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CAPÍTULO 4

Certa tarde, um mês depois, Dorian Gray estava reclinado em uma luxuosa poltrona na pequena biblioteca da casa de Lorde Henry, em Mayfair. Era, à sua maneira, uma sala muito encantadora, com seus painéis altos de carvalho escurecido, seus frisos cor de creme, seu teto de gesso em alto-relevo e seu carpete avermelhado coberto por longos tapetes persas com franjas de seda. Em uma minúscula mesinha de madeira, havia uma estatueta de Clodion30 e, ao lado dela, uma cópia de Les Cent Nouvelles31, encadernada para Margarida de Valois32 por Clovis Eve33 e salpicada com as margaridas douradas que a rainha havia selecionado para seu exemplar. Grandes vasos de porcelana azul com tulipas papagaio estavam dispostos sobre a prateleira acima da lareira e, através do delicado mosaico das vidraças das janelas, fluía a luz com tons de damasco de um dia de verão londrino.

Lorde Henry ainda não tinha chegado em casa. Por princípio, sempre estava atrasado, pois acreditava que a pontualidade era o ladrão do tempo. Por isso, o rapaz parecia bastante aborrecido, virando com dedos apáticos as páginas de uma edição ricamente ilustrada

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30 Claude Michel (1738-1814), conhecido como Clodion, foi um escultor francês. (N. do T.) 31 Considerada a primeira obra em prosa da literatura francesa, trata-se de uma coleção de histórias do reinado do Rei Filipe III de Borgonha, reunidas por Antoine de la Sale no século XV. (N. do T.) 32 Margarida de Valois, mais conhecida como Rainha Margot (1553-1615), foi uma princesa francesa da dinastia de Valois, que se tornou rainha consorte do reino de Navarra. (N. do T.) 33 Clovis Eve foi um encadernador francês da Renascença, ativo entre os anos de 1583 e 1633. (N. do T.)

de Manon Lescaut34, que encontrara em uma das prateleiras. O cerimonioso e monótono tique-taque do relógio Luís XIV irritava-o. Havia pensado em ir embora mais de uma vez.

Finalmente ouviu passos do lado de fora e a porta abriu-se. — Como você está atrasado, Harry! — murmurou ele. — Receio que não seja Harry, sr. Gray — respondeu uma voz estridente.

Ele olhou rapidamente ao redor e pôs-se de pé. — Perdão. Achei que... — O senhor pensou que fosse meu marido. Trata-se apenas de sua esposa. Permita que eu me apresente. Conheço-o muito bem por suas fotografias. Acredito que meu marido possui dezessete delas. — Não dezessete, Lady Henry. — Bom, dezoito, então. E vi-o com ele outra noite na ópera. — Ela ria nervosamente enquanto falava e observava-o com seus vagos olhos de miosótis. Era uma mulher estranha, cujas roupas pareciam ter sido desenhadas com raiva e vestidas no meio de uma tempestade. Estava sempre apaixonada por alguém e, como suas paixões nunca eram correspondidas, mantinha-se iludida. Ela tentava parecer exótica, mas apenas conseguia ser descuidada. Seu nome era Victoria e tinha realmente o vício de ir à igreja. — Isso foi na Lohengrin35, Lady Henry, penso eu. — Sim, foi na querida Lohengrin. Gosto da música de Wagner mais que de qualquer outra. É tão alta que se pode conversar o tempo todo sem que os outros ouçam o que estamos dizendo. O que é uma grande vantagem, não acha, sr. Gray?

34 Histoire du Chevalier Des Grieux et de Manon Lescaut (História do Cavaleiro Des Grieux e de

Manon Lescaut) é um romance escrito por Antoine Prévost e publicado em 1731. (N. do T.) 35 Ópera em três atos de Richard Wagner (1813-1883). (N. do T.)

A mesma risada nervosa e desconexa irrompeu de seus finos lábios, e seus dedos começaram a brincar com um longo abridor de cartas de casco de tartaruga.

Dorian sorriu e balançou a cabeça: — Receio não pensar assim, Lady Henry. Nunca falo durante a música — pelo menos, durante boa música. Quando ouvimos música ruim, porém, é nosso dever abafá-la na conversa. — Ah! Essa é a opinião de Harry também, não é, sr. Gray? Sempre ouço as opiniões de Harry por intermédio de seus amigos. É a única forma de conhecê-las. Mas o senhor não deve pensar que não gosto de boa música. Adoro-a, mas ela me amedronta. Acabo ficando romântica demais. Simplesmente idolatro pianistas — dois ao mesmo tempo, às vezes, Harry costuma dizer-me. Não sei o que há com eles. Talvez seja o fato de serem estrangeiros. São todos estrangeiros, não são? Mesmo aqueles nascidos na Inglaterra tornam-se estrangeiros depois de um tempo, não é? Algo muito sábio da parte deles, um grande elogio à arte. Torna-a um tanto quanto cosmopolita, não? O senhor nunca veio a nenhuma de minhas festas, não é, sr. Gray? Deve vir. Não posso pagar por orquídeas, contudo não economizo com estrangeiros. Eles tornam qualquer salão tão pitoresco. Mas aqui está Harry! Harry, vim procurar-lhe para perguntar algo — mas esqueci-me do que se tratava — e encontrei o sr. Gray aqui. Tivemos uma conversa tão interessante sobre música. Temos praticamente as mesmas opiniões. Não; acho que nossas ideias são muito diferentes. Mas ele foi extremamente agradável. Estou tão feliz por tê-lo encontrado. — Fico encantado, meu amor, muito encantado — disse Lorde Henry, erguendo suas curvadas e escuras sobrancelhas e olhando para ambos com um sorriso divertido. — Sinto muito pelo atraso, Dorian. Fui atrás de uma peça de brocado antigo na Rua Wardour e tive de pechinchar durante horas por ela. Hoje em dia, sabe-se o preço de tudo e o valor de nada.

— Receio que deva me retirar — exclamou Lady Henry, rompendo o silêncio constrangedor com sua súbita risada tola. — Prometi passear com a duquesa. Adeus, sr. Gray. Adeus, Harry. Vocês vão jantar fora, suponho? Também irei eu. Talvez os encontre na casa de Lady Thornbury. — Talvez, minha querida — disse Lorde Henry fechando a porta, enquanto ela, parecendo uma ave-do-paraíso que esteve a noite inteira sob a chuva, saía rapidamente da sala, deixando um leve odor de jasmim. Então, ele acendeu um cigarro e lançou-se no sofá. — Nunca se case com uma mulher com cabelos cor de palha, Dorian — disse ele depois de algumas baforadas. — Por que, Harry? — Porque elas são sentimentais demais. — Mas eu gosto de pessoas sentimentais. — Nunca se case, Dorian. Os homens casam-se por cansaço; as mulheres, por curiosidade; ambos se decepcionam. — Não acho provável que me case, Harry. Estou apaixonado demais. Essa é uma de suas máximas. Estou colocando-a em prática, como faço com tudo que me diz. — Por quem está apaixonado? — perguntou Lorde Henry depois de uma pausa. — Por uma atriz — disse Dorian Gray, enrubescendo.

Lorde Henry encolheu os ombros. — É um início bastante comum. — Você não diria isso se a visse, Harry. — Quem é ela? — Seu nome é Sibyl Vane. — Nunca ouvi falar dela. — Ninguém ouviu. Contudo, ouvirão um dia. Ela é genial. — Meu querido rapaz, nenhuma mulher é genial. As mulheres

são um sexo decorativo. Elas nunca têm nada a dizer, mas dizem-no encantadoramente. As mulheres representam o triunfo da matéria sobre o intelecto, assim como os homens representam o triunfo da mente sobre a moral.

— Harry, como pode? — Meu caro Dorian, é a verdade. Tenho analisado mulheres ultimamente, então devo saber. O assunto não é tão obscuro quanto pensei ser. Acredito que, atualmente, há apenas dois tipos de mulher, as comuns e as coloridas. As mulheres comuns são muito úteis. Se você quiser adquirir uma reputação de respeitabilidade, deve simplesmente convidá-las para a ceia. As outras mulheres são muito encantadoras. No entanto, cometem um erro. Maquiam-se para tentar parecer jovens. Nossas avós maquiavam-se para falar de forma brilhante. O ruge e a perspicácia costumavam andar juntos. Hoje em dia, isso não existe mais. Contanto que uma mulher possa parecer dez anos mais jovem que a própria filha, ela está completamente satisfeita. Quanto à arte da conversação, há apenas cinco mulheres em Londres com quem vale a pena conversar, e duas delas não são admitidas na sociedade. De qualquer modo, fale-me sobre sua garota genial. Há quanto tempo a conhece? — Ah! Harry, suas opiniões aterrorizam-me. — Esqueça-se disso. Há quanto tempo a conhece? — Há aproximadamente três semanas. — E onde a encontrou?

— Vou contar-lhe, Harry, mas não deve mostrar-se insensível. Afinal, nunca teria acontecido se eu não o tivesse conhecido. Você impregnou-me de um desejo incontrolável de saber tudo sobre a vida. Por vários dias depois que o encontrei, algo parecia pulsar em minhas veias. Sentado em algum banco do parque ou passeando pelo

Piccadilly36, acostumei-me a olhar para qualquer um que passasse por mim e a imaginar, com uma curiosidade louca, que tipo de vida levariam. Algumas pessoas me fascinavam. Outras enchiam-me de terror. Havia um extraordinário veneno no ar. Apaixonei-me por sensações... Bom, certa noite, por volta das sete horas, decidi sair em busca de alguma aventura. Senti que essa nossa monstruosa e cinzenta Londres, com sua miríade de pessoas, seus sórdidos pecadores e seus esplêndidos pecados, como você dissera uma vez, devia ter algo guardado para mim. Imaginava milhares de coisas. A mera sensação de perigo encantava-me. Lembrei-me do que você me dissera naquela maravilhosa noite em que jantamos juntos pela primeira vez, sobre a busca pela beleza ser o verdadeiro segredo da vida. Não sei o que esperava, mas saí sem destino em direção ao leste da cidade, rapidamente perdendo-me em um labirinto de ruas encardidas e desoladas praças sombrias. Por volta das oito e meia, passei em frente a um teatro, pequeno e vulgar, com enormes candeeiros flamejantes e cartazes espalhafatosos. Um judeu horroroso, portando o colete mais inacreditável que já vi em minha vida, fumava um charuto repugnante à entrada. Tinha os cabelos em cachos gordurosos e um imenso diamante brilhando no centro de uma camisa encardida. “Gostaria de um camarote, milorde?”, disse quando me viu, tirando o chapéu com um ar de majestosa submissão. Havia algo nele, Harry, que me divertia. Era tão monstruoso. Você certamente rirá de mim, mas entrei e paguei um guinéu pelo camarote próximo ao palco. Até hoje não consigo entender por que o fiz; mesmo assim, se não o tivesse feito — meu querido Harry, se não tivesse —, teria perdido o maior romance de minha vida. Vejo que já está rindo. Que desagradável de sua parte! — Não estou rindo, Dorian; pelo menos, não estou rindo de você. Mas você não deveria dizer o maior romance da sua vida.

36 Piccadilly Circus é uma famosa praça no centro de Londres, confluência de diversas ruas famosas da cidade. (N. do T.)

Deveria dizer o primeiro romance da sua vida. Você sempre será amado e sempre estará apaixonado pelo amor. Uma grande paixão é o privilégio das pessoas que não têm nada para fazer. Essa é a única serventia das classes ociosas de um país. Não tema. Há coisas extraordinárias guardadas para você. Isso é apenas o início. — Você acredita que minha natureza é tão superficial? — exclamou Dorian Gray, cheio de raiva. — Não, acredito que sua natureza é profunda demais. — O que quer dizer? — Meu caro rapaz, aqueles que amam uma única vez em sua vida são as pessoas realmente superficiais. Aquilo que elas chamam de lealdade, de fidelidade, eu chamo ou de letargia do costume ou de falta de imaginação. A fidelidade, em uma vida emocional, significa o mesmo que a coerência em uma vida intelectual — simples confissão de fracasso. Fidelidade! Devo analisá-la algum dia. Ela consiste em paixão pela virtude. Jogaríamos muitas coisas fora se não tivéssemos medo de que outros as recolhessem. Mas não quero interrompê-lo. Continue com sua história. — Bom, encontrava-me sentado em um horrendo e minúsculo camarote privado, em frente a um cortinado ordinário. Olhei por detrás da cortina e inspecionei a casa. Tratava-se de um estabelecimento barato, cheio de cupidos e cornucópias, parecendo um bolo de casamento de última categoria. A galeria e o fosso estavam repletos, mas as duas primeiras filas de assentos, muito encardidas, estavam praticamente vazias, e não havia nem sequer uma pessoa no que supus ser o que chamavam de balcões. Mulheres perambulavam com laranjas e cerveja de gengibre, e o consumo de amêndoas era estarrecedor. — Devia ser semelhante aos gloriosos dias do teatro inglês. — Exatamente igual, imagino, e muito deprimente. Comecei a me perguntar que diabos deveria fazer quando avistei o programa. Adivinhe qual era a peça, Harry!

— Imagino algo como O garoto idiota ou Burro mas inocente. Nossos pais costumavam gostar desse tipo de peça, penso eu. Quanto mais eu vivo, Dorian, mais acredito que o que era suficientemente bom para nossos pais não é bom o suficiente para nós. Na arte, como na política, les grand-pères ont toujours tort37 . — Essa peça é suficientemente boa para nós, Harry. Era Romeu e Julieta. Devo admitir que fiquei aborrecido com a ideia de ver Shakespeare encenado naquele buraco deplorável. Mesmo assim, de certa forma, fiquei curioso. De todo modo, decidi esperar pelo primeiro ato. Havia uma orquestra pavorosa, conduzida por um jovem hebreu sentado a um piano esganiçado, que por pouco não me afugentou, mas finalmente as cortinas foram erguidas e a peça começou. Romeu era um velho cavalheiro corpulento, com sobrancelhas escurecidas a rolha, uma trágica voz rouca e a silhueta semelhante a um barril. Mercúcio era quase tão ruim quanto ele. Era interpretado por um comediante barato, que lhe adicionara piadas próprias e parecia ser conhecido do público no fosso. Ambos eram tão grotescos quanto o cenário, que dava a impressão de ter saído de uma feira provinciana. Mas Julieta! Harry, imagine uma garota de apenas dezessete anos, com um rostinho semelhante a uma flor, uma pequena cabeça grega com cachos trançados de um cabelo castanho-escuro, olhos parecidos com poços violeta de paixão, lábios como pétalas de rosas. Ela era a criatura mais adorável que já vira em minha vida. Você me disse uma vez que a compaixão não lhe causava nenhuma emoção, mas que a beleza, a simples beleza, poderia levá-lo às lágrimas. Posso afirmar, Harry, que quase não podia ver essa garota por causa da névoa de lágrimas que surgiu em meus olhos. E sua voz — nunca ouvira semelhante voz. Muito baixa a princípio, com notas profundas e doces, que pareciam cair uma a uma nos ouvidos. Depois, tornavam-se um pouco mais

37 “Os avós nunca têm razão”, em francês. (N. do T.)

graves, soando como uma flauta ou um oboé distante. Na cena do jardim, adquiriu todo o êxtase trêmulo que se ouve pouco antes da aurora, quando os rouxinóis começam a cantar. Houve momentos, mais tarde, em que alcançou a paixão feroz dos violinos. Você sabe o quanto uma voz pode nos emocionar. Sua voz e a voz de Sibyl são duas coisas de que jamais me esquecerei. Quando fecho os olhos, posso ouvi-las e cada uma diz-me algo diferente. Não sei qual delas seguir. Por que não deveria amá-la? Harry, amo-a. Ela é tudo para mim nesta vida. Noite após noite, vou vê-la atuar. Uma noite é Rosalinda, na noite seguinte é Imogênia. Já a vi morrer na escuridão de uma tumba italiana, sugando o veneno dos lábios de seu amante. Vi-a perambulando pela floresta de Arden, na pele de um lindo menino vestindo calças curtas, colete e boné. Ela já foi louca e, levada à presença de um rei culpado, fez-lhe beber arruda e engolir ervas amargas. Já foi inocente, e as mãos negras do ciúme arruinaram sua graciosa voz. Já a vi com todas as idades e todas as indumentárias. Mulheres ordinárias nunca despertam nossa imaginação. Limitam-se à sua época. Nenhum fascínio jamais as transforma. É possível conhecer sua mente tão fácil quanto se conhece seus chapéus. É fácil encontrá-las. Elas não possuem nenhum mistério. Passeiam no parque pela manhã e tagarelam em chás à tarde. Ostentam seu sorrisos estereotipados e suas maneiras elegantes. São extremamente óbvias. Mas uma atriz! Quão diferente é uma atriz! Harry! Por que não me disse que a única coisa digna de amor é uma atriz?

— Porque amei muitas delas, Dorian. — Ah, sim, pessoas horrorosas com cabelos tingidos e rostos pintados. — Não menospreze os cabelos tingidos e os rostos pintados. Há um encanto extraordinário neles, às vezes — disse Lorde Henry. — Preferiria não ter lhe falado a respeito de Sibyl Vane.

— Você não poderia deixar de contar-me, Dorian. Durante toda a sua vida, você me contará todos os seus passos. — Sim, Harry, acredito que seja verdade. Não posso evitar contar-lhe tudo. Você exerce uma estranha influência sobre mim. Se algum dia cometesse um crime, viria confessá-lo a você. Você me compreenderia. — Pessoas como você — os obstinados raios de sol da vida — não cometem crimes, Dorian. Mas agradeço o elogio, mesmo assim. E agora diga-me... — alcance os fósforos para mim, como um bom menino. Obrigado — ...atualmente, quais são suas relações com Sibyl Vane?

Dorian Gray pôs-se de pé, com as faces coradas e os olhos flamejantes. — Harry! Sibyl Vane é sagrada! — Apenas as coisas sagradas merecem ser tocadas, Dorian — disse Lorde Henry, com um estranho toque de piedade em sua voz. — Mas por que você fica aborrecido? Suponho que ela lhe pertencerá, algum dia desses. Quando estamos apaixonados, sempre começamos decepcionando a nós mesmos e, depois, acabamos por decepcionar os outros. É a isso que o mundo chama de romance. De qualquer forma, você a conheceu, imagino. — Certamente que a conheci. Na primeira noite em que estive no teatro, o velho judeu horrendo veio até o camarote depois do fim do espetáculo e ofereceu-se para levar-me aos bastidores e apresentar-me a ela. Fiquei furioso com ele e disse-lhe que Julieta morrera havia centenas de anos e que seu corpo jazia em uma tumba de mármore em Verona. Acredito, baseado em seu olhar vazio de espanto, que ele teve a impressão de que eu bebera champanhe demais ou algo do gênero. — Não me surpreenderia. — Então perguntou-me se eu escrevia para algum jornal. Disse-lhe que nem sequer os lia. Pareceu-me terrivelmente desa-

pontado ao ouvir isso e confidenciou-me que todos os críticos de teatro conspiravam contra ele e que tinham todos sido comprados. — Não me admiraria se ele estivesse certo a esse respeito. Mas, por outro lado, a julgar pela sua aparência, os jornalistas não devem ser tão caros assim. — Bom, ele parecia pensar que eles gastam mais do que podem — riu Dorian. — Nesse momento, no entanto, as luzes estavam sendo apagadas no teatro e tive de sair. Ele queria que eu experimentasse alguns charutos que me recomendara muitíssimo. Recusei. Na noite seguinte, certamente, cheguei ao mesmo lugar mais uma vez. Quando me viu, fez-me uma leve reverência e assegurou-me que eu era um generoso patrono da arte. Ele era um grosseirão dos mais repugnantes, apesar de sua extraordinária paixão por Shakespeare. Disse-me uma vez, com um ar orgulhoso, que suas cinco falências eram totalmente culpa do “Bardo”, como insistia em chamá-lo. Ele parecia acreditar tratar-se de uma distinção. — Era uma distinção, meu caro Dorian — uma grande distinção. A maioria das pessoas vai à falência por ter investido brutalmente na prosa da vida. Ir à ruína por causa da poesia é uma honra. Mas quando você falou pela primeira vez com a srta. Sibyl Vane? — Na terceira noite. Ela havia representado Rosalinda. Não pude evitar ir aos bastidores. Havia-lhe jogado algumas flores e ela olhara para mim — pelo menos acredito que tenha olhado. O velho judeu foi insistente. Parecia determinado a levar-me atrás do palco, então consenti. Foi estranho não querer conhecê-la, não foi? — Não, penso que não. — Meu querido Harry, por que não? — Eu lhe direi em algum outro momento. Agora quero saber da garota. — Sibyl? Ah, ela mostrou-se tão tímida e tão gentil. Há algo infantil nela. Seus olhos arregalaram-se, extremamente fascinados, quando lhe disse o que achara de sua atuação, e ela parecia não ter

a mínima consciência de seu poder. Acredito que ambos estávamos bastante nervosos. O velho judeu ficou parado à porta do camarim empoeirado rindo e fazendo elaboradas apresentações sobre nós dois, enquanto olhávamos um ao outro como crianças. Ele insistia em chamar-me de “milorde”, então tive de garantir a Sibyl que não era nenhum lorde. Ela disse-me simplesmente: “Você parece-se mais com um príncipe. Devo chamá-lo de Príncipe Encantado”. — Dou-lhe minha palavra, Dorian, a srta. Sibyl sabe como fazer elogios. — Você não a compreende, Harry. Ela me vê apenas como um personagem de uma peça. Ela não sabe nada da vida. Mora com sua mãe, uma mortiça e cansada mulher que atuava como Lady Capuleto em uma espécie de túnica magenta na primeira noite e aparenta ter tido melhores dias na vida. — Conheço essa aparência. Ela me deprime — murmurou Lorde Henry, examinando seus anéis. — O judeu queria contar-me sua história de vida, mas disse-lhe que não tinha interesse. — Fez muito bem. Há sempre algo infinitamente mesquinho nas tragédias dos outros. — Só me importo com Sibyl. O que me interessam suas origens? De sua pequena cabeça aos delicados pés, ela é absoluta e totalmente divina. Todas as noites da minha vida vou vê-la atuar e, a cada noite, ela está cada vez mais maravilhosa. — É por isso, suponho, que você nunca mais jantou comigo. Pensei que deveria ter algum estranho romance à mão. E tem; mas não exatamente o que eu esperava. — Meu querido Harry, nós almoçamos ou ceamos todos os dias, e tenho ido inúmeras vezes à ópera com você — disse Dorian arregalando os olhos azuis, espantado. — Você sempre está terrivelmente atrasado.

— Bom, não consigo deixar de ver Sibyl atuar — exclamou ele —, mesmo que seja por um único ato. Tenho fome de sua presença; e, quando penso na alma maravilhosa que se esconde naquele corpinho de marfim, o fascínio me preenche. — Você poderá jantar comigo hoje à noite, Dorian, ou não?

Ele balançou a cabeça. — Hoje à noite, ela é Imogênia — respondeu ele — e amanhã será Julieta. — Quando ela é Sibyl Vane? — Nunca.

— Felicito-lhe.

— Como você é horrível! Ela traz todas as grandes heroínas do mundo em uma só pessoa. Ela é mais que um mero indivíduo. Você ri, mas garanto-lhe que ela tem talento. Eu a amo e vou fazê-la me amar. Você, que conhece todos os segredos da vida, diga-me como convencer Sibyl Vane a me amar! Quero causar ciúmes em Romeu. Quero que todos os amantes mortos do mundo ouçam-nos rir e entristeçam-se. Quero que o fôlego de nossa paixão agite sua poeira de volta à vida, que desperte suas cinzas para a dor. Meu Deus, Harry, como a venero! — Ele andava de um lado para o outro na sala enquanto falava. Manchas fervorosas de rubor queimavam suas faces. Estava terrivelmente excitado.

Lorde Henry observava-o com uma leve sensação de prazer. Como estava diferente daquele menino tímido e amedrontado que conhecera no ateliê de Basil Hallward! Sua natureza tinha-se desenvolvido como uma flor, produzindo botões resplandecentes de um vermelho-vivo. Sua alma arrastara-se para fora de seu esconderijo e o desejo encontrara-a no caminho. — E o que me propõe fazer? — disse, por fim, Lorde Henry. — Quero que você e Basil venham comigo vê-la atuar uma noite dessas. Não temo nem um pouco o resultado. Você certamente

reconhecerá seu talento. Então, devemos extraí-la das mãos do judeu. Ela foi contratada por três anos — restam-lhe pelo menos dois anos e oito meses, a contar de agora. Deverei pagar-lhe alguma coisa, certamente. Mas, quando tudo estiver acertado, vou levá-la para algum teatro do West End38 e apresentá-la da maneira apropriada. Ela vai enlouquecer o mundo tanto quanto me enlouqueceu. — Isso seria impossível, meu caro menino. — Sim, ela vai. Ela tem não apenas talento, o instinto de uma arte perfeita, mas também tem personalidade; e você me fala frequentemente que são as personalidades, e não os valores, que movem as épocas. — Bom, em que noite devemos ir? — Deixe-me ver. Hoje é terça-feira. Vamos marcar para amanhã. Ela será Julieta amanhã. — Certo. Nós nos encontraremos no Bristol às oito horas; eu buscarei Basil. — Às oito não, Harry, por favor. Às seis e meia. Devemos chegar antes de as cortinas se erguerem. Você deve vê-la no primeiro ato, antes de ela conhecer Romeu. — Às seis e meia! Que horário! Será como jantar à hora do chá ou ler um romance inglês. Deve ser no mínimo às sete. Nenhum cavalheiro janta antes das sete. Você verá Basil antes de nosso encontro? Ou devo escrever-lhe? — Querido Basil! Já faz uma semana que não o vejo. É bastante terrível de minha parte, já que ele me enviou o retrato com uma moldura deslumbrante, desenhada especialmente por ele mesmo e, apesar de ter ciúme do retrato, por ser um mês inteiro mais jovem que eu, devo admitir que fico extasiado ao vê-lo. Talvez fosse

38 Área mais elegante e turística de Londres, região de sedes de grandes empresas e célebres teatros. (N. do T.)

melhor você escrever-lhe. Não quero vê-lo a sós. Ele diz-me coisas que me aborrecem. Ele me dá bons conselhos.

Lorde Henry sorriu. — As pessoas gostam de oferecer aquilo de que mais necessitam. É o que chamo de ápice da generosidade. — Ah, Basil é o melhor dos amigos, mas ele parece-me ser um pouco filisteu39. Desde que conheci você, Harry, percebi isso. — Basil, meu querido, coloca tudo que há de encantador em si no próprio trabalho. Como consequência, não lhe resta mais nada na vida além de seus princípios, seus preconceitos e seu senso comum. Os únicos artistas que conheci com uma personalidade encantadora são péssimos artistas. Bons artistas simplesmente vivem naquilo que fazem e, consequentemente, têm personalidades perfeitamente desinteressantes. Um grande poeta, um grande poeta de verdade é a menos poética das criaturas. Poetas inferiores, no entanto, são absolutamente fascinantes. Quanto piores suas rimas, mais irresistíveis eles se mostram. O simples fato de publicar um livro de sonetos de segunda categoria torna-o um homem irresistível. Ele vive a poesia que não é capaz de escrever. Quanto aos outros, escrevem a poesia que não são capazes de viver. — Pergunto-me se é realmente verdade, Harry — disse Dorian Gray, borrifando em seu lenço um pouco do perfume de um grande frasco com tampa dourada que estava sobre a mesa. — Deve ser, se você assim o afirma. Agora devo ir. Imogênia espera-me. Não se esqueça de amanhã. Adeus.

Assim que Dorian deixou a sala, as pálpebras pesadas de Lorde Henry cerraram-se e ele começou a refletir. Certamente, poucas pessoas haviam-lhe interessado tanto quanto Dorian Gray e, mesmo assim, a louca admiração do rapaz por outra pessoa não lhe causava

39 Pessoa inculta, ignorante. (N. do T.)

a mínima pontada de aborrecimento ou ciúme. Ficara contente com tal delírio. Dorian tornava-se, assim, um objeto de estudo ainda mais interessante. Lorde Henry sempre fora fascinado pelos métodos das ciências naturais, mas seu objeto de estudo habitual parecia-lhe trivial e sem importância. Por isso, começara a dissecar a si mesmo e terminara por dissecar os outros. A vida humana era, a seu ver, a única coisa que valia a pena investigar. Em comparação a ela, nada mais tinha nenhum valor. Era verdade que, ao observar a vida em seu curioso caldeirão de dor e prazer, não se podia usar uma máscara de proteção nem impedir que seus vapores sulfurosos perturbassem a mente e ofuscassem a imaginação com fantasias monstruosas e sonhos deformados. Havia venenos tão sutis que, para conhecer suas propriedades, era necessário envenenar-se com eles. Havia doenças tão bizarras que era preciso passar por elas se quiséssemos conhecer sua natureza. E, mesmo assim, que grande recompensa recebia-se! Como o mundo inteiro tornava-se maravilhoso para quem o fizesse! Perceber o raciocínio difícil e curioso da paixão e a colorida vida emocional do intelecto — observar em que ponto se encontravam e em qual se separavam, em que momento ficavam em harmonia e quando discordavam — havia um prazer imenso em tudo isso! Que importava o custo? Nunca se pagava um preço alto demais por uma sensação.

Ele tinha consciência — e a lembrança trouxe-lhe um brilho de prazer em seus olhos castanhos como ágata — de que fora graças a algumas de suas melodiosas palavras, pronunciadas suavemente, que a alma de Dorian Gray voltara-se a essa pálida garota e curvara-se em adoração diante dela. Em grande parte, o rapaz era criação sua. Ele tornara-o precoce. O que era grande coisa. As pessoas comuns aguardavam a vida revelar-lhe seus segredos, mas para alguns poucos, aos eleitos, os mistérios da vida eram revelados antes de o véu ser retirado. Às vezes era o efeito da arte, principalmente da arte literária, que lidava diretamente com as paixões e o intelecto. Mas, vez ou outra, uma personalidade complexa tomava seu lugar

e assumia o ofício da arte, o que era realmente, a seu modo, uma verdadeira obra de arte, já que a vida também tinha suas elaboradas obras-primas, tanto quanto a poesia, a escultura ou a pintura.

Sim, o garoto era precoce. Ele fazia a colheita enquanto ainda era primavera. O pulso e a paixão da juventude estavam nele, mas ele começava a despertar. Era encantador observá-lo. Com seu belo rosto e sua bela alma, ele era algo a se admirar. Não importava como tudo acabaria ou como estaria destinado a acabar. Ele assemelhava-se a uma daquelas graciosas figuras em um desfile ou uma peça, cujas alegrias pareciam distantes de nós, cujas mágoas despertam nosso senso de beleza e cujas chagas são como rosas vermelhas.

Alma e corpo, corpo e alma — como são misteriosos! Havia animalismos na alma, e o corpo possuía seus momentos de espiritualidade. Os sentidos poderiam aprimorar-se, assim como o intelecto, degenerar-se. Quem conseguiria dizer onde o desejo carnal terminava e onde começava o desejo psíquico? Como eram superficiais as definições arbitrárias dos psicólogos comuns! E, ainda mais, como era difícil decidir entre as alegações de suas várias vertentes! A alma era apenas uma sombra assentada na casa do pecado? Ou o corpo era realmente a alma, como Giordano Bruno40 pensava? Tanto a separação quanto a união entre espírito e matéria eram um mistério.

Ele começou a imaginar se poderia algum dia considerar a psicologia uma ciência tão absoluta que nos revelaria cada fonte de vida. Até então, sempre entendíamos a nós mesmos da forma errada e raramente entendíamos os outros. Não havia nenhum valor ético na experiência. Esse era apenas o nome que os homens davam aos próprios erros. Via de regra, os moralistas tinham-na como uma forma de aviso, concederam-lhe certa eficácia ética na formação do caráter e enalteceram-na como algo que nos indicava o que seguir e

40 Giordano Bruno (1548-1600) foi um poeta, escritor, filósofo e cosmólogo, e defendia que tudo tem uma natureza psíquica, uma alma — e não apenas os seres humanos. Por isso, foi condenado à morte na fogueira pela Santa Inquisição. (N. do T.)

mostrava o que evitar. Mas a experiência não tinha nenhum poder de encorajamento. Ela apenas demonstrava que nosso futuro seria igual a nosso passado e que o pecado que havíamos cometido uma vez, com repugnância, cometeríamos muitas vezes mais com alegria.

Estava claro para ele que o método experimental era o único método para se chegar à análise científica das paixões; e certamente Dorian Gray era uma cobaia feita sob medida e prometia render férteis e divertidos resultados. Seu amor súbito e louco por Sibyl Vane era um fenômeno psicológico nem um pouco desinteressante. Não havia dúvida de que a curiosidade estava relacionada a essa paixão, não só a curiosidade como também o desejo de novas experiências, apesar de não se tratar de uma paixão simples, pelo contrário, era bastante complexa. O que havia nela do instinto puramente sensual da juventude fora alterado pelo funcionamento da imaginação, transformado em algo que parecia distante do bom senso para o rapaz e, pela mesma razão, ainda mais perigoso. Eram as paixões cujas origens nos iludiam que nos tiranizavam com mais força. Nossas motivações mais fracas eram aquelas cuja natureza conhecíamos. Acontecia-nos muitas vezes pensar que estávamos testando outras pessoas, mas, na verdade, testávamos nós mesmos.

Enquanto Lorde Henry estava sentado sonhando com essas coisas, ouviu uma batida na porta e seu criado entrou, lembrando-lhe que era hora de vestir-se para o jantar. Ele levantou-se e olhou para a rua. O pôr do sol havia pintado as janelas no alto do casario em frente de vermelho-dourado. As vidraças brilhavam como pratos de metal aquecido. O céu sobre elas parecia uma rosa desbotada. Ele lembrou-se da vida cor de fogo de seu jovem amigo e perguntou-se como tudo acabaria.

Quando chegou em casa, por volta da meia-noite e meia, viu um telegrama sobre a mesa do saguão. Abriu-o e descobriu que era de Dorian Gray. Contava-lhe que ficara noivo de Sibyl Vane.

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