Um pequeno paraíso/Ana Carolina Nogueira Machado/Pág. 17
O fogo da Chica/Ana Richier/Pág. 20
Nas terras de Aurora das Almas/Célio D’Ávila/Pág. 27
A canção da solidão/Daniel Salim/Pág. 32
Preguiça de nascer/Eduardo Martínez/Pág. 37
A confissão/Fernando Dias Avila-Pires/Pág. 39
O pároco de Icó/Fernando Dias Avila-Pires/Pág. 43
Quem paga o pato?/Gleybs Rodrigues de Almeida/ Pág. 51
Nós é agro, sem agrotóxico/Iteuane Casagrande/ Pág. 53
Sementes de amor na terra: o legado dos Silva/ Jean Javarini/Pág. 57
Sementes de esperança: o legado dos Silva na terra/Jean Javarini/Pág. 64
Sob o sol da manhã: histórias de vida ribeirinha/Jefferson Machado/Pág. 71
O bote da jararaca/Joana Ingledy Ferreira Dias/Pág. 77
O passarinho Zeca Tatuzinho/Luciene Balbino/Pág. 75
Jeca Tatuzinho/Marjorie de Sousa Morato/Pág. 87
Nas margens do rio que canta/Matile Facó/Pág. 89
Não é Bumba Boi, mas é Bumba Meu Peixe/Mestre
Tinga das Gerais/Pág. 94
Uma questão de tempo/Nilton Silveira/Pág. 99
O minifã de Mazzaropi/Olivaldo Júnior/Pág. 103
Asas de uma paixão/Paulo Ismar Mota Florindo/ Pág. 110
A lição/Thais Castilho/Pág. 115
A bolinha falante rajado jeca, jeca é o tatu/Thiago
Valeriano Braga/Pág. 117
Viva Ciência/William R. F. Ramires/Pág. 119
Apresentação
Carlos Franco
Jeca Tatu é um dos personagens mais emblemáticos criados pelo escritor paulista José Bento Renato Monteiro Lobato (Taubaté, 18 de abril de 1882 São Paulo, 4 de julho de 1948) que deu vida ao célebre “Sítio do Pica-pau amarelo” de Pedrinho, Narizinho, Emília, Dona Benta, Anastácia entre outros, cujas histórias encantaram gerações de brasileiros. As características principais do Jeca Tatu apareceram pela primeira vez em carta do escritor enviada em 1914 ao jornal O Estado de S. Paulo.
Devido a qualidade do texto atrelado ao fato de que este jornal sempre foi porta-voz das elites paulistas, a carta de Lobato, então herdeiro de fazendas do interior daquele estado e neto do Visconde de Tremembé (José Francisco Monteiro), intitulada “Uma velha praga”, foi publicada com enorme destaque. Nela, o escritor denunciava as queimadas, prática agrícola antiga que atribuiu aos atrasados homens do campo, que ele generaliza na carta como caboclos.
O sucesso desta carta publicada em 12 de novembro 1914 foi tanto que gerou controvérsias por Lobato atribuir as mazelas do campo ao homem que vivia distante do acesso à educação e à saúde, sobrevivendo de pequenos roçados. O debate, porém, foi benéfico, pois abriu as portas para a necessidade de políticas públicas nas áreas rurais e também
serviu para que o escritor revelasse seu talento. Tanto que deu origem ao conto “Urupês”, também publicado em O Estado de S. Paulo, no qual emerge, ainda de forma preconceituosa, o famoso Jeca Tatu apontado como a causa das queimadas, “pois, na irresponsabilidade que assume as cores da idiotice, o caboclo examina as aves, a floresta e queima a mata, levado por uma atitude parasita.”
Foi o suficiente para este personagem ganhar notoriedade, provocando intensos debates e críticas. Lobato, então, de fazendeiro e herdeiro de grandes glebas de terra, passa a dedicar-se mais ao jornalismo. E quando o jornal decide lançar um suplemento, o “Estadinho” já nesta época e por mania de grandeza o veículo se autodenominava o “Estadão” escreve "Mitologia Brasílica", resultado de pesquisa de opinião feita com leitores do jornal sobre o folclórico saci. Monteiro Lobato lança, então, o livro "O Saci-Pererê: resultado de um inquérito" em 1918, mesmo ano em que completa um livro de contos intitulado “Urupês”, onde o Jeca Tatu é a figura central da história que dá título à obra.
Com o tempo e amadurecido pelas críticas e os debates, Monteiro Lobato, formado em Direito pela prestigiada faculdade do Largo de São Francisco e tendo ocupado o posto de promotor de Justiça em Areias (SP), revisitou o personagem e sua representação. Em 1924, ele escreveu o livro "Cidades Mortas", obra na qual a figura do Jeca Tatu é expandida assim como a análise do escritor sobre as causas da miséria rural, focando mais nas condições sanitárias e na falta de educação e saúde do que na “idiotice” do homem da terra. O escritor passou, então, a defender a tese de que a preguiça e a apatia de Jeca Tatu
eram resultado de doenças negligenciadas, e não de um traço inerente ao caráter do caipira. Essa mudança de perspectiva foi importante para a reabilitação da imagem do Jeca Tatu, transformando-o de um símbolo de preguiça para um símbolo de vítima da negligência social e política.
O que abriu caminho para o surgimento, também em 1924, do Jéca Tatuzinho, acentuado como na época de Lobato e que foi resultado de um pedido do amigo e colega do jornal O Estado de S. Paulo, o farmacêutico Cândido Fontoura, para que criasse uma história capaz de difundir o xarope revigorante Biotônico Fontoura que concorria à época com a Emulsão Scott e o Elixir Nogueira e outros produtos populares que estava lançando.
Esses medicamentos, na verdade xaropes, num tempo em que os farmacêuticos criavam e vendiam seus produtos, tinham por finalidade abrir o apetite e, com isso, combater doenças e lombrigas intestinais. A ancilostomose, popularmente conhecida como amarelão, era comum na época em áreas rurais e cidades do interior, isto é, a presença de vermes no tubo digestivo e na flora intestinal. Paralelo ao Biotônico, o laboratório de Fontoura oferecia o Ankilostomina para combater a ancilostomose.
Distribuído em farmácias de todo o país, “Jéca Tatuzinho”, em edição especial “do “Instituto “Medicamenta” Fontoura & Serpe”, tornou-se o maior sucesso da publicidade brasileira até então e a maior tiragem que um livro infanto-juvenil havia alcançado no país. A obra, hoje de domínio público e aqui republicada, foi o gatilho para esta antologia de contos que visa resgatar a vida caipira.
O personagem de Lobato anos depois voltaria a ganhar enorme repercussão nas telas dos cinemas na figura do diretor, ator e roteirista Amácio Mazzaropi (1912-1981) que estrelou o filme “Jeca Tatu” em 1959, revisitando o personagem em diversos outros filmes como “Tristeza do Jeca (1961), “O Jeca e a freira” (1968), “Jeca contra o capeta” (1975), “Jecão, um fofoqueiro no céu” (1977), “Jeca e a égua milagrosa” (1980) entre outros que tornaram a imagem de Mazzaropi vinculada ao personagem lobatiano, querido e estimado do público.
Por fim, me cabe ressaltar que, com iniciativas como esta antologia, a Editora Olympia busca estimular a leitura e a escrita, incentivando novos e consagrados talentos literários ao mesmo tempo em que presta homenagem a um escritor que, a despeito das controvérsias nas quais se envolveu e presentes em suas obras, deixou um dos mais importantes acervos e legados da literatura brasileira. Obras que são espelho do tempo em que viveu e que, ainda hoje, causam espanto por mostrarem a verdadeira face do brasileiro. Um universo que o abnegado colecionador Leonardo Ruggio da Silva mantém vivo no Museu Jeca Tatu na beira da rodovia que liga Ouro Preto a Itabirito.
A vida caipira retratada por Lobato segue intacta no inconsciente popular e também neste surpreendente museuàs margens daBR-356,naliteraturaenas canções – nada a ver com o “sertanojo” dito universitário e seus horrendos erros e atropelos gramaticais. O universo de Jeca Tatu é mais melódico, ele é caipira raiz, cercado de animais e roçados que o alimentam e também as mesas debrasileiros ebrasileiras.Nadaavercommonoculturas
de agrotóxicos a exemplo da maioria da soja produzida sob o selo “made in Brazil”, nem tão pouco com o dinossauro bebedor de combustíveis fósseis das ruas apelidado de RAM, marca originalmente da Dodge, que nenhuma utilidade tem para o homem do campo, mesmo que o modelo seja financiado, muitas vezes, com recursos públicos voltados para a agricultura e a pecuária. Não é carro, não é caminhonete, não é caminhão, apenas um trambolho mecânico bebedor de combustíveis fósseis e design para lá de duvidoso ao contrário das antigas camionetes como a clássica Studebaker ou mesmo o caminhão FNM que o Museu Jeca Tatu exibe em suas paredes e em recortes de jornais e revistas de filmes estrelados por Mazzaropi. No local, tem até uma sala de cinema poeira como as dos velhos tempos.
Monteiro Lobato, e esta é uma de suas virtudes, sempre focou no Brasil profundo e não no Brasil superficial. É esse universo lobatiano que os contos aqui reunidos traduzem.
Boa leitura!
JécaTatuzinho
Monteiro Lobato
Capítulo I
Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários filhinhos pálidos e tristes. Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha ideia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto corria um ribeirão, onde ele pescava de vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo. Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis, nem roupas, nem nada que significasse comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de carregar pela boca, muito ordinária, e só. Todos que passavam por ali, murmuravam: Que grandessíssimo preguiçoso!
Capítulo II
Jeca Tatu era tão fraco que, quando ia lenhar, vinha com um feixinho que parecia brincadeira. E vinha arcado, como
se estivesse carregando um enorme peso. Por que não traz de uma vez um feixe grande? perguntaram-lhe um dia. Jeca Tatu cortou a barbicha rala e respondeu: Não paga a pena. Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta, nem plantar árvores de fruta, nem remendar a roupa. Só pagava a pena beber pinga. Por que você bebe, Jeca? diziam-lhe. Bebo para esquecer. Esquecer do quê? Esquecer as desgraças da vida. E os passantes murmuravam: Além de vadio, bêbado ...
Capítulo III
Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida, porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as galinhas punham poucos ovos. Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e leal amigo. Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por que? Desânimo, preguiça... As pessoas que viam aquilo, franziam o nariz.Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro...
Capítulo IV
Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol, no terreiro. Ali ficava horas, com o cachorrinho rente, cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele. Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo? Quando lhe perguntavam isso, ele dizia: - Não paga a pena plantar. A formiga come tudo.Mas como é que seu vizinho italiano não tem formiga no sítio? - É que ele mata. E por que você não faz o mesmo? Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história: Quá! Não paga a pena ... Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.
Capítulo V
Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou e de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e magro, resolveu examiná-lo. Amigo Jeca, o que você tem é doença. Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito, que responde na cacunda. Isso mesmo. Você sofre de ancilostomíase. Anci... o que? - Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita. Essa tal maleita não é sezão? Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo a mesma coisa. A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do
amarelão; mas é diferente. Conhece-se a maleita pelo arrepio ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em horas certas e com muito suor. Quem sofre de sezão sara com o MALEITOSAN FONTOURA. Quem sofre de amarelão sara com a ANKILOSTOMINA FONTOURA. Eu vou curar você.
Capítulo VI
O doutor receitou um vidro de ANKILOSTOMINA FONTOURA, para tomar assim: seis comprimidos hoje pela manhã e outros seis amanhã de manhã. - Faça isto duas vezes, com o espaço de uma semana. E de cada vez tome também um purgante de sal amargo, se duas horas depois de ter ingerido a ANKILOSTOMINA não tiver evacuado. E trate de comprar um par de botinas e alguns vidros de BIOTÔNICO e nunca mais me ande descalço e nem beba pinga, ouviu? - Ouvi, sim, senhor! - Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva já passou e vou-me embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei aqui de volta. - Até por lá, sêo doutor! Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da Ciência, mas por fim resolveu comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras. Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal...
Capítulo VII Quando o doutor voltou, Jeca estava bem melhor, graças à ANKILOSTOMINA e ao BIOTÔNICO. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas: - Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava você a criar na barriga! São os tais ancilóstomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham com o freguês. Tomando a ANKILOSTOMINA, você bota fora todos os ancilóstomos que tem no corpo. E andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Fazendo isso e fortalecendo-se com alguns vidros de BIOTÔNICO, ovos e leite, você fica livre da doença para sempre. Jeca abriu a boca, maravilhado. - Os anjos digam amém, sêo doutor!
Umpequenoparaíso
Ana Carolina Nogueira Machado
Quando eu era criança minha mãe sempre me contava sobre o lugar onde ela cresceu. O local era o que poderia ser chamado de um pequeno paraíso, onde era possível está em contato direto com a natureza, onde árvores frutíferas estavam por todo o terreno e perto delas ainda tinha um igarapé de águas cristalinas, tornando o cenário ainda mais bonito. Esse lugar ficava na região Norte do Brasil, onde as florestas e a natureza são abundantes até os dias atuais.
No lugar onde minha mãe cresceu, os produtos da terra eram cultivados em equilíbrio com a natureza que estava por todo o local. Frutas, legumes e verduras geralmente não eram comprados, os itens necessários para a alimentação eram quase todos colhidos diretamente da terra. Muitas vezes era comum um vizinho quando tinha uma colheita maior que o esperado doar frutas e legumes para seus vizinhos, assim se evitava o desperdício e ainda favorecia a troca de colheitas o que proporcionava uma maior variedade.
Preparar a roça para uma nova plantação dava trabalho, principalmente porque nessa época não tinha os equipamentos modernos que existem hoje, o preparo da terra exigia o uso da enxada e muito trabalho manual. O pai da minha mãe, meu avô, trabalhava diretamente na roça. Ele acordava muito cedo, quando ainda estava um pouco escuro, e ia cuidar da roça. Ficava trabalhando até
próximo do meio-dia, quando parava um pouco para descansar e almoçar. Meu avô não levava relógio para a roça, mas ele sabia dizer se estava perto do meio-dia ao observar as sombras das árvores geradas pela mudança da posição do Sol ao longo das horas do dia.
O almoço era preparado pela minha avó, que preparava todas as refeições no fogão a lenha, pois naquela região o fogão a gás ainda não tinha chegado, nem se ouvia falar naquela época. As comidas eram cozidas em panelas de barro, que pareciam dá um gosto especial nas refeições, principalmente no feijão que era um prato que se comia quase todo dia.
O feijão era temperado com temperos que eram cultivados no próprio quintal ou na roça, também era adicionado vários tipos de legumes igualmente de cultivo próprio. Naquela época muitas vezes os legumes eram o acompanhamento do feijão, ao invés do tradicional arroz.
Também se plantava arroz, mas não com muita frequência, pois ele era um tipo de cultivo mais trabalhoso por precisar de muita água e as vezes ele não se adaptava ao solo menos úmido.
Cada legume tinha a época certa do ano para o plantio e para a colheita, assim como as árvores frutíferas tinham o tempo certo para dá seus frutos. Tudo ocorria da forma mais natural possível, respeitando o tempo de cada planta, sem utilizar nada que acelerasse a colheita ou o amadurecimento dos frutos.
Assim como as colheitas, os dias pareciam transcorrer sem pressa. As crianças tinham tempo de sobra para ficar brincando no terreno, ao redor das árvores frutíferas. A minha mãe descrevia como ela e os irmãos gostavam de
correr por aquele chão de areia. Não tinha energia elétrica, mas sempre tinha algo para se fazer, como contar histórias à luz de lamparinas ou nadar no igarapé que ficava perto da casa. Era uma vida simples, mas muito feliz.
Com o tempo as coisas mudaram e a modernidade chegou e transformou o lugar. Nunca conheci esse local da forma como era na época da infância da minha mãe, pois com o passar do tempo tudo mudou, hoje está muito diferente das histórias da mamãe. Esse pequeno paraíso agora existe só nas memórias e nas histórias sobre ele.
OfogodaChica
Ana Richier
“Mestre mandou, levar pra moenda toda a cana! Tem olho na cara não?” Chico achou que estava a pensar, porém, pensou gritado e ouvi daqui do barracão. Passou meio minuto e veio ralhar nas minhas orelhas:
Ô Mestre tem cana que chegue não, uai? Tirou o boné e começou a coçar a cabeça. Nem tem barril que dê pra tudo! Daqui a pouco, a ordem é fazer barril.
Sempre que tirava o boné surrado para coçar a cabeça suada, Chico agarrava de reclamar e só parava quando o coro avermelhava. Ô homi, devagar, sô!
O ano vai ser bom, Chico. Pode ter preguiça, não! Tentei incentivar. Vamos ser o melhor alambique da região!
Todo ano, Mestre, todo ano! Chico desacreditava e zombava do melhor Mestre alambiqueiro de Minas.
Tinha de ter orgulho por me ajudar. Eu quis torcer as tripas do ingrato. Comigo, tu vira Mestre. E dos bons!
Tô precisado, não! Chico desdenhou de mim! Vou enricar é com leite, igual o Marcio. Começar com uma vaca e encher três barracões. Matuto sonhador! Tudo mecanizado. Só puro sangue.
Chico era filho de um leiteiro falido, morto pelo desgosto após cair no golpe do queijeiro; herdou uma terrinha seca e um casebre velho. A mãe durou até seus dezesseis anos.
Com dezoito, veio trabalhar aqui. Passaram trinta e dois anos e a primeira vaca ainda só existiu na língua do besta.
Cê vai! Tipo de bobo tem esse Chico! Vai limpar o chão do Alambique!
Meu dia de ir embora, tá logo! Esfregava e falava contente. Tô com a metade do cobre! Vou comprar a danada. Parei meu afazer pra ouvir sobre a evolução do Chico.
Metade compra só metade, uai! Gargalhei. Não ia deixar de capar dele! Mais uns trinta anos, compra a vaca inteira. E o troco, bota no seu caixão.
Tá sabendo, não? Disse, com cara de malandro. Convenci o Jão a meiar comigo. Mostrou as canjicas. Ô homi tinhoso, quis ver o cobre, lá em casa, antes de aceitar. Vamos enricar juntos. Chico era só esperança.
Foi a segunda vez que temi pelo caminho que o jumento tomava. Na primeira, Chico, aos trinta e oito anos, se encantou pela moça que entrou na lida da fazenda do Márcio. Rita estava com vinte e dois anos; era um pouco seca, pele morena, o cabelo parecia crina de cavalo de raça. Muito volumoso e brilhante. Chamou atenção dos peões. Lembro da festa de rodeio em que Chico quis rodar a roleta da Rita.
Vou lá, Mestre! Disse, ao me deixar sentado na arquibancada.
Boa sorte! Leva um quentão pra moça. Graça foi ver a coragem do Chico após três doses de pinga. Com Rita tonta, aumenta as chances gritei do meu assento.
De longe, vi os dois sentados. Chico falava desembestado e Rita sorria com cara de paisagem. Voltou depois de vinte minutos.
Que felicidade é essa, moço? Perguntei, diante do sorriso alargado que Chico exibia.
Foi tiro certeiro, Mestre. Aquela ganhei. Só falta levar! Falou alto, com a mão no coração. Girou nos calcanhares.
Assim, rápido? Fiquei curioso com a certeza do bicho. O que disse pra moça? Mentiu, foi?
Sou certo, uai. Contei foi tudo e ela quis saber mais. O sorriso colou na cara, sentou e bateu na minha coxa. Vai ter casório! Era felicidade de verdade.
Tá certo disso? Tem coisa errada, Chico! Suspeitei, quis alertar o pobre. Tem que ver sô... tem que ver se esse trem não tá errado.
Não, Mestre. Nem vem de olho ruim! Deu um pulo do banco para se afastar de mim. Vou casar com a moça, zero bala!
Era uma anta aquele homem, mas tinha uma aparência agradável. Mesmo assim, não acreditei que Rita caiu naquela rede podre.
Senta, Chico. Calma homi tranquilizei o Chico. Conta o que Rita quis saber?
Uai, tudo! Dos galpões de vacas, das terras... disse, ao sentar novamente. Ela entendeu todo o plano afirmou sério.
Imaginei se Rita havia mesmo entendido a situação de Chico ou se entendeu apenas o que interessava para ela. Fiz algumas tentativas de limpar os olhos do chico.
Deixa o trem, Mestre! A peãozada está louca de inveja! falava como ganhador de prêmio. Ritinha gosta só de mim.
Casaram-se de papel. Chico levou Rita para o casebre. Ela continuou na lida mesmo após o nascimento do menino.
Virou a mulher do Chico da vaca. Os moleques da roça a chamam de Chica para vê-la espumar tipo boi bravo.
Trem a meia não é certo, Chico! Queria plantar juízo na careca da anta. Jão não tem cheiro decente. É bicho sem lado!
Vêm de agouro não, uai! Não vou morrer nesse alambique! Disse bravo Jão é amigo bom!recolheu o material de limpeza e saiu.
A cachaça da safra foi posta pra curtir. Entramos de férias. Soube da tragédia do Chico assim que voltei de viajem.
Tá por dentro? O dono da venda perguntou.
Do que homi? Respondi curioso.
A Chica e o Jão sumiram o velho contou feliz. Com o cobre da vaca de brinde!
Mentira! Gritei sem acreditar ¬ capa não!
Da venda, fui para o casebre. Encontrei Chico sentado na varanda, todo curvado.
Chico do céu! No caminho, não pensei no que dizer. Ergue a cabeça, homi. Tudo tem jeito, uai!
Dentro da casa, o menino comia e vendo televisão. Chico não se mexeu mesmo com minha chegada. Fedia a urina e álcool. Estava branco como cal. Sacudi o danado pelo braço. Estava febril.
Ô Mestre, vai lavar meu pai com mangueira? O menino gritou da sala.
É o melhor jeito, filho! A criança não deu mais atenção.
Ajudei Chico até o fim das férias. Demorou quatro dias pra voltar a falar. A cozinheira do Márcio levou comida no casebre durante um mês.
Quê desgraça jogaram no pobre sô. Dona Maria sempre fazia cara de pena ao passar da porteira. O Trem tá na boca do povo todo.
Aquela uma deixou muito pra render! Peguei foi ranço. Rita é gente ruim falei.
Mestre, do início, soube que ela não prestava! A cozinheira falava baixo. ¬ Sr. Márcio trouxe pra ajudar na casa. Rita não fazia nada sô. Escapulia de mim.
E o Márcio? Por que não jogou na rua, uai? Perguntei indignado.
Ficava muito fora. Rita sempre aparecia de alergia se o Patrão estava em casa. Dona Maria gostava do assunto.
Uns manchões vermelhos pelo corpo. O Patrão dizia: “Moça da cidade quando leva picada, dá alergia!” Sorriu de canto. O Patrão tinha muito gosto em Rita.
No início, também vi que Rita era trem errado. Não sou bobo, Dona Maria tinha de saber. Alertei Chico!
Uai Mestre, até eu! Soube que Chica pescava com o Zinho toda sexta e contei pro jumento. Chico disse: “Zinho tem uma vara da boa, e Rita gosta de coisa chique. Pega peixão e volta contente. Sem maldar, Dona Maria!” Não quis me ouvir mais.
Jesus! Até o Zinho do peixe? Pasmei com o rolo da Chica. Chico estava cego!
Zinho? Esse nem é o pior, uai A cozinheira queria contar tudo Tem conhecimento da amizade com o leiteiro? Esta era novidade.
Nos dias de coleta, Rita beirava o tanque. “Pra ajudar”, ela dizia Dona Maria sorria abertamente. O leiteiro se derretia nela: “Rita é moça esperta, sabe tirar leite sem machucar!” Sr. Mario deu carreira no leiteiro.
Penso, Dona Maria... como Chico não percebeu? precisava de ajuda para entender como Chica deu conta de toda a safadeza.
Uai, Mestre, Rita começou um tratamento com o Doutor e no papel dizia que não podia coisá. Gargalhamos juntos. Chico deve ter se fiado nele e não maldava, uai.
Vários pões tinham aventuras com a Chica para contar e testemunhas brotaram pela cidade. O Chico que voltou das
férias não tirava mais o boné para reclamar. Trabalhava encolhido.
Até quando vai assim homi? forcei a conversa. Reagi desgraça! Cansei de ver Chico se arrastar. Este ano vamos encher o bolso. A cachaça é da boa. O Patrão disse que dá exportação. Queria animar o pobre.
É quanto isso aí? Mordeu a isca. Da a meia de uma vaca? Chico perguntou sério.
Se é isso tudo, não sei. Fiquei besta com a pergunta.
Dá pra fabricar minha própria cachaça. Sabe como vou chamar? perguntei pro bobo.
Diz aí, Mestre! Chico alinhou o corpo e respondeu curioso.
Vai chamar Fogo da Chica! Gargalhei. Há tempo queria capar dele!
Célio D’Ávila
No meu tempo, isso tudo era mato! Nunca pensei que um dia ia "cê" eu falando assim. Esse negócio que eu sempre ouvia de canto de "zóio", quando meus véio contavam, relembrando os causos da nossa vilinha, que hoje em dia quase sumiu sob a asfaltada da cidade. Só resta a nossa fazendinha e a dos Barbosa, embora digam que o Miguel, filho do seu Mané, não pensa em seguir com a lida da terra no futuro, e a filha mais nova, Janaina, nunca falou muito sobre.
A gente já foi chamado de Aurora das Almas, um nome que tinha uma história meio esquisita de que essas terra já teve índios povoando e que foram cortados fora pelos caboco que veio de fora. Eu cresci ouvindo que a gente tinha que manter as tradições de puxar as plantas da terra, que tinha que respeitar a natureza e defender nosso jeito de viver, em honra às 'alma' dos que já moraram por aqui. Hoje eu falo que as 'alma' são dos nossos véio e de toda a forma como perdeu a cara da roça que era o que mais tinha por aqui.
Mas 'tô aqui' falando e nem me apresentei, 'né'? 'Cês' me desculpem! Eu sou Francisco, mas me chamam de Chiquinho. Meu avô era o seu Percival, neto do Francisco Veríssimo, um dos fundadores daqui. Meu nome é uma homenagem a ele, sabia? Dizem que quando eles 'mudaram' pra cá 'num' tinha um que não gostava da vida do campo, a cidade vizinha mais próxima ficava pra lá de
cem 'quilômetros'. Hoje em dia, tudo aqui em redor já virou área urbana.
Mas 'nóis' 'inda' tenta 'mantê' umas tradição, sabe? Todo ano nos mês dos santos, além de promover um arrial aqui na fazenda, que vem gente de tudo que é banda, 'nóis' também faz uma encenação das alma. É tipo duma cerimônia sagrada, só que 'cum' jeito de teatro, em que a gente homenageia os índios fazendo um desfile 'mostranu' as principal plantação e dizendo umas palavra sobre as beleza natural. Nessas coisa aí tem vindo um bando de gente das universidades das cidade vizinha, eles falam uns trem tipo 'Ah, as tradições têm que ser mantidas, vou escrever um artigo sobre', ou outro já chega com a tal da câmera profissional e lança aquele maldito daquele flash na nossa cara. Parece que o povo num sabe mais viver o momento, tem tudo que ver na base das telinha.
Meu 'vô' contava que era dos mais bão nos “tempo antigo”, ele falava 'Chiquim, no meu tempo nóis ia tudo era correr no meio das “plantação”! Toda “brincadera” de pique, virava pique-esconde, 'pruquê' os 'mió' era tão alto que dava pra 'corrê' no meio “desle, escondido”. Eu adorava 'ouvi' ele '”falanu”, uma das história que ele gostava mais de 'contá' era da vea que veio um povo da cidade querendo comprar isso aqui tudo pra fazer um condomínio, naquela vez eles botaram os home pra correr, varias vezes.
Menino, aquele tempo foi uma “bataia”, e “num” foi sem percalço não viu! Os “homi” da cidade, com seus terno engomado, chegavam todos “nuns” carro chique no “último” e os sorriso “marelo” que dava nos nervos. Insistiam naquela lenga lenga. Vez ou outra, vinham numas
propostas que enchiam os 'zóio' de pensar na bufunfa, mas por de trás disso, Chiquinho, tinha umas ameaça velada. Ah, mas todo mundo era veiáco, os “fio” da terra num se “dexavam dobrar” assim não. 'Cheguemo' foi a 'levantá' barricada com os troncos das 'arvres', aumentar os mata burro e encher nossos corações de coragem, vira e mexe os caboclo saiam nos gritos “esses aí são lião, vamo vazá!”
Eu me “alembro” como se fosse “onti”, da noite em claro, da vigília ao redor da “foguera”, 'nóis' planejava as estratégias e contava uns pros outro, os argumentos que os sacripanta tentavam usar. Cada nova manhã, já estava 'nóis' lá “trabaiano” e “seno” amolado pelos incômodos de novo. E foi assim, meu filho, que Aurora “aguentou” aquele tempo de sombra. Um dia os homens “partiram” e acabaram por comprar umas terras mais longe, lá onde hoje é a terra de Gardênia. ‘Nóis aprendeu’ a luta e a se ‘parceria’ e fizemos muita festança junto viu?
Que dói mais o coração, era quando meu vô falava de como a terra começou a ser vendida, 'num' tenho nem 'corage' de repetir as palavras dele nessa parte. Contam que o que, tudo começou com uma praga, de uma hora para as plantas começaram tudo a ficar com manchas. As mandiocas foram as “primeira”, as raízes já saiam com sinal de apodrecido, 'num' demorou muito o milho ficava mirradinho, o feijão 'num' bravata. Eu fico imaginando o desespero que 'num' deve ter sido, quando as dívidas 'começaram' a bater nas portas, todo 'trabalho' de um ano perdido. Teve quem achou que era 'mio' vender logo antes que as plantas 'morressem tudo' e não sobrasse nada pra negociar. Mas meu vô, o seu Percival, ele sempre teve lá as suas teorias. Ele dizia que essa praga, ela não tinha vindo de qualquer jeito não. Ele acreditava, lá no fundo do
coração dele, que foram os mesmos invasores que tentaram comprar as terras antes que trouxeram ela pra cá.
É meu amigo, ele tava era certo, e hoje a gente sabe disso, 'num demorô' que as terras foram vendidas e 'começaram' a aparecer um aparelho de demolição, 'mandano' pro chão tudo que era casa e substituindo plantação por asfalto!
Ainda assim, na roça, sempre tem supersticiosos, aqueles que acham que tudo que acontece de ruim é obra de assombração, já ouvi uns dizer 'Chiquinho, se num sabe da ‘maiô’ não, suas terras 'num' foram afetadas, causa que seu vô era homem direto, mas teve fazenda aqui, que tenho certeza que foi boitatá que destruiu as plantas. Seu Januário mesmo, vivia indo pro mato e caçando bicho pra matar. foi uma das primeiras fazendas a serem vendidas!'. Mas seja aqueles que acreditavam que era desgraça natural ou aqueles que tinham fé que era obra de assombração, no fim das contas, só sobreviveram nossas duas fazendas, firmes que nem as raízes das 'árvores'.
É meu amigo, eu “num” consigo imaginar outra coisa senão continuar o legado da nossa “famía”. Não pretendo abrir mão da herança que me foi passada, das terras que meu avô tanto lutou para “mantê”. Eu oió para esses campos, para essas “árvores” que testemunharam tantas histórias, e sinto uma responsabilidade enorme em “preserva” essa memória, em manter nossa essência.
E tem algo mais, algo que me faz ter esperança no futuro. É o amor, meu amigo, se eu entendo bem de sentimento, acho que Janaína me ama tanto quanto eu ao aquele muié. E se realmente ela correspondê meu sentimento e quisé caminha do meu lado, juntos “nóis vamo” unir nossas terras, nossas história e “contruí” um futuro mais bonito.
Imagino nós dois, “trabaiano” juntos nessas terras, honrando nossos “antepassado, preservano” nossa cultura e tradição. Juntos, podemos fazer muito mais do que apenas manter viva a memória deste lugar. É, é com essa pensamento que aguardo o futuro, com esperança Porque sei que, não importa o que aconteça, essas terra merece que sua história continua sendo contada pras geração que ainda vão vim.
Daniel Salim
Acançãodasolidão
Atrasado para o trabalho, José Carlos, como o chamavam na fábrica, andava tão apressado quanto peixe em corredeira. Pensava em quão besta tinha sido em despertar com o alarme do celular e voltado a dormir por mais meia hora. Tinha total certeza de que seria xingado pelo seu chefe Armando de Oliveira por ter se atrasado mais um dia para trabalhar. Iria ser taxado de preguiçoso, aquele que veio com a moleza do campo, que não gostava de trabalhar por ser caipira, e tantos outros que nem tinha coragem de sequer pensar.
Ia tão distraído com medo do futuro provável que, em tal momento, estava atravessando uma avenida com o sinal aberto para os carros. Quando se deu conta, estava no meio da passarela e muito carros buzinavam e gritavam em repúdio ao ato. Dentre todos os insultos ditos, um se destacou em sua mente. “Tá verde, idiota! ” A frase ficou em sua mente não pelo xingamento, mas pela pronuncia que acompanhava à frase. O motorista irritadiço disse “verde” com tanto ênfase no R que parecia que esperava o azul se misturar com o amarelo e se transformar em um verde rural. José ouviu tal pronuncia de uma forma que o colocou em um transi o qual despertou memórias de um passado não tão recente em que tentava esquecer desde que chegou à metrópole.
“Zeca... Zeca...”, ouvia uma voz familiar no fundo da cabeça, “Vamos Zeca, acorde!! Isso lá é hora pra dormir. ”
Quando abriu os olhos viu Mariazinha. Ela usava um vestidinho de bolinha verdinhas, tinha um cabelo de mariachiquinha com xuxinhas rosinhas, e nos pés sapatilhazinhas vermelhinhas com meinhas branquinhas. Tudo sempre no diminuitivo, pois a menininha era muito delicadinha e pequenininha para ser tratada como qualquer pessoa normal. “ E agora tem hora certa pra dormir, Mariazinha? “, falou Zeca irritado por ter sido acordado. “ Sempre teve! A hora certa de dormir é de noite. ”, respondeu a menininha toda cheia de razão, “ Além do mais que mamãe mandou a gente ir na biboca do Joãozinho pra comprar arroz e biotônico Fontoura, porque tão acabando”.
Zeca irritado e a irmãzinha dona da verdade foram à compra dos itens. No caminho de ida, Mariazinha comentou com Zeca, “ O que você acha da cidade? “ O irmão ainda bravo, respondeu não dando a mínima, “Nada. É um lugar de gente importante e não pra gente como a gente. ” A caçulinha começando a perder a paciência disse, “Tô falando sério, Zeca! As coisas em casa estão difíceis. A mãe e o pai tão pensando na proposta da empresa como algo válido. ” Depois do puxão de orelha que levou da menininha não voltou a falar até o caminho de volta.
No comércio do Joãozinho, um senhor de idade muito simpático e um homem alto de chapéu de palha conversavam. “ Eu não sei o que esperar do acordo com os engravatados, Joãozinho. ”, dizia o homem com chapéu de palha. “ Se todo mundo aceitar, a minha vendinha vai por água a baixo. Para quem eu vou vender meus produtos? ”, falou o dono da biboca.
Quando perceberam as crianças ouvindo atentamente a conversa, pararam e Joãozinho foi atendê-los. “O que gostariam hoje, crianças? ” Mariazinha toda confiante disse em alto e bom som, “Quero um quilo de arroz e um biotônico Fontoura, por favor. ” Joãozinho, experiente que era, separou os itens e entregou pra Mariazinha. “A minha mãe falou para marcar na conta e que ela paga na semana que vem, depois da feira de quinta. ” Joãozinho sorridente anotou a compra em um caderno e disse a garotinha: “Tudo bem! Se precisarem de mais alguma coisa, só virem na biboca. ”
Depois de agradecer ao dono, as crianças seguiram o caminho de casa conversando: “Zeca você viu o que eles tavam conversando? Era sobre a proposta de compra. Eu estou realmente nervosa com isso. Não quero sair do campo para ir pra cidade. ” Zeca já incomodado com o assunto que se repetia disse: “Mas nossa! Por que que num larga de uma vez essa conversa. O pai já falou que é coisa de adulto e que não é pra se preocupar com esse tipo de coisa. O que acontecer, Nossa Senhora de Aparecida vai cuidar. ” Depois do esporro do irmão, chegou a hora de Mariazinha ficar quieta.
Passando pela porteira, a irmãzinha foi correndo com os itens para a mãe que cozinhava o almoço. Já Zeca foi para a plantação com a intenção de espairecer. Apesar do que disse à menininha no caminho de volta, Zeca se sentia perdido em pensamentos sobre o seu futuro. Não conseguia assimilar a ideia de ter que abandonar o campo e viver no que chamam de cidade, mas para ele não passava de um conjunto de sobrenomes mandando em nomes.
Foi assim, pensando no futuro que ainda não sabia se era provável, que ficou durante uns 30 minutos, até que seu pai o encontrou. “O que ocê tá fazendo menino? Tô te procurando faz tempo. O Almoço já tá pronto. Vamo! ” Zeca então levantou calado e seguiu o pai até a cozinha. No caminho, o filho decidiu desabafar com o pai, “Eu tô nervoso, pai. Não quero ir pra cidade. Aqui é nossa casa. Aqui é onde a gente planta colhe e vende. Aqui é onde você nasceu, Mamãe nasceu, Mariazinha nasceu, eu nasci. Não dá pra abandona tudo por que querem compra tudo. ” Tião, que compartilhava a dor do filho parou e se ajoelhou de frente ao filho. “Zeca, ninguém quê sair daqui, mas num dá pra fica com esses home aumentando cada mais os impostos. Só quero que ocê pense que vai dar tudo certo, porque Deus e Nossa Senhora de Aparecida tá sempre pensando em nós, caipiras resistentes. ”
Chegando na casa, Zeca entrou silencioso tomou o biotônico e almoçou na mesa, mas estava em seu mundo próprio, pensando no futuro agora provável.
Após almoço, Zeca ficou para ajudar a mãe a arrumar a copa. Em meio a ajuda quieta do filho, Terezinha perguntou: “O que há meu filho? Ocê tá tão quieto hoje. Até parece que um gato comeu sua língua. ” Zeca aborrecido respondeu, “É que eu tô com raiva desses homens engravatados que querem o mundo todo para eles. Eles querem tanto que um dia vão morrer de desgosto por terem tudo e não poderem mais tomar nada. ” Tereza ouviu aquilo e sentiu tudo o que o filho falava. “Zeca, eu sei que ocê, na verdade, todo mundo tá triste. Mas, como a minha mãe me dizia, uma coisa que a gente não pode deixar de lado é o sonho e a esperança, principalmente nós que somos caipiras. ” Aquelas palavras acolhedoras,
fizeram com que Zeca refletisse novamente em silêncio, sobre o futuro próximo e provável. Ficou perdido no mundo interno até terminar de ajudar a mãe.
Foi então ao quarto pegar a viola com o chocalho de cobra que o avô lhe tinha dado antes de morrer. Após pegar o instrumento foi correndo para debaixo de uma árvore que era o seu porto seguro, o lugar que ia para ficar sozinho e tocar a viola que contava muitas histórias. Ficou horas lá com a viola na mão, os pensamentos na cabeça e o tempo já não existia mais. Tocou a música que mais se conectava a ponto de até arriscar cantá-la, e com a voz de menino quase formado proferiu de forma afinada e pesarosa: “É de sonho e de pó, o destino de um só... ”
Quando se deu conta, o Sol se punha no horizonte levando junto os últimos versos da canção vivida por Zeca.
Preguiçadenascer
Eduardo Martínez
Dalva e José nasceram na roça, cresceram na roça, trabalhavam na roça, viviam na roça desde sempre. Os dois se conheceram ainda meninos e, assim que chegou a época apropriada, casaram-se como de costume se fazia na região. Logo chegou o primeiro filho, Delvéquio, nome mais que apropriado para o primogênito.
Enquanto o moleque crescia, o casal continuava quase na mesma rotina, agora acrescida com os cuidados com o filho. Não tardou, Delvéquio, aos dois anos, já ensaiava seu futuro brincando na terra. Mal sabia ele que seu destino estava encaminhado, assim como o do seu irmão, que já provocava enjoos terríveis em sua mãe. A mulher vomitava sem parar, obrigando o marido a trabalhar em dobro.
Do curral pro chiqueiro, daí pro milharal, de onde apressava o passo pro galinheiro, a despeito das galinhas que ciscavam pelo terreiro bem em frente à maltratada casa de sapê. Dalva tentava, a todo custo, ajudar o esposo, mas a barriga, cada vez maior, restringia seus movimentos. Agachar, então, era aquele tormento para, depois, se levantar. A mulher necessitava de apoio ou, então, de um belo impulso com as mãos empurrando o chão. Tudo doía, não tinha junta que escapava daquele martírio.
As parcas visitas indagavam-lhe sobre o tempo de parir. A buchuda, apesar da falta de estudo, era boa de conta. Sabia que as regras não lhe faziam sala há mais de nove meses,
perigando chegar aos dez. Isso foi o motivo daquela conversa que Dalva teve com José numa noite quente de quase dezembro.
Tô preocupada.
Cum quê, muié?
Cum o nosso fio.
O que tem o moleque?
Ele não qué nascê. Já tô no décimo mês e nada do pirralho querê nascê.
Ele é que é sabido. Já deve sabê da vida dura que vai levá.
Pode sê. Mas se ficá doze mês na barriga vai virá burro.
Aconfissão
Fernando Dias de Avila-Pires
Semana Santa em Triunfo é um dos principais eventos –de lá. Nada como a Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, que atrai milhares de turistas e peregrinos ao agreste de Pernambuco, onde a tradição cristã é revivida em grande escala. A feira de fim de semana, vendendo de um tudo, é uma edição de bolso das grandes feiras do Nordeste e que dão nome a uma cidade baiana, Feira de Santana.
Além do clima de altitude, a cidade encanta pelas ladeiras de paralelepípedos margeadas por casas do século 19 e construções de pedra bruta.
Na Semana as ruas são enfeitadas com desenhos de areia colorida, os fiéis fazem novenas, a prefeitura entreabre o cofre e vive-se a devoção esquecida no resto do ano. Alguns turistas aproveitam a amenidade do Oasis do Sertão, no alto da Serra da Baixa Verde para descansar do calor do semiárido das baixadas.
Sob o sol inclemente do meio dia, Anselmo saiu da farmácia em que era balconista para almoçar em casa, onde morava com sua velha mãe. Mal lembrava do pai, que contava ter conhecido Virgulino Lampião, nascido na Serra Talhada, e as volantes que percorriam o sertão. Ia dar a volta no Convento das Franciscanas, passar pelo açude
João Barbosa Sitônio, agora poluído e cortar para o norte, contando em chegar cedo e sestear antes da volta.
Passando em frente à igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, sentiu o frescor do interior do velho templo, hesitou, titubeou e entrou. Fazia tempo que não ia à missa e que descuidava das obrigações católicas. Adormeceu e despertou com o ligeiro ranger da porta do confessionário. Uma sensação leve de saudade da inocência dos tempos da infância fez com que ficasse mais um pouco.
Padre Romão, da velha escola da batina e sandálias, saiu para esticar as pernas e aliviar os ouvidos, e chegou-se a ele:
Anselmo, já faz um tempo, como vai você e sua mãe?
E sem dar tempo à resposta convencional de obrigação, perguntou:
Veio confessar?
Apanhado de surpresa, Anselmo balbuciou alguma coisa, envergonhado – e temeroso, enquanto padre Romão o empurrava delicada e inexoravelmente para o confessionário fatídico. Sorte que lembrou da velha fórmula: fez automaticamente o sinal da cruz:
Abençoa-me padre porque eu pequei.
Meu filho, há quanto tempo não se confessa?
Humm... mais ou menos dois anos...
E que pecados cometeu?
Humm...eu deixei de vir à missa...
Quantas vezes?
Hann
Mais ou menos.
Bem, uns dez domingos (mentira leve). Também comi carne nas sextas feiras. Usei xingamentos. Ahnn ...
Sim, meu filho, mas e pecados graves?
Eu... eu...humm... cobicei a mulher do próximo...
Só cobiçou?
Bem, hann, não...
Quantas vezes?
A esta altura, o pobre Anselmo suava e arrependia-se da maldita ideia de ter entrado na igreja.
Para encorajá-lo, padre Romão perguntou:
Foi mais de uma vez? Duas? Foi de programa de muitas vezes?
Ahnn ... sim
Vizinha? Isso acontece, mas não se desculpa. A luxúria é pecado mortal, meu filho. Eu conheço a maioria do pessoal da cidade... Sabe, as mulheres se confessam mais do que os homens. Foi na casa dela? Sua vizinha?
Foi, padre. O marido é caixeiro viajante...
O Marcão da loja de bijuterias?
Ahnn ahnn ahnn, é... Mas ela tem um amante fixo...
À esta altura, foi o padre Romão quem perdeu a voz e a serenidade.
Meu filho, prometa que não vai mais na casa da Filomena e esqueça o caso do amante.
Reze cinco padres nossos, cinco ave-marias e um credo e vai com Deus...
Fernando Dias de Avila-Pires
Imagine só! Meu filho padre! Agora sou eu que peço a benção!
Nascido e criado nas cercanias de Icó, penei da seca e da disgra como todo mundo que eu conhecia. Meu pai, de indistinta memória, morreu de peste quando eu ainda brincava de quimão. A mãe criou os sete filhos como mal podia, cuidando da lavoura improdutiva, da cozinha desprovida de tudo e de nossa educação rudimentar, analfabeta que era.
Um tio, irmão mais velho de meu pai, adotou três de nós, os homens, e nos encaminhou, um para o exército, o do meio para ajudá-lo no escritório e eu para a Igreja.
Aprendi as primeiras letras com a senhora que cuidava, como percebi mais tarde, da cama e mesa do meu tio e que eu tratava de Dona Valentina.
Com onze anos, já escolado na leitura e nas contas entrei para o Seminário Menor de Nossa Senhora Imaculada Conceição em Iguatu.
Acostumado ao rigor da seca e da miséria do sertão, a rotina estrita, o despertar cedinho, o silêncio e o trabalho pesado não eram sacrifício. Eu gostava do ritual, aprendido e pouco compreendido, dos estudos e das brincadeiras inocentes e ocasionais.
Nas saídas eventuais voltava à casa de meu tio, que já considerava como minha. Dona Valentina me adoçava a boca com quitutes desconhecidos no Seminário.
Na cidade, não tinha amigos com quem brincar nem rotina escolar para seguir. Gostava de ler e passava horas na estante de livros de meu tio, muitas vezes lendo o que não devia – nem entendia.
De diversão de rua, festejos regionais, teatro de mamulengo na praça e, uma única vez, encontro com meus irmãos. De minha mãe e de minhas irmãs, notícias ocasionais. Visitei-as em um Natal e encontrei-as mais envelhecidas do que guardava na lembrança.
Com quinze anos segui para o Seminário São José, no Crato, onde não tinha família terrestre. Acostumado à rotina de estudos e trabalhos segui minha vocação que atendia às minhas necessidades terrenas e precisões espirituais.
Comigo viajaram três companheiros seminaristas.
O Seminário Maior abriu minha visão do mundo laico e confessional através dos estudos de Filosofia, Teologia e Ciências Humanas. De sertanejo bruto foi um longo caminho em direção à iluminação espiritual.
Receber o Sacramento da Ordem após a celebração do longuíssimo ritual eclesiástico foi a coroação de uma caminhada para o serviço divino ao qual dedicara minha vida e toda a minha devoção.
Imagine só! Meu filho padre! Agora sou eu que peço a benção!
Fui designado Pároco Auxiliar da Paróquia de Nossa Senhora da Expectação do Icó. A igreja primeira foi edificada em 1709 e ganhou o novo nome em 1728.
Fiquei perto de minha família civil, da qual vivera estranhado desde a infância. Mal reconheci minhas irmãs já moças e minha mãe, encarquilhada precocemente, como sucede no sertão.
A região sofreu demais com as secas periódicas e a de 1932 fez uma grande leva de retirantes buscarem socorro em outras paragens, incluindo na capital. Por outro lado, foi poupada dos ataques do bando de Lampião.
Nossa Paróquia passou por períodos de bonança e outros de amargor e minha existência, como Deus bem quis.
Eu acordava ao primeiro canto do galo, lia as Horas, dizia a missa das seis e bebia o café preparado pela velha Maroquinhas. Revisava meus compromissos, que variavam muito ao longo do ano: batizados, casamentos, enterros, leituras, estudos, prédicas e as festas dos dias santos que movimentavam a cidade e os peregrinos de outras paragens.
Ouvia as confissões, tarefa que exercia com especial desgosto pelas fraquezas humanas e angústia pelos males do mundo.
A vida dura na vaquejada e a dureza da lida sertaneja fomentavam a violência que inimizava famílias por gerações sucessivas, disputas de terras e gado e, na cidade, de herança e vizinhança.
Querelas eram resolvidas fora dos tribunais e na contenda a tiro ou a peixeira, desembocando no confessionário e nos meus ouvidos. Impotente e impossibilitado de agir como árbitro restava-se exercer o papel de conselheiro, sem muitas esperanças de sucesso.
Pacato por natureza e por obrigação eclesiástica chocavame o desprezo pela vida alheia – e a própria. Motivos mesquinhos, razões sem maior importância motivavam ações violentas e injustificadas.
Nas minhas orações e homilias eu rezava pela paz entre os homens e o reconhecimento da dádiva divina da vida.
Três anos mais tarde assumi a Paróquia, vendo crescerem minhas responsabilidades.
A festividade religiosa mais tradicional do Ceará é o Novenário do Senhor do Bonfim, quando a imagem relíquia trazida de Portugal sai em procissão no dia 1º do ano, em meio ao foguetório ensurdecedor que começa às quatro e meia da madrugada. A festa sucede a da Padroeira da cidade, Nossa Senhora da Expectação, que tem lugar em dezembro.
Com muita graça e contrição fui nomeado Monsenhor pelo senhor Bispo, que elogiou minha dedicação à Escola Dominical destinada à formação de jovens criados no cultivo do amor e paz entre os homens.
Naquele ano ocorreram os fatos que marcaram para sempre a história de Icó. ***
Manhãzinha, antes da missa, um vaqueiro encourado bateu à porta da igreja com uma mensagem urgente de minha mãe, que demandava minha presença com toda urgência.
Trazia um cavalo arreado para minha viagem. Por respeito, não quis anunciar o sucedido.
A casa de moradia estava apinhada de gente da vizinhança contrita e silenciosa, o que era de mau agouro.
De fato, minha mãe, chorosa e com a voz entrecortada relatou a violação e morte de minha irmã Maria Clara, a mais nova. O assassino fugira sem deixar rastro e mesmo os rastreadores mais espertos não conseguiram perseguilo. Devia ser gente da região porque a menina-moça não se afastava do sitiozinho. Encontraram ela perto do açude, quando deram falta no final da tarde.
Acostumado que era a ouvir confissões trágicas, não pude evitar a dor e o desespero que tomaram conta de mim. Era difícil imaginar a maldade de alguém que se pudesse considerar humano. Nem bicho faria algo assim.
Cumpri minhas obrigações de padre, consolei como pude minha mãe e regressei acabrunhado a Icó.
Rezei a Missa de Sétimo Dia e somente a urgência da preparação da festa da Padroeira desviou minha atenção.
Como se diz que uma desgraça não vem só, ouvi a confissão de um crime de sangue, produto do feudo de famílias que se desentendiam há gerações. O autor era um rapaz jovem, trabalhador em couros que me trouxe a peixeira mortífera ainda incrustada com nódoas de sangue, como estranha oferenda para os santos. Deixou-a no genuflexório ao sair para cumprir a pesada penitência dada em troca da absolvição.
Este episódio, marcante para mim, levou-me finalmente a redigir uma homilia sobre o paradoxo da origem do mal, um dos temas mais polêmicos nas aulas de teologia e de filosofia e que provocava discussões acaloradas entre nós seminaristas. Por que Deus permitiria que o mal se instalasse no mundo? Ou teria criado o mal com algum propósito que não alcançamos conceber? Por que nos sujeitar às tentações do Demônio? Para nos testar? Afinal, não é Deus perfeito e bom? Poderia Deus ser culpado de criar o ser humano imperfeito, permitindo a ele a capacidade de cometer o mal? Quando Agostinho pergunta Unde male faciamus? Alega que O mal não poderia ser cometido sem ter algum autor e este autor tem o poder do livre arbítrio.
Dessa homilia nasceu o embrião de um Tratado cujo primeiro capítulo aborda a questão da violência. Se, contrastada com as virtudes da tolerância, compreensão, amor e condescendência era de difícil explicação para as dúvidas levantadas por nós no Seminário, imagine para os leigos. Seus limites ou atributos sem dúvida ultrapassam os do pecado mortal da Ira, que pode nascer sem se querer, mas que deve ser aplacada e contida.
Passei a abordar o tema nas missas, o que me ajudava a aclarar meus próprios argumentos, quando os redigia no papel.
As festas de fim de ano e do ano novo distraíram-me de certa forma da tragédia doméstica, mas a dor não minorou. Cheguei a pecar por questionar a possível razão de tal monstruosidade que marcou para sempre a minha família, castigada com aquela provação. Questionar os motivos divinos foi o pecado que cometi.
O tempo trouxe o arrependimento de minha descrença momentânea, mas não minorou a dor e o sentimento de revolta.
Recorri à leitura da vida dos santos, sujeitos a torturas e provas cruéis, que nem por isso aliviaram meu espírito conturbado.
Várias vezes me perdi no meio de uma prédica relembrando a imagem inocente de Maria Clara.
O tempo passou e eu voltei à rotina da igreja, desconsolado, mas contrito.
Uma segunda feira à tarde, quando eu rezava o terço em frente ao altar-mor ouvi alguém dirigir-se, hesitante, ao confessionário. Na penumbra do templo abri a cortina, me sentei e descerrei a janelinha de grade.
Padre, me dê vossa benção porque ofendi a Deus. Ofendi muito!
A confissão seguiu o rito normal, quase automático. O homem gaguejava muito e foi difícil entender algumas frases. Mas foi quando disse:
Eu cometi um crime sério prá igreja, mas minha condição de home me levô a isso. Afinal, sô home e tenho minhas necessidade.
Pensei cá comigo: Mais um...
Meu filho, foi pecado da carne?
Pois é, mas foi com uma menina inocente. Eu tava necessitado e ela tava de jeito, sozinha perto do açude de...
Senti o sangue gelar.
Era conhecida sua?
Mais ou menos. Eu tinha visto ela antes, mas nunca falei com ela. Eu sabia onde ela morava, ali mesmo pertinho do açude, com a mãe e as irmãs. Deu uma coisa em mim, eu apeei do cavalo, ela assustou e correu. Eu tirei os couros, peguei ela, ela gritou e eu apertei o pescocinho dela.
A confissão ficou incoerente à medida que eu reconhecia o autor do crime hediondo que custou a vida inocente de Maria Clara. Insisti e ele continuou:
- Derribei ela, bateu com a cabeça numa pedra e ficou quietinha. Eu me servi e fui embora prá minha terra.
- É um crime muito grave. Vosmicê nem viu se ela tava ferida, prá acudir?
- Não vi não. Também não queria ser apanhado. Mas seu padre não sei se arrependo não...
A esta altura eu via tudo vermelho. Fiz um movimento involuntário e minha perna bateu na peixeira encostada na banqueta do confessionário e que eu esquecera de guardar. Tirei o ferro da bainha e atravessei a telinha de vime, enfiando até o terço no gogó do penitente, arrastando ele comigo para o inferno.
Gleybs Rodrigues de Almeida
Era uma daqueles domingos de tradição. Família reunida, vovó preocupada com seus franguinhos gordos, pois naquela semana já havia mergulhado uns três na panela de pressão. “Oh! Povo que come! Parece que vieram do cárcere e estavam só a pão seco e água mirrada”. Vovó gostava mesmo de reclamar. Era o dia todo catando suas colheres pelo quintal e culpado os netos de descasos para com suas coisas da cozinha. “Se suas mães não perdessem o tempo arrastando a saia pelos mercados ao invés disso ensinassem as boas maneiras aos filhos não seriam tão teimosos e desleixados”. Vovô nada reclamava. Apoiava todas as nossas peraltices e ainda moía a cana para nos presentear com a garapa nos fins de tarde. “Não para de reclamar um segundo. Criança é assim mesmo. Corina”. Tia Eulália concordava com vovô e de prova nos levava para a fonte, onde fazíamos a festa. Ficar falando das coisas de vovó é bom, mas vamos voltar resumir essas férias de 2023 nesse episódio que vou contar para vocês.
Nesse dia por pouco havia uma mudança no cardápio, pois Titia Sol aproveitando de sua condição de grávida desabou-se logo em novos desejos e vontades: “Estou desde ontem desejando comer carne de pato assado”. Vovó derrubou o bule no jirau. “Só o que me faltava mesmo!” Vovô sorriu quase engasgando com a garapa da cana.
"Tem um pato gordo que faz dias que namoro”. Tia sol sabia das avarezas de vovó e sua proteção pelos patos, e para apimentar as férias resolveu usar a maternidade para exigir suas vontades. “A senhora não quer que meu Nicolas nasce com cara de pato, não é? Vovó reclamava, mas já amolava o facão. “Bicha mundíssada!” Se pensa que vou correr atrás de pato, está enganada. Se quer comê-lo, manda seu marido levantar as costas da rede e buscar a caça.
E assim fez. Titio Kadim levantou-se e alistou alguns dos sobrinhos para ajudá-lo. “Quem conseguir pegar esse pato encardido é o mais macho de todos". Foi assim que começou a partida de futebol. 11 pessoas atras do pato encardido. Sobe muro, derruba panela no jirau, entra pela janela, desce ladeira, atravessa cerca, se mete na horta e até que aos quarenta-cinco minutos do primeiro tempo já cansado de lutar, uma surpresa. Uma galinha velha e gorda (creio que pela afronta devia ser amigona do pato) entra no meio da partida para defender o ‘desejado’. Titia vendo da janela a situação, logo, logo muda o foco para com seu desejo. “Eu queria mesmo eu uma canja com bastante coentro e limão.” Eu como fui o mais prejudicado na história, pois fui bicado pela a carijó, não perdi a oportunidade de chutar no gol e ganhar o título de machão. Apanhei a defensora de patos pelas asas. “ (Tá aqui, titio!) “Esse é macho mesmo!”
Foi uma festa. Titia se saciou com a canja. (Eu acredito que meu primo não há de nascer com cara de pato). Enquanto a esse zagueiro, é outra História. Está lá agora nadando na poça d’água alegre com se nada tivesse acontecido, enquanto a galinha (coitada): pagou o pato.
Iteuane Casagrande
Olá, pessoal que me acompanha, sejam todos bemvindos. Eu sou o José Leandro, o Jeca da atualidade, formado em agronomia e venho dividir com vocês a vida diária de quem trabalha com a terra. A roça é o meu mundo e é graças a ela que a humanidade se sustenta.
E no "Nós é agro, sem agrotóxico" de hoje eu vou contar com a participação da família do meu tio Lauro, que foram destaques na festa do 30ª do Tomate, que ocorreu no domingo passado aqui na nossa região em Santa Maria, onde ganharam o concurso do fruto mais bonito e vistoso e o melhor de tudo, orgânico.
Estamos aqui na plantação e a área encanta com a grandeza dos tomateiros.
O senhor Lauro, vulgo" meu tio", vai falar um pouco como ele é faz o processo chegar até o ponto de colheita.
Já pode falar, "seu Lauro"!
Semeamos entre o final do inverno e o início da primavera, o tomate é uma hortaliça do verão, que necessita de sol para o bom amadurecimento dos frutos, sabe quando você dá a mordida num tomate e sente a docilidade, ninguém merece um fruto sem gosto e sem estar maduro, né não? Mas é preciso cuidar para não haver sol demais e nem muita umidade, pois pode atrapalhar o crescimento. É importante fixar bem as estacas, pois o
vento e as chuvas fortes podem quebrar o caule principal. Tem que fazer a limpeza de talos que crescem entre o caule principal e as folhas, pois assim, haverá a garantia de boa colheita. E não se pode esquecer de aguar regulamente, ele requer bastante.
Foi assim que José Leandro virou o influencer da roça, mostrando o cotidiano do agricultor, do homem da terra, daquele que é responsável pela comida de verdade no nosso prato.
Mas não pense que ele é apenas um rapaz mimado. Pelo contrário, ele suou muito para conquistar o que tem e mostrar a vivência na agricultura é uma maneira de dar continuidade na história que seu tataravô começou quando saiu da Itália ainda criança e sem saber muito o seu destino, foi acolhido por terras capixabas. Graças ao trabalho de anos, comprou seu primeiro alqueire de terra.
No início naquela terra somente se plantava café e sem muito conhecimento boa parte da mata nativa foi destruída. Mas posteriormente a herança foi passando até chegar ao Lorenzo, pai de Lelê, apelido dado pela família, que encontrou um equilíbrio entre a agricultura e a natureza. O terreno já contava com 6 alqueires, onde Lorenzo trabalhava em conjunto com os seus outros 5 irmãos e familiares. E graças a um projeto do governo local, com apoio ao homem do campo, uma parte do terreno foi reflorestada com angico- branco, ipês, paud'alho, pau-Brasil, copaíba, embaúba, quaresmeira, jacarandá Bahia, palmito amargoso, espécie inclusive em extinção. A cada área florestada, o dono da terra ganha subsídios para usar na plantação e também tem a
preferência para vender os produtos para as escolas da prefeitura.
José Leandro nunca quis sair da roça, a cidade nunca lhe atraiu, como normalmente atrai a tantos outros rapazes da sua idade. Graças a união de um grupo de pais agricultores, uma escola agrícola foi aberta na cidade próxima e os filhos destes, puderam estudar ali. Lelê então estudou até o ensino médio ali, saindo com a formação de técnico agrícola, onde aprendeu muito e foi aplicando com os ensinamentos do pai.
Mas aquele menino, curioso e com vontade de fazer mais pelo lugar onde nasceu e foi criado, estudou ainda mais e passou no curso de Agronomia. Foram 5 anos de dedicação, com muitas aulas práticas, longe da sua cidade, mas sempre próximo do meio rural.
Sua formação contribuiu para novas técnicas no terreno, desenvolveu com dois outros dois agrônomos um sistema para cultivo de morango, goiaba, acerola, mamão e banana. E assim, o que no início era somente cultura cafeeira, virou uma policultura, além das frutas, também legumes e verduras.
Apesar de tanto empenho, o agricultor ainda carrega um pouco de esteriótipo de que não está numa profissão de grande orgulho, pelo contrário, José Leandro aprendeu muito com o curso, mas também com os ensinamentos do seu pai e familiares.
Percebendo a falta de valorização da agricultura, começou a usar a internet como ferramenta para difundir o conhecimento de quem trabalha na roça. Por vezes, são rotulados como profissionais que são menos sábios, o
salário de aposentadoria é o mínimo, uma vergonha para os políticos que atuam em função da sociedade.
O objetivo da página é mostrar os 365 dias do agricultor, porque na roça ninguém pode colocar uma placa e escrever fechado, porque todos os dias o serviço aguarda as mãos calejadas daqueles que colocam a sua comida na mesa.
Valorize o roceiro, valorize a agricultura, a simplicidade e o trabalho árduo são a base da sobrevivência humana.
Compartilhe dessa ideia, apoie e respeite esse trabalho!
Jean javarini
Havia uma pequena comunidade rural chamada Vale Sereno, aninhada entre colinas verdejantes e banhada pelos rios serenos que serpenteavam pela região. Ali, viviam os Silva, uma família de caipiras conhecida por sua dedicação à terra e aos valores simples da vida no campo.
Joaquim e Maria Silva, os patriarcas, trabalhavam arduamente na lavoura, enquanto seus filhos, Pedro e Ana, ajudavam nas tarefas diárias. Juntos, cuidavam das plantações de milho, feijão e mandioca, garantindo que os alimentos que chegavam às mesas das famílias da região fossem livres de agrotóxicos prejudiciais.
A importância do cuidado com a higiene era uma lição passada de geração em geração na família Silva. Desde a infância, Pedro e Ana aprenderam a importância de lavar as mãos antes das refeições e após o trabalho na roça, conscientes de que a saúde de suas famílias dependia disso.
Um dia, enquanto trabalhavam na plantação de mandioca, Pedro e Ana avistaram um tatu que cavava buracos entre as raízes das plantas. Curiosos, aproximaram-se para observar o pequeno animal em seu habitat natural. Maria explicou aos filhos como o tatu era parte importante do ecossistema, ajudando a controlar a população de insetos e contribuindo para o equilíbrio da natureza.
Enquanto isso, Joaquim supervisionava a construção de um novo galinheiro, onde os animais teriam mais espaço para se movimentar e se alimentar de forma saudável. Ele sabia que animais saudáveis significavam alimentos mais seguros e nutritivos para suas famílias e para a comunidade.
À noite, depois de um dia de trabalho árduo, a família Silva se reunia ao redor da mesa, compartilhando histórias do campo e planejando os próximos passos para garantir o bem-estar de todos. Eles sabiam que, mesmo em meio às dificuldades da vida rural, o cuidado com a higiene era a chave para preservar a saúde e a felicidade de todos.
Enquanto as estrelas pontilhavam o céu noturno e a lua lançava sua luz prateada sobre o campo, os Silva sentiam uma profunda gratidão pela vida simples e abundante que levavam. Sabiam que, apesar dos desafios que enfrentavam, estavam fazendo a diferença não apenas em suas próprias vidas, mas também na vida de todos aqueles que dependiam dos alimentos que produziam com tanto amor e cuidado. E, à luz do luar, renovavam seu compromisso de continuar a trabalhar em harmonia com a terra e com os valores que os uniam como uma família e como membros de uma comunidade unida pela vida no campo.
Numa manhã ensolarada, enquanto Joaquim e Pedro trabalhavam na plantação de milho, foram surpreendidos por um gato que se aproximou sorrateiramente. O felino, curioso e brincalhão, parecia interessado nas espigas maduras que se erguiam no campo. Pedro, com um sorriso, afagou o animal e explicou a importância de manter os alimentos protegidos dos invasores, mas
também respeitar a presença dos animais que compartilhavam aquele espaço.
Enquanto isso, Maria e Ana cuidavam dos afazeres na casa, garantindo que tudo estivesse limpo e organizado. Maria instruía Ana sobre a importância de higienizar corretamente os utensílios de cozinha e manter a área de preparação dos alimentos livre de contaminações. Cada gesto, por menor que fosse, contribuía para a preservação da saúde da família e da comunidade.
À tarde, os Silva receberam a visita de um vizinho que trouxe notícias do jornal local. Entre as manchetes, havia uma reportagem sobre os perigos dos agrotóxicos e a importância de optar por alimentos cultivados de forma orgânica e sustentável. Joaquim e Maria compartilharam a matéria com a família, reforçando a convicção de que o cuidado com a higiene e a saúde era fundamental em todas as etapas da produção agrícola.
Enquanto o sol se punha no horizonte, pintando o céu de tons dourados e alaranjados, os Silva se reuniram ao redor da mesa para desfrutar de uma refeição feita com os frutos de seu trabalho. O aroma das frutas frescas, como manga, cajá e laranja, misturava-se ao sabor das verduras colhidas na horta.
E assim, sob o céu estrelado de Vale Sereno, os Silva renovaram seu compromisso de cultivar alimentos saudáveis e livres de agrotóxicos, preservando não apenas a saúde de suas famílias, mas também o bem-estar da natureza e das futuras gerações. Pois, para eles, a vida na roça era mais do que uma simples subsistência; era uma missão de amor e responsabilidade, uma conexão
profunda com a terra que os sustentava e os inspirava a viver em harmonia com o mundo ao seu redor.
Uma noite, enquanto observavam as estrelas cintilantes no céu, Joaquim compartilhou com sua família uma história que havia ouvido quando criança, sobre a importância da integração entre os seres humanos e a natureza. Ele falou sobre como cada árvore, cada rio e cada criatura tinha seu papel vital no grande esquema da vida, e como era essencial respeitar e cuidar desse equilíbrio delicado.
Enquanto ouviam as palavras sábias de Joaquim, Pedro e Ana refletiram sobre as lições que aprenderam ao longo de suas vidas na roça. Lembraram-se das brincadeiras de infância nas margens do rio, dos passeios pelos campos repletos de flores silvestres e das noites iluminadas pela lua cheia. Cada experiência havia contribuído para moldar sua compreensão da importância da conexão com a natureza e do cuidado com o ambiente ao seu redor.
Na manhã seguinte, os Silva acordaram com um propósito renovado. Decidiram expandir suas parcerias com outros produtores locais e cooperativas agrícolas, fortalecendo ainda mais a rede de apoio e solidariedade na comunidade. Juntos, compartilhariam conhecimento, recursos e ideias inovadoras para promover uma agricultura mais sustentável e saudável em Vale Sereno.
Enquanto trabalhavam lado a lado com seus vizinhos, os Silva perceberam o poder das parcerias e da colaboração em prol de um objetivo comum. Cada sorriso compartilhado, cada desafio superado e cada conquista alcançada reforçava sua crença na importância da união e da cooperação na construção de um futuro mais promissor para todos.
E assim, os Silva seguiram adiante, guiados pela luz da lua e pelo brilho da esperança em seus corações. Pois, para eles, a verdadeira riqueza não estava nas colheitas abundantes ou nas terras férteis, mas sim nos laços de amor e respeito que cultivavam com a terra, com os animais e com aqueles que compartilhavam sua jornada na vida simples e gratificante da roça.
Numa tarde tranquila, enquanto Maria e Ana colhiam frutas maduras na horta, depararam-se com um papagaio colorido que voava livremente entre as árvores. Encantadas, observaram a graciosa ave, lembrando-se de como a diversidade da vida selvagem era essencial para o equilíbrio do ecossistema. Decidiram então montar uma gaiola para o papagaio, garantindo sua segurança sem comprometer sua liberdade.
Enquanto isso, Joaquim e Pedro trabalhavam na manutenção das cercas ao redor da propriedade, protegendo-a de possíveis invasores e garantindo a segurança dos animais. Juntos, refletiam sobre a importância de manter a terra livre de agrotóxicos e monoculturas, permitindo que a biodiversidade florescesse e sustentasse a vida na roça.
À noite, reunidos ao redor da fogueira, os Silva compartilharam histórias e risadas, celebrando não apenas o trabalho árduo e as conquistas do dia, mas também a união e a solidariedade que os mantinham fortes em meio às adversidades. Sob o brilho do luar, renovaram seu compromisso de preservar a saúde da terra, dos animais e das futuras gerações.
E assim, a vida na roça dos Silva seguia adiante, permeada pela simplicidade e pela gratidão pela abundância da
natureza. Pois, para eles, a verdadeira riqueza estava na conexão com a terra, no respeito pelos seres vivos que a habitavam e no cuidado com a saúde e o bem-estar de todos os que compartilhavam daquela vida simples e plena.
À medida que as estações passavam e o tempo seguia seu curso, os Silva continuavam a viver em harmonia com a terra que os acolhia generosamente. Cada nascer do sol trazia consigo novos desafios e oportunidades, mas também renovava a esperança e a determinação da família em seu propósito de cultivar uma vida saudável e sustentável na roça.
Com o passar dos anos, o exemplo dos Silva começou a se espalhar além das fronteiras de Vale Sereno. Outras comunidades rurais inspiraram-se em suas práticas de cuidado com a higiene e de produção de alimentos livres de agrotóxicos, formando uma rede de apoio e solidariedade que se estendia por todo o campo.
E assim, sob o brilho da lua e o canto dos grilos, os Silva continuaram sua jornada na vida rural, guiados pela sabedoria ancestral e pelo amor pela terra que chamavam de lar. Pois, para eles, a verdadeira riqueza não estava nas colheitas abundantes ou nas terras férteis, mas sim nos laços de amor, respeito e gratidão que cultivavam a cada dia, honrando a vida simples e preciosa da roça.
E assim, sob o céu estrelado daquela noite serena, os Silva se recolheram em paz, sabendo que haviam cumprido seu papel como guardiões da terra e da vida na roça. Com corações cheios de gratidão e esperança, adormeceram sob a proteção das árvores antigas e dos sons suaves da natureza, confiantes de que o legado de amor e cuidado que deixavam para trás continuaria a florescer e a inspirar
as gerações futuras, alimentando não apenas os corpos, mas também as almas daqueles que se aventuravam pelos caminhos simples e belos da vida no campo.
E naquela tranquila noite na roça, os Silva adormeceram, unidos pelo vínculo indelével com a terra e pela certeza de que, com amor, respeito e cuidado, poderiam preservar não apenas sua própria vida, mas também o precioso legado da vida no campo para as gerações vindouras.
Sementesdeesperança:o legadodosSilvanaterra
Jean Javarini
Em uma pequena comunidade rural chamada Vale Verde, situada em meio às vastas paisagens campestres, vivia uma família de caipiras conhecida como os Silva. Jusé e Bentu Silva eram os pais zelosos de três crianças: Renatu, o primogênito, uma energia inesgotável; Maria, a doce menina que adorava ajudar a mãe na cozinha; e João, o caçula, sempre curioso e pronto para explorar a vida na roça.
A vida dos Silva era permeada pelo ciclo das estações, pelas lavouras que cultivavam e pelos animais que criavam. Eles compreendiam a importância dos cuidados com a higiene para a preservação da saúde, especialmente em uma realidade onde a produção agrícola era a base de sustento e onde a utilização de agrotóxicos no agronegócio era uma realidade preocupante.
Jusé e Bentu, em parceria com os vizinhos, buscavam integrar práticas saudáveis em suas rotinas. Sabiam que a monocultura de soja e milho, tão comum na região, podia contaminar os alimentos e a terra. Optavam por uma produção diversificada, cultivando frutas, verduras e legumes variados em sua lavoura, livres de agrotóxicos.
Para conscientizar a comunidade sobre a importância dos cuidados com a higiene, os Silva se tornaram líderes locais
nesse aspecto. Organizavam palestras na associação comunitária, distribuíam panfletos informativos e promoviam a limpeza das áreas rurais.
Mas, para que suas palavras tivessem um diferencial, decidiram envolver toda a família. Maria ajudava na limpeza do galinheiro e na colheita das frutas. Renatu auxiliava o pai na lavoura, aprendendo sobre os ciclos naturais e a importância do manejo adequado. João, mesmo pequeno, já mostrava interesse em cuidar dos animais e da terra.
Um dia, enquanto trabalhavam na roça, os Silva encontraram um tatu curioso cavando buracos em busca de insetos. Jusé explicou aos filhos como esse pequeno animal ajudava na manutenção do equilíbrio ecológico da região, e como era importante respeitar todas as formas de vida na terra.
Em um esforço conjunto, os Silva transformaram sua fazenda em um exemplo de sustentabilidade e saúde. Utilizavam técnicas tradicionais de plantio, evitavam o uso excessivo de produtos químicos e mantinham a terra fértil através da compostagem orgânica.
Com o tempo, a comunidade toda começou a seguir o exemplo dos Silva. Os vizinhos perceberam que uma vida simples, em harmonia com a natureza, trazia mais saúde e bem-estar para todos. E assim, o cuidado com a higiene tornou-se não apenas uma rotina, mas sim um estilo de vida para os caipiras do Vale Verde.
Certo dia, enquanto Jusé e Renatu trabalhavam na lavoura, foram surpreendidos por um lobo que se aproximava furtivamente. O animal, faminto e desorientado,
representava um perigo para os animais da fazenda e para a segurança da família.
Com rapidez e coragem, Jusé e Renatu conseguiram afastar o lobo, utilizando técnicas aprendidas ao longo dos anos de convívio com a natureza. Mas o incidente serviu como um lembrete de que, mesmo em um ambiente rural pacífico, os desafios podiam surgir a qualquer momento.
Após o episódio com o lobo, os Silva decidiram fortalecer ainda mais a segurança da fazenda. Reforçaram as cercas dos pastos, instalaram sistemas de alarme e mantiveram uma vigília constante durante a noite. Além disso, conscientes da importância dos cuidados com a higiene, garantiram que todos os utensílios e áreas de armazenamento estivessem sempre limpos e livres de contaminação.
Enquanto isso, Maria e João colaboravam com Bentu na preparação das refeições. Utilizando os alimentos frescos colhidos na própria fazenda, criavam pratos saudáveis e nutritivos que enchiam a mesa da família de cores e sabores. A higiene na cozinha era uma prioridade, e todos os membros da família lavavam as mãos diligentemente antes e depois das refeições.
Em meio às atividades do dia a dia, os Silva também encontravam tempo para se informar sobre as últimas notícias da região. O jornal local era uma fonte de conhecimento e entretenimento, além de servir como um meio de manter-se atualizado sobre os acontecimentos na comunidade e no mundo ao redor.
Numa tarde ensolarada, enquanto Maria lia o jornal embaixo de uma árvore frondosa, ela se deparou com um
artigo sobre os efeitos nocivos dos agrotóxicos na saúde humana e no meio ambiente. Intrigada, ela compartilhou a informação com a família, reforçando a importância de continuar com a prática de uma agricultura sustentável e livre de químicos prejudiciais.
Assim, os Silva seguiram sua jornada na vida rural, enfrentando os desafios com determinação e coragem, e celebrando as pequenas vitórias que vinham com o trabalho árduo e a dedicação à preservação da saúde e da harmonia com a natureza. Eles sabiam que, enquanto mantivessem seus valores e cuidados com a higiene em alta prioridade, poderiam superar qualquer obstáculo que surgisse em seu caminho.
À medida que o tempo passava, a família Silva percebia que seu esforço conjunto não só fortalecia os laços familiares, mas também tinha um impacto positivo na comunidade ao seu redor. Outros moradores da região, inspirados pelo exemplo dos Silva, começaram a adotar práticas mais saudáveis em suas próprias fazendas e chácaras.
A parceria entre os moradores cresceu ainda mais quando decidiram criar uma cooperativa local. Unindo forças, compartilhavam conhecimento, recursos e experiências para promover uma agricultura mais sustentável e saudável na região. Juntos, organizavam feiras de alimentos orgânicos, onde os produtos frescos das fazendas eram vendidos diretamente aos consumidores, incentivando um estilo de vida mais saudável e consciente.
A vida na roça, longe das agitações das cidades, mostravase repleta de desafios, mas também de recompensas. Os dias de trabalho árduo sob o sol escaldante eram recompensados com noites tranquilas, onde a família se
reunia em torno de uma mesa farta para compartilhar histórias e risadas.
A cada estação, a fazenda dos Silva se transformava em um verdadeiro paraíso de cores e aromas. As árvores frutíferas davam seus frutos, os campos se enchiam de vegetais frescos e os animais pastavam livremente pelos pastos verdejantes. O ciclo da vida na roça fluía harmoniosamente, alimentando não apenas os corpos, mas também as almas daqueles que nela habitavam.
E assim, a família Silva continuava sua jornada, navegando pelas marés da vida rural com sabedoria e determinação.
Cada desafio era encarado como uma oportunidade de aprendizado, cada conquista celebrada como uma vitória compartilhada. Pois, para os caipiras do Vale Verde, a verdadeira riqueza não estava nos bens materiais, mas sim na simplicidade e na harmonia com a terra que chamavam de lar.
Num belo dia de outono, a comunidade rural de Vale Verde se reuniu para celebrar a colheita. A cooperativa local, liderada pelos Silva e outros pioneiros, organizou uma festa comunitária para compartilhar os frutos do trabalho árduo e celebrar o sucesso da agricultura sustentável na região.
Enquanto os adultos conversavam animadamente ao redor da fogueira, as crianças corriam livremente pelos campos, brincando e criando memórias que durariam uma vida inteira. O aroma de alimentos frescos preparados com ingredientes locais enchia o ar, e o som de risadas ecoava pelas colinas.
Ao observar a alegria estampada nos rostos dos amigos e vizinhos, Jusé e Bentu sentiram uma profunda gratidão. Eles sabiam que, juntos, haviam feito a diferença em suas vidas e na vida daqueles ao seu redor. A importância dos cuidados com a higiene para a preservação da saúde era agora uma realidade enraizada na comunidade, um legado que perduraria por gerações.
Enquanto o sol se punha no horizonte, iluminando o céu com tons dourados e alaranjados, os Silva se reuniram em volta da mesa, segurando as mãos uns dos outros em um gesto de união e gratidão. Eles sabiam que, independentemente dos desafios que o futuro reservava, estavam preparados para enfrentá-los juntos, com amor, determinação e um compromisso inabalável com a vida na roça e com os valores que a sustentavam.
E assim, sob o céu estrelado de Vale Verde, a família Silva e toda a comunidade celebraram não apenas uma colheita abundante, mas também o poder da cooperação, da resiliência e do cuidado com a terra e uns com os outros. Pois, para aqueles que escolhiam viver da terra, a vida era mais do que apenas uma série de eventos; era um ciclo infinito de amor, gratidão e renovação, onde cada semente plantada era uma promessa de esperança para o futuro.
Enquanto as estrelas pontilhavam o céu noturno, os Silva se despediram da festa com os corações cheios de gratidão e esperança. Sabiam que, apesar dos desafios que ainda viriam, estavam unidos em seu propósito de preservar a saúde, a natureza e a essência da vida na roça. Com um sorriso nos lábios e um brilho nos olhos, eles voltaram para casa, onde o calor do lar os aguardava, pronto para acolhêlos em mais um capítulo emocionante de sua jornada rural.
E assim, sob o manto estrelado da noite, os Silva seguiram adiante, firmes em seu compromisso de cultivar não apenas alimentos, mas também amor, saúde e harmonia em sua amada terra.
Sobosoldamanhã:histórias davidaribeirinha
Jefferson Machado
Com licença, leitor, permita-me iniciar nossa jornada com uma pequena reflexão sobre o título deste conto. Quando me vi diante da tarefa de batizá-lo, mergulhei em um turbilhão de pensamentos e emoções, buscando capturar a essência singular que pulsa em cada linha. Porém, como uma sombra sutil que se esquiva da luz, a palavra exata parecia escapar-me, brincando de esconde-esconde nos recônditos da minha mente.
Ah, a dificuldade de escolher um título! É como se cada possibilidade abrisse uma janela para um universo paralelo, repleto de promessas e mistérios. Como escolher entre tantas nuances, tantos reflexos da alma desta narrativa? Foi então que, em um momento de epifania suave como o sussurro do vento na folhagem densa da Amazônia, uma frase emergiu, como uma pérola oculta nas profundezas do oceano da minha mente: “Sob o Sol da Manhã: Histórias da Vida Ribeirinha”.
Sim, esse título parecia capturar a essência da história que desejo compartilhar com você, caro leitor. Um título que evoca a luz dourada que banha as margens do rio, iluminando não apenas o cenário, mas também as vidas e as histórias daqueles que habitam suas águas e suas margens.
No entanto, permita-me também apresentar-lhe uma sinfonia de opções, um mosaico de possibilidades que dançam ao redor do fogo da imaginação. Cada título, uma pequena pérola que reflete uma faceta única dessa tapeçaria de vida e cultura ribeirinha:
A Canoa de Madeira: Retrato da Rotina na Amazônia
Entre Palmeiras e Paneiros: A Beleza Cotidiana da Colheita de Açaí
Reflexos do Rio: Cotidiano e Tradição na Amazônia
Mercado do Ver-o-Peso: Ponto de Encontro entre a Terra e o Rio
Nas Águas do Guajará: Cenas da Vida nas Ilhas da Onças
A Colheita das Ilhas das Onças: Um Conto Amazônico
Raízes do Açaí: Histórias de uma Família Ribeirinha
Entre Palmeiras e Paneiros: Um Dia na Vida de Joaquim
O Mercado do Ver-o-Peso: O Coração de Belém e suas
Histórias
A Jornada do Açaí: Da Floresta à Feira de Belém
Barcos, Paneiros e Tradições: A Vida às Margens do Guajará
De Mairi a Belém: Um Conto de Navegação e Cultura
Memórias da Baía: Um Dia na Rotina Ribeirinha
A Dança dos Barcos: Histórias de Comércio e Identidade
Sob as Sombras da Catedral: A Vida Cotidiana nas Ilhas da Amazônia
E assim, poderíamos passar horas a fio, desdobrando cada título como pétalas de uma flor que desabrocha ao nascer do sol. Mas lembre-se, querido leitor, você é livre para nomear esta história conforme o seu coração desejar. Permita-se mergulhar nas páginas seguintes, e que cada palavra seja como uma gota de chuva que alimenta a terra fértil da imaginação.
Boa leitura, e que esta história ribeirinha toque sua alma tanto quanto tocou a minha ao escrevê-la.
Joaquim era um jovem ribeirinho que morava nas Ilhas das Onças, uma comunidade situada próximo a Belém, no coração da região amazônica. Desde criança, ele acompanhava seu pai, Manuel, nas tarefas diárias de plantio e colheita do açaí, a principal fonte de alimentação e renda de sua família.
Todas as manhãs, antes mesmo do sol nascer por trás das densas copas das árvores, Joaquim e Manuel já estavam de pé, prontos para mais um dia de trabalho árduo. Ouviamse os barulhos da floresta despertando ao redor deles, os pássaros cantando e o murmúrio suave das águas do rio.
Enquanto os primeiros raios de luz começavam a penetrar timidamente entre as folhas, Dona Maria, a mãe amorosa da família, já estava na cozinha preparando o café da manhã. O aroma reconfortante da mandioca recém-assada, acompanhada de manteiga derretida, enchia a casa modesta, criando um ambiente acolhedor e familiar. O café preto, forte, estava pronto para ser servido, aquecendo os
corações dos trabalhadores antes de enfrentarem mais um dia de trabalho.
À beira do rio, a velha canoa de madeira aguardava pacientemente, como uma fiel companheira de jornada, enquanto os paneiros já estavam dispostos, prontos para a colheita.
Joaquim observava sua mãe com admiração. Enquanto saboreavam o café da manhã simples, mas reconfortante, ele sentia-se grato pela vida que levavam, apesar dos desafios que enfrentavam. Era um momento de tranquilidade antes da agitação do dia, uma pausa para fortalecer o corpo e o espírito para as tarefas que os aguardavam. E, juntos, eles estavam prontos para enfrentar mais um dia nas margens do rio, colhendo os frutos que a natureza generosamente lhes oferecia.
As lembranças de Joaquim se desdobram como cenas de um filme em sua mente. Ele se recordava das longas horas passadas preparando o solo úmido das várzeas, garantindo que estivesse pronto para receber as mudas de açaí. As mãos calejadas de seu pai, firmes e experientes, guiavamno nesse processo, ensinando-lhe os segredos ancestrais do cultivo. Joaquim observava maravilhado enquanto seu pai explicava a importância de cada etapa do processo, desde o manejo das palmeiras até a colheita dos frutos.
É bem verdade que as maiorias das palmeiras não foram eles que plantaram, mas vinham de séculos de alimentação dos povos indígenas e agora, caboclos, ribeirinhos da Amazônia, que sem perceber, plantaram palmeiras de açaí por toda a floresta.
Nos dias de colheita, a ilha ganhava vida com a movimentação das famílias ribeirinhas. Joaquim e Manuel escalavam as palmeiras altas, com a peconha habilmente, que pareciam como onças-pintadas, escalando uma árvore, colhendo os cachos de açaí maduros, enquanto o sol começava a aquecer a floresta ao redor.
Enquanto navegavam pelas águas tranquilas da baía do Guajará, Joaquim e Manuel observavam as torres imponentes do mercado do Ver-o-Peso se destacando na linha do horizonte. Suas torres elegantes, revestidas com escamas de zinco reluzentes, eram um exemplo marcante do estilo Art Nouveau, com suas linhas fluidas e ornamentações delicadas que evocavam uma natureza exuberante e sofisticada.
Enquanto se aproximavam do mercado, Joaquim admirava a harmonia entre a arquitetura imponente do prédio e o cenário natural ao seu redor. O balançar das ondas que agitavam os barcos na baía do Guajará lembrava uma dança, com o ir e vir das águas.
À medida que atracavam junto aos outros barcos na beira do mercado, Joaquim e Manuel preparavam-se para vender os paneiros de açaí que haviam colhido com tanto esforço. Eles sabiam que ali, entre as barracas coloridas e os aromas exóticos que permeavam o ar, encontrariam os compradores dispostos a pagar um preço justo.
Enquanto negociavam os valores e interagiam com os clientes, Joaquim não podia deixar de se maravilhar com a visão deslumbrante que se descortinava diante de seus olhos. O mercado do Ver-o-Peso, com sua arquitetura única e sua atmosfera vibrante, era mais do que um local de comércio era o coração pulsante de Belém, um
símbolo de sua identidade e sua história no decorrer do tempo.
Enquanto observavam a agitação ao seu redor, com os comerciantes montando suas barracas e os clientes circulando pelas ruas estreitas, eles sentiam-se parte de algo maior. Parte da história de uma cidade, que não se resume apenas aos prédios históricos, de herança portuguesa, mas também, de uma ancestralidade cabocla, indígena e amazônida.
E ali, na maior feira ao ar livre da América Latina, o Vero-Peso, eles viam chegar das ilhas, outros produtores, como de farinha, que vinham nos barcos, que os ribeirinhos chamam de “popopô” que deriva seu nome do som característico produzido por essas embarcações quando seus motores estão em funcionamento, tornando mais eficientes para navegar nos rios amazônicos.
De repente, a pedra, o local, como chamam o cais, onde atracam os barcos, trazendo todo o tipo de produtos: como farinha, peixe, pupunha, açaí e tantas outras delícias que não podem faltar na mesa do paraense, estava repleta de barcos com produtores de todas as ilhas para vender. E sob as sombras do relógio e as badaladas da Catedral da Sé e da Virgem de Nazaré, o caboclo ganhava seu pão de cada dia.
Ainda eram quase dez horas, quando eles venciam as ondas, com a brisa da baía batendo em seus rostos e o sol já soberano sobre suas cabeças. Para trás, deixavam Mairi, como os Tupinambás chamavam, a charmosa Belém do Grão-Pará, a cidade portuária, cabocla, indígena e europeia na foz do Amazonas.
Obotedajararaca
Joana Ingledy Ferreira Dias
Rastejava próximo as águas no tom terroso. Formava-se em círculos paid'égua. Fazia e se desfazia. Um bicho de olhinhos veementes. Fixos preso ao corpo em redemoinho.
Bastava um caboclo aparecer para na mata a criatura se esconder. Pronto para dar o bote. Na espera da hora da presa. Camuflava-se ao tom mais próximo do ambiente ao redor. Sentia a capacidade da invisibilidade. Nesse simples traço de ser.
Um ser esquisito. Perdido nas matas da floresta amazônica. Era a Jararaca-do-norte. Suas habilidades não tinham sido todas relatadas nos dados. Estavam confidenciadas a caça. Fora das pesquisas acadêmicas. Dos campos de estudos de qualquer metido a sabichão.
Quando um mulato adentrou nas matas coberto da cabeça aos pés. Com uma espingarda na mão e uma faca de caça no bolso de traz. A língua do bicho encontrou razão para aparecer com os dentes inoculadores cheios de veneno.
Saindo dos arredores do Igarapé, o ribeirinho precisava de carne fresca. E não era por falta de botas que morreria de fome. Bicho do mato. Nos seus 12, anos já se considerava moço crescido. Confiante nos seus instintos. Começou a seguir a rota na mata fechada. Nem atentou para o fato. Pisou na mata cheia de folhas secas. Mas visse a Jararacado-norte balançou a cabeça. Tinha acabado de sair dos
entulhos gerados pela casa. Na mesma hora. Projetou os dentes para fora e aplicou o veneno nas pernas lascadas do caboclo.
Ah, diacho! Gritou o mulato que caiu no chão. Batendo a cabeça. Na raiz de uma árvore. Dessas porradas. Rolou no chão lamacento. Quanto mais se rebelava com a caça mais era picado. O corpo cheio de marcas ficava. De pronto, não soube o que era. Quando pegou a lanterna jogando a luz, mas no momento que estava cara a cara. Aí não teve jeito, ele soube. Era a Jararaca-do-norte. De rocha!
A descoberta resultou num susto brabo. Que o fez jogar o objeto para o alto. Que a queda causou a quebra.
Estava só. Não conseguia se libertar. O sangue jorrava do tornozelo. Naquela escuridão, devido a lanterna quebrada. Se fosse outro rasgava, a camiseta enrolava o pano e estancava o sangue. Mas não era um só ferimento. Um torniquete poderia era causar amputação. Pior que isso nem era o seu maior problema. Mas não conseguia ver. Naquele breu danado. Estava tonto da queda. Égua, tava lascado! Mas começara a sentir um sossego por baixo. Um torpor. Relaxado a medida que perdia mais e mais sangue. Relaxou o corpo.
Enquanto, a cabeça perdia-se com a tensão. Os olhos não podiam acreditar. Só podia estar vendo visagem. Deparouse com ser esquisito. Parecia um cavalo. Não era uma mula. A incendiar fogo. E não tinha... Estava sem cabeça. O bicho se aproximou quando a Jararaca-do-norte sumiu. Viu a luz. Os olhos restaram-se assim. Abertos. Porque as pálpebras não selavam mais.
CONTOS CAIPIRAS
Lambuzados de sangue, de lágrimas e de suor fora encontrado. Mortinho. Pior que fora ao raiar da aurora. Aqueles olhos incrustados. Parecendo peixe antes de ser escamado. Lá estava o rapaz: mulato morto. Deitado a beira da árvore estrondosa. Sujo. Pisoteado. Ensanguentado. E, ah quem diga,que o negrume nos braços era a queimadura.
Justo na semana que estava só no Igarapé. Sem companhia. Sem calçado. Com terreno sujo. E ainda por cima, cético. Do folclore popular. Resolveu se aventurar nas matas. Égua, só podia estar pedindo para morrer mesmo.
OpassarinhoZecaTatuzinho
Luciene Balbino
José é um menino triste e reservado que ajuda o seu pai na lida da roça diariamente após a escola. Ele acorda todos os dias às 5 horas da manhã com sono e desanimado, pensando em como será o seu futuro, se é que o futuro existe, pois ele ouve o seu pai dizer todos os dias que a vida é o agora e que o amanhã pode nunca acontecer. Mas para José o que é a vida, senão pensar no que será quando adulto. Tantos sonhos ele tem que chega a doer o seu coraçãozinho.
Numa manhã chuvosa, Manuel, pai de José pediu ao filho que o ajudasse a cuidar do milheiral. Ainda sonolento, José engoliu com rapidez um copo de leite com chocolate e seguiu o pai. Aquela vida estava demais para ele. Após colher as espigas, José tomou um banho e se arrumou para ir à escola. Nitidamente pálido e angustiado, o menino tentava disfarçar perante os amigos, a vontade de dormir e não jogar bola no recreio.
José, que se passa? perguntou Joaquim, o seu melhor amigo
Nada, Joaquim. Estou cansado. Hoje me levantei às 5 horas.
Mas isso é trabalho infantil. É crime, sabia? O seu pai não pode ficar pedindo para fazer essas coisas.
Meu pai precisa da minha ajuda. Ele não tem mais ninguém.
Eu entendo mas ele podia contratar alguém para ajudálo.
Não temos dinheiro para isso, meu amigo. Com a doença da mamãe, o papai teve muitos gastos em hospitais, médicos e quebramos.
Então vamos jogar bola, assim esquece um pouco os seus problemas.
E com chutes na bola para lá e para cá, seus colegas da classe, interagiam com José. Levemente o sorriso voltou à sua face e ele conseguiu fazer cinco gols. Era tão bom estar na escola, lugar que José se sentia bem e sonhava quem sabe, ser professor um dia. Para o menino José, ensinar outra pessoa era sagrado e deveria ser mais reconhecido porque ele ouvia os professores reclamarem dos baixos salários e da falta de incentivo do governo em continuar na jornada do ensino.
Sempre com o coração na boca, José olhava os professores com ternura e amor. Um dia, de repente, abraçou a professora de português, Lúcia.
Agradeço à senhora por me ensinar tantas coisas. Muito obrigado.
Oh querido. É um prazer ser sua professora. A minha vida não teria sentido sem os meus alunos.
É que às vezes eu a vejo triste pelos cantos. Então só quero dizer que te amo, professora Lúcia.
Com as lágrimas escorrendo pelo rosto, Lúcia abraçou bem forte José. E num momento mágico, ficaram ali, coração com coração, numa gratidão incomensurável. Ao
voltar para casa, José deixou sua mochila no quarto e foi até a cozinha preparar o almoço para seu pai. Primeiro foi até a horta buscar alface, rúcula, tomate e rabanete. Eles mesmo plantavam os seus alimentos. Depois que sua mãe morreu, José tentava suprir a falta dela ao cozinhar milho todos os dias. O aroma do milho dava-lhe um aconchego e trazia de volta os cheiros preferidos de dona Maria, sua mãezinha.
Pai, está pronto o almoço José o chamou.
Oi, filho. Está com uma cara ótima. Hoje de tarde, vamos tocar o gado e plantar mais cana. Temos que vender bem para a nossa sobrevivência. Com a morte de sua mãe, perdemos muitos clientes, eu não tinha cabeça para cuidar de nada – Manuel disse com os olhos melindrados.
Mas pai, eu tenho lição de casa.
Faz depois de me ajudar. O papai precisa de seu apoio.
Está bem, pai.
Você tem 12 anos de idade e precisa aprender que a vida não é fácil. Infelizmente somos da roça e não temos dinheiro. Um dia vai me agradecer,
Em silêncio, José balançou a cabeça em concordância e sem o pai perceber, os seus olhinhos encheram-se de lágrimas que arderam a sua pele. Ao acabarem de comer, ambos foram tirar um cochilo de 10 minutos. Ao deitar em sua cama, José viu um passarinho com chapéu de palha pousar em sua janela. Ficou olhando-o assustado já que nunca isso acontecera antes.
Olá menino, tudo bem?
José pulou na cama e encolheu-se todo com medo. O passarinho começou a rir e a pular de um lado para o outro como se estivesse dançando um forró.
Muito prazer, meu nome é Jeca Tatuzinho. Posso ser seu amigo?
Não.
Mas por que não? Só porque eu sou um beija-flor?
Eu acho que estou sonhando, pássaros não falam.
Falam sim. Você que nunca ouviu.
O que você deseja? O seu negócio não é beijar flores, então vá.
Sim, eu adoro o colorido da natureza. Amo tudo que é belo como as flores, mas também amo você, menino.
Aceitar passarinho falar, é difícil, ainda mais com nome de gente, é muito estranho!
A minha mãe me deu este nome porque era fã do escritor brasileiro, Monteiro Lobato. Você conhece?
Já ouvi a professora falar deste escritor, mas ela falou mais do Sítio do Picapau Amarelo que se passa num sítio, no qual moram a sábia avó Dona Benta, seus netos Pedrinho e Lúcia, conhecida como narizinho e a fantástica cozinheira Tia Anastácia que fazia quitutes de dar água na boca só de ler. Narizinho tem uma parceira fiel, a boneca de pano Emília que a ajuda a viver um mundo de brincadeiras, aprendizados e diversão.
Eu não conhecia, menino, a minha mãe, a beija-flor Nariguda lia todas as noites antes de eu dormir, a história
de Jeca Tatuzinho. Podemos trocar os livros, o que acha? Assim você conhece a minha história e eu a sua.
Cada uma, Jeca. Sabe meu nome?
É José. Eu venho todos os dias à sua janela e escuto o seu pai chamar-lhe. Vejo-o que está triste José.
Sinto falta de minha mãe e estou cansado desta vida na roça.
Eu entendo, mas saiba, que se você lutar e persistir nos estudos vai conseguir ser o que quiser. Eu entendo muito de seres humanos.
Tenho que ir agora. Vou ajudar o meu pai na roça. Depois tenho que estudar.
Está bem. Logo nos vemos de novo. Está aqui o livro, pode ler e me diz alguma coisa.
Então leva o primeiro volume do Sítio do Picapau Amarelo. Você vai se divertir com o Visconde de Sabugosa, um boneco feito de sabugo de milho.
Passaram-se dois dias, enquanto José cumpria a sua rotina diária em estudar, cuidar da casa, cozinhar e ajudar o pai nas plantações e colheitas, Jeca Tatuzinho devorava o primeiro capítulo do livro emprestado. José, nas horas vagas lia a história e dava muitas risadas com as atrapalhadas do personagem em ser preguiçoso, não ter vontade de fazer nada e só ficar de cócoras tendo comportamentos que prejudicavam a sua saúde. Num Domingo ensolarado, José decidiu dormir até mais tarde e ao acordar, terminar a leitura do livro. Assim que leu a última página descobriu algo em si mesmo que lhe deu um
certo ânimo. Ficou encantado com a sabedoria de Monteiro Lobato ao escrever uma obra que alertava as pessoas sobre a importância da higiene diária e do saneamento básico. Foi então que José descobriu o que queria ser quando crescesse, mas guardou para si as suas ideias.
Jeca Tatuzinho apareceu em sua janela todo feliz e querendo conversa. Acordou José com bicadas e tapas na orelha com suas asas.
O que é isso, Jeca? coçando os olhos Eu cochilei após terminar o livro. Muito obrigado, eu adorei.
Que bom que gostou meu amigo. Eu também amei O Sítio do Picapau Amarelo e quero ler os outros capítulos. Você me empresta?
Empresto sim, mas cadê o volume que lhe entreguei?
Esqueci no ninho. Depois trago, pode ser?
Eu descobri que também sou um Jeca Tatuzinho. Se eu fosse morar nas cidades, as pessoas iam rir do meu chapéu, das minhas roupas, dos meus sapatos furados e do meu jeito caipira de ser.
Você está se desvalorizando, José. Imagina o mundo sem a agricultura, sem os trabalhadores rurais. O que as pessoas iriam comer se só sabem mexer com celulares e computadores. Essas pessoas das cidades é que estão doentes. Antigamente as crianças subiam em árvores, criavam os seus carrinhos de rolimã de madeira, colhiam os seus frutos, brincavam de esconde-esconde, pulavam amarelinha e cordas. Hoje a maioria das crianças vive em apartamentos trancadas porque é perigoso sair às ruas. Eu
vejo tanta tristeza no mundo, José. Você tem sorte, querido, pois come tudo orgânico, sem agro tóxicos, bebe água pura, come as frutas do pé, toma banho de rio e tem comida farta na mesa sem precisar gastar em supermercados. É um sortudo.
Pensando por este lado, você tem razão. Também tenho o amor do meu pai e dos professores.
Você tem tudo e pode ser quem quiser. Nunca deixe ninguém dizer que não vai conseguir o que deseja. Acredite em você. Além de tudo, tem higiene, tem saúde e pode ajudar o próximo.
É isso, Jeca. Decidi ser médico quando crescer. Quero levar o meu conhecimento a todas as pessoas que não as têm. Pessoas desanimadas podem estar doentes e se forem tratadas, vão voltar a construir e contribuir consigo e com a sociedade. Essa é a minha missão – José saiu correndo para contar a novidade ao pai, que o abraçou forte como nunca antes o fizera. E orgulhoso, Manuel disse ao filho que ele poderia ser o que quisesse, desde que fosse feliz.
JecaTatuzinho
Marjorie de Sousa Morato
Na minha infância tive um amiguinho que me encontrava nas praias como um tatuzinho que entranhava nas areias e as vezes nos pezinhos. No meu nunca entrou, mas no irmão e nos primos fazia fortuna.
Como bom mineiro alugávamos casas na praia com quintal de areia que por vezes era tirado para nossa habitação de veraneio vara de porcos. E as crianças aproveitavam. Chafurdávamos para ganhar uma moeda de cada bicho que do pé a vó tirava.
Vem cá, menino arisco.
Volta aqui!!!!!
E as batatas nos dedos cresciam, coçavam e ardiam pelo que eu entendia, mas não senti nenhunzinho para contar.
Apenas rir e olhar a peleja de enfiar as agulhas aquecidas nos isqueiros ou fogão no ponto preto e tirar. E a moeda fazia os olhos brilharem.
Era tradição o Almanaque e a história do Jeca Tatuzinho e tomar os remédios para fortalecer e livrar dos bichinhos.
Não lembro direito mas sei que gostava de ler em folha de jornal com propagandas e histórias ouvindo os adultos falando dos perigos da sujeira.
Olha a barriga d’agua! exclamavam.
Mas é de água doce! Na minha cabeça sal e fogo limpava tudo.
E meu ritual hoje nada aconselhável de pegar meu picolé de maracujá mergulhar nas águas do mar e deliciar dele salgado e gelado.
E toma fortificante, vermífugos e sabe-se lá o que mais. Tudo inspirado pelo senhor com vara de pescar no ombro pescando desavisados a ermo.
Era um tormento para os pais. E a gente lá chafurdando, brincando e querendo mais moedas para encher as burras.
NasMargensdoRioQue Canta
Matile Facó
No coração do sertão, onde o sol borda dourado no horizonte e o céu se desenha em matizes de fogo e calmaria, vivia Joana. A pele curtida pelo sol, os olhos profundos como poços de histórias, Joana era o retrato vivo da terra que a viu nascer.
A vida ali seguia o ritmo lento das águas do rio que cortava a paisagem, o Rio Que Canta, assim chamado pela melodia que suas águas entoavam ao beijar as pedras no seu leito. Era lá que Joana encontrava seu refúgio, nas margens onde a água e o tempo pareciam dançar um balé eterno.
Numa manhã tingida pela bruma suave que antecede o amanhecer, Joana caminhou até o rio, os pés descalços memorizando cada pedaço de terra, cada raiz que se entrelaçava no solo como as histórias se entrelaça nas lembranças. Ela levava consigo apenas a companhia de seu velho cão, Cipó, que a seguia com a lealdade silenciosa dos que conhecem a alma sem necessidade de palavras.
Ao chegar, sentou-se à beira do rio, o olhar perdido na correnteza que, mesmo constante, nunca era a mesma. Joana via no fluxo da água a passagem do tempo, a mudança incessante que molda a vida e a terra. Ela falava com o rio, palavras que o vento levava, segredos que apenas as águas sabiam guardar.
Foi então que, num sussurro quase imperceptível, misturado ao cantar das águas, Joana ouviu o rio lhe responder. Não com palavras, mas com um sentimento, uma conexão profunda que transcende a linguagem. Era como se o rio reconhecesse nela a mesma força e resiliência que corria em suas águas, uma ligação ancestral que unia seus destinos.
Naquele momento, algo dentro de Joana despertou. Uma compreensão nova e antiga, um chamado que ecoava das profundezas da terra até o cerne de seu ser. Ela sabia que algo estava prestes a mudar, que as águas do Rio Que Canta traziam consigo uma mensagem, um prelúdio de tempos vindouros.
Com o coração repleto dessa nova percepção, Joana se levantou, lançando um último olhar para o rio, agora não mais apenas um refúgio, mas um companheiro de jornada. E enquanto o sol finalmente rompia o véu da manhã, banhando tudo com sua luz dourada, Joana retornou para o seio de sua terra, pronta para o que o destino lhe reservava. E o rio, em sua infinita sabedoria, continuou a cantar, tecendo nas águas as histórias daqueles que a ele vinham buscar consolo, inspiração e respostas.
Os dias que se seguiram foram tecidos com a mesma rotina de sol e sombra, mas em Joana, uma mudança sutil e profunda havia se instalado. O encontro com o rio despertara nela uma conexão mais íntima com a terra, um sentir que ia além dos sentidos. Ela passou a caminhar pela terra com um novo olhar, vendo nas pequenas coisas a grandeza da vida que pulsa escondida.
Foi numa tarde de calor que se espalha como manta sobre a terra, que Joana percebeu a terra sob seus pés cantar. Não
uma canção de notas e acordes, mas um murmúrio de vida, uma sinfonia de existência que brotava do chão. As plantas, as árvores, até as pedras pareciam participar desse coro silencioso, conectadas por raízes invisíveis que teciam a teia da vida.
Movida por essa nova percepção, Joana começou a cuidar da terra com mais afinco e dedicação. Ela plantava, não apenas para colher, mas para participar dessa orquestra da vida, para contribuir com a melodia que cada semente trazia consigo. Cada planta que brotava era um verso adicionado à canção, uma história contada em verde e terra.
Cipó, sempre à sua sombra, assistia ao desabrochar dessa nova Joana, como se compreendesse a transformação pela qual sua companheira passava. O velho cão parecia também ouvir a música da terra, deitando-se sobre o solo fresco, fechando os olhos em sinal de contentamento, como se também ele fizesse parte dessa sinfonia.
Mas foi sob o luar prateado, numa noite em que o céu parecia pintado com as cores do mistério, que Joana sentiu a terra chamá-la. Descalça, ela caminhou até o Rio Que Canta, sentindo sob seus pés o pulsar da terra, a energia que fluía como rios subterrâneos, conectando tudo e todos.
À beira do rio, sob o manto estrelado, Joana entendeu que sua conexão com a terra não era um acaso, mas um chamado. Um chamado para ser guardiã daquelas histórias que a terra contava, daquela vida que brotava silenciosa e resiliente. Ela percebeu que, assim como as águas do rio que cantavam, as raízes da terra também entoavam uma
canção, um hino à vida que precisava ser preservado e honrado.
Com essa revelação, Joana fez uma promessa silenciosa às estrelas, ao rio e à terra: dedicar-se-ia a ser voz daquela canção, a proteger a sinfonia da vida que a terra, em sua sabedoria infinita, lhe confiara. E enquanto a lua acompanhava seu pacto silencioso, o Rio Que Canta sussurrava aprovação, suas águas refletindo o brilho da promessa feita.
A promessa feita naquela noite sob o manto estrelado tornou-se a bússola que guiava os passos de Joana. A cada amanhecer, ela se levantava com o sol, seus dias entrelaçados ao ritmo da terra, suas mãos cada vez mais parte do solo que cultivava, sua alma ecoando a canção das raízes.
Notícias da mulher que conversava com a terra e dançava com o rio correram pelas veredas e estradas de terra, atravessando o sertão como brisa que anuncia chuva. Gente de lugares distantes começou a visitar Joana, trazendo nas mãos sementes, nas almas perguntas. Ela os recebia como a terra recebe a chuva, acolhendo cada história, cada sonho semeador.
Com o tempo, o pequeno pedaço de terra de Joana transformou-se num santuário de vida, um oásis no coração do sertão onde as águas do Rio Que Canta abraçavam as terras sedentas, fazendo-as florescer. E Joana, no centro desse milagre cotidiano, era vista não mais apenas como uma filha da terra, mas como sua guardiã, a voz da canção que muitos haviam esquecido.
Certa tarde, quando o sol pintava de ouro o céu e a terra parecia suspirar de contentamento sob o calor, Joana caminhou até o rio para cumprir um ritual que se tornara parte de sua essência. À beira da água, ela fechou os olhos, deixando que a canção do rio e da terra a preenchesse, um hino silencioso de conexão e gratidão.
Foi então que algo extraordinário aconteceu. As águas do Rio Que Canta, como em resposta à presença de Joana, brilharam com uma luz própria, refletindo não apenas o azul do céu, mas o verde da vida que brotava à sua volta. E no espelho das águas, Joana viu não sua imagem, mas a de todas as vidas que tocara, de todas as sementes que plantara, de toda a esperança que cultivara.
Entendendo que sua promessa havia ecoado para além das margens do rio, transformando-se em um legado de vida e renascimento, Joana sorriu. Seu coração, pleno da paz dos que sabem seu propósito cumprido, pulsava em harmonia com o universo.
Com o cair da tarde, enquanto o crepúsculo tecia sombras suaves sobre a terra, Joana retornou para casa, seu caminhar leve como o de quem dança com a vida. E Cipó, fiel em sua sombra, seguia-a, os dois silhuetas contra o céu que se pintava de estrelas.
Naquela noite, e em muitas outras que vieram, a história de Joana e sua terra cantante semeou sonhos em corações e mentes, um lembrete suave de que cada um de nós carrega dentro de si a música da terra, o sopro da vida. E na eterna dança do universo, somos todos, cada um à sua maneira, guardiães dessa canção que nunca cessa, ecoando a promessa de um mundo onde a vida, em toda sua diversidade e beleza, é sagrada e celebrada.
Mestre Tinga das Gerais
Às margens do Velho Chico mora o grande pescador
Jeremias. Não economizou em matéria de ter filhos. Pai de quatro filhos e destes o mais velho, o Isidoro, o ajuda na pescaria que é o sustento da casa. Tanto para a venda como para a alimentação.
A Ambrósia, sua esposa, grávida pela quinta vez, sentindo enjoos e vômitos, veio o desejo que em todas as mulheres são visitadas, aonde vem a vontade de comer algo ou beber, enfim: é sempre algo difícil de providenciar. Desta vez a Ambrósia sentiu o desejo de comer língua do “Curimbão Tatá”, peixe grande que pesava uns 25 quilos e que era peixe de estima de São Francisco de Assis.
O sol indo embora sem pressa, tardezinha fria e ao chegar da pescaria, o Jeremias já cansado, sai da canoa junto com o Isidoro, as redes e tarrafas ás costas e alguns peixes.
E a Ambrósia:
Jeremias! Ocê sabe queu tô buchuda. Mais tô num desejo de cume a língua do “Curimbão Tatá”. Se ocê num me dá, o minino vai nascê cum a boca aberta e vai ficá mais seco que graveto.
Logo o Jeremias começou a tremer e foi logo ao assunto:
Muié de Deus! Ocê tá bistunta? Donde nóis vai rancá a língua do “Curimbão Tatá”, pa mode ocê cumê? São Francisco me castiga, vô ficá todo travado e nem pêxe vô mais pegá.
Ela com muito desejo não desiste e:
Mais Jeremias, meu amado, eu num tô aguentano de tanto desejo. E cum dó do nosso fio que inda tá na minha barriga mexeno e me atiçano. Se ocê num ranjá a língua do “Curimbão Tatá”eu vô inté dismaiá.
Ele pensou, pensou e voltou para o rio, e desta vez sozinho. O Isidoro, apavorado deixou os três irmãos chorando ao lado da mãe e foi até à casa das rezadeiras, Maria, Amélia e Conceição, para contar o fato e tomar providências para não acontecer uma tragédia. E:
Tem misiricórdia! Vai acunticê o maió castigo da rigião e pode inté trazê um castigo pa nóis tudo. Minha mãe tá buchuda e cum desejo. E pidiu o meu pai mode rancá a língua do “Curimbão Tatá”, o pêxe de istimação de São Francisco de Assis.
Foi o maior aranzel e aquela correria. Uma pega o terço, a outra uma imagem e uniram-se á Amélia e logo se ajoelharam e:
Valei-me meu Deus! Vai sê uma tragédia! São Francisco vai iscumungá nóis tudo! É o pocalispe! Fim do mundo!
Jeremias apoitou a canoa lá no meio do rio e o logo o intrépido Biguá assenta a na proa e:
Meu nobre Jeremias! Vejo que estás preocupado e tens uma tarefa muito difícil!
Agitado o Jeremias responde:
Sim! Meu amigo Biguá! Me ajuda a incontrá o “Curimbão Tatá”. A Ambrósia tá buchuda e com o desejo de cumê a língua do peixe de istimação de São Francisco. E eu num quero vê meu fio nascê cum a boca aberta e mais seco que graveto.
O Biguá para não assistir a tragédia, logo se prontifica:
Calma! Jeremias! Vamos procurar o “Curimbão Tatá!”
O que não acontecer é o castigo de nós todos. São Francisco é bom, mas, não vai perdoar.
Os dois se atiraram na água e não demorou muito e eles surgiram com o “Curimbão Tatá” nos braços. Com os olhos arregalados e apavorados.
E lá vem o Jeremias com o “Curimbão Tatá”, nos braços e:
Tá aqui! Seja o que Deus quisé! Vô tirá a língua do “Curimbão Tatá” e esse desejo vai iscafedê. Mais meu fio num vai nascê cum a boca aberta e nem seco cumo um graveto. E dêxa o castigo vim.
Quando ele arrancou a língua do “Curimbão Tatá”, o coitado do peixe só fechou os olhos, ficou estrebuchando no chão e morreu. As rezadeiras entraram em polvorosa e a Maria:
Ó meu Deus! Tem dó de nóis! Vai tê castigo e praga!
São Francisco vai ficá brabo e vai xingá todos nóis!
E as três em pranto:
“Curimba, Curimbinha, Curimbão
Abre os zóio e alevanta do chão
São Francisco vai ficá furioso
E nóis vai pa dibaxo do torrão”
E foram repetindo por várias vezes e a fé foi tanta que o “Curimbão Tatá” foi abrindo os olhos, se mexendo, deu um sorriso e tchibum...dentro d’água.
Minutos depois, São Francisco chega rodeado de animais e pássaros. O Bem-te-vi já havia dito que não viu, o Tatu disse que estava dentro do buraco, ele se aproximou das rezadeiras e:
Minhas fiéis rezadeiras, vocês viram o meu estimado Curimbão Tatá?
Naquilo o “Curimbão Tatá aparece sobre as águas para a alegria de São Francisco, que ficou todo contente e:
Meu Curimbão Tatá! Que saudade de você! Meu peixe de istimação! Eu já ia te procurar em outro rio! Por onde andavas?
“Curimbão Tatá” deu um salto numa alegria! E:
Meu nobre São Francisco! Estava nas profundezas, fazendo companhia aos outros peixes!
As rezadeiras ao ouviu o peixe falar, desmaiaram e São Francisco as benzeu e elas se levantaram.
Foi uma satisfação, as rezadeiras ficaram felizes, a Ambrósia realizou o seu desejo e o seu filho nasceu saudável. O Jeremias foi ao cartório da corrutela e registrou o filho por nome de Francisco Jeremias Ambrósio de Assis, pois, ele nasceu justamente no dia de São Francisco
Assis, dia 04 de outubro. E dizem que no dia do batizado, a passarada na sinfonia matinal, sobrevoou a palhoça e a bicharada num alvoroço magistral, reverenciou ao filho de Jeremias e Ambrósia.
Nada mais justo!
A paz reina às margens do Velho Chico e nas noites de lua cheia, “Curimbão Tatá” vai até a beira da palhoça do Jeremias pra sentir a felicidade da sua família.
Tudo terminou bem, mas que foi um alvoroço...foi!
Dizem que tem mais três moças grávidas às margens do Velho Chico. Será que elas vão sentir o mesmo desejo? Se for, coitado do “Curimbão Tatá!”
Tudo se resolve onde a calmaria das águas transcende.
E você? Quer morar às margens do Velho Chico?
Quer? Eu já sabia!
Histórias do Velho Chico amado e adorado!
Nilton Silveira
Recém-chegados de uma grande cidade, os dois jovens entusiastas relembram os tempos da infância vivida na pequena propriedade de seu Zeca, o avô viúvo que os criara. Órfãos de pai e mãe aos cinco e seis anos, respectivamente, nesse lugar eles aprenderam a cultivar a terra e a cuidar dos animais. Da mesma forma, recordam a fase da inocência, quando, embora já ansiassem por fama e fortuna, brincavam montados em cavalos feitos de galhos de árvores, corriam pelos campos e tomavam banhos de lagoa.
A escola onde estudavam, situada em vilarejo próximo, também traz gratas recordações. Aliás, foi lá que, pela primeira vez, ambos assistiram a um programa de televisão. A novidade os deixou tão fascinados que, como não dispunham de energia elétrica no rancho em que residiam, insistiram para que o avô lhes comprasse um aparelho movido a pilhas. Por conseguinte, satisfeito tal pedido, em todos os finais de tarde, após cumprirem as tarefas habituais, assistiam à programação dos raros canais que conseguiam levar a imagem àquele sítio distante. De modo que, no decorrer do tempo, empolgados com as oportunidades proporcionadas nos grandes centros de convergência de atividades comerciais, culturais, etc. e impulsionados pela propaganda, tão logo cresceram, os dois perderam ainda mais o gosto pela simplicidade reinante no espaço rural e decidiram estudar numa zona de expansão urbana.
Hoje, a fim de convidarem o avô para a festa de formatura, os irmãos retornam ao antigo lar após galgarem todos os graus acadêmicos. Fizeram tecnologia, bacharelado, licenciatura, especialização, mestrado e doutorado; enfim, tudo o que os torna altamente qualificados na profissão abraçada.
Assim sendo, exprime-se um deles, entusiasmado e num linguajar diferenciado para seu Zeca:
Pois é, vovô... Quem diria, não é mesmo? E pensar que nós dois, seus netos criados na roça, conseguimos nos tornar doutores em Ciências Agrárias.
― Munto bem, meus neto; mais o que vem a sê esse trabaio? Qué dizê o quê?
― É simples, vovô: a Agronomia envolve as Engenharias Agronômica, Florestal, Agrícola e de Pesca. E o que é melhor: tudo leva a crer que vamos ficar ricos, vovô. Muito ricos! Pois optamos pela aplicação de todo o nosso conhecimento no fabrico de aguardente e no ramo da fumicultura.
― Essa tar de aguardente é pinga, né?... Bão, se é, entonce eu inté cunheço. Mais fumicurtura, o que vem a sê esse treco, sô?
― Ora, vovô, consiste no cultivo do fumo! Nós prestamos serviços para grandes empresas fabricantes de cigarros e, promovendo um maior consumo de bebidas alcoólicas, também representamos importantes distribuidoras de cachaça, entendeu?
― Ah, agora tô intendeno. Mais pruquê oceis num pranta arface, cove, mandioca, repoio? Também pudia sê arrois,
fejão, brinjela, mio... E o que é muito importante: tudo curtivado com adubo naturar, sem nenhuma peçonha que possa dá mar resurtado. Essas coisa, sim, é que dá sustança nos viventi que passa fome, meus fio.
― Que nada, vovô! Isso tudo é bobagem. O fumo e as bebidas alcoólicas são mais importantes e, como já dissemos, vamos nos encher de dinheiro, meu velho. Imagine, nós tiraremos a barriga da miséria! Então, o que acha disso, seu Zeca?
― Ih! Continuo não sabeno nadica do que oceis fala! Mais tá certo, meus neto; se oceis acha que tá bão assim, quem sô eu pra contrariá? Afinar, inda que um dia possa dá c’os burro n’água, todo o viventi é livre pra fazê o que bem entendi da própia vida, né? Mais eu juro: se subesse que oceis gostava tanto dessas porquera e quiria impanturrá o panduio, eu tinha curtivado só fumo proceis cumê quando era pirraio; e, além de bufunfa de paper e moeda como doçura depois da boia, tinha sirvido a marvada pinga de refresco pra compretá de inchê o bucho.
Os rapazes se entreolham assustados, mas acabam por se aliar ao avô, que, tão logo diz o que pensa, solta uma sonora gargalhada e, esperançoso de que sobrevenham novas e auspiciosas ideias, invita-os, carinhosamente, a matarem a sua escomunal saudade das maviosas vivências de outrora, nas quais, libando toda ordem de manjares e partilhando a mesma área de influência e atuação nas verdejantes sebes do domicílio, atuavam ditosos e...
Epa! Epa! Alto lá! Como observador secreto desta narrativa, sem querer me intrometer e já me intrometendo, ouso dar minha opinião de defensor da encantadora caipirice fluente no Brasil. Portanto, peço desculpa, mas,
tentando preservar a tradição, devo frisar que, embora na exposição dos fatos tudo tenha transcorrido nos conformes, existe um senão. Logo, cabe destacar que, transmitindo a oralidade de sua cultura, seus costumes e sua história, o que o velho Zeca disse aos netos foi:
Meus amô do vovô, pra matá a baita sodade que sinto d’oceis nos tempo de antanho, bamo se abancá no laranjá. Lá nóis treis proseia facero e, ovindo o arruio dos beja-frô, podemo tomá um chá de mate adoçado com rapadura e saboreá pãozin de quejo arrecém-saído do forno à lenha.
E, diga-se de passagem, no devido tempo, o Amor venceu e, ornado por corredeiras e lagoas, viceja maravilhosamente por entre infindáveis semeaduras de hortaliças, flores e frutos.
Mas voltando à vaca-fria e agradecendo a colaboração do Observador Secreto , também vale lembrar que, além de tudo, reza a lenda que o desenvolvimento da lavoura ocorre sob as bênçãos de Saci-Pererê e de uma falange de outros beneméritos entes da cultura popular brasileira, os quais se fazem magicamente visíveis diante de quem neles crê; assim como, por ingênua gaiatice, assombram visitas incrédulas e/ou pretensamente destemidas, o que faz com que, por ocasião das ações e reações destas últimas, seu Zeca, igualmente brincalhão, levante os braços e, às gargalhadas, grite aos quatro ventos:
Se escafeda, meus cumpadi e minhas cumadi do nosso roçado! Tampa as fuça, que, dispois do cagaço, mais arguém acaba de se borrá nas carça!... Bão, dizem puraí que isso podi inté adubá a prantação; mais, óia, deusolivre, a inhaca aqui tá di matá!
OminifãdeMazzaropi
Olivaldo Júnior
Parte I: Saudade de minha terra
Juquinha era um menino de dez anos e meio que amava o bom e eterno Amácio Mazzaropi, ou, para simplificar a coisa, apenas Mazzaropi. Nascido em nove de abril de 1912, em Taubaté, no interior de São Paulo, esse comediante foi a maior estrela do cinema nacional, deixando inacabado um longa-metragem ao falecer em 13 de junho (bem no Dia de Santo Antônio!) de 1981, em São Paulo, Capital. Mazzaropi!... Só de ouvir esse nome a pele de Juquinha se arrepiava toda, e seus olhinhos brilhavam! Juquinha, cuja aparência lembrava a de seu avô paterno, Seu Juvenal, eternamente à sua volta, que tinha os cabelos pretos, a pele clara e os olhos também pretos, bem vivos para a luz da vida. A mesma que, nas noites de inverno, no sítio que o avô conservava, abrigava as famosas noites de cinema, com pipoca e… Mazzaropi!
Criador de galinhas e plantador de verduras, Seu Juvenal tocou o seu sítio enquanto teve forças para pegar na enxada e extrair da terra as delícias que o chão nos dá. Delícias que, com tantos agrotóxicos, nem sempre nos fazem tão bem, mas, com as verduras do avô de Juquinha, não tinha disso: ele conservava a terra, a fertilidade do solo com a legítima bosta de vaca e o mais perfeito cocô de galinha, tudo isso aliado à composteira, em que deixava fermentar um apanhado de folhas e de restos de cozinha, como cascas de legumes e de frutas, borra de café e outras
coisas, tudo para que a terra continuasse a ser aquela em que, se plantando, tudo dá. Caminha!
“De que me adianta viver na cidade / Se a felicidade não me acompanhar / Adeus, paulistinha do meu coração / Lá pro meu sertão eu quero voltar”, cantavam Tonico e Tinoco numa dessas plataformas de streaming, no apartamento de Dominique e Dorinha, pais de Juquinha, quando o celular tocou. Apreensivos, pois Seu Juvenal estava internado, Dominique o atendera.
Alô?... disse o pai de Juquinha ao telefone. Era do hospital. Entendi… a voz já embargada na garganta.
Vou falar com a Dorinha e o meu filho Juca, a gente já vai para aí desligou o telefone. Do quarto, atrás da porta, Juquinha ouvira tudo e, antes que seu pai o procurasse, correu até a cama e afogou o choro em almofadas. Seu avô havia partido, não estava mais entre eles. Não, nunca tinha perdido ninguém, mas perdia alguém agora. Choro, lágrimas, revolta, ficou pensando no quanto gostava do avô, mas não lhe tinha dito. As coisas que deixamos de dizer… Quem plantaria com ele as verduras mais verdes desse mundo de Deus? Quem lhe contaria dos causos do tempo de infância? E os filmes do Mazzaropi, quem os assistiria com ele? Filho, precisamos conversar… e os dois choraram.
Parte II: Tristeza do Jeca
O féretro correu por conta da Prefeitura Municipal de Candópolis, que reconheceu em Seu Juvenal, viúvo há uns cinco anos de Dona Cândida, um perfeito homem da terra, cidadão que preza e que, acima de tudo, zela pelo bemestar e continuação dos costumes que nos fizeram chegar ao que somos hoje: homens e mulheres de bem.
O Céu recebe hoje não um mero homem, mas um anjo novo. Um homem que, além de filho, de pai e de avô, foi companheiro de todos nós. Pela alma boa desse ser de luz, mesmo o momento sendo triste, peço a todos uma salva de palmas e, atendendo ao Excelentíssimo Prefeito Municipal de Candópolis, a multidão que acompanhava o sepultamento aplaudiu o avô de Juca, nosso Juquinha, cópia cuspida e escarrada de seu avô, um Jeca Tatu consciente de seu valor, o mesmo que deveria ter todos os homens do campo.
Ao longe, um violeiro cantava, soluçava seus versos, como se os sonhos de todo mundo se fizessem ouvir no que ele tocava. Tocava Tristeza do Jeca.
Juquinha, após o enterro, com flores invisíveis em torno de seus pés, sentou-se numa lápide, joelhos apoiando o queixo, lábios para baixo, não sabia ainda dimensionar o quanto sentiria falta do avô. Lembrava-se dele como alguém que nunca iria morrer. Mera ilusão, todos morremos. Já olhou a natureza? Nada permanece, tudo passa.
Vamos, filho? Está na hora… e as mãos fortes do Seu Dominique seguravam com ainda mais força a do seu filho, o Juca, que não parava de pensar no avô, o sol se pondo no horizonte em flor, como que se despedindo do velho Juvenal.
Pai, onde o vô foi morar, também escurece?... e uma lágrima escorreu do olhar daquele homem que nem sempre valorizara as coisas do pai.
“Nestes versos tão singelos / Minha bela, meu amor / Prá você quero contar / O meu sofrer e a minha dor”, entoava
o violeiro a canção mais dolente que Juquinha conhecia. Era a Tristeza do Jeca, ainda ecoando na tarde, onde uma sabiá, emudecida, olhava as pessoas indo embora.
“Ainda hei de aprender a tocar viola!...”, pensava com seus botões nosso Juquinha. Nem que fosse em memória de seu avô, que, assim como ele, era fã de… Ah, é claro, Mazzaropi!
“Nesta viola eu canto e gemo de verdade / Cada toada representa uma saudade”... E os versos de Angelino de Oliveira introduziam naquele jovem, menino ainda, toda a caipirice do querido Jeca Tatu que fora seu avô. Assim, Juquinha, seu (con)descendente, seria o Jeca Tatuzinho da vez. Podia isso? Podia! E ele, assim, o seria.
Parte III: Deus e eu no sertão
“Marmelada de banana / Bananada de goiaba / Goiabada de marmelo”, e todos no carro sabiam de cor a letra daquela música. Estavam indo para o sítio do avô, Dominique, Dorinha, Juquinha e seus primos, José e Janjão. Tristes, mas, como ainda eram crianças, ora se calavam, olhos soltos no infinito, ora cantavam. “Sítio do Pica-pau Amarelo / Sítio do Pica-pau Amareeelo”, e a viagem prosseguia rumo à casa do avô, Juvenal da Silva, não mais do que isso, dizia a Certidão de Nascimento, carcomida pelo tempo, laureada de verdade. A relíquia de um homem.
Chegamos. Desçam, meninos, que a tia Dorinha e eu vamos ver a casa. Não vão muito longe, a gente fica preocupado, hein! Voltem logo! e os meninos desceram, encaminhando-se direto para o porão, onde o avô gostava de guardar quinquilharias do tempo do Onça,
como se costumava dizer. O que haveria naquele porão?
Mistério…
Porém, antes de chegarem ao porão, passaram pela porta da igreja, na verdade, uma pequena capela que guardava uma imagem de São Benedito com o Menino Jesus. Que beleza de santo! Juca sabia pouco dele, mas gostava de sua imagem.
Vão indo, vão indo, já, já, eu vou disse Juquinha aos primos, já entrando na nave, isto é, no rascunho de nave, tão pequena que era, daquela igreja de roça. Pequena, mas com uma grande incumbência: lembrar-nos da fé. Foi quando um vento rasgou o restante de pano que cobria as janelas, e um anjinho soprou ao pé do ouvido de Juca uma nobre missão: “Mazzaropi”… E, mesmo sendo criança, Juquinha pegou a intenção dessa ideia, saindo correndo a se juntar com seus primos, para, juntos, fazerem sua “noite dos sonhos”!...
Benedito e Jesus, lá no alto, no altar, perfumavam o ar com mil pétalas brancas e amarelas de roseiras do Céu. Não sabiam que o tempo tinha tanto sorriso ainda preso nos lábios, tanto abraço guardado, tanto sonho sem som, enjaulado, e tratavam de serem os dois colibris pela fé.
“Deus e eu no sertão / Deus e eu no sertão”..., e as velas se acenderam na igreja. Amém.
Parte IV (Final): Casinha pequenina
Os pais, Seu Dominique e Dona Dorinha, tinham recebido um bilhetinho, na verdade, um convite, em que os meninos indicavam o porão como sendo o palco do grande espetáculo da noite. “Ah, mas o que os meninos estão aprontando?”, indagavam-se meio que percebendo a
peraltice dos três. “O que estariam armando?...”, e ficavam a confabular enquanto o fogão a lenha resfolegava e uma chaleira de água quente acordava, sequiosa de ser outra vez o que fora: útil.
Senhoras e senhores, respeitável público, queiram entrar! dizia José à porta do porão, os tios entrando e se sentando entre os caixotes.
Quem quer pipoca? Quem quer pipoca? gritava Janjão, entregando-as para os convidados. Mas e Juquinha? Onde estaria o “danado”?
Mamãe, papai, atenção! e Juquinha apareceu numa espécie de palco, onde, atrás dele, uma tela improvisada se via. Era a tela em que o avô projetava os filmes do Mazza, o bom e eterno caipira, para os netos e crianças da vizinhança. Nosso avô não está com a gente. Ele foi embora. Lá no Céu, onde é melhor, pra onde iremos algum dia, ele já deve estar plantando. Então, quando chover, daqui um tempo, deverá ser ele aguando as plantas… e os primos e seus pais, disfarçando as lágrimas, viam no Juca um poeta. Mas não essa noite. Hoje, meu avô deve estar junto de nós de algum jeito afinal. Ele, que amava o Mazzaropi, deve sentir saudade de ver o que ele mais gostava: os filmes desse Jeca Tatu. Então, meus primos e eu preparamos uma sessão como a que o vô gostava de preparar. Mazzaropi!
Na tela, vivendo a personagem Chico, ao lado de Geny Prado e grande elenco, Amácio Mazzaropi vivia mais um de seus sonhos cinematográficos, fazendo sonhar com ele uma legião de fãs e de minifãs que, sem saberem, eram Jecas também.
Por lá, mais ao fundo da sala, camisa aberta no peito, calça de brim pela perna, enxada brilhante, de estrelas, o avô de Juquinha assistia à sessão. Com um baita orgulho dos netos, ainda mais de Juquinha, que organizara para os pais um bom momento de amor. Amor que um Jeca que é Jeca conserva em seu peito: o amor pelos seus.
“Tu não te lembras da casinha pequenina / Onde o nosso amor nasceu / Tu não te lembras da casinha pequenina / Onde o nosso amor nasceu / Tinha um coqueiro do lado / Que coitado, de saudade, já morreu / Tinha um coqueiro do lado / Que coitado, de saudade, já morreu”, e os primos, saudosos, ao lado de Dominique e Dorinha, choravam. Mal sabiam da presença do avô, recentemente partido, e, mais ao lado, do Mazzaropi também.
Asasdeumapaixão
Paulo Ismar Mota Florindo
Mari era uma garotinha muito esperta. Estava aprendendo a ler e gostava de histórias com bichinhos. Quando não entendia algo, pedia para sua mamãe ou seu papai explicarem melhor sobre o assunto. Porém, ela queria saber mais detalhes acerca dos insetos, por isso pegou um livro na biblioteca para ler nas férias. Foi assim que Mari ficou sabendo bastantes coisas sobre as borboletas e mariposas, seus preferidos. De tanto que gostou do exemplar, o devorou rapidinho, se esforçando para aprimorar a leitura. No segundo ano não haveria a molezinha da série inicial.
Esse gosto pelos lindos bichinhos com asas a fez procurar pelos insetos no pomar de sua casa, que ficava em um sítio no interior do município. Ali, naquele aprazível local, seus pais tiravam o sustento da família. Produziam frutas de maneira orgânica para fabricação de geleias artesanais.
Mari estudava em uma escola rural localizada no distrito de riacho bonito, alguns quilômetros a leste da propriedade da família.
Por ser apaixonada por borboletas e mariposas Mari escolheu uma brochura que explicava tudo sobre os insetos que, além de bonitos, são muito importantes para a natureza e a agricultura de subsistência como a praticada pelos pais de Mari. No livrinho ela aprendeu que as borboletas e mariposas ajudam a natureza a produzir frutos
que alimentam pessoas ou auxiliam o nascimento de novas árvores nas matas nativas.
Após a leitura Mari não parou de procurar borboletas e mariposas para identificar o nome e a função do inseto na natureza. Sua mãe observou o estilo aventureiro da filha, com botas e chapéu de palha e perguntou se a menina estudaria para ser especialista em bichos que voam. Dona Estela não sabia que se chamava entomologista a pessoa entendida no assunto e Mari ignorava o que seria um especialista.
De tanto interagir com os insetos Mari adquiriu um estranho poder. A sapeca menina conseguia se comunicar com as borboletas e mariposas, entendendo o que elas diziam e as borboletas e mariposas também conseguiam compreender o que Mari falava.
De todas as espécies que voavam pelas redondezas uma em especial chamou a atenção da pequena aventureira.
Mari conheceu uma bruxinha que não queria mais voar. Essa mariposa também entendia o que outras pessoas falavam.
Mari se afeiçoou muito com a amiguinha marrom e começou a chama-la de Brow, devido a sua cor mais escura. As cores, juntamente com os números, foram as primeiras palavras que aprendeu no cursinho de inglês que era ofertado na escolinha rural graças a um convênio da prefeitura com uma universidade federal da região.
Das conversas com Brown Mari ficou sabendo que a mariposa se sentia muito triste por ser chamada de bruxa. Outro dia tentaram matá-la por causa de sua aparência.
Onde já se viu isso, amiga, me chamarem de bruxa e ainda quererem acabar com a minha vida. Por isso não saio mais desta árvore.
Mari lamentou muito o acontecido e disse não entender essas coisas que as pessoas inventam para atacar a natureza. Para tentar consolar a amiga tristonha, a menina contou que sabia da importância das borboletas e mariposas para o meio ambiente. Muitos insetos iguais a ela são muito úteis para manter o equilíbrio da natureza.
Outro dia, Mari levou o seu livrinho sobre mariposas e borboletas e o mostrou para Brown.
Olha aqui, Brown, os humanos te chamam de ascalpa dorata... acho que é assim o teu nome. Recém tô aprendendo a ler e estas palavras são complicadas.
Brown não se fez de rogada e corrigiu Mari:
Guria, eu ouvi uma mulher estudiosa me chamar de Aschalapha odorata. Segundo ela, este é o meu nome científico. Ela também disse que sou conhecida por mariposa-bruxa neste momento Brown calou-se e começou a soltar escamas por todos os lados.
Mari tentou consolar a amiga:
Oras, oras, sua bobona, deixa de choro e vai voar por aí, procurar um par para ti. Eu sei que você não tem muito tempo neste mundo. Você tem que ter filhotinhos para manter a fauna e a flora equilibradas. Tá tudo aqui neste livro que eu tô lendo.
Após esta conversa, Mari foi conversar com sua vovó que também morava no sítio, para tentar mudar o pensamento
da mulher que não tinha muito conhecimento sobre ecologia. A vó Cota acreditava que a mariposa bruxa atraia coisas negativas. Mais uma vez, Mari pegou o seu livrinho e mostrou para sua avó que, na verdade, as mariposas não oferecem riscos às pessoas e por voar à noite, sua coloração escura lhe permitia se camuflar no ambiente e se proteger dos predadores.
Quase ao fim das férias, Mari tinha terminado de reconhecer todas as borboletas e mariposas que encontrou durante sua expedição caseira. Para dar sua missão por concluída a garota foi conferir como estava se sentindo a sua amiguinha. Chegando no refúgio da Brown, Mari não a encontrou. Levou um susto e passou a procurá-la, chamando pelo seu nome.
Depois de perder as esperanças, ouviu a sua amiga chamala. Ao longe, avistou uma alegre e divertida mariposa voando ao lado de outra companheira, que deveria ser seu companheiro.
Mari ficou muito feliz, imaginando que a natureza manteria o seu ciclo. Em breve Brown colocaria seus ovinhos em alguma folha de árvore e mais tarde se transformariam em lagartinhas.
Mari folheou um pouco o seu inseparável livro e chegou na página em que mostrava que as lagartas passavam por uma metamorfose e se transformavam novamente em uma linda mariposa.
Mas, como as férias não são para sempre, havia chegado o dia de voltar para a escola. No ônibus escolar, junto à janela, Mari viu uma revoada de borboletas no campo e lembrou da amiga que fez durante as férias. Recordando
os ensinamentos do livro, imaginou que em breve poderia encontrar uma filha ou filho de Brown, seguindo os passos da mãe, ajudando a natureza a se manter viva e bonita.
Já em sala de aula, a nova professora começou a perguntar aos alunos sobre atividades realizadas durante as férias, em especial à Mari que era sabido ser filha única, rodeada por adultos.
Mari, você não se sentiu muito sozinha, sem amiguinhos para brincar no sítio?
Não me senti só, professora, quem ama a natureza, nunca está sozinha, o que não falta são amigas e amigos de asas em um pomar que nem o lá de casa.
A professora sorriu satisfeita, olhando para a janela, enquanto piscava o olho para uma Aschalapha odorata pousada no beiral da janela. A mariposa retribuiu o gesto, balançando as asas, em sinal de aprovação.
Thais Castilho
Afoita, a menina chegou para passar férias na fazenda. Queria aproveitar todos os instantes naquele lugar que tanto amava antes de voltar para casa e retornar às aulas.
Logo que desceu do carro foi encontrar o matuto que trabalhava na fazenda.
Ele contou a ela sobre a novidade. A vaca tinha dado a luz a um lindo bezerrinho.
Mas, cuidado! Advertiu o matuto. A vaca ainda amamentava o bezerro e a recomendação era observá-los apenas de longe.
A menina não deu ouvidos a ele...
Foi brincar no pasto e pasmem! De facão em punho partiu para cima da vaca na tentativa de ver o bezerrinho de perto.
Não demorou muito e a vaca correu em sua direção.
A menina só teve tempo de fazer o mesmo. Esbaforida, lançou o facão ao léu e embarafustou-se por entre os matos para fugir da vaca. Arranhou-se toda, mas dor nem sentia, pois o pavor da vaca a dominava.
Até que chegou a uma encruzilhada com a vaca em seu encalço. Ou pulava em um buraco ou pulava uma cerca.
Optou por pular no buraco profundo e esfolou-se toda durante a queda, mas pelo menos ali estava segura.
Gritou por ajuda e logo a mãe apareceu. A plateia se formou do outro lado da cerca, aguardando o resgate da menina. A vaca permanecia impassível à beira do buraco. Bufava de raiva, olhando fixamente para a menina lá embaixo. Tinha contas a acertar. Nada a fazia arredar o pé dali.
O jeito foi chamar o matuto, que com jeitinho e voz mansa, conseguiu convencer a vaca de desistir da menina.
Tiraram a menina do buraco. Assustada e envergonhada, a menina não queria conversar com ninguém.
O matuto, com os olhos voltados para o chão e balançando a cabeça, repetia baixinho:
Não foi por falta de aviso... Não foi por falta de aviso...
Nesta hora, a menina caiu no choro, mas aprendeu a lição. Nunca mais deixou de dar ouvidos ao que o matuto dizia.
Thiago Valeriano Braga
Lá vem, já chegando, o personagem de todas as épocas (...) Encanto das crianças e nós, adultos. Um tatu, cheio da melhor graça, por nome Jeca. Ele ė caipira, ele é bonzinho, ele é "tudo de mais um pouco" para adoçar a nossa prosa (de hoje).
Parece simpático, pois, até nos momentos difíceis. Está lá, aqui e acolá. Ė coisa da roça e é coisa fina, contrariando, deveras, outros motivos para aqui se apresentar: conto do conto para outros contarem.
Não passa despercebido "por onde passa", na sua pressa de sempre, na certeza de chegar a lugar nenhum. É marrom, cor da terra, que rola, sem se importar aonde pode bater. Sua casa é uma casa "sem eira nem beira" de "teia" no teto. Por esse e outros momentos, tornou-se, conhecido, mundão afora, alcançando páginas e páginas de alguns livros, cujo branco, "a sua espera", não poupa comentários com boas palavras. Imagem arabesca.
Jeca Tatu, a figura simples, do interior, não querendo, mas conseguindo chamar atenção - de leitores e admiradoresao longo de 100 (cem) ditos anos. Ficaríamos horas, presos na narrativa, a fim de brindarmos essa criaçãozinha do século 1800 e tanto. Brasileiro da gema♡.
Para a literatura nacional, não sai de moda, portanto, criou raízes no imaginário popular. Marca, com leveza, a nossa infância, dentre risos e brincadeiras, lembrados agora.
Folguedos maravilhosos. O "Jeca" parece estar no nosso meio, apto a contar um "causo", uma anedota, uma curiosidade. A leitura amiga, agradável e inofensiva {sem incúria}. Desde ontem, até amanhã, por todo o sempre. Cativa-nos. Seria, quem sabe, a promessa de uma Educação melhor☆¿.
Lembremos da vida na roça! Simples, mui das vezes sem conforto, mas com “arrufos” de um dia feliz, à espera da noite (a cair por entre as árvores rodeando o casebre).
“Jeca”, a meu ver, não é sinônimo de ignorância. É, talvez, de pouco ou nenhum estudo letrado , no entanto, “vivência” e algum entendimento acerca da realidade. Dialeto próprio, quem sabe. O chamado e aceito “caiporês” ou “caipira”, no seu linguajar, nos seus costumes. Lobato, sem dúvidas, soube descrever a “figura bem posta” que, a toda sorte, leva-nos a crer na simplicidade não como “bobagem”, todavia, “inocência” digna de profusão✓.
Tatuzinho?! Todo esse enroladinho, de corre para lá, querendo por não querendo voltar, à sua morada, exibindo, timidamente, sua parca presença. No meio rural, “ele existe”, pelo menos na estória, do zeloso caipira ou dos seus, sempre como pano de fundo, sobremaneira. Para mim, serenas divagações.
Opa, ele nāo ė tatu, ele é um homem para efeito de conversa!
Volte por mais vezes Jeca!!!
Vivaaciência
William R. F. Ramires
Farei cento e quinze anos, quem olha para mim não acredita. Esbanjo saúde, vendo alegria. Ainda me lembro quando compreendi a virada de chave na minha vida. Era moleque, jovem, aprendendo um ofício, minha memória não falha.
Lembro daqueles tempos como se fosse hoje. O ponto da mudança continua vivo em minhas lembranças, para mim, parece que foi ontem e ainda não acredito que faz cem anos.
Faltavam poucos dias para completar meus tenros quinze anos, naquela época acompanhava um doutor, médico. Eu era aprendiz de medicina, eram outros tempos, os estudos começavam na prática.
Acompanhava aquele especial doutor em visitas a pacientes pelo interior, sua dedicação e generosidade me cativava. Devo muito de minha longevidade àquele inesquecível e simpático senhor.
Além de gostar muito de acompanhar o médico, ainda havia meu fascínio pelos caipiras que viviam em suas fazendas, cultivando a terra e produzindo o alimento que abastecia toda a população da capital. Cuidar do bem-estar dessa gente era fundamental para que nosso alimento tivesse a qualidade e variedade que só eles sabiam gerar.
Havíamos acabado de fazer uma visita a um italiano, foi quando o doutor notou um sujeito deitado todo desmilinguido no chão. Estava com uma péssima aparência, bem amarelado, magro, só pele e osso, com profundos olhos e com cara de desanimado.
O doutor não pensou duas vezes e foi ao encontro do desmantelado, amarelo e magro caboclo, na intenção de examiná-lo.
Lá conheci seu Jeca Tatuzinho.
O médico perguntou:
Seu Jeca, o que o senhor tem?
Sinto uma canseira sem fim, doutor, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito, que responde na cacunda.
Caro amigo, você sofre de ancilostomíase.
Anci… o quê?
Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita.
Essa tal maleita não é sezão?
Isso mesmo.
O doutor receitou os remédios adequados para aquelas enfermidades, do laboratório do nosso amigo Cândido Fontoura, um farmacêutico proeminente da época, que percebeu que a ciência era o futuro da longevidade do homem.
Aquilo mudou não só a vida do Jeca, como também a minha vida. Descobri os poderes da ciência. A medicina
estava fazendo mágica. E o caboclo doente foi o milagre que eu precisava ver para decidir meu destino definitivamente.
Na semana seguinte voltei com o doutor para ver a evolução de nosso paciente e para minha surpresa, o caboclo estava mais corado e recuperando sua força.
Os remédios receitados pelo médico foram de uma eficiência fantástica, os medicamentos do Fontoura realmente me impressionaram, se eu precisava de uma prova para definir minhas novas resoluções de vida, aquilo foi a elucidação que mais me marcou.
Virei médico.
Aqueles anos acompanhando o doutor em suas visitas foram fundamentais para mim, aprendi muito, muito mesmo. E me tornei um defensor dos remédios do laboratório Fontana. Se alguma coisa pode contribuir para minha longevidade, aí está a resposta.
Outro dia, presenciei uma conversa entre o doutor e o seu amigo Monteiro Lobato, ali pude observar o poder transformador da ciência.
Lobato falava de sua descrença na medicina e como mudou de ideia, passando a defender a ciência. Ele havia entendido que apenas partia de uma premissa de falta de conhecimento, e agora fazia questão de auxiliar e a conscientizar a população de nosso país, sobre o verdadeiro poder da medicina. O doutor ficou orgulhoso de ouvir aquilo e eu mais ainda, meu caminho estava traçado e meu objetivo era levar o conhecimento da ciência a todos e melhorar a vida deste meu povo brasileiro.
O doutor morreu, Lobato também nos deixou, acontece com todos.
Entretanto, quem viveu muito foi seu Jeca Tatuzinho, ainda acompanhei aquele matuto por anos, viramos amigos e ele sempre que podia, fazia questão de promover o bemestar, desenvolvendo e elucidando as questões de higiene para a população rural desse nosso Brasil.
Minha amizade com Jeca Tatuzinho, durou sessenta e cinco anos, foi uma longa e duradoura companhia.
Gostava de suas prosas e causos, e mais ainda da sua busca pela modernidade e vontade de aprender. Sua fazenda se desenvolveu de maneira singular, dava gosto de ver sua luta por uma agricultura em harmonia com a natureza.
Foi uma grande inspiração para mim. E a maior prova da eficiência e qualidade que a ciência pode proporcionar.
Acredite na ciência, seja cuidadoso, não abuse de nada e venho comigo, os cem anos não é mais nosso limite.
CONTOS CAIPIRAS
Os escritores Ana Carolina Nogueira Machado, Ana Richier, Carlos Franco, Célio D’Ávila, Daniel Salim, Eduardo Martínez, Fernando Dias AvilaPires, Gleybs Rodrigues de Almeida, Iteuane Casagrande, Jean Javarini, Jefferson Machado, Joana Ingledy Ferreira Dias, Luciene Balbino, Marjorie de Sousa Morato, Matile Facó, Mestre Tinga das Gerais, Nilton Silveira, Olivaldo Júnior, Paulo Ismar Mota Florindo, Thais Castilho, Thiago Valeriano Braga e William R. F. Ramires se uniram nesta antologia de contos para celebrar os 100 anos do Jéca Tatuzinho. O famoso personagem criado por Monteiro Lobato em 1924 e que se tornou um dos maiores sucessos editoriais do país.