8 minute read

CAPÍTULO 20

Next Article
CAPÍTULO 19

CAPÍTULO 19

Estava uma noite adorável, tão quente que ele jogou o casaco sobre o braço e nem sequer enrolou seu lenço de seda no pescoço. Enquanto caminhava para casa, fumando seu cigarro, dois jovens rapazes em trajes formais passaram por ele. Ele ouviu um deles sussurrar para o outro: “Esse é Dorian Gray”. Lembrou-se de como ficava feliz quando apontavam para ele, fitavam-no ou falavam a seu respeito. Agora, estava cansado de ouvir o próprio nome. Parte do encanto da pequena aldeia para onde ia com tanta frequência ultimamente era que ninguém sabia quem ele era. Disse muitas vezes à garota a quem convencera a amá-lo que era pobre, e ela acreditara nele. Havia lhe dito certa vez que era perverso e ela rira dele, respondendo que as pessoas perversas eram sempre muito velhas e muito feias. Que risada dera ela! — parecia um melro cantando. E como ficava bonita em seus vestidos de algodão e seus enormes chapéus! Ela não sabia de nada, mas tinha tudo que ele perdera.

Quando chegou em casa, encontrou o criado esperando-o acordado. Mandou-o para a cama e jogou-se no sofá da biblioteca, começando a refletir sobre algumas das coisas que Lorde Henry lhe dissera.

Advertisement

Seria mesmo verdade que nunca conseguimos mudar? Ele sentia uma nostalgia brutal da pureza imaculada de sua infância — sua infância rosada, como Lorde Henry uma vez a chamara. Ele sabia que fora maculado, que enchera sua mente de corrupção e suscitara monstruosidades com seus caprichos; que tinha sido uma má influência para outros e tivera imenso prazer com isso; e, das vidas que cruzaram a sua, foram as mais belas e cheias de possibilidades que ele incentivara à vergonha. Seria tudo irreparável? Não haveria esperanças para ele?

Ah, em que momento monstruoso de orgulho e paixão ele suplicara para que o retrato carregasse o fardo de seus dias e ele mantivesse o esplendor imaculado da juventude eterna! Toda a sua desgraça devia-se a isso. Teria-lhe sido melhor se cada pecado de sua vida tivesse trazido consigo sua punição certa e ligeira. Havia purificação na punição. A oração do homem perante um Deus justíssimo deveria ser “feri-nos por nossas iniquidades” e não “perdoai nossos pecados”.

O espelho estranhamente entalhado com que Lorde Henry presenteara-o havia tantos anos estava sobre a mesa, e os cupidos com seus membros pálidos riam-se dele como antigamente. Ele tomou-o nas mãos, como fizera naquela noite horrorosa, quando notou pela primeira vez a mudança no quadro fatal e, com os olhos enfurecidos e turvos pelas lágrimas, olhou para seu escudo polido. Certa vez, alguém que o amava terrivelmente escrevera-lhe uma carta insana, terminando com essas palavras idólatras: “O mundo mudou porque você é feito de marfim e ouro. As curvas dos seus lábios reescrevem a história”. Tais frases voltaram à sua memória e ele repetiu-as inúmeras vezes para si mesmo. Então, abominou a própria beleza e, arremessando o espelho no chão, esmagou-o em estilhaços prateados sob seu calcanhar. Fora sua beleza que o arruinara, a beleza e a juventude pelas quais havia suplicado. Não fosse por essas duas coisas, sua vida poderia estar livre de máculas. Sua beleza fora para ele apenas uma máscara, sua juventude, mera chacota. Na melhor das hipóteses, o que era a juventude? Uma época verde e imatura, um tempo de humores superficiais e pensamentos doentios. Por que usara ele seus trajes? A juventude o arruinara.

Era melhor não pensar no passado. Nada poderia alterá-lo. Era em si e em seu futuro que ele precisava pensar. James Vane estava oculto em um túmulo sem nome no cemitério de Selby. Alan Campbell atirara em si mesmo em seu laboratório certa noite, mas não revelara o segredo que fora forçado a saber. A euforia vigente acerca do desaparecimento de Basil Hallward logo passaria. Já

começava a diminuir. Estava perfeitamente seguro quanto ao ocorrido. Na verdade, não era a morte de Basil Hallward o que mais pesava em sua mente. Era a morte em vida de sua própria alma que o perturbava. Basil pintara o retrato que arruinou sua vida. Ele não podia perdoá-lo por isso. O retrato é que fizera tudo. Basil lhe dissera coisas insuportáveis e que, ainda assim, ele tolerara pacientemente. O assassinato fora apenas uma loucura momentânea. Quanto a Alan Campbell, seu suicídio tinha sido sua própria obra. Ele escolhera fazê-lo. Não era de modo nenhum culpa sua.

Uma nova vida! Era disso que ele precisava. Era por isso que estava esperando. Certamente, já a tinha iniciado. Havia poupado uma criatura inocente, de qualquer forma. Nunca mais seduziria a inocência. Seria uma pessoa boa.

Ao pensar em Hetty Merton, começou a imaginar se o retrato na sala trancada havia mudado. Certamente não continuaria tão horrível quanto antes. Talvez se sua vida se tornasse pura, ele seria capaz de expelir todos os sinais das perversas paixões do rosto. Talvez as marcas do mal já teriam desaparecido. Ele iria olhar.

Tomou o lampião da mesa e subiu as escadas. Quando destrancou a porta, um sorriso de alegria cruzou seu rosto de aparência estranhamente jovem e pairou por um momento em seus lábios. Sim, ele seria bom, e a coisa horrenda que ele escondera não seria mais motivo de terror para ele. Sentia-se como se aquele peso já tivesse sido retirado de si.

Ele entrou em silêncio, trancando a porta atrás de si, como era seu costume, e retirou a tapeçaria púrpura da frente do retrato. Um grito de dor e indignação irrompeu dele. Não conseguia ver nenhuma mudança, a não ser um ar malicioso nos olhos e, na boca, a ruga curvada dos hipócritas. A coisa continuava repugnante — mais repugnante, se possível, do que antes — e o orvalho escarlate que manchava a mão parecia ainda mais brilhante, como se o sangue tivesse acabado de ser derramado. Ele, então, estremeceu. Teria

sido apenas vaidade que o levara a praticar sua única boa ação? Ou o desejo de uma nova sensação, como Lorde Henry havia sugerido, com sua risada irônica? Ou aquela vontade de representar um papel que nos leva, às vezes, a fazer coisas melhores do que realmente somos? Ou, talvez, tudo isso? E por que aquela mancha vermelha estava maior do que nunca? Parecia ter se espalhado como uma horrorosa doença sobre os dedos enrugados. Havia sangue nos pés pintados, como se aquela coisa tivesse gotejado — sangue até mesmo na mão que não segurara a faca. Confessar? Isso significava que ele deveria confessar? Para se entregar e ser condenado à morte? Ele riu. Sentia que a ideia era monstruosa. Além disso, mesmo que confessasse, quem acreditaria nele? Não havia nenhum vestígio do homem assassinado em lugar nenhum. Tudo que lhe pertencera tinha sido destruído. Ele mesmo queimara o que se encontrava no andar de baixo. O mundo simplesmente diria que ele estava louco. Calariam-no se ele insistisse em sua história... Ainda assim, era sua obrigação confessar, sofrer a execração pública e divulgar sua redenção. Havia um Deus que convocou os homens a confessarem seus pecados tanto à terra quanto ao céu. Nada que ele fizesse o purificaria até que contasse seu pecado. Seu pecado? Ele deu de ombros. A morte de Basil Hallward parecia-lhe muito pouco. Estava pensando em Hetty Merton. Pois era um espelho injusto esse espelho da sua alma que contemplava. Vaidade? Curiosidade? Hipocrisia? Não houvera nada mais em sua renúncia além disso? Houvera algo mais. Ao menos, era assim que pensava. Mas quem poderia saber?... Não. Não houvera nada além disso. Por vaidade, ele a poupara. Por hipocrisia, usara a máscara da bondade. Por curiosidade, tentara negar a si mesmo. Reconhecia-o agora.

Mas esse assassinato — ele iria persegui-lo por toda a vida? Teria de carregar o fardo do seu passado para sempre? Deveria realmente confessar? Nunca. Havia apenas uma prova contra ele. O próprio quadro — essa era a prova. Ele iria destruí-lo. Por que o mantivera por tanto tempo? Antes, sentira prazer em vê-lo mudar

e envelhecer. Ultimamente, não sentia o mesmo prazer. Ele o mantivera acordado à noite. Quando estava fora, o medo de que outros olhos pudessem vê-lo o impregnava. Ele contaminara de melancolia suas paixões. A simples memória de sua existência arruinara muitos momentos de alegria. Tinha sido como uma consciência para ele. Sim, fora a consciência. Ele o destruiria.

Olhou em volta e viu a faca que apunhalara Basil Hallward. Ele a limpara inúmeras vezes, até que não sobrasse nenhuma mancha nela. Era brilhante e cintilava. Da mesma forma que ele matara o pintor, mataria também sua obra e tudo que ela significara. Assim, mataria o passado e, com o passado morto, ele estaria livre. Mataria essa monstruosa alma viva e, sem seus horrendos avisos, ele ficaria em paz. Agarrou a coisa e apunhalou o quadro com ela.

Ouviu-se um grito e um estrondo. Fora um grito de agonia tão pavoroso que os criados, assustados, acordaram e arrastaram-se para fora de seus aposentos. Dois cavalheiros, que passavam pela praça logo abaixo, pararam e olharam para a grande casa. Continuaram caminhando até encontrarem um policial e trouxeram-no de volta. O homem tocou a campainha várias vezes, mas não houve resposta. A não ser por uma luz em uma das janelas do andar superior, a casa estava toda escura. Depois de um tempo, ele afastou-se e ficou em um alpendre vizinho, à espreita. — De quem é essa casa, policial? — perguntou o mais velho dos cavalheiros. — Do sr. Dorian Gray, meu senhor — respondeu o policial.

Olharam um para o outro e, enquanto iam embora, sorriram com desdém. Um deles era o tio de Sir Henry Ashton.

No interior da casa, na ala dos empregados, os criados, sem seus trajes completos, sussurravam entre si. A velha sra. Leaf chorava e torcia as mãos. Francis estava pálido como a morte.

Depois de cerca de quinze minutos, ele chamou o cocheiro e um dos lacaios e arrastou-se escada acima. Bateram à porta, mas não

houve resposta. Gritaram. Tudo permanecia imóvel. Finalmente, depois de tentarem forçar a porta em vão, subiram no telhado e pularam para a varanda. As janelas cederam facilmente — os parafusos estavam velhos.

Quando entraram, encontraram pendurado na parede um esplêndido retrato de seu patrão, assim como o tinham visto pela última vez, em todo o resplendor de sua extraordinária juventude e beleza. Deitado no chão jazia um homem morto, em trajes formais, com uma faca no coração. Estava ressequido, enrugado e tinha um rosto repulsivo. Só depois de examinarem seus anéis é que reconheceram quem era.

This article is from: