparavam uma parafernália para anestesiar e entubar os pacientes. Uns heróis, eles encararam o vírus de frente, de frente mesmo. Tanto que eram chamados com frequência para entubarem os pacientes com esta maldita doença.
Em abril de 2020, profissionais da saúde sofriam muito. Já existiam 30 mortes de pessoal de enfermagem com 4.000 afastados no Brasil. Que já começavam a fazer falta na frente de batalha.
O mês de abril acabou com a marca de 6.000 mortes no Brasil e colocou o país na maior taxa de contágio do mundo. Alguns estados começaram lockdown mais pesados, o primeiro foi o Maranhão.
Começamos a gastar grande tempo dentro de casa, saindo muito pouco, preparando pratos, fazendo comidas diferentes. Aprendi a fazer paella, que fez grande sucesso na família. Eu nem sabia que tinha este potencial dentro do meu ser. Ficou boa mesmo, pode acreditar.
Grande consumo de álcool, tanto nas mãos como bebendo mesmo. Antes comprávamos duas garrafas de vinho por mês. Agora eram duas ou três por semana, fora as cervejas. As roupas começaram a ficar apertadas. E a barriga só crescia. Comecei a não fechar o botão da calça, a usar as camisas mais largas que tinha. O pé começou a doer pela faltade exercícios e pelo aumento do peso.
Um dia minha esposa me mandou uma foto com o rosto todo machucado pela máscara N95. Fui no banheiro e meu rosto estava igual. Que tristeza! Eu já não era muito bonito, com o rosto deformado então...
Meus pais e sogros pedindo para nos desligarmos de nossos empregos, mas não podíamos abandonar o barco, e o setor “contas a pagar” de casa não permitia este tipo de ação. Vai com medo mesmo.
Um momento de desespero abateu sobre nossa família. Ana começou com quadro de falta de ar leve. A deixamos isolada no quarto de casal em casa, e o resultado negativo do exame saiu em três dias. Em uma semana eu comecei a apresentar mal estar e dispneia (falta de ar), cheguei a saturar 87% (normal acima de 94%). Fui para hospital achando que seria internado. Mas os exames deram negativo para
Covid-19 e minha saturação estabilizou em 92% e ficou assim por dez dias. Abaixo de 92% de saturação de oxigênio era internação. Ficava medindo a saturação a todo momento. Foram dias difíceis. Uma música me acompanhava o tempo todo na cabeça, a música “O Sol” do Jota Quest. Fiquei afastado do trabalho e isolado em casa. Depois melhorei e fiquei com dispneia aos médios esforços por uns 2 meses. Deve ter sido Covid-19, mas vai saber. Por uns dois meses ficava com falta de ar ao subir rapidamente um lance de escada.
Neste momento achávamos que o contato com o vírus em superfícies era um modo de transmissão importante. Tínhamos que passar álcool em tudo, compras de mercado, produtos que comprávamos online, sapatos. Era tanto álcool que minhas digitais já tinham se apagado quase por completo. Já tinha dificuldade para serem lidas nas máquinas de reconhecimento digital. As datas de validade dos produtos borravam com o álcool e algumas embalagens também. Ficava difícil saber se estavam vencidas.
Nunca pedimos tanta comida por aplicativo de celular. O cartão de crédito começou a ficar mais caro. E os produtos alimentícios também.
O pessoal da entrega online foram outros heróis da pandemia. Foram essenciais para manter as pessoas alimentadas. Sem o risco de colapso social.
Ana e Sophia brilhavam na cozinha fazendo pratos deliciosos. Mas a vontade de ir a um restaurante era grande. Ficamos sabendo que alguns restaurantes que adorávamos estavam ameaçando fechar as portas em definitivo. O mundo não seria mais o mesmo quando isto acabasse.
A briga do tratamento precoce versus não tratamento precoce estava começando. E não tínhamos ideia de onde iria parar. O filme Contágio
mostrava este problema. Como um filme conseguiu antever tanto? Belos roteiristas.
Esperança por um tratamento eficiente era grande, já que a vacina demoraria para ser desenvolvida. Alguns trabalhos científicos mostravam que algumas drogas não funcionavam e outros que sim. Os de melhores metodologias mostravam resultado zero, o que tirava a esperança.
Começamos a assistir as séries de televisão. A que mais gostamos foi “Ponto Cego”. Fica a dica. Ficávamos acordados até as 02:00 da manhãe trabalharíamos no dia seguinte normalmente, acabados. Com otempo foi acabando a graça das séries e iniciaram as das lives musicais.
Todos os médicos do hospital foram convocados a prestar atendimento direto à pandemia, inclusive os residentes. E me vi dentro de uma enfermaria cheia de Covid-19, participando de discussão de casos com os outros médicos. E outros momentos, ligando para familiares para dar o boletim de saúde diário. Como familiares não podiam ir ao hospital para visita, tínhamos que informar por telefone mesmo. Período difícil.
Medo. E tristeza. Tentava passar uma ideia de esperança. Mas era difícil falar quando o paciente havia apresentado piora ou que tinha sido entubado. E também que o paciente havia sido colocado de barriga para baixo para respirar melhor. Todos estes sinais de gravidade muito mostrados pelos noticiários.
OCOMEÇODAIDEIA
Maio iniciou. Em casa continuávamos engordando, muita comida, muito álcool, pouca guitarra e pouco exercício. Minha esposa assistiu à série Maria Madalena com 60 capítulos, ufa... eu não aguentava e dormia. Roncava.
Começamos a conversar sobre adiar a festa de 15 anos da Sophia. Entramos em contato com vários fornecedores que já havíamos pago e eles falaram que era possível a troca de data. Porém cancelamento seria difícil devido as dificuldades financeiras deste setor. Optamos por adiar a festa por 6 meses.
Ricardo.Teremos queadiar a festa.Não vai dar tempo de a pandemia melhorar. Temos idosos na família. O que você acha? disse ela.
— Ana, melhor postergar mesmo. Acredito que até lá deve ter passado a pandemia, respondi.
A Ana começou a pesquisar a compra de um cachorro para fazer companhia para a Sophia, que já mostrava sinais de tristeza pela pandemia e a Filó não dava muita atenção a ela. Ficamos preocupados com a Filó também, já que ela sofria quando ficava em casa sozinha. E ela ficaria quando voltássemos à normalidade.
Acreditávamos, torcíamos para que a normalidade voltasse em alguns meses. A Filó sofria de ansiedade de separação. Ela apresentava muita salivação e o sofrimento era intenso quando saíamos. E como as crianças estavam em casa o tempo todo, por enquanto durante a
pandemia, tudo bem. O momento da volta é que seria difícil. Pensamos em várias raças. Queríamos uma carinhosa, para ser o cachorro da Sophia. Para ficar com ela durante este período de aulas domiciliares, este período difícil. E deveria ser macho, para não arrumar encrenca com a Filó, a mandona. Minha esposa tem um “alarme aranha” e acelerou este processo de compra, vendo que nossa filha estava ficando triste acima do esperado.
Os noticiários começaram a falar sobre uma segunda onda começando no hemisfério norte. Ponto negativo para a esperança de dias melhores em breve. Por outro lado, os testes com a vacina da Oxford começaram na Inglaterra com 2.000 voluntários. Ponto positivo para a esperança.
Continuei engordando e resolvi alugar uma bicicleta ergométrica. Meu irmão havia alugado uma e passou o contato, e no mesmo dia a levaram em casa. Comecei andar 45 minutos todos os dias, mas isto durou algumas semanas e acabei tendo que comprar roupas novas online de tamanho maior. A cueca apertava para dormir. Tive que comprar novas também.
A compra de vinho online já era usada em casa. Tínhamos uma assinatura de 4 garrafas por mês. Um dia, chegou uma entrega com 12 garrafas, feita pela minha esposa. Eu gostei.
As crianças seguiam em seus estudos domiciliares. Ficavam deitados o tempo todo. Pescoço torto. E as dores pelo corpo começaram.
Porém alguns professores exageraram nas atividades e víamos que as lições de casa estavam sufocando o tempo vago que eles tinham. Dificuldades de adaptação à nova modalidade de ensino remoto.
Julho começamos bem esperançosos com a notícia da vacina de Covid- 19 já começando a terceira fase de pesquisa no Brasil com 9.000 voluntários. Uma médica foi a primeira voluntária paulista. Muito noticiada na mídia com valorização midiática do governador de São Paulo. Seguimos batendo recorde atrás de recorde.
Em casa seguimos comendo e bebendo. A máquina de lavar louça estragou o cabo que eu arrumei sozinho para não chamar ninguém para entrar em casa. E funcionou bem. Meu pai era eletricitário e aprendi algumas coisas quando criança.
Meus pais e sogros ficaram o tempo todo em casa sem sair. Não nos víamos. O contato era apenas por telefone. Difícil para eles, mas acho que para as crianças era pior. Afetando o desenvolvimento social.
A Sophia não sabia andar de bicicleta e resolvemos solucionar esta questão. Descemos na garagem, que não tinha movimento nenhum, e pegamos a bicicleta antiga para tentar aprender novamente. Foi um dia bem legal.
Francisco barbudo, com cara de cansado, continuava estudando dentro de casa e perdendo tempo de convívio de faculdade. Tenho muitas boas lembranças da minha faculdade e me entristecia ver o tempo de faculdade ir embora pelos vão dos dedos dele.
O consultório desanimava. Haviam vários buracos na agenda que não se preenchiam. Ficamos preocupados com as finanças da casa. Eu tinha dinheiro aplicado para essas emergências, mas ele já tinha sido consumido pela metade.
Minha esposa começou a ter aulas de pilates online para ajudar na dor lombar, porém a Filó atrapalhava bastante. Entrando em baixo dela
durante as aulas. Que confusão. Algumas aulas online que dei também tinha este tipo de problema. A safada da Filó aprendeu que nestes momentos, caso ela latisse muito, ganharia biscoito. E assim foi. Eu abria o laptop e ela começava a latir.
A Ana estava de cabelo branco e eu sem cortar o cabelo há três meses.
COISASDAPANDEMIA
O meu cabelo quando cresce começa a encaracolar e fica difícil pentear. E ele já estava assim há várias semanas. Não adiantava molhar que ele não ia para o lugar. Estava prestes a virar o Sideshow Bob, o inimigo do Bart Simpson.
Eu pedi para o pessoal em casa cortar o meu cabelo com uma máquina que tinha e não usava. Minha esposa topou e ficou uma tragédia. Muito ruim. Muitas falhas. Rimos muito. Mas pelo menos, conseguia agora pentear o cabelo apesar do corte cheio de defeitos. Como usava gorro cirúrgico no trabalho, fora de casa ninguém percebeu.
Não bastando a difícil adaptação às novas regras, o que está ruim pode sempre piorar. Para ajudar, uma vizinha começou uma reforma do apartamento dois andares acima, mas parecia que era dentro do meu próprio apartamento. A barulheira começava as 08:00 exatamente e ia assim até as 17:00 precisamente. Usaram por várias semanas britadeira,e como esta máquina faz barulho! A vibração era tanta que até as panelas no fogão faziam barulho.
A reforma estava atrapalhando o estudo das crianças e as aulas que eu tinha que dar online. Usaram britadeira, martelo e formão por vários dias. Achei que o prédio iria cair de tanta vibração.
Sacanagem iniciar uma barulheira imensa com todos presos dentro de casa. Perguntei para o porteiro quanto tempo iria demorar.
Seu Ricardo. a reforma é grande. Vai demorar vários meses. Se prepara! — Falou Luís, o zelador.
Não contente com a resposta, fui falar com o síndico.
Seu Ricardo, é um direito da pessoa fazer a reforma. Também acho um absurdo fazer neste período de pandemia. Mas fazer o quê? — disse ele.
O primeiro mês foi de quebradeira total, os seguintes de barulhos menos intensos, mas chatos. Ao todo foram 6 meses da parte barulhenta da reforma.
Em casa, as pesquisas de raça para um novo cachorro prosseguiam. E já estávamos com uma ideia forte na cabeça. A tristeza no rosto da minha filha aumentava e a vontade de comprar um cachorro para substituir a festa postergada de 15 anos era grande. Será que acertaríamos? Ou será que seria mais uma confusão para cuidar? A dúvida dos pais sempre existe.
No trabalho, o uso das máscaras N95 estavam acabando com o rosto da minha esposa que começou a ter uma grande reação alérgica nas bochechas. Resolvemos passar alguns produtos antialérgico, sem melhora, pois o uso continuo da máscara mantinha a alergia. Eu apenas me machucava durante o uso, mas melhorava quando tirava. O rosto ficava amassado.
Meu cabelo deu uma boa crescida e cobriu as falhas do nosso corte domiciliar. Ainda bem. E já ameaçava enrolar nas pontas.
Minha filha estava muito triste. A Sophia sempre foi uma pessoa de alto astral, mas a pandemia estava quebrando as pernas dela.
WANDER EDNEY DE BRITO
A festa de 15 anos havia sido mudada de data de setembro para janeiro, e como não seria possível a melhora dos números da pandemia em tão pouco tampo, seria necessário nova data. Ela optou por cancelar a festa.
Chega! Desisto! Quanta decepção! —disse ela.
Todos ficamos muito triste em casa. Mas ela não estava bem. A menina que sorria por tudo já não tinha nenhuma feição de felicidade.
Optamos por comprar um cachorro o mais rápido possível e escolhemos um cãozinho da raça Cavalier King Charles Spaniel rubi. Era ainda bebe e demoraria algumas semanas para poder ser entregue, e convencemos o criador a entregar antecipadamente pouco antes do dia de aniversário dela.
Acreditaríamos que seria um substituto à altura da festa. Nem imaginamos o quanto.
A ansiedade em buscar o cachorro, junto com a incerteza.
— Será que ela vai gostar? Ou vamos arrumar mais confusão? disse minha esposa.
— Ela vai adorar. Certeza! disse meu filho.
Sei lá... Mas precisamos tentar algo disse eu.
APRIMEIRADOENÇA
Em casa não aguentávamos mais ficar no apartamento de 105 m² e optamos por alugar por um final de semana uma casa em um condomínio em Jaguariúna, cidade ao lado. Casa com piscina e churrasqueira. Casa enorme e ampla.
As crianças entraram na casa de boca aberta.
Pai! Não acredito. Podemos comprar esta casa? — perguntou Francisco.
A Filó fez uma averiguação completa da casa. Explorou cada cantinho existente. E visivelmente ficou muito feliz. Dava voltas e voltas pela casa.O nosso cão de guarda.
Tinha até uma fonte na piscina, que liguei para assustar meu filho e o celular quase caiu na piscina. Tomei uma bronca daquelas.
Convidamos meus pais e irmão para passar uma tarde com a gente. Eles ficaram num cantinho e todos nós usamos máscaras sem contato físico. Fiquei triste em ver meus pais pálidos e com a musculatura muito enfraquecida. A falta de sol e exercícios já mostrava seus efeitos.
Tinha comprado uma arminha de airsoft e, depois de passar muito álcool, meu pai deus uns tiros de bolinha de plástico em umas latinhas. Deve ter sido a única diversão em um bom tempo. A alegria deles era visível.
Meus filhos ficaram o tempo todo na piscina. E me arrependi de morar em apartamento pequeno. Uma casa nesta condição teria sido muito melhor. Mas os planos de construção da casa estavam parados, e as notícias do aumento violento no preço das construções parecia deixar este sonho ainda mais distante. O preço começou com R$2.500,00 o metro quadrado e já estava em R$ 4.000,00. Cada dia mais difícil para realizar este sonho.
Voltamos para o apartamento com um gostinho de quero mais. Já olhando sites para ver outras casas legais para um futuro breve.
Levei novamente a Sophia para ter aulas de bicicleta no estacionamento do prédio, porém ela apresentou um mal estar, um quase desmaio. Inicialmente imaginei que seria uma hipotensão, pois tem ficado muito tempo deitada na cama estudando e depois já foi fazer esforço na bicicleta, mas ela estava com coração bastante acelerado e manteve-se assim mesmo depois da recuperação total da consciência. Observei também tremedeira suave nas mãos.
No dia seguinte mantinha a taquicardia e optamos por levar em uma colega cardiologista pediátrica que pediu vários exames. Neste momento descobrimos que a Sophia tinha hipertiroidismo (aumento da atividade da tireóide) e que precisaria de um tratamento. Levamos numa colega especialista que iniciou tratamento com a medicação chamada Tapazol e um remédio para reduzir a frequência cardíaca e os sintomas. A frequência cardíaca mínima era de 120 batimentos por minuto, sendo o normal perto de 80, com tremedeira e perda de cabelo.
Hipertiroidismo é aquela doença que acelera as funções corporais, ocorre tremedeira, coração acelerado, queda de cabelo e aquela
HASHI: UM ANJO NA PANDEMIA
deformidade ocular onde os olhos ficam mais saltados. Já estávamos imaginando o pior.
OHASHI
Finalmente chegou o grande dia. O dia de pegar o presente dos presentes.
Fomos buscar o novo cãozinho em São Paulo no dia 25 de setembro sem que as crianças soubessem. Chegando lá fomos muito bem recebidos pelo Sérgio, dono do canil. Ficamos em uma sala e como o dia era perfeito, um beija-flor veio nos recepcionar, parecia um passeio na Disney de tão perfeito era o dia. Temperatura e iluminação extraordinárias. Que dia maravilhoso.
Uma bolinha de pelo ruivo foi colocada em meu colo. Lindo. Olhinho fechado. Bocejou com um charme especial. Eu estava usando uma camiseta preta e logo observei que ele soltava muito pelo. Muito mesmo. Mas era um pelo lindo. Ele se aconchegou no meu peito e quase dormiu. Era a coisa mais linda.
A luz do final da manhã entrava pela janela e reluzia naquele pelo. Atéo beija-flor reapareceu na casa para um voo de boas-vindas. Tudo perfeito. Tudo fantástico. Minha filha iria adorar.
Sergio deu as dicas iniciais. E nos presenteou com alguns mimos. Eu não via a hora de voltar para casa. Seria uma viagem de uma hora de estrada.
Voltamos de carro com o pequeno no colo da minha esposa. Ele bocejava e dava pequenos chorinhos. Estávamos visivelmente felizes dentro daquele carro, ouvindo Phil Collins num volume bem baixinho
para não atrapalhar o soninho do cachorrinho. Sussudio.
Quando chegamos em casa entramos silenciosamente. A Sophia estava na cama do quarto estudando com o notebook no colo e fone no ouvido. Entrei e fiquei parado no meio do quarto dela com o cachorrono colo. Ele tinha acordado e olhava para todo lado. E de repente ele parou e ficou olhando para ela.
Quando ela viu, paralisada de boca aberta um tempão, depois coloquei no colo dela e ela ficou visivelmente muito emocionada. Eu e minha esposa achamos que acertamos.
Meu filho veio ver o que estava acontecendo. As crianças não acreditavam. Filó se esforçava para vê-lo, inicialmente gostou, mas dois minutos depois quis ignorá-lo. Meu filho achou o máximo.
Nossa! Que filhote lindo. disse ele.
Minha filha não conseguia falar. Ficou fazendo carinho no cachorro que já foi se ajeitando no colo dela.
Precisamos dar um nome para ele. — Eu disse.
Isto demorou algumas horas para acontecer. Entregamos no meio do dia e o nome saiu apenas no jantar. Todos demos sugestões de nomes.
Sebastião, Zé, Corisco, Marley, foram algumas sugestões. Mas o combinado era que a dona do cachorro iria escolher o nome, mas sugestões eram permitidas. E conhecendo ela, eu já sabia que não aceitaria nenhuma sugestão. Mas mesmo assim demos várias.
O nome escolhido por ela foi:
O nome dele será HASHI. — disse ela
Como Sophia estava investigando uma doença da tireoide, e tinha a possibilidade de ser uma doença conhecida com Doença de Hashimoto. Este foi o nome escolhido por ela para batizá-lo. Achei muito irônico. Tínhamos pensado em alguns outros nomes, mas nomes comuns de cachorro são comuns. Certo?
Nome completo: Hashimoto Cavassani de Brito. Vulgo Hashi
— Mas filha, o nome dele vai te lembrar de uma doença? — dissemos.
— Hashi será o nome dele disse ela.
A Filó estranhou um pouco e começou a chamar a atenção. Queria colo. Queira petiscos. Queria atenção como era esperado.
Minha filha ficou muito, muito contente mesmo. Coisa que não víamos há um bom tempo. Será que acertamos? Será que vamos arrumar mais confusão do que já temos? Será? Será...? as dúvidas que os pais sempre têm.
Em poucos dias a Filó se acalmou em relação ao Hashi. E se tornaram grandes amigos. Ela com seu jeito mais calminho e ele cada vez mais agitado. Uma dupla dinâmica. Batman e Robin. Hashi e Filó.
LARCOMNOVOINTEGRANTE
O Hashi se adaptou rapidamente à casa. Gostava de dormir no quartinho de música, entre as caixas de som e a parede. Um espaço mínimo que só cabia ele. Ficava ali por horas. Uma figurinha. Muito amável. Carinhoso. Exatamente o que esperávamos dele. Sophia não dava sossego para ele. E ele estava sempre na cama junto a ela. Às vezes um chorinho charmoso ocorria, mas parava assim que ele ganhava um colo quentinho.
Decidimos comprar uma rampa para facilitar a subida dele na cama dela. E ensinamos ele a subir. Inicialmente não conseguia, mas o caminho para a cama da felicidade foi rapidamente aprendido. Filó sempre ia atrás.
Ele era um esfomeado desde o início. Na hora da comida era extremamente voraz. A ração caía para fora do pote, a água também. Pegava com força os petiscos dados com a mão. Chegava a mordiscar com aqueles dentinhos afiados e pequeninos.
Aprendemos que para ensinar a fazer as necessidades na fraldinha, tínhamos que deixa-lo no cercadinho por um tempo. isolado. Dava dó, mas tinha funcionado com a Filó. Ele ficava chorando, com a cabeça encostada na grade, olhando para a gente. Chorava algumas vezes ao se ver isolado, mas funcionou bem e em poucos dias já sabia que as necessidades tinham que ser feitas na fraldinha.
É lógico que víamos que as crianças o pegavam escondido várias vezes do cercadinho. Até fazíamos barulho mostrando que estávamos indo
para sala para eles recolocarem ele no cercadinho. Desobediência do bem.
No aniversário do meu sogro fomos pra Bauru e levamos os cães. Que festa. Mantivemos o afastamento social possível e o uso de máscaras, mas os cães corriam por todo lado.
Ficamos com medo deles derrubarem alguém, mas deu tudo certo. Ninguém caiu e ninguém ficou doente. Ufa!
— Nossa! Que cachorro lindo! Que pelo! Que energia ele tem disse minha sogra.
— Lindíssimo falou minha cunhada.
No último dia do mês de agosto, comemoramos o aniversário da Sophia, com alegria no coração. No apartamento mesmo. Com a bolinha de pelo ruivo alegrando a casa. A Sophia estava amando o Hashi. Ele fazia companhia o tempo todo para ela.
Acertamos!
Mas o estrago psicológico já tinha tomado conta dela. E a explosão interna nela estava prestes a acontecer. Remédio tem a hora certa de tomar e acho que demoramos um pouco. Os pais sempre se culpam. Às vezes acho que tínhamos que passar pelo que passamos na vida. Então vamos que vamos. Fé!
Como esperado para cachorrinho pequeno, iniciou fazendo xixi para todo lado, mas rapidamente aprendeu a fazer no lugar certo. O cercadinho funcionou mesmo. Não errava uma.
Desde pequenino era um esfomeado. Comia a parte dele com olho na da Filó. Tínhamos que ficar de olho, senão ele comia a parte da Filó, que sempre demorava para iniciar a alimentação. Ele comia ferozmentee ela apenas observando em pé ao lado do potinho dela. Depois que ele acabava, ia direto no dela, e ela latia e assustava ele. E depois comia com ele olhando. Uma maldade entre cachorros. Filó não era fácil. Mandona.
Ele já chegou destruindo a pulseira do meu relógio. Estava no meu coloe discretamente começou a comer a ponta da pulseira plástica e de repente já tinha comido toda a ponta. Nem percebi. Um verdadeiro “Missão Impossível”. Precisei trocar a pulseia. Primeiro prejuízo. Achei incrível a discrição no ato deste delito. Chama atenção quando queria e sabia ser discreto quando precisava. Um Ethan Hunt.
O aniversário da Sophia foi em casa mesmo. Bolo e doces do nosso amigo confeiteiro Thiago Borges. Um tom de tristeza com alegria. Alegria por estamos bem, por termos um novo integrante em casa. Mas a famosa festa de 15 anos seria impossível. Aquele gostinho de derrota pela suspensão da festa estava na garganta minha e da minha esposa. Mas temos que se adaptar as circunstâncias.
O ponto alto do aniversário foram os balões de gás Hélio. Minha esposa comprou e ficaram muito lindos. Depois de cantar parabéns e assoprar as velinhas a Sophia teve uma ideia.
— Vamos fazer voz engraçada com o gás hélio dos balões, disse ela.
É pra já, respondeu o Francisco.
E brincamos de falar após inspirar o conteúdo dos balões. As vozes saiam parecidas com o do Pato Donald. Todos rimos muito e o Hashi
olhava achando tudo estranho. Mas não ficava com medo. E quando todos riam, a bolinha de pelo lindo vinha participar da bagunça, latindoe pulando.
Hashimoto Cavassani de Brito, vem cá. Falei com voz de pato. — Todos rimos.
Outra atividade que os cães de casa gostavam era quando chegavam compras com caixas de papelão grande. Cada um ganhava a sua. A Filó dormia por horas dentro da caixa no seu cantinho. O Hashi dava uma destruída na caixa e depois dormia dentro. Duas feras.
Dormir na rede no colo da Ana era outra atividade que o Hashi sempregostava. Temos várias lembranças destes momentos felizes. Ele tinhaum jeito especial de se aconchegar. Era muito gostoso sentir seu calore sua respiração lenta.
Ele chegou e rapidamente se integrou à rotina da casa. O encaixe foi totalmente preciso. Espalhava alegria por onde passava. Tinha uma carinha de estar feliz com o novo lar. Parecia que tinha até um olhar de agradecimento. Mas nós é que tínhamos que agradecer pela existência dele conosco. Ele dava atenção a todos da casa. Até a Filó que por vezes dava uma corrida nele para mostrar quem mandava em casa, gostava do novo habitante.
Você notou o brilho e o sorriso na sua filha com o Hashi?, perguntou minha esposa.
Acenei um sim com a cabeça e um enorme sorriso no rosto.
OCACHORROATOR
Estávamos nos acostumando à personalidade do Hashi. Dormir no cantinho dele, um ser esfomeado que gostava de brincar e passear.
Ainda no primeiro mês em casa, minha esposa estava segurando o Hashi no colo e ele deu um pulo e caiu no chão, machucando a pata traseira.
Ele fez um escândalo absurdo. Chorava alto e sem parar. Mancava com uma cara de coitado. Todos ficamos muito preocupados.
— Foi sem querer. Ele pulou do meu colo. Não consegui segurar — disse minha esposa chorando.
Já eram nove horas da noite. Eu estava cansado pois tinha trabalhado o dia inteiro naquele esquema de máscara apertada, difícil respiração, coloca roupa de isolamento, tira roupa de isolamento, coloca novamente. Uma rotina pesada. Eu já estava de pijama e de olho na cama para ver alguma série na televisão.
Coloquei uma roupa para poder sair. Peguei o Hashi que ainda estava chorando e mancando, coloquei numa sacola de transporte e levei ao veterinário. Fomos em um que consideramos bom e que tem atendimento de urgência 24 horas por dia.
Demorou 10 minutos para chegarmos. Ele ficou no meu colo esperando com a cabeça para fora da sacola olhando tudo. Um Golden saiu do atendimento com a veterinária e passou pertinho e brincou com o Hashi. Que respondeu se mexendo e brincando.
— Agora pare de engolir meias Marley! — Disse a veterinária para o cachorro que estava indo embora.
Ao sair o Marley tocou o nariz no nariz do Hashi. Achei que ele ficaria com medo do grande cachorro. Mas ele gostou e se mexeu sem nenhum gemido.
A veterinária nos chamou após se despedir do outro cachorro. Fomos até a salinha de atendimento onde coloquei a sacola com ele com o maior cuidado na mesa de exame. Ela o tirou da sacola com o maior cuidado para examiná-lo. Lentamente. Quando ela o colocou na mesa, ele dava pulos brincando. Ela olhou para minha cara com uma cara de nem sei o quê. Examinou ele com cuidado.
Nem vou pedir radiografia para ele. Ele está parecendo muito bem, disse a veterinária.
E lá se foram 250 reais.
Neste dia descobrimos que ele era um artista profissional quando se tratava de dor. Nos escândalos seguintes já dávamos menos bola. Não foram muitos. Mas pisar no rabo e quedas do sofá, seguidos de escândalos não nos afetava mais. Dávamos um tempo e lá vinha ele brincando e mexendo com todos.
— Pai. O Hashi caiu da cama e está gritando alto. Acho que se machucou — disse minha filha desesperada ao telefone um dia.
Onde ele está? Está conseguindo andar?, perguntei.
— Esquece, pai. Ele já está brincado com a Filó e nem está mancando.
— Rimos.
Um Marlon Brando nas atuações e na beleza. Ficamos de olho após os shows. Combinamos que se a atuação passasse de 5 minutos levaríamos ele no veterinário. Antes disto nem pensar.
OESPORTISTA
Uma das atividades esportivas preferidas do pequeno Hashi nos nossos passeios, que precisávamos cuidar, era o “salto em altura em pernas de mulheres”. Não sabemos o porquê, mas se passássemos ao lado de uma mulher de saia curta ou short ele pulava nas pernas dela querendo brincar. E acabava assustando as pessoas.
Se estivessem com pernas cobertas isto não ocorria e se fosse homem também não. Então, de longe, já íamos mudando de calçada para evitar este esporte. E seguiu assim a vida inteira. Medalha de ouro no esporte olímpico “pulo em altura em perna de mulher”. Às vezes descuidávamos, mas ele não. E lá vinha a vergonha dele saltar sem cima de uma coxa feminina.
Me desculpe — Dizia eu às mulheres vítimas destes saltos.
Não precisa. Ele é lindo.
Geralmente as mulheres “atacadas” abaixavam para brincar com ele. Um galã.
Mas algumas pessoas se assustavam e devemos respeitar quem não gosta de cachorro. Nunca tive problemas graves com esta ação dele. Acho que o charme do Hashi era maior que o susto do salto sobre pernas.
Salto para cima de cama das crianças e sofá já era fácil. Nenhuma dificuldade. O que já facilitava a vida e tirava a necessidade de rampas dentro de casa.
A minha cama de casal era mais alta. Então colocamos a poltrona que ficava ao lado para facilitar a escalada. Mostramos uma vez para ele como subir por ela e ele aprendeu. Ficou subindo e descendo pelo novo caminho várias vezes. Uma energia sem fim. A Filó se animou e aprendeu subir pela poltrona também.
Ele cresceu rapidamente e vimos que era muito mais veloz do que a Filó. Ele tinha pernas musculosas e muito velozes. A Filó dava umas corridas nele, mas ele era muito, muito mais rápido.
Para relaxar eu sempre estava no quartinho de música tocando guitarra ou violão. E ele sempre ficava próximo ouvindo. Quando eu tocava músicas mais calmas, ele ficava próximo e encostado. Quando tocava música de metal, ele ficava mais afastado, no meio da cozinha deitado, observando. O meu fã principal.
VÍTIMANÚMEROUM
Até então, nossa família e amigos, havíamos passado ilesos pela pandemia. Mas uma grande amiga nossa foi internada com quadro grave e insuficiência respiratória pelo Covid-19. Ela era madrinha da Sophia. Foi internada em enfermaria na nossa cidade mesmo. E em poucos dias foi para UTI entubada.
Nós fomos acompanhando evolução no dia a dia, com uma piora progressiva. Cada dia uma notícia de piora do quadro clínico. Por vários momentos achamos que íamos perdê-la.
Um colega anestesista que trabalhava na UTI daquele hospital nos atualizava diariamente. As notícias sobre quadro clínico dela eram progressivamente desanimadores. Piorava dia a dia.
— Ricardo, acho que ela não sai. Piora dia a dia. Nem um sinal de melhora. Vai se preparando..., disse ele.
Minha esposa ficou em contato com a família tentando acalmar esposo e filho. Uma família muito querida por nós. Tinha dias que estavam bem, tinha dias que estavam arrasados. Precisávamos manter a moral em alta. Muitas orações e esperança.
Ricardo, vou levar todos para tomar um sorvete, falar com eles, tentar acalmar. E você conversa com o Reginaldo, pediu Ana.
Após três semanas de internação em UTI, ela apresentou uma melhora rápida e recebeu alta para enfermaria e poucos dias depois foi pra casa muito debilitada, mas com bastante fé na recuperação.
O cabelo tinha caído muito. Ela não conseguia ficar em pé. Nos primeiros dias não tinha força nem para segurar um copo de água. Ela precisou usar por um bom tempo uma máquina que concentra oxigênio para poder tratar a falta de ar residual que ficou. Com alimentação adequada e muita fisioterapia ela foi melhorando lentamente. Agradecemos muito a Deus por ter atuado na proteção desta nossa grande amiga.
Nesta época, os hospitais estavam cheios, mas ainda existiam vagas para este tipo de internação. Tínhamos vagas, pois os hospitais haviam se programado e aumentado os leitos de enfermaria e UTI para tratamento dos doentes da pandemia.
A Sophia ficou muito assustada. Pediu para pararmos de trabalhar. Ficou preocupada comigo por estar acima do peso, um risco sabido para evolução desfavorável na Covid-19. Pareceu-nos muito transtornada. Falou que definitivamente não queria mais fazer medicina no jantar.
— Tenho um comunicado para vocês. Não sei o que quero fazer, mas medicina não é mais. Se vocês ainda tinham esperança que eu mudasse de ideia. Esquece disse ela.
Nunca forçamos a escolha de nenhuma faculdade/profissão para nossos filhos e recebemos esta notícia sem nenhum drama. Acredito que temos que respeitar as escolhas dos filhos. Podemos mostrar os problemas e dificuldades dos caminhos escolhidos. Mas não dizer o que escolher para futuro. Cada um tem seu caminho a trilhar.
Iniciamos dezembro com o governo apresentando o plano de vacinação nacional. Inicialmente seriam vacinados profissionais de saúde, idosos
WANDER EDNEY DE BRITO
acima de 75 anos ou acima de 60 institucionalizados em casa de longa permanência e indígenas. Com as vacinas chegando em janeiro a esperança de livrar-nos das máscaras era muito grande. A esperança de voltar ao normal. Falavam em “Novo Normal”. Um normal diferente.
NATAL
Fizemos os preparos para as comemorações de Natal no Novo Normal. Novo Normal de Natal, parece nome de filme.
Hotel nem pensar. Muito pouco seguro diante de tantos casos de internação por Covid-19.
Optamos por alugar uma casa pelo Airbnb numa cidade próxima daqui de Campinas e convidamos a família da Ana. Fomos nós, humanos e animais; meus sogros, minha cunhada com esposo e sua cachorra, a Lulli, um maltês, que adora cosquinha na barriga branca.
Era uma casa imensa, uma piscina muito boa, campo de futebol. Muito verde. Pássaros. E o principal para mim, uma área de churrasco fantástica.
Deixamos meus sogros em um quarto próximo à área de lazer para facilitar a locomoção. A casa tinha muitas escadas.
Ficamos usando máscaras cirúrgicas o tempo todo para evitarmos possíveis contaminações. Esta preocupação era constante. Fizemos teste sorológico antes de irmos.
Os animais andavam muito pela casa. Andavam pelo campinho de futebol, pelas escadas, pela piscina. Uma festa com aquela largueza. Era bonito de se ver a alegria na cara deles. Jogamos bola e corremos muito pela casa.
A piscina era o local de encontro. Todos de máscara e separados por uma boa distância. Em um dos dias o cachorro da minha cunhada deu um belo de um mergulho inesperado e meu cunhado pulou para salvála. Um susto seguido de muitas risadas.
O Hashi gostava de ficar num cantinho que tinha uma vegetação rasteira, bem verde, vegetação chamada de grama amendoim. Nós ficávamos com medo de algum animal picá-lo, mas era onde ele gostava de ficar.
Hashi lindo. Crescendo rápido. Totalmente adaptados às rotinas da casa e das pessoas. Ele chamava atenção por onde passava. O sol do final da tarde quando batia na sua pelagem era majestoso. Dava impressão que ele sabia disto. Mas era muito gente boa e não era esnobe. O cachorro mais bonito e alegre, sem dúvida.
Na casa, os adultos gostavam de jogar baralho à tarde e meu cunhado ficava muito animado neste momento. Eu preferia as atividades de churrasqueira. Meu avô por parte materna era o churrasqueiro oficial da pequena cidade interiorana onde morava, e acho que herdei algo nesta área. Modéstia à parte, o churrasco ficava muito bom. Os cães adoravam.
Sempre recebíamos notícias da nossa amiga que havia saído recentemente do hospital e estava em sua casa utilizando o concentrador de oxigênio, pois sem ele não conseguiria ter recebido alta. Mas estava se recuperando. A fraqueza muscular era enorme. A família tinha sofrido muito durante a internação, mas a alegria da vitória era visível.
Minha esposa ligou para saber notícias e me disse depois que a voz era lenta e diferente, provavelmente devido à fraqueza e ao tempo de uso de tubo para ventilação.
Após o evento desta internação, criamos um brinde nos jantares em casa.
— Vamos brindar! — Eu falava.
Estamos vivos! Todos respondíamos.
Este brinde significava muito para todos. Uma tradição criada em tempos difíceis em minha família.
O Hashi quando não estava encostado em alguém da família, estava chamando a Filó para brincar. Sempre dando mordiscadas nas orelhas cumpridas dela. Sempre pulando ao seu lado. Nem sempre ela topava as brincadeiras e as vezes ocorriam latidos e correrias. Que ele adorava também.
A orelha foi crescendo e ficando charmosa. O cachorro mais gente boa e lindo do Brasil. Sem exageros.
UMNOVOANONOVO
A Sophia estava mais quieta e tristinha do que o esperado para a situação pandêmica. O Hashi ajudava bastante nos momentos de solidão em casa. Mas ela deixava claro que queria encontrar os colegas de escola.
Ela queria sair.
Conversar.
Queria vida social.
O mundo virtual realmente não substitui o mundo físico. O estrago interior estava crescendo. O monstro interior iria aparecer a qualquer momento. Ter aulas online foi ótimo para não perderem o ano letivo, mas péssimo quando analisado o crescimento emocional. Um problema que veremos lá na frente em uma geração inteira.
O Francisco conseguia contato com os amigos através de jogos eletrônicos online. Não substituía o jogo de futebol presencial, mas ele estava sofrendo menos que a irmã. Ouvíamos os gritos de alegria durante os jogos online. E estes gritos eram bem altos no início da pandemia e foram ficando menores durante seu curso. O desanimo era visível em todos em casa. Nem o violão e guitarras tocavam na frequência rotineira.
Ana continuava trabalhando bastante. No posto de saúde montaram uma tenda de lona para o atendimento aos pacientes suspeitos de Covid-19. Precisava usar máscara, avental e protetor facial (face shield).
Desgastante e perigoso. Se precisasse ir ao banheiro, seria necessário retirar toda aquela parafernália e recolocar novas depois, o que geraria uso de mais equipamentos de proteção que estavam escassos. Qual saída? Ficar sem ir ao banheiro. Então além do calor, do medo, da visibilidade ruim, tinha que ficar segurando o xixi. Que fase! Ela chegava em casa esgotada. Com o rosto machucado pelo uso por várias horas da máscara N95. Só restava um convívio de início de noite com a famíliae um vinho para relaxar.
Minha participação nos atendimentos de Covid-19 tinha se encerrado. Com esta história de entregas online com motos, a quantidade de acidentes havia aumentado muito e não faltavam fraturas a serem operadas. Todos pacientes eram triados com testes para Covid-19 e frequentemente operávamos pacientes infectados. Nas cirurgias ortopédicas às vezes temos que usar avental de chumbo para reduzir exposição à radiação de exames de radiografias realizadas durante a cirurgia. Ele esquenta bastante. Então as vezes estávamos operando embaixo do calor do foco de luz, com avental de chumbo, máscara N95 e face shild (capacete). Era difícil resistir às altas temperaturas e tambéma dificuldade para respirar com toda esta parafernália. Mas tinha que enfrentar.
As comemorações de final do ano foram em casa. Jantar especial sem amigos. Quatro humanos e dois cachorros.
— Ainda vivos. E brindamos todos uníssonos.
Sem amigos. Músicas antigas. Preocupado em como o Hashi enfrentaria os fogos de artifício de Ano Novo. Por sorte, estes não foram muitos e foram longe. Fogos de artifício para comemorar o que?
Ele e Filó assustaram quase nada. Melhor assim. Mas queríamos estar comemorando com amigos, sem máscaras, sem medo.
Na segunda semana do mês de janeiro fomos para a praia. Alugamos um apartamento e levamos toda a comida. A proposta era não frequentar locais com aglomeração. Cozinhamos todas as refeições. Na praia íamos bem pela manhã e no finalzinho da tarde, para evitar contato social. Os cachorros adoraram.
Quando começamos a montar as malas para a viagem, a Filó, esperta, já ficava triste e se colocava dentro da mala. O Hashi sem entender nada, entrava também na outra mala. E quando ele percebeu que iria junto na viagem, a felicidade foi enorme. Ele adora viajar. Vai olhandoa paisagem o caminho inteiro, já a Filó sofre um pouco e fica mais abatida com o movimento do carro.
A Filó já sabíamos que gostava da areia, mas muito pouco de entrar na água do mar. Só não sabíamos que o Hashi iria gostar tanto. Ele pedia para entrar na água. Vocês precisavam ver a alegria dele dentro da água, andando na praia, focinho cheio de areia. Como vocês sabem, no Estado São Paulo, é proibida a entrada de cães na praia, mas achamos uma deserta e levávamos eles bem no cantinho e no final da tarde, quando quase não tinha mais ninguém. Uma pena não existir praias que permitam cachorros no Estado de São Paulo. Uma coisa a ser mudada no futuro. Afinal podem ir a quase todos lugares nos dias de hoje. Acredito que toda cidade litorânea deveria ter uma praia que fosse permitido a entrada de cães.
O Hashi ficou parecendo um croquete de tanta areia pelo corpo. Pulava alegremente. Minha filha o acompanhou alegremente. Fizemos vários vídeos e fotos. Considero este momento um dos mais alegres que
tivemos com o Hashi. Todos felizes. Ponto para minha esposa, que procurou e insistiu na viagem e em levá-los ao mar.
No apartamento alugado, com uma vista pequena do mar, descobrimos que o Hashi é um cachorro fofoqueiro. Ele ficava na sacada de vidro olhando para baixo para ver todo movimento, desde carros, motos passando, outros cachorros passeando e vizinhos conversando. Um verdadeiro fofoqueiro. Muito engraçado.
ASEGUNDADOENÇADASOPHIA
Na praia, fazíamos o café da manhã, almoço, jantar e os lanchinhos e começamos a perceber que a Sophia estava comendo muito pouco. Sophia era uma criança muito faminta. Tipo a Magali da turma da Mônica. Achávamos que ela seria gordinha, mas sempre foi magrinha, de porte atlético. Sempre fez muita atividade física. Já fez Kung Fu, ballet, natação, dança. Sempre se destacando. Porém nesta viagem conseguimos ver que a quantidade de comida que estava consumindo era muito menor do que a usual. Em dezembro havíamos observado que ela estava comendo pouco menos. Mas nessa viagem observamos que a quantidade de comida era mínima, aproximadamente apenas 40% do que comia antes. No final da viagem, já tínhamos a certeza que isso era um problema.
Percebemos que ela dava grande parte da comida para o Hashi, que ficava sempre posicionado próximo à cadeira dela, embaixo da mesa. Um safado, ficava quietinho recebendo a comida escondida. E começamos a pedir para ela parar de fazer isto, com isto acabávamos perdendo a real noção de quanto ela comia.
Ana achou que poderia ser Anorexia Nervosa, eu achava que era coisas do hipertiroidismo ou das medicações que ela estava tomando. E optamos por investigar melhor este problema quando voltássemos para Campinas.
O mês de fevereiro começou com muita esperança em cima da vacinação. Acabamos o mês com mais de 5,5 milhões de brasileiros
vacinados. Incluindo eu e minha esposa que trabalhávamos na área da saúde e fomos um dos primeiros profissionais a serem vacinados.
A escola da Sophia e a faculdade do Francisco iniciaram as aulas de maneira presencial, mas durou poucos dias, devido ao aumento na incidência provocado pelas festas de final de ano, então tiveram que voltar novamente a ter aulas na cama de casa. Pescoço torto. Dores pelo corpo. Nunca atendi tanta criança e adolescente com dores pelo corpo.
Sophia estudando na cama com o Hashi e Francisco nos games com os amigos. Eu e esposa correndo de um trabalho para outro. Máscara apertando a face. Daquele jeito já contado.
Aproveitávamos os finais de semana para passear com os cães. Levamos eles sempre em lugares abertos. Gostávamos de ir na Unicamp, onde formamos, pois havia amplos espaços abertos, gramados e pouca gente. Caminhadas longas que levavam toda a manhã. Encontrávamos outros cães e eles interagiam muito bem.
O Hashi estava crescendo e adorava destruir os brinquedos. Primeiro, ele arrancava os olhos, depois as orelhas e depois as extremidades dos membros. Cirúrgico. Não sei porque, mas sempre nesta ordem. A Filó tinha predileção por chinelos da minha esposa. Apenas os chinelos dela. Ela destruiu vários. Comprávamos tudo pela internet. Como eu estava engordado, comprava roupas online, mas errava o tamanho quase sempre. Tem coisas complicadas de se comprar sem experimentar. E a foto da propaganda é quase sempre melhor que o produto recebido.
A adolescência chegou para o Hashi.
Ele começou a demarcar território, fazendo xixi em qualquer cantinho. Fez xixi no aspirador de pó vertical, nos batentes das portas. Em poucos dias agendamos e fizemos a castração, que foi muito eficiente neste problema de demarcação de território. Ocorreu tudo bem com a cirurgia. Recuperação super rápida. O orelhudo tinha uma saúde de ferro.
O ânimo dos nossos filhos estava muito em baixa. A suspensão das aulas presenciais não estava no plano deles. O desânimo e as infindáveis horas dentro dos quartos se traduziam num quadro desolador. O Hashisempre ficava na cama da Sophia, dando força para ela. Mas ela ficavacada dia mais magra. Estávamos desesperados.
Após repetir os exames da tireoide e passar por uma sessão com um psiquiatra ficamos sabendo que o problema não era o hipertiroidismo ou as medicações. O problema era mesmo a anorexia nervosa. Uma doença de difícil tratamento. Mais uma preocupação que virou nosso maior tormento.
Enfrentamos de frente o problema alimentar da Sophia. Psiquiatra, psicólogo, muito estudo, muita informação a respeito do problema. Minha esposa, que além de pediatra era nutróloga, estava super atualizada com os últimos artigos sobre o assunto.
Estávamos muito preocupados, pois a perda de peso era visível e as brigas frequentes nas refeições eram enormes. E de nada adiantavam. Percebemos que ela discretamente alimentava o Hashi cada dia de um jeito diferente, com a sua própria comida. Cada dia mais, ele engordando e ela perdendo peso. E como ele gostava, já se posicionava ao lado dela na mesa e ficava escondidinho esperando a comida dada discretamente. Algumas vezes ela escondia a carne embaixo do arroz.
O arroz embaixo da alface. E praticamente nada era comido. Quando era comido não era por ela. Vários dias e não comia nada. Que desespero. Que impotência.
Eu e Ana já não sabíamos mais o que fazer. Conforme ela ia perdendo peso, íamos aumentando nossos estudos a respeito desta doença.
ANOREXIA NERVOSA se transformou no nosso maior pesadelo.
Assisti um filme sobre anorexia e nem sei o que falar. Filme com participação do Keanu Reeves. Fiquei triste e animado ao mesmo tempo. Eu, ortopedista, um cara objetivo e direto. A cura dela estava a seis passos, na geladeira. E muito, muito longe ao mesmo tempo.
Ficávamos ansiosos o dia todo esperando o momento das refeições. O que para quase todos é um momento bom, para nós era stress puro. Para todos, exceto o Hashi que comia a comida dela escondido. O combinado perfeito.
OGOLPEFATAL
Março de 2021 foi o pior mês nesta pandemia para minha família sem dúvida nenhuma.
O “barco” da pandemia, que havia recuado, voltou e bateu novamente no cais com uma força tremenda. E assim começou a segunda onda da pandemia de COVID-19. Que foi muito pior do que a primeira. Muito mesmo. Para quem no início desta história nem sabia que pandemia vinha em ondas e que achava que duraria apenas alguns poucos meses,tudo podia piorar e piorou mesmo!
O país ficou sem vagas de UTI. Foi o maior colapso de saúde que eu presenciei em minha vida. A Fiocruz corrobora esta minha opinião e mostra que 15 estados estavam com ocupação de UTI muito acima de 90%. Um número estarrecedor. Pois víamos que o número de vagas tinha aumentado muito, mas mesmo assim eram insuficientes.
Meu sogro com mais de 80 anos tomou a primeira dose da Coronavac. Quem o levou para a vacinação foi meu concunhado, Dani. Ele sempre foi muito cuidadoso com minha cunhada e sogros. Moram lá na cidade de Bauru.
Logo depois meus pais e minha sogra foram vacinados. Eu, minha esposa, meu irmão e minha cunhada dentista fomos vacinados bem antes, na primeira leva. Dos adultos da família, faltava vacinar apenas meu cunhado.
E neste terrível mês de março tivemos dois casos de COVID em pessoas muito amadas e concomitantemente. Que sofrimento. Que impotência.
O primeiro caso foi do meu grande amigo Marcão. Amigo de mais de uma década. Meu guru filosófico. Ele estava em viagem de negócios em Tocantins. Iniciou os sintomas de Covid-19 por lá. Sintomas inicialmente brandos que foram piorando com os dias, a evolução natural desta doença. Pensei em pedir para ele vir de carro, mas era muito longe e ele poderia piorar durante o caminho. Vir de avião nem pensar, pois colocaria em risco as outras pessoas.
Em poucos dias apresentou uma piora que precisou de internação e durante internação necessidade de UTI. Não tinha vaga de UTI no Brasil inteiro. Liguei em todos os hospitais de Campinas e todos tinham lista de espera para vagas de UTI. Cidades na redondeza lotadas. São Paulo sem vaga. Não conseguíamos nem o trazer para cá. Desespero para a gente e para a família. Muita oração.
Após muitos contatos, depois de dias de grande desespero, conseguiram uma vaga na cidade de São Paulo e ele veio de transporte aéreo acompanhado do filho. Ficou internado dois meses e meio em UTI. Piorava a cada dia. Ficamos com muito medo de perdê-lo. Quando saiu da UTI não conseguia nem falar. Todos os órgãos comprometidos. Rim, fígado, coração, cérebro e pulmão. Todos os órgãos com algum grau de sequela. A esposa fez um esforço enorme e hoje ele se recuperou com algumas poucas sequelas. Toma vários remédios, mas como brincamos, ele bateu na trave.
Saiu do hospital com necessidade de máquina de oxigênio e cuidados especiais em casa. Agradecemos muito a Deus e combinamos de ir paraa Catedral em Aparecida do Norte agradecer sua recuperação.
O outro corrido não teve um final bom. Trata-se do meu concunhado.O Dani.
Dani conheceu minha cunhada na escola onde ela trabalha, num dia que foi prestar serviço lá. Ele jogou um charme e logo começaram a namorar. Ele altão e fortão, e ela pequena e delicada.
— Eu tenho muito a agradecer ao Dani. Ele ajuda muito meus pais e minha irmã. — Sempre diz minha esposa ao se referir a ele.
O Dani começou com sintomas de Covid-19 nesta mesma época e em poucos dias necessitou de internação. Nesta internação, ele apresentou piora progressiva do quadro respiratório. Foi internado, desinternado e reinternado em UTI, uma confusão.
Ric, o Dani faleceu. Preciso ir agora para Bauru, disse minha esposa chorando.
Larguei tudo e fomos de carro. Uma tristeza. Era o adulto mais jovem da família. Tinha 42 anos. Muito trabalhador. Muito amável com minha família.
Como se tratava de uma doença infecciosa, as visitas hospitalares eram proibidas. Morreu sozinho, minha cunhada sofreu sozinha sem poder visitá-lo. Mandou alguns vídeos mostrando o sofrimento respiratório em que estava. Um sacrilégio. O paciente e a família enfrentavam essa maldita doença sozinhos. Cada um no seu canto. Uma doença grave de enfrentamento solitário a todos.
Minha esposa e a irmã dele ajudaram no reconhecimento do corpo. Todos pacientes de Covid-19 eram enterrados em sacos e em caixão fechado. Mal podíamos nos despedir de maneira correta. Todos de máscara, coveiros com roupas especiais. Muitos amigos e familiares na entrada do cemitério. Mas apenas 12 poderiam entrar para prestar as últimas homenagens. Sem toque, sem rostos, sem abraços...
Com tudo isto, a piora da Sophia foi enorme. Tristeza, tristeza e mais tristeza. E menos peso. E Hashi mais gordinho. A morte do Dani foi um grande impacto na família. Mas a Sophia sofreu mais. Piorou de vez. Desespero. O bracinho era uma vareta de magrinha. Dias sem comer. Intestino preso com dor abdominal, não tinha o que digerir. Parecia que não tinha nada que ajudava. Eu fazia um “leite especial”, fortalecido, pela manhã e à noite. Mas nada adiantava. O peso estava visivelmente indo embora. Hashi, o carinhoso, ficava junto, mas o golpe foi muito forte. Nocaute.
Para ajudar, além de não comer, ela fazia exercícios escondido. Às vezes estava estudando e fazendo abdominais na cama. Entrava pouca energiae saia muita. Combinamos de ficar de olho se ela estava fazendo exercícios escondidos.
A família estava arrasada com a morte do meu cunhado. A Ana ia todo final de semana para Bauru na tentativa de ajudar minha cunhada. Dias difíceis. Problemas em casa, família com problema, amigos com problemas. O mundo parecia ruir em problemas graves. Com tendência de piora. Falta de energia, força.
Estávamos no chão, no fundo do poço, mas temos que nos levantar e seguir. Mesmo com este peso nas costas. Filha, família, amigos.
WANDER EDNEY DE BRITO
Precisamos levantar e ajudar como der. Está com medo, vai com medo mesmo. Se tiver que cair, caia em pé.
DIAADIACOMOHASHI
Eu sempre fui muito ruim de dormir, de pegar no sono, sono muito leve. Não consigo dormir com música ao fundo, não consigo dormir com alguém encostando em mim. E o Hashi conseguiu mudar isso.
Ele cresceu, e depois que conseguiu subir na cama sozinho ele dormia no meu travesseiro ou entre o travesseiro e a cabeceira. Às vezes, sobreo travesseiro, como se fosse um capacete na minha cabeça. o corpo no topo da minha cabeça, um par de patas a frente e outro atrás da minha cabeça. Tive muita dificuldade no começo para consegui dormir. Insistimos em pegar ele e colocar nos pés da cama, mas ele sempre voltava durante a noite e acabei me acostumando. Na verdade, acabei até gostando. Um grande companheiro. Um grande amigo.
As saídas de manhã eram incríveis.
Quando eu pegava as coleiras para passear, a Filó corria para se esconder e o Hashi começava a latir e quase colocava a coleira sozinho.
Depois de muita perseguição, pegava a Filó e conseguia colocar a coleira. Os dois iam para a porta de entrada. Ela elegantemente em silêncio e o Hashi loucamente latindo e pulando na porta. Ao abrir a porta ele saia correndo me puxando com força.
No início eu descia os seis andares de elevador. Ele pulava, arranhavae latia loucamente. Com esta bagunça, eu comecei a usar a escada para estas aventuras. Ele descia voando, latindo, puxando e fazendo troça com a Filó, tudo de uma vez. Às vezes dava nó nas coleiras e eu quase caia na confusão. Na rua, a Filó andava como uma princesinha elegante
e o Hashi um estabanado andando em ziguezague e puxando a coleira sem parar. Ele sempre ficava animado em correr atrás de folhas de árvores que se movimentavam ao vento e principalmente atrás de passarinhos. Como nestas situações ele puxava com muita força, reforcei a coleira para não arrebentar, coloquei uma fita a mais onde considerei que poderia arrebentar. Se um dia arrebentasse, não conseguiria alcançar ele nunca, o Usain Bolt em quatro patas.
Em uma manhã estávamos tomando café perto de casa com minha esposa e os dois cães estavam embaixo da mesa quase dormindo e eu segurando o Hashi pela coleira. O banco que eu estava era alto e meu pé não alcançava o chão.
Quero dois pães na chapa integrais e dois expressos. — Pedi para a atendente. Este era o pedido tradicional nosso.
De repente apareceram duas pombas sem eu perceber. Como um raiodourado ele saiu correndo, me puxando para trás e cai da cadeira alta.Quase fui arrastado. A coleira escapou da minha mão e ele saiu correndo feito um louco. Levantei correndo e sai voando atrás dele. Ele corria muito mais que eu. A sorte é que as pombas pararam em um fio de energia da rua. E ele parou embaixo latindo. Ufa! Não alcançaria ele nunca. Nem terminei o café da manhã e fui para casa limpar os esfoladas do braço.
Ana, penso em amarrá-losna mesa da próxima vez Eu disse.
Mas assim ele vai derrubar tudo — Ela respondeu.
E seguimos da mesma maneira. Passeios de final de semana inesquecíveis.
DISMORFISMOCORPORAL
Sophia seguia no tratamento com psiquiatra e psicólogo. Tínhamos descoberto um tratamento para o dismorfismo corporal (alteração em como a pessoa se enxerga fisicamente) com uma fisioterapeuta em São Paulo. Na verdade, foi neste mês que observamos que a Sophia voltou a sorrir em alguns momentos. O tratamento se baseia em mostrar que. como a pessoa se enxerga, o que acha que vê não corresponde à realidade.
A primeira consulta foi presencial. Fomos para São Paulo de carro. Nesta primeira consulta participamos eu, Ana e Sophia. Nela, foi mostrado um bambolê de tamanho normal e perguntado se ela cabia dentro na altura da cintura.
Não precisa nem tentar. Minha cintura não cabe dentro deste bambolê, disse ela.
Fiquei chocado, de boca aberta. Como pode um ser magríssimo não enxergar aquele absurdo. Minha cara deve ter sido tão transtornada que minha esposa apertou minha mão com força.
E quando foi colocado o bambolê em sua cintura, vimos que ele era imenso, ela magríssima. Cabia umas três dela lá dentro.
O tratamento iniciou com bolas, cordão e algumas outras coisas. Neste momento eu e Ana tentaríamos o que estivesse ao nosso alcance para ajudá-la. Estudávamos muito este assunto. Vamos enfrentá-lo de frente.
Ela estava com o cabelo bem comprido, pois não tinha cortado durante toda a pandemia. Realizou o corte do cabelo e o enviou para confeccionarem perucas para pacientes em quimioterapia. Ela não estava bem, e mesmo assim queria ajudar alguém desconhecido. Fomos ao correio para mandar este cabelo para ajudar alguém. Um desconhecido que tivesse com um problema grave e ainda enfrentava o câncer neste cenário de pandemia. Eu torcia para que ela recebesse ajuda de alguém, já que pouco podíamos ajudar.
Fizemos um passeio que foi muito marcante. Fomos no Observatório Pico das Cabras em Joaquim Egídio. Não tem mais cabras antes que perguntem. Ele fica numa área rural próxima de Campinas e levamos nossos cães. Eles gostam muito de passeio na natureza.
Percebi que o Hashi gostou muito, pois explorou cada centímetro do parque. Principalmente da área conhecida como Pico da Águia, um platô formado com diversas pedras que de longe me lembrava uma catedral natural. O Francisco não foi pois não gosta muito de natureza. Prefere áreas com no mínimo 90% de cobertura de concreto. Quase uma alergia ao verde.
Estava quente e nos divertimos muito. O sol da tarde batia nos pelos do Hashi e brilhava lindamente. Principalmente naquelas orelhas enormes e peludas. Patas e tênis na terra. Sorriso no ar. Suor e água no final.
Como o pelo dele fica lindo neste pôr do sol e com estas pedras ao fundo. Quanta natureza! Tudo perfeito. Como ele combina com este lugar, disse Ana.
Ele combina com qualquer lugar — Eu disse.
A Sophia adorava o Hashi. O amigo que estava a ajudando a enfrentar a pandemia e as doenças. O hipertiroidismo e a anorexia nervosa. A solidão da pandemia atrapalhava muito a recuperação e uma bolinha de pelo foi um alento.
A Filó continuava uma cachorra séria e a líder da casa. Ela é bem ativae extremamente possessiva com seus brinquedos, chegando a nos morder se ameaçarmos retirá-los dela. Mas ela é muito carinhosa. Toda vez que a gente está em casa ela vem se aconchegar junto.
— Uma fofa, uma querida! Sempre diz Ana a respeito da Filó.
Levamos uma vez por semana os dois cachorros numa creche para passar o dia com outros cães e tomar banho. Nestes dias a casa fica extremamente estranha, parece vazia, chata.
Sophia seguia com seu problema alimentar. Mostrava, porém, pequeno grau de melhora. Como anteriormente a piora estava sendo progressiva,a progressão ter parado já considerávamos algum avanço no tratamento.
Cordão e bola ajudavam a ter uma visão real da composição corpórea, no tratamento fisioterápico instituído. Muitos remédios e terapia. A fé na melhora continuava. O problema é que quando liamos a respeito da anorexia em artigos, as evoluções ruins nos impactavam muito. Mas se existiam casos que melhoravam, correríamos atrás disto.
Vários comprimidos matinais por dia faziam parte da rotina de tratamento. Controlávamos se ela os tomava mesmo. E sempre tomou. Os exercícios escondidos ainda ocorriam.
— A vi fazendo abdominais na cama. Que merda! — Eu disse para a Ana.
Que tristeza. Fé que vamos conseguir passar por esta, ela respondia.
Nossas refeições continuavam daquele jeito. Uma angústia para os pais. Um momento legal para o Hashi, o ninja. Um momento difícil pra a Sophia. Paramos de brigar e passamos a conversar com mais calma. Assuntos aleatórios, mas muito preocupados.
O safado do Hashi continuava no desvio crônico de comida da Sophia. Com ela, ele era super discreto, quase invisível. Quando não era ela que ia dar alguma comida na boca, ele era grosseiro, chegava a morder de leve os nossos dedos. A Filó sempre pegava delicadamente as comidase petiscos que dávamos pra ela. Já o Hashi!
Num pacto de amizade, ela sorrateiramente dava parte da comida escondida e ele sorrateiramente comia em silêncio e com calma. Incrível a safadeza dos dois. Ninja com ela, Ogro conosco.
PANDEMIAACALMANDO
Como começaram as vacinações em número maior de pessoas, estas se sentiram mais à vontade para começar a sair. Aí surgiam algumas aglomerações em festas, praias, afinal todos estávamos cansados de viver numa prisão domiciliar. Seguimos com muito medo de sair de casa fora do horário de trabalho. Saíamos apenas para passear com os cães de manhã e à tarde, sempre de máscara.
Nos passeios a Filó, já com nove anos, andava calmamente. O Hashi continuava a andar em ziguezague, puxando a correia. Como ele fazia força puxando e não andava em linha reta nunca, tínhamos a impressão que o gasto energético dele era cinco vezes maior que o da Filó. Ele estava grande e seu pelo de coloração ruiva chamava muito atenção. Ele era o “gente boa”. Dava oi pra todo mundo, até para alguns mal encarados. Todos os dias, às 17h00, com aquele sol se pondo, batendo naquela pelagem, o efeito era lindo e ele reluzia feito ouro.
Ele gostava de morder coisas. Então todas as minhas meias pretas sociais de trabalho eram furadas. Ele também gostava das minhas cuecas. Quando eu estava no banheiro e abaixava a calça, ele gostava de entrar e ficar no meio da cueca. E quando era retirada ele dava um jeito de voltar sorrateiramente.
Que alegria poder sair do apartamento e dar uma volta. Neste momento já estávamos um pouco cansados de viver no apartamento de 105 m² o tempo todo, sem poder sair, apenas para dar uma volta com os cachorros. Vontade de encontrar os amigos num boteco, tomar uma
cerveja, fazer um churrasco, cinema. Coisas normais. Que depressão. Só trabalho.
O quartinho de música ajudava. Tocava guitarra ou violão ou baixo praticamente todos os dias mesmo que fosse apenas um pouquinho, mas todos em casa queriam sair, encontrar alguém.
Talvez morar numa casa fosse melhor. Daria para ver o céu. Pular numa piscina. Fazer um churrasco, mesmo que fosse apenas para nós quatro. O tédio estava grande. Seguia engordando e as roupas já não cabiam mais. Comprei mais cuecas e camisas para poder trabalhar. As que tinha já não serviam mais. Às vezes acertava o tamanho, outras não.
Com a depressão que todos estávamos em casa, optamos por alugar um apartamento em Ubatuba e aproveitar um pouco as férias de julho. Julho é mais frio, com menos movimento na praia.
A Ana tinha um vizinho idoso. Um italiano que, quando morou em São Paulo, me contou que na Sicília quem podia, tinha uma casa na montanha e outra no litoral, alternando as estações, o calor nas montanhas e o frio na praia. Aqui, no Estado de São Paulo, fazemos o contrário. Vamos para Campos do Jordão no inverno e para a praia no verão. O italiano tinha mais bom senso.
Aproveitamos um dia lá e fomos para Paraty. Em Paraty pudemos observar que é comum ter cachorro na praia. Que região maravilhosa, que paz. Passamos dias muito bons na praia. E seguimos levando os cães no final do dia para um mergulho.
A Filó, com sua elegância, sempre apenas andando na areia, sem se sujar. E o Hashi, ignorantemente, mergulhando e rolando na areia, parecia um CroqueteDog. Foram dias bons no meio da confusão. Para
HASHI: UM ANJO NA PANDEMIA
se guardar na memória. Direito a corrida atrás de uma cegonha e areia até dentro da orelha.
AAULAINESQUECÍVEL
Uma das cenas mais hilárias com o Hashi foi um dia em que eu fui participar de uma aula online.
Eu fui convidado para integrar uma mesa redonda sobre cirurgias do joelho. Neste tipo de apresentação, um caso clínico é mostrado e indagada a opinião dos médicos participantes sobre diagnóstico, exames e tratamentos. É uma maneira dos participantes ver como um especialista pensa e trata uma determinada doença.
Então numa mesa redonda precisamos prestar muita atenção ao caso que está sendo apresentado e depois damos a nossa opinião médica e transmitimos nossa experiência.
Me preparei, me arrumei, liguei o notebook, coloquei o fone de ouvido e comecei a participar da aula.
Tudo tranquilo. Silêncio. Cachorros quietos. Deixei o vídeo aberto, porém o som fechado e logo depois de ter iniciado apresentação, os cachorros que antes estavam calmos, começaram a brincar e a latir insanamente.
A Filó que puxou o estardalhaço. Ela sabe que quando tem esta preparação de aula, ela começa a fazer barulho querendo ganhar petisco. E foi o que ela fez. Dei alguns petiscos e eles acalmaram.
Estava chegando o momento em que eu precisava participar. E eles começaram a latir novamente. Peguei meu computador, me levantei da mesa da sala e fui em direção ao quarto.
No caminho liguei o áudio, o vídeo ainda estava aberto.
E no trajeto pisei no cocô que o Hashi havia acabado de fazer. Cocô úmido e pastoso.
Fazia um bom tempo que ele não fazia as necessidades fora do lugar. O cocô entrou pelos vãos dos dedos do pé esquerdo. Fechei rapidamente o áudio e o vídeo. —
Porra Hashi! Balbuciei.
Comecei a pular em um pé só prestando atenção nas imagens de ressonância que mostravam na tela do notebook.
No caminho pisei com o pé direito em um segundo cocô da mesma consistência.
Comecei a andar apoiado nos calcanhares. O cocô entrou pelos meus dedos novamente. Ao chegar no quarto ouvi no meu fone:
O que o Dr. Ricardo acha desta imagem? indagou o médico que apresentava o caso.
Chegou a minha vez de participar. Sentei rapidamente na poltrona e coloquei meus pés pra cima, com os calcanhares encostados na cama de casal, sem que meus dedos melecados em bosta tocassem em nada.
Liguei rapidamente a câmera e o áudio. Expliquei o que achava da imagem e qual conduta tomaria com as informações dadas até o
momento. Neste momento minha esposa entra no quarto. Ao perceberque ela estava entrando já fechei o áudio.
— O que você está fazendo? Vai sujar a colcha da cama? — disse ela.
— Caramba. Estou em uma apresentação e os cachorros fazendo a maior bagunça, barulho e coco por todo lado. Vocês precisam me ajudar! — Eu disse.
Ao terminar a bronca, fechei o vídeo e fui andando sobre os calcanhares ao banheiro para poder lavar o cocô dos pés. Como eram mais 4 médicos participando, achei que demorariam a me chamar novamente e conseguiria limpar meus pés no banheiro.
Porém ao entrar dentro do chuveiro o moderador da apresentação me fez mais uma pergunta e eu tive que pegar rapidamente o computador que estava na pia, desligar o chuveiro e ligar o áudio e o vídeo.
Acabei falando minha opinião sobre o caso de dentro do box do banheiro. Ao acabar desliguei as entradas e limpei meu pé.
Comecei a apresentação com um vídeo mostrando um pedaço da sala, depois um pedaço do quarto e depois dentro do meu box do banheiro.Fiz isso com tanto primor que fiquei achando que ninguém tinha percebido as mudanças. Fiquei muito bravo, mas depois dei muita risada.
No jantar demos muitas gargalhadas. Consegui fazer a proeza de não sujar mais nada além do lugar que o Hashi fez o cocô.
No outro dia:
— José Luiz, você percebeu que precisei mudar de lugar algumas vezes durante a apresentação? Perguntei.
— Não, não percebi nada e ninguém falou nada também, respondeu.
— Hahaha, ninguém percebeu. Respondi e me considerei um profissional das aulas online. E contei para ele o ocorrido.
AROTINA
A canseira dos dias iguais seguia. Começávamos a confundir as datas.O que ocorreu antes? O que ocorreu depois? Daí tive a ideia de fazer coisas diferentes com a família.
Levei a Sophia para andar de cavalo em Valinhos. Um passeio muito legal dentro de uma fazenda. Ela adorou. Repetimos o passeio mais uma vez no mês seguinte. Andar de cavalo é muito relaxante e era visível na sua face a felicidade de poder controlar um animal enorme e pesado. Ela não conseguia controlar seu monstro interior, mas conseguia controlar um animal imenso. Que coisa! Espero ter ajudado.
Para variar fiquei com medo de que ela caísse e quebrasse algum osso, fosse picada por cobra ou ficasse com medo. Mas fomos mesmo assim. Considero um acerto ter tomado esta medida.
Num final de semana, fomos no apartamento do Francisco em São Paulo, que estava fechado, para ver como ele estava e se tudo estava em ordem. Trata-se de um apartamento alugado em Perdizes. Estava sujo, porém tudo funcionando. Pedimos um hambúrguer do Zé do Hamburger e fomos passear no parque do Ibirapuera. Nesse momento,o parque já registrava visível aumento de pessoas passeando. Com a vacinação evoluindo, muitos estavam com menos medo de sair de casa. O uso de máscara ainda seguia forte. Apenas alguns corredores e ciclistas sem a máscara. Encontramos um conhecido que divulga o esporte Spikeball, e pudemos fazer uma partida esportiva depois de tanto tempo. Esporte divertido com turminha divertida.
A Filó olhava calmamente as partidas enquanto o Hashi pulava a cada jogada. Gastou mais energia que os jogadores.
No Ibirapuera podemos observar duas famílias com cachorros da raça Cavalier do tipo mais comum, com duas cores, igual ao da “Dama e Cavalheiro” da Disney. Era muito incomum achar outros Cavaliers em Campinas. Me lembro apenas de um episódio rápido ao passar de carro. Então ouso dizer que o Hashi era o cachorro mais bonito da região Metropolitana de Campinas. Principalmente às 17:00 com o sol batendo na pelagem. Um brilho resplendoroso. Meu Golden Boy.
Momento interessante na vida com Hashi era o pós-jantar. Geralmente ficávamos conversando à mesa por algum tempo. Enquanto isso, o Hashi sentava no sofá uma pose que parecia um lorde nos olhando. E ficava nos olhando por um tempão. Com uma das patas sobre o braço do sofá. Um olhar carinhoso.
Uma das nossas brincadeiras com o Hashi eram os apelidos. Cada hora chamávamos o Hashi por um nome: Hashi, Hashinho, Hashão, Loirão,Ruivão, Pernudo, Magrão, Bolinha de pelo...
O meu apelido preferido era Dedo branco congênito. Chamávamos ele assim pois na patinha direita traseira, um dos dedos era branquinho enquanto todos os outros dedos eram escuros. Esta é uma marca registrada dele. Sophia até pintou um quadro com essa característica. Este quadro foi para a parede assim que ficou pronto. Sophia tem uma forte tendência para arte. Acho que isto ajuda também.
Setembro foi um mês um pouco mais suave. Comemorei os 24 anos de casado com minha esposa. Optamos por ir em uma pousada diferente.
Adaptada à pandemia, tratava-se da Pousada 4 Luas. Ficamos em chalés
isolados. Com cozinhas próprias separadas das unidades, onde eram depositados os alimentos que terminávamos de aquecer e comíamos ao céu aberto. Muito legal. Uma cabana de frente para o lago, onde podíamos fazer longas caminhadas pela propriedade enorme. Foi excelente. Precisávamos disto. As crianças ficaram em casa tomando conta dos cachorros.
No outro final de semana fomos visitar um parque de flores em Holambra. Tiramos fotos maravilhosas. Os cachorros adoraram. O Hashi adorava ficar cheirando as flores. Que cachorro especial. Sempre puxando a guia, sempre no ziguezague, sempre feliz. Num dia de calor, optamos por dar um sorvete de fruta para o Hashi em casa. E como ele gostou. Lambeu até o fim, depois ficou lambendo os beiços e depois tomou muita água.
Ana, vamos ter que limpar o Hashi, ele sujou até a barriga. — Falei
Vamos lá, ela disse.
A coisa mais linda era chegar em casa a hora que fosse, os dois cães vinham recepcionar na maior alegria. Seja quem for. Na hora que for. Isto dava um animo enorme a casa. Às vezes, tinha alguma urgência e chegava de madrugada em casa. E os dois estavam sempre lá para recepcionar
Sophia já tinha passado o platô de estabilização da doença e começavaa mostrar alguns sinais de melhora. A ponto de querer fazer um ensaio fotográfico. Ficamos na dúvida se iria estimular a magreza, mas devido à muita insistência e após muita conversa optamos por fazer. Ficou linda. Esperança grande de dias melhores. Eu seguia engordando e o
Hashi estabilizou no peso, já recebia menos comida da Sophia. Ou seja, Sophia estava comendo melhor. Eba! Ufa.
Recebi a notícia que meu grande mestre ortopedista americano estava em fase terminal de um câncer de pele rapidamente agressivo. Fiz estágio em Pittsburgh em 2007 com ele. Pegamos nossas fotos desta época e ficamos lembrando dos momentos que vivemos com a família lá. Tenho muito a agradecer ao meu grande mestre pelo tempo dispendido na minha formação. O período que passamos nos Estados Unidos foi um momento muito especial para minha família.
MAISHISTÓRIAS
Seguindo na ideia de fazer coisas diferentes, optamos por passear em Campos do Jordão e ficar alojado em um camping de trailers. E foi bem legal. Mas apenas para ir uma vez. Uma vez já basta. Tudo muito apertadinho. Mas passamos bons momentos.
Eu com meu barrigão, tomando banho e raspando a barriga no plástico do banheiro apertado foi motivo de risadas das meninas. O Francisco não foi, pois tinha pouco concreto, como vocês já sabem. O café da manhã era deixado numa cesta e comíamos do lado de fora do trailer, embaixo de uma tenda. Já sentíamos a segurança de sair para ir alguns restaurantes mais abertos em horários de menor movimento. A vida parecia querer retornar aos trilhos. Sophia melhorando lentamente, todos iniciando atividades externas e contato com outras pessoas. Consultório começando a encher novamente. Vida voltando lentamente ao normal.
No outro final de semana, alugamos novamente a casa na cidade de Holambra. A cidade das flores, linda. Casa com piscina e churrasqueira. Eba! Dias bons. Meu pai e meu irmão foram num dia aproveitar o sol e o churrasco. Já estavam todos vacinados. Imaginávamos que teremos dias melhores a frente.
O Hashi adorou o espaço da casa. Andava por todos os lados. Mas não queria entrar na piscina. Água apenas a salgada do mar, com muita areia de preferência. Sempre pegava um coquinho que caía da árvore para brincar de morder e correr atrás quando tirávamos dele e jogávamos longe.
Um fato engraçado dele era dormir, no sofá ou na cama, com a cabeça pendurada pra baixo. Ele também dormia às vezes com os olhos semiabertos e mexendo. A gente brincava que era filme de terror, mas era uma graça.
O Hashi adorava brinquedos de morder, brinquedos de fazer barulho. Virava e mexia trazia brinquedo para brincarmos com ele. Às vezes era domingo no final da tarde e estávamos cansados e mesmo assim ele queria brincar. Jogar a bolinha para ele pegar era a brincadeira mais comum. Durava horas. Energia sem fim. Filó só ficava de olho, à distância.
Aproveitamos um final de semana para ir para São Paulo para passar o dia com o Francisco. Ele havia conseguido estágio em uma empresa e queria pagar um almoço para gente. O almoço foi no restaurante Pobre Ruan, próximo da faculdade. Foi excelente. Um perfeito ritual de passagem. A batatinha em forma de travesseiro é fantástica.
—Pai, pode deixar que eu vou pagar, já estou ganhando no estágio — Ele disse.
Pedimos a conta e o garçom entregou a ele. O rosto deu uma deformada discreta. Peguei a conta e combinamos de rachar. Restaurante bom e caro.
Valeu pai. Ele disse aliviado.
A Sophia já tinha voltado pra dança há algumas semanas e fomos assistirà apresentação de final de ano. A Sophia faz aulas de dança no clube há vários anos e todo final de ano existe uma apresentação grande. Este
ano foi realizado em um teatro no shopping Iguatemi de Campinas. Uma superprodução. O sorriso já era evidente e a comida não era normal como antes, mas suficiente. O sorriso era mais frequente. As brigas nas refeições eram menos comuns. Um dia por vez, vamos seguindo em frente.
Uma outra cena engraçada com Hashi foi um dia em que a Sophia desceu para pegar uma encomenda. Ele não percebeu que ela havia saído. Quando ela voltou, ao fazer barulho na porta, a Filó latiu bravamente e o Hashi, o corajoso, saiu correndo e se escondeu atrás do sofá onde eu estava. Falei pra ele que era a Sophia. Ele colocou a cabeça pra fora e viu que era ela e saiu todo faceiro, nem parecia que tinha fugido morrendo de medo segundos antes. Uma piada.
Sophia. O Hashi, o corajoso, veio se esconder aqui. Que covarde. — Eu disse.
Não é nada, pai. Ele é lindo. —Ela disse.
Ir ao banheiro era uma aventura para ele. Tínhamos que fechar a porta senão o curioso queria ver tudo que estava acontecendo. Tudo mesmo. E ficar mordendo a cueca abaixada era sua especialidade. Todas furavam.
MAISUMADOENÇA
Começamos dezembro programando o que íamos fazer no Natal e no Ano Novo. No Natal, iríamos fazer algo com a família da Ana e no Ano Novo iríamos fazer comemorações em casa mesmo. Parecido com ano anterior.
No Natal, a Ana optou por alugar uma casa em Louveira com uma vista fantástica. Com uma piscina com hidromassagem onde podíamos ficar no final da tarde observando o pôr do sol. Percebemos que o Hashi tinha aumentado a queda de pelo e em um dos dias até saímoscorrendo para limpar uma quantidade enorme de pelo que tinha caído naquele piso clarinho. Achamos que era um período de perda natural de pelo associado ao piso que era muito branco o que salientava a visão.
Em outro momento, um dos passeios que fizemos pela manhã já com o sol forte, observamos que o Hashi já não estava puxando com a mesma força e demonstrando uma certa canseira, coisa que era pouco usual, mas como estava muito calor e tínhamos saído um pouquinho mais tarde consideramos o caso normal. A fome extrema continuava.
Você acha que o Hashi tem alguma coisa? Perguntou minha esposa?
Eu acho que não. Ele continua comendo bem. Deve ser o calor, respondi.
Nem imaginávamos o que estava por vir.
No final do Ano Novo, Francisco arrumou o que fazer com amigos e a Sophia viajou com a tia para um hotel em Brotas. Todos estavam se
divertindo muito. Passei aqueles dias com a minha esposa e os cachorros.
Comida especial e vidas especiais. O que poderia querer mais!
Ficamos preocupados com os fogos de artifício, já que os cães sofrem com isto, mas foi tudo bem. Eles foram poucos e longe de onde estávamos.
Iniciamos o ano de 2022 bem animados. Com uma programação de viagem para praia, teríamos 12 dias de sol, calor, areia e passeios de bicicleta. Iríamos levar os cachorros, como sempre, para se banharem no mar e chamegos diários. Programamos fazer a compra de mercado no litoral mesmo para podermos ir em apenas um carro. O Francisco iria levar uma amiga da faculdade, a Maria, para passarmos os dias juntos.
A Sophia queria ir sozinha mesmo, queria curtir os cães e a praia. Vocalizou que o Hashi foi muito importante para ela durante a pandemia, que ajudou muito com o problema alimentar. Ficamos felizes em saber que acertamos.
— Eu quero ir para praia sozinha, sem amigos, para curtir muito os cães. Adoro ir com eles na areia da praia e acordar com eles me lambendo, disse a Sophia.
— Uhu, combinado, falei.
Eu tinha iniciado um tratamento medicamentoso para perder peso. E em poucas semanas de perda de peso já estava me sentindo muito mais leve e já programei um aluguel de uma bicicleta para andar todo dia na
plana praia. Seria um período muito bom. Para restabelecer a energia para o ano que se iniciava.
Ana ligou e conseguiu que fôssemos um dia antes para o apartamento na praia, então programamos viajar na quinta-feira cedo. Meu último dia de consultório seria na quarta-feira à tarde. Afinal os boletos não param.
Na terça-feira à tarde, dois dias antes de viajarmos para praia, o Hashi não quis comer no almoço. À noite, peguei alguns petiscos e fui dar pra ele, mas não quis, isto nunca tinha acontecido.
— Amor, o Hashi nunca fica sem comer, ele é muito guloso. — Disse Ana.
— Vamos levar ele no veterinário, vamos viajar em dois dias, assim viajamos mais tranquilos. — Eu disse.
Ele foi avaliado pela veterinária de plantão. Esta considerou que ele estava bem, mas por via das dúvidas o ideal seria colher um hemograma. Conversei com minha esposa e achei que nem era muito necessário, mas como iríamos viajar, optamos pela coleta.
Fomos para casa com diagnóstico de um quadro viral leve. A Filó já teve alguns quadros virais durante a vida dela e que se resolviam espontaneamente em dias ou horas e os sintomas eram parecidos com os que o Hashi apresentava. Fomos dormir, esperando o resultado do exame para o próximo dia.
No dia seguinte acordamos, levei os dois cães para passear. O Hashi andou bem, mas com menos puxões. Ao voltar não comeu nada, apenas tomou um pouco de água.
Eu estava à tarde no consultório e a Ana me manda o exame de sangue do Hashi. Entre uma consulta e outra observei que estava com um enorme aumento dos glóbulos brancos às custas de linfócitos e a presença de “sombras de Gumprecht”.
Fui pesquisar no Google o que isto representava. A quantidade de leucócitos normal em cães é até 10.000 e a dele estava 110.000. continuei pesquisando entre uma consulta e outra, e minha esposa em casa também. Coloquei o computador para pesquisar o que é uma sombra de Gumprecht, isto não existe em medicina, e vi que era comum em leucemia linfóide crônica, um câncer maligno do sangue.
O chão caiu. Caiu bem fundo. Eu tinha três pacientes ainda para atender. Atendi e fui para casa.
Nestes momentos de choque na vida, principalmente em relação à saúde e mortes, parece que entramos por um portal dimensional numa estrutura fluida. Parece que o tempo corre em velocidade diferente, o corpo sente a atmosfera diferente, mais fluida, mais densa. Sofrimento. Dor. Mas, vamos que vamos, e a noite continuamos as pesquisas, desesperados.
Fomos ler sobre leucemia a noite inteira. Leucemia linfoide crônica não era tão ruim assim. Geralmente achado de exames e a maioria dos cães acabava morrendo de velhice, e não desta leucemia. Ufa! Mas esta doença era de cachorros idosos e o Hashi tinha 1 ano e meio. As outras leucemias eram fatais na maioria dos casos.
DIASDIFÍCEIS
No dia seguinte conversamos com a veterinária do Hashi e ela sugeriu que fizéssemos acompanhamento com o oncologista veterinário, Dr. José. Que nos recebeu de prontidão no mesmo dia. Nestes casos, temos uma urgência de resolver tudo rápido. Quando se fala em saúde, câncer, você não queria que isso acontecesse, mas já que aconteceu, quer que tudo se resolva para ontem. O mais rápido possível. Da melhor maneira possível.
Fomos no Dr. José e ele disse:
Leucemia em cachorro novo, com um ano e cinco meses de vida, é extremamente incomum. Apesar de oncologista veterinário, nunca vi leucemia nesta faixa etária. As sombras de Gumprecht geralmente são encontradas em leucemia linfóide crônica, podem ocorrer em outros tipos de leucemia também. Acho o quadro clínico do Hashi diferente, pois a leucemia crônica é um caso arrastado, geralmente descoberta acidentalmente no hemograma realizado por outros motivos e que o Hashi estava com um quadro muito agudo para esse tipo de leucemia. Que este quadro clínico lembrava muito um caso de leucemia aguda, cujo prognóstico é muito pior. Muito Pior — disse ele.
Estávamos com fé que fosse uma leucemia crônica, que isso se arrastaria por anos e que conviveríamos com ele bem por muito tempo. Ele solicitou um novo exame de sangue que veio com resultado similar.
Pediu uma radiografia de tórax por causa da falta de ar e solicitou mais dois exames, específicos para o diagnóstico do subtipo de leucemia. Um foi a coleta de medula óssea, que foi coletado em um serviço de atendimento fantástico em Campinas. Colheram com muito carinho do osso esterno (peito). Ele já estava muito fraquinho e não deu um pio, tadinho.
O resultado deste exame saiu no mesmo dia, contaram que foi difícil a análise, mas que parecia ser uma leucemia linfóide crônica, mesmo.
— Ufa. Uma boa notícia no meio desta confusão — Eu disse.
Agora nos restava aguardar o outro exame, que foi enviado para São Paulo e que levaria alguns dias para o resultado sair. A citometria de fluxo, esta daria o nome e sobrenome do tumor. Com certeza absoluta.
— Linda, este exame vai nos acalmar. Não é possível que venha coisa ruim nele. Estou com muita esperança nele — Eu disse.
A praia já havia sido cancelada e estávamos cuidando da alimentação e hidratação. E na esperança, baseada nos dois exames que já haviam saído, acreditávamos que era uma doença crônica. E que ele viveria e morreria de velhice depois de muitos anos.
Começamos o tratamento com quimioterapia e corticoide por via oral.
Inicialmente, foi até bem. Conseguimos tratá-lo por dois dias seguidos, porém a dificuldade respiratória piorou muito. Fizemos uma internação no hospital para hidratação e novos exames. Ele passou a noite lá. Fiquei muito triste durante a noite toda. Deixei o peludo amigo numa clínica, sem o carinho e calor da família. Me arrependi disto, mas
estávamos pensando que seria o melhor naquele momento. E assim ele passou a noite lá.
Durante a internação, colheram novos exames que mostraram que o Hashi estava com insuficiência renal (rim parando de funcionar) e nesse momento recebemos o exame definitivo, a citometria. O Dr. José falou:
— Bom dia, não tenho boas notícias. A citometria mostrou que é uma leucemia mieloide aguda do tipo M-Zero. Leucemia aguda é muito pior do que a crônica. O tipo M-zero é o pior possível.
Dr. José colocou de maneira muito respeitosa e carinhosa que a doença era extremamente agressiva, sem prognóstico de melhora.
— E agora? O que vamos fazer? exclamou minha esposa.
Não sei, vamos tentar pensar em casa. Quero ir pra casa com ele. Não quero deixar o Hashi aqui. — Eu disse confusamente.
— O Hashi está com uma doença sem possibilidade de cura. Com poucos dias de vida. Se fizermos quimioterapia para tratar câncer e diálise para a insuficiência renal, talvez aumentemos em dias, ou horas de sobrevida. Com aumento do sofrimento dele e de vocês, sem perspectiva de cura. Falou Dr. José.
Conversei com minha esposa e resolvemos levar o rapazinho pra casa mesmo.
— Vamos dar muito carinho e deixar ele ficar em casa, com a família. —
Disse ela.
WANDER EDNEY DE BRITO
Em casa ele melhorou um pouco da insuficiência renal, depois de uma péssima noite para ele. Onde ficou andando para todo lado, parando em pé olhando para nada. Quase um zumbi.
Passamos por dias difíceis com muita esperança que ele melhorasse.
Muita Fé. Muita fé mesmo. Afinal milagres acontecem.
AFERRARIDOHASHI
Como o Hashi estava muito fraquinho, saímos pra comprar um carrinho de passeio para cachorro. Eu e minha filha fomos em uma loja especializada e escolhemos um bem confortável, com uma cor vermelho Ferrari. A princípio queria algo menos chamativo. Mas este era o mais confortável.
O carrinho tinha uma abertura frontal transparente que permitia que ele observasse tudo a sua frente durante o passeio matinal e de final de tarde. Passeios que mantivemos.
Apelidamos o carrinho de Ferrari do Hashi. Toda vez que íamos andar com a Filó, o “piloto” ia junto em seu super carro vermelho. A Filó olhava estranhando a situação. Uma carinha triste. Parece que entendia o que estava acontecendo. Minha lindinha.
Ela andava à frente e ele observando. As vezes levantava a cabeça para olhar mais atentamente. Mas não conseguia sustentar por muito tempo. As pombas voavam com tranquilidade. As folhas rolavam ao vento sem aquela correria de dias atrás.
— Filha, quer empurrar o carrinho? perguntei.
Pai tenho medo de tombar o carrinho e machucá-lo. Você pode continuar empurrando Ela disse.
Uma folha grande caiu de uma árvore e o vento levou lentamente para longe. Pude ver ele arrumando a cabecinha para vê-la cair. Fiquei feliz com este pouco. Impossível não lembrar a energia enorme que
WANDER EDNEY DE BRITO
dispendida inúmeras vezes na caça de pássaros, de folhas caindo e coxasde mulheres expostas. Rezei para que isto fosse possível novamente.
ACENA
O Hashi piorou.
Não se alimentava e não se hidratava mais sozinho.
Em vários momentos, meses atrás, vi a minha filha doente alimentando o cachorro escondido embaixo da mesa, para diminuir as sobras do prato dela. E agora a via alimentando o Hashi doente através de seringas, com papinhas que minha esposa amavelmente cozinhava para ele. Que cena!
Ela antes com problema alimentar e ele a ajudando; e agora a situação se inverteu.
O anjo que veio ajudar alimentá-la e retirá-la de um quadro depressivo de anorexia, de depressão, de tristeza pelo isolamento da pandemia, estava sendo alimentado e sendo confortado por ela. O mundo é redondo e dá muitas voltas. Que coisa. Verdadeiras reviravoltas.
Minha esposa fazia papinhas e ele não conseguia comer direito. Insistíamos muito, mas sem resultado.
Um momento engraçado nesta fase de extrema tristeza foi quando deixamos o pote de papinha de lado para ficarmos com o Hashi e quando vimos que a Filó estava se deliciando calmamente com ele. Sorrateiramente.
Ela conseguiu tirar um sorriso nosso no meio da tempestade. Cachorros são muito especiais.
Filó! Sua safada! Eu disse.
A piora de saúde dele foi rápida. Conversamos com veterinário e ele falou em sacrificá-lo quando o sofrimento aumentasse. A princípio pensamos em não fazer isto e deixar ele morrer naturalmente. Mas o sofrimento dele foi aumentando, com dispneia e confusão mental. O olhar dele já não era o mesmo. Todos em casa abraçavam ele o tempo todo. Paramos de sair, pois estava muito fraco e parecia que não aproveitava mais as caminhadas, quase um sofrimento pela falta de força. A vida se esvaindo.
Eu saia apenas com a Filó e eu chorava nas esquinas.
Como isto pode acontecer? Me perguntava.
Uma noite o Hashi sofreu demais. Era muito triste ver o sofrimento aumentando.
Amor. Acho que está chegando a hora. O sofrimento dele está muitogrande. Veja o olhar dele. Parece que já não está mais aqui, disse minha esposa.
Olhei o Hashi com falta de ar. Um olhar vago. Boca seca. Magrinho de dar dó. Minha filha voltando a um peso razoável e ele ficou magrinhoem pouquíssimos dias. Que vida difícil.
É. Vamos falar com as crianças. Eu disse quase chorando.
Eu achei que as crianças não iriam apoiar esta ideia. Mas entenderam.Minha esposa explicou com muita sensibilidade. Ligamos para Dr. Josée fomos para a clínica.
A princípio iriamos apenas os adultos, mas as crianças quiseram vir também.
Um momento muito difícil.
Pegaram a veia dele. Nem se mexeu.
Deitaram em uma mesa de alumínio.
Com falta de ar.
Um olhar vago.
- Meu amigo. Você foimuito especial na nossa vida. Obrigado Eu disse e lhe beijei a testa.
— Lindo. Vai para o céu. Nos encontramos no futuro, disse minha esposa. E lhe beijou a pata
— Fera. Nunca vou te esquecer, falou meu filho e saiu chorando da sala.
Hashi. Obrigado por vir me salvar, disse minha filha.
Acenei com a cabeça. A medicação foi feita.
Fiquei com a mão sobre seu peito, sentindo o coração batendo. Falhou duas vezes e parou. Tristeza. Choros ao fundo.
A vida tem seus momentos difíceis.
Optamos pela cremação. Os restos couberam em uma caixinha pequena. Parecida com aquelas que guardavam giz antigamente nas escolas. Um recipiente tão pequenino contendo o que já foi algo muito grande.
Jogamos as cinzas no Pico das Águias, sobre uma pedra. Aquelas pedras se pareceram ainda mais como uma catedral aberta, neste dia. Depois o vento soprou e levou parte dele pelo parque. Está espalhada. Um ser com este grau de iluminação não pode ficar preso dentro de uma caixinha. Ficamos alguns minutos quietos.
A Filó olhando ao longe, parecia que estava entendendo tudo. Parecia estar orando.
VALEUAPENA?
Um dia você está bem, feliz, noutro um portal se abre e você caiu em um buraco. E temos que sair deste buraco e seguir a vida. Cuidar do próximo, da família, de nós mesmos.
Você deve estar querendo me perguntar se ter cachorro é bom, afinal eles ficam doentes, urinam e defecam fora do lugar, comem os móveis, mastigam as sandálias... Mas também dão alegrias diárias, passeios diários, lambidas e mordiscadas. Acredito que viemos ao mundo para termos experiências. Então vamos tê-las. E sim, ter cachorro é fantástico. Agradeço minha esposa por ter perdido o medo e no proporcionado uma vida com amigos de 4 patas.
Viver com medo de novas experiências acaba deixando o ser humano protegido dentro de uma concha, que vai acabar sufocando sua própria existência.
Precisamos ter história para contar quando ficarmos mais velhos.
Não me arrependo nem um pouco de termos vivido com o Hashi. Ele foi um anjo em nossas vidas. Não tenho como agradecer minha esposa por ter insistido na compra dele.
Li que o cachorro se fixa mais a apenas uma pessoa da casa. Em minha casa, cada um tem a impressão que o Hashi se fixou nela, de tanto que ele era amável com todos. Eu tenho certeza que era comigo, mas cada
um em casa tem esta certeza. Um cachorro especial, que dormia em meu travesseiro todas as noites. Meu grande amigo.
Minha esposa fala que o Hashi foi um anjo que tinha uma missão: ajudar na cura da Sophia. Que ao cumprir a missão, Deus lhe deu uma nova missão em outro lugar, que deve estar cumprindo com primor. Deve ser isto mesmo.
Mantenho minhas meias de trabalho furadas. Não vou me desfazer delas. Me lembra dele todas as manhãs ao calçá-las. Me sinto bem com isto.
Meu querido Hashi... Obrigado por tudo.
HASHI: UM ANJO NA PANDEMIA
Sobreoautor
WanderEdneydeBrito:Esposo,pai,professor,ortopedista, guitarrista,paidepeteescritordeprimeiraviagem.
WANDER EDNEY DE BRITO
HASHI: UM ANJO NA PANDEMIA
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Uberlândia – Minas Gerais
CEP 38.408-404
E-mail: editoraolympia@gmail.com
Esta é a história de um cão que ajudou uma família a enfrentar a pandemia Covid-19 e os problemas, ã f rio