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CAPÍTULO 11

Por anos, Dorian Gray não conseguiu se libertar da influência daquele livro. Talvez seria mais correto dizer que ele nunca tenha tentado se libertar. Encomendara nada menos que nove cópias da primeira edição em grande formato e mandou encaderná-las com várias cores, para que se adequassem a seus diferentes humores e aos inconstantes caprichos de uma natureza sobre a qual, às vezes, parecia-lhe ter perdido o controle quase que completamente. O herói, o maravilhoso jovem parisiense em quem o caráter romântico mesclava-se ao científico de maneira tão estranha, tornou-se para ele uma espécie de protótipo dele mesmo. E, na verdade, o livro inteiro parecia conter a história de sua própria vida, escrita antes mesmo de ele tê-la vivido.

Em um ponto, ele mostrava-se mais afortunado que o fantástico herói do romance. Nunca conhecera — na verdade, nunca tivera qualquer motivo para tanto — o medo um tanto caricato de espelhos, de superfícies de metal polido e de água parada que acometia o jovem parisiense desde cedo em sua vida, medo esse ocasionado pela súbita deterioração de uma beleza que um dia, aparentemente, lhe fora tão excepcional. Era com uma alegria quase cruel — e talvez em quase toda alegria, assim como certamente em todo prazer, a crueldade tem seu lugar — que costumava ler a última parte do livro, com o verdadeiramente trágico relato, mesmo que um tanto exagerado, do desespero e da tristeza de alguém que perdera o que nos outros, e no mundo, ele mais valorizara.

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Já a deslumbrante beleza que tanto fascinara Basil Hallward, e muitos outros além dele, parecia nunca abandoná-lo. Mesmo aqueles que ouviam as coisas mais perversas a seu respeito — e,

de tempos em tempos, estranhos boatos sobre seu modo de vida percorriam Londres e tornavam-se o assunto dos clubes — não conseguiam acreditar em nada que o desonrasse quando o viam. Sempre apresentava a aparência de alguém que se mantivera imaculado diante do mundo. Homens que falavam de modo grosseiro calavam-se quando Dorian Gray entrava na sala. Havia algo na pureza de seu rosto que os censurava. Sua simples presença parecia recordá-los da inocência que tinham difamado. Perguntavam-se como alguém tão encantador e gracioso como ele poderia ter resistido à indecência de uma época ao mesmo tempo sórdida e sensual.

Muitas vezes, ao retornar para casa após uma de suas misteriosas e prolongadas ausências, que davam vazão a tão estranhas conjecturas entre aqueles que eram seus amigos, ou que pensavam sê-lo, ele arrastava-se para o andar de cima, até a sala trancada, abria a porta com a chave que não mais largava e, com um espelho, ficava em pé diante do retrato que Basil Hallward pintara, olhando ora para o rosto perverso e envelhecido na tela, ora para o rosto jovial e belo que lhe sorria no vidro polido. A própria intensidade do contraste era usada para estimular seu prazer. Ele tornava-se cada vez mais apaixonado pela própria beleza, cada vez mais interessado na corrupção de sua alma. Examinava com minuciosa dedicação e, às vezes, com uma monstruosa e terrível satisfação, os hediondos traços que marcavam a testa enrugada ou que circundavam a boca libertina e obscena, perguntando-se o que era mais horrível, os sinais do pecado ou os sinais da idade. Colocava as mãos alvas ao lado das mãos ásperas e inchadas do quadro e sorria. Zombava do corpo disforme e dos membros deteriorados.

É verdade, havia momentos à noite quando, deitado insone em seu quarto delicadamente perfumado ou no sórdido salão da pequena taverna de má fama próxima às docas que, disfarçado e sob nome falso, tinha o hábito de frequentar, pensava na ruína que trouxera à sua alma, com uma piedade ainda mais comovente por ser puramente egoísta. Mas momentos como esse eram raros.

A curiosidade pela vida que Lorde Henry estimulara nele pela primeira vez, ao sentarem-se juntos no jardim de seu amigo, parecia aumentar sempre que a satisfazia. Quanto mais a conhecia, mais desejava conhecer. Tinha apetites insanos que se tornavam ainda mais insaciáveis à medida que ele os alimentava.

Ainda assim, ele não era realmente descuidado, pelo menos não em suas relações com a sociedade. Uma ou duas vezes por mês, no inverno, e todas as quartas-feiras à noite durante a temporada, ele abria sua bela casa para o mundo e contratava os mais famosos músicos do momento para encantar os convidados com as maravilhas de sua arte. Seus pequenos jantares, em cuja organização era sempre auxiliado por Lorde Henry, eram conhecidos tanto pela cuidadosa seleção e acomodação dos convidados, quanto pelo sofisticado gosto revelado na decoração da mesa, com seus sutis e harmoniosos arranjos de flores exóticas, tecidos bordados e antigas travessas de ouro e prata. Na verdade, eram muitos — em especial os jovens — os que viam, ou imaginavam ver, em Dorian Gray a personificação fiel de um tipo com que muitas vezes sonharam em seus dias de Eton ou Oxford, um tipo que mesclava algo da verdadeira cultura do erudito com toda a graça, a distinção e os modos apurados de um cidadão do mundo. Para esses, ele parecia pertencer à classe que Dante descreve como tendo procurado “tornar-se perfeita pela adoração da beleza”. Como Gautier, ele era uma pessoa para quem “o mundo visível existia”.

E, certamente, para ele a própria vida era a primeira e a maior das artes, para a qual todas as outras pareciam ser apenas uma preparação. A moda, por meio da qual o que é realmente fantástico torna-se por um momento universal, e o dandismo, que, a seu próprio modo, é uma tentativa de assegurar a absoluta modernidade da beleza, exerciam, obviamente, seu fascínio sobre ele. Seu modo de se vestir e as maneiras particulares que de vez em quando adotava tinham uma influência marcante nos elegantes jovens dos bailes de

Mayfair61 e das janelas dos clubes da Pall Mall62 — eles o copiavam em tudo que ele fazia, tentando reproduzir o encanto acidental de suas graciosas obsessões, mesmo que ele não as levasse tão a sério.

Pois, embora estivesse mais que disposto a aceitar a posição que lhe foi prontamente oferecida quando atingira a maioridade, e encontrasse de fato um prazer sutil na ideia de tornar-se para a Londres de sua época o que o autor de Satíricon63 havia sido para a Roma de Nero, ele desejava ser algo mais que um mero arbiter elegantiarum64, alguém a ser consultado sobre o uso de uma joia, o nó de uma gravata ou a forma de portar uma bengala. Ele cobiçava elaborar um novo modo de vida, com filosofia estabelecida e princípios estruturados, que encontraria na espiritualização dos sentidos sua mais elevada concretização.

O culto aos sentidos tem sido frequentemente censurado, com muita razão, já que os homens sentem um instinto natural de terror a respeito das paixões e sensações que se mostram mais fortes do que eles e têm consciência de compartilhá-las com as formas de vida menos altamente organizadas. Mas parecia a Dorian Gray que a verdadeira natureza dos sentidos nunca fora compreendida e que os homens permaneciam selvagens e bestiais simplesmente porque o mundo almejava mantê-los submissos ou matá-los pela dor, em vez de empenhar-se em torná-los elementos de uma nova espiritualidade, na qual um requintado instinto para a beleza seria a característica dominante. Ao olhar para o homem avançando através da história, ele era assombrado por uma sensação de perda.

61 Área refinada do West End londrino. (N. do T.) 62 Rua londrina conhecida por ter sido sede de inúmeros clubes de cavalheiros e epicentro das belas artes na cidade no final do século XIX e no início do XX. (N. do T.) 63 Satíricon é uma obra do prosador romano Petrônio, escrita provavelmente no ano 60, que descreve as aventuras e desventuras do narrador, Encólpio, do seu amante, Ascilto, e do jovem servo Gitão, que se intromete entre os dois amantes incitando ciúmes e discussões. (N. do T.) 64 “Árbitro da elegância”, em latim. Uma autoridade em comportamento e etiqueta. (N. do T.)

Renunciara-se a tantas coisas! E por propósitos tão ínfimos! Houve obstinadas e loucas privações, formas monstruosas de autotortura e abnegação, cuja origem era o medo e cujo resultado era uma degradação infinitamente mais terrível que a degradação imaginária da qual, em sua ignorância, procuravam escapar; a Natureza, em sua formidável ironia, afugentava o anacoreta65 para o rebanho dos animais selvagens do deserto e dava ao eremita as bestas do campo como companheiras.

Sim, estava para acontecer, como Lorde Henry profetizara, um novo hedonismo, que recriaria a vida e a salvaria do rigoroso e grotesco puritanismo que passava, em nossa época, por um estranho ressurgimento. Ele certamente se serviria do intelecto, porém nunca deveria aceitar nenhuma teoria ou sistema que envolvesse a abstinência de qualquer forma de experiência passional. O objetivo do hedonismo, na verdade, seria a própria experiência e não seus frutos, não importando quão doces ou amargos. Quanto ao ascetismo que enfraquece os sentidos, assim como as extravagâncias vulgares que os atenuam, ele não os reconheceria. Mas ensinaria aos homens a concentrarem-se nos momentos de uma vida, que, em si mesma, não passava de um momento.

Há poucos de nós que nunca despertaram antes do amanhecer, seja depois de uma noite sem sonhos que nos tornam quase apaixonados pela morte, seja depois de uma noite de horror e perversa alegria quando, através dos recônditos do cérebro, alastram-se fantasmas mais terríveis do que a própria realidade, imbuídos de intensa vivacidade à espreita em tudo que é grotesco e que conferem à arte gótica seu duradouro vigor — arte esta que é sobretudo, pode-se imaginar, a arte daqueles cuja mente foi perturbada pela aflição do devaneio. Pouco a pouco, dedos pálidos arrastam-se pelas

65 Os anacoretas eram monges ou ascetas cristãos que viviam em retiro e solidão, especialmente nos primórdios do Cristianismo. (N. do T.)

cortinas e parecem estremecer. Em formatos sinistros e fantásticos, sombras silenciosas rastejam e agacham-se pelos cantos do quarto. Lá fora, sente-se o movimento dos pássaros entre as folhas, o som dos homens avançando rumo ao trabalho ou o suspiro e o soluço do vento descendo das colinas e vagando ao redor da casa silenciosa, como se temesse acordar os que dormem e, ainda assim, devesse convocar o sono de sua caverna púrpura. Suspende-se véu após véu de uma fina e obscura gaze, e gradativamente as formas e cores das coisas lhes são restauradas, e assistimos à aurora refazer o mundo em seu antigo padrão. Os espelhos descorados retomam sua vida de imitação. As velas apagadas continuam onde as deixamos e, ao seu lado, jaz o sequioso livro que estudávamos, ou a flor da lapela que usamos no baile, ou a carta que nos dava medo de ler, ou aquela que lemos muitas vezes. Nada parece haver mudado. Das sombras irreais da noite, retorna a vida real que conhecíamos. Temos de retomá-la de onde a deixamos e, então, paira sobre nós uma terrível sensação de obrigação da continuidade do trabalho no mesmo enfadonho ciclo de hábitos estereotipados ou, quem sabe, um desejo feroz de que nossas pálpebras pudessem abrir-se certa manhã para um mundo que tivesse, na escuridão, sido remodelado para nosso prazer, um mundo em que as coisas teriam novas formas e cores, um mundo transformado, com outros segredos, em que o passado tivesse pouca ou nenhuma importância ou, caso se mantivesse, de algum modo não haveria nenhuma forma consciente de obrigação ou arrependimento, um mundo no qual até mesmo as lembranças alegres teriam seu amargor, e as lembranças do prazer, sua dor.

Para Dorian Gray, era a criação de mundos assim que parecia ser o verdadeiro objetivo — ou um dos verdadeiros objetivos — da vida; e, em sua busca por sensações que seriam, ao mesmo tempo, novas e prazerosas e que possuíssem o elemento de estranheza tão essencial ao romance, ele muitas vezes adotava certos modos de pensar que sabia serem realmente alheios à sua natureza e abandonava-se às suas ardilosas influências. Tendo, então, por assim

dizer, captado suas cores e satisfeito sua curiosidade intelectual, deixava-os com aquela estranha indiferença, incompatível com um verdadeiro ardor de temperamento e que, na realidade, segundo certos psicólogos modernos, é geralmente um de seus requisitos. Certa vez, surgiram boatos de que ele estava a ponto de aderir à religião católica romana e, de fato, o ritual romano sempre exercera uma grande atração sobre ele. O sacrifício diário, verdadeiramente mais terrível do que qualquer outro sacrifício do mundo antigo, instigava-o, tanto por sua soberba rejeição à evidência dos sentidos quanto pela primitiva simplicidade de seus elementos e sua eterna paixão pela tragédia humana que buscava simbolizar. Adorava ajoelhar-se no piso de mármore frio e observar o sacerdote, em seus rígidos e floridos trajes litúrgicos, afastando lentamente o véu do sacrário com suas mãos pálidas, ou erguendo no alto o ostensório cravejado de joias, como uma lanterna, com a alva hóstia — que, às vezes, poderíamos alegremente acreditar ser, de fato, o panis caelestis, o pão dos anjos —, ou, paramentado com as vestes da Paixão de Cristo, partindo a hóstia no cálice e golpeando o peito por seus pecados. Os incensários fumegantes que os sisudos meninos, cobertos de rendas e escarlates, lançavam no ar como imensas flores douradas, exerciam sobre ele um fascínio sutil. Ao sair da igreja, costumava olhar maravilhado para os negros confessionários e desejava sentar-se sob a tênue sombra de um deles e escutar os homens e mulheres sussurrando pelas gastas treliças a verdadeira história de sua vida. Mas ele nunca incorreu no erro de interromper seu desenvolvimento intelectual por qualquer tipo de aceitação formal de um credo ou sistema ou de confundir uma hospedaria, adequada à estadia por uma noite — ou por algumas horas de uma noite sem estrelas, em que a lua tem muito a fazer — com uma casa onde se podia viver. O misticismo, com seu fascinante poder de tornar coisas

comuns em algo alheio a nós, e o antinomianismo66 sutil que sempre parece acompanhá-lo comoveram-no por uma temporada; e, por uma temporada, ele aproximou-se das doutrinas materialistas do movimento do Darwinismus67 na Alemanha e obteve curioso prazer em conectar os pensamentos e paixões dos homens a alguma célula rosada no cérebro ou alguma fibra nervosa do corpo, deliciando-se com o conceito de absoluta dependência do espírito de certas condições físicas, enfermas ou saudáveis, normais ou debilitadas. Ainda assim, como já fora dito a seu respeito antes, nenhuma teoria sobre a vida parecia-lhe ter alguma importância quando comparada com a própria vida. Sentia-se absolutamente ciente de como são estéreis todas as especulações intelectuais quando separadas da ação e do experimento. Sabia que as sensações, não menos que a alma, têm seus mistérios espirituais a revelar.

Por isso, ele agora passava ao estudo dos perfumes e aos segredos de sua fabricação, destilando óleos de odores fortes e queimando resinas aromáticas do Oriente. Percebeu que não existia nenhum estado mental que não tivesse sua contrapartida na vida sensual e pôs-se a descobrir suas verdadeiras relações, perguntando-se o que havia no olíbano68 que tornava alguém místico, no âmbar cinza69 que excitava as paixões, nas violetas que despertavam a lembrança de romances mortos, no almíscar que perturbava o cérebro e na magnólia que coloria a imaginação. Ademais, buscava muitas vezes elaborar uma verdadeira psicologia dos perfumes, calculando as

66 O antinomianismo, termo cunhado por Martinho Lutero, define que somente a fé é necessária para a salvação, dispensando-se qualquer uso ou obrigação de leis morais. (N. do T.) 67 Não confundir com a Teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin. O biólogo alemão

Ernst Haeckel desenvolveu o que ficou conhecido como Darwinismus em seu país, cujas comprovações científicas, posteriormente tidas como fraudulentas, serviram à filosofia nazista de superioridade da raça ariana. (N. do T.) 68 Resina aromática muito usada na fabricação de incensos e, com muita frequência, em ritos religiosos. (N. do T.) 69 Fixante empregado na perfumaria, cujo uso foi proibido por se tratar de secreção biliar da baleia cachalote, espécie em extinção. (N. do T.)

inúmeras influências das raízes de aroma adocicado e das flores com alto teor de pólen; dos bálsamos aromáticos e das madeiras escuras e fragrantes; do nardo, que causa náuseas; da hovênia, que enlouquece os homens; e da babosa, que dizem ser capaz de expulsar a melancolia da alma.

Em outra época, dedicou-se completamente à música e, em uma extensa sala guarnecida de treliças, com teto em tons de vermelho e dourado e paredes de laca verde-oliva, costumava organizar interessantes concertos com ciganos loucos, que arrancavam melodias selvagens de pequenas cítaras, ou austeros tunisianos com xales amarelos, que dedilhavam tensas cordas de monumentais alaúdes, enquanto negros sorridentes batiam monotonamente em tambores de cobre e, agachados em tapetes escarlates, esguios indianos de turbante sopravam longas flautas de bambu ou algum tipo de metal e encantavam — ou fingiam encantar — grandes serpentes com o pescoço dilatado e horríveis víboras-do-deserto. Os intervalos duros e as dissonâncias estridentes da música primitiva excitavam-no quando a graça de Schubert, os belos lamentos de Chopin e as poderosas harmonias do próprio Beethoven eram ignorados em seus ouvidos. Reuniu os instrumentos mais estranhos de todas as partes do mundo que pôde encontrar, tanto nos túmulos das nações mortas, quanto entre as poucas tribos selvagens que sobreviveram ao contato com as civilizações ocidentais, e amava tocá-los e experimentá-los. Possuía os misteriosos juruparis70 dos indígenas do Rio Negro, que as mulheres não podem presenciar — e que mesmo os jovens não podem ver até que se submetam a jejuns e flagelos —, os jarros de barro dos peruanos que contêm os gritos estridentes dos pássaros, as flautas de ossos humanos que

70 Jurupari é um personagem mitológico dos povos indígenas da América do Sul, conhecido como o “demônio dos sonhos”. No texto, o autor faz referência a um ritual com flautas, de mesmo nome, de que só os homens podem participar, realizado pelos indígenas da área de confluência dos rios Negro e Uaupés, no estado do Amazonas. (N. do T.)

Alfonso de Ovalle71 ouvira no Chile, e as sonoras jaspes72 verdes, encontradas nas proximidades de Cuzco, que emitem uma nota de doçura singular. Tinha cabaças pintadas repletas de seixos, que tilintavam quando chacoalhadas; o longo clarim dos mexicanos, através do qual o músico não sopra, mas inala o ar; o áspero toré das tribos amazônicas, que é soado pelos sentinelas, que passam o dia sentados em árvores altas e podem ser ouvidos, diz-se, a uma distância de três léguas; o teponaztli, que tem duas abas de madeira que vibram e é batido com baquetas untadas com uma goma flexível, obtida de um caldo leitoso de plantas; os sinos yotl dos astecas, que são pendurados em cachos como uvas; e um enorme tambor cilíndrico revestido de peles de grandes serpentes, como o que Bernal Díaz viu quando entrou com Cortés73 no templo mexicano e de cujo pesaroso som nos deixou tão vívida descrição. O caráter fantástico desses instrumentos fascinava-o e ele sentia um estranho prazer ao pensar que a arte, assim como a Natureza, tinha seus monstros, coisas de formas bestiais com vozes horrendas. No entanto, depois de algum tempo, cansava-se deles e voltava a sentar-se em seu camarote na ópera, sozinho ou com Lorde Henry, escutando Tannhäuser74 com absorto prazer e percebendo no prelúdio dessa grande obra de arte uma representação da tragédia de sua alma.

Numa ocasião interessou-se pelo estudo das joias e compareceu a um baile a fantasia como Anne de Joyeuse, almirante da França, em um traje coberto por quinhentas e sessenta pérolas. Esse interesse fascinou-o por anos e, na verdade, pode-se dizer que nunca

71 Alonso de Ovalle (1603-1651) foi um jesuíta chileno e cronista da vida na colônia, equivalente no Chile ao padre José de Anchieta no Brasil. No original, seu nome está grafado incorretamente, “Alfonso”, em vez de “Alonso”. (N. do T.) 72 Cristais de quartzo. (N. do T.) 73 Bernal Díaz del Castillo (1496-1584) e Hernán Cortés (1485-1547) foram os principais conquistadores espanhóis responsáveis pela queda do Império Asteca, no atual México. (N. do T.) 74 Tannhäuser é uma ópera em três atos, com música e libreto de Richard Wagner (1813-1883), cujo tema é a redenção pelo amor. (N. do T.)

o abandonou. Frequentemente passava um dia inteiro arranjando e rearranjando em seus estojos as diversas pedras que colecionara, tais como o crisoberilo verde-oliva, que se torna vermelho sob a luz, o olho de gato, com sua risca prateada parecida com um arame, o peridoto com tons de pistache, topázios cor-de-rosa e amarelo-palha, granadas escarlate como fogo com luminescência semelhante a estrelas de quatro pontas, hessonitas em tons vermelho-vivos, espinélios alaranjados e violeta, além de ametistas com camadas intercaladas de rubis e safiras. Amava o vermelho-dourado da pedra do sol e a brancura perolada da pedra da lua, além do arco-íris fragmentado do vidro opalino. Encomendou de Amsterdã três esmeraldas de extraordinário tamanho e riqueza de cores e tinha ainda uma turquesa ocidental que era a inveja de todos os conhecedores.

Descobriu também histórias maravilhosas sobre as joias. No Disciplina Clericalis de Alfonso75, mencionava-se uma serpente com olhos de quartzo vermelho verdadeiro e, na romântica história de Alexandre, o Conquistador da Emátia76, dizia-se que ele tinha encontrado no Vale do Rio Jordão cobras “com colares de esmeraldas verdadeiras crescendo em suas costas”. Havia ainda uma pedra preciosa no cérebro do dragão, contou-nos Filóstrato77, e, “pela exibição de cartas douradas e uma toga escarlate”, o monstro poderia ser induzido a um sono mágico e, então, assassinado. De acordo com o grande alquimista Pierre de Boniface, o diamante tornava um homem invisível, e a ágata indiana fazia-o eloquente. A cornalina acalmava a ira, o jacinto provocava sono, e a ametista dispersava os

75 Pedro Alfonso, nascido Rabbi Moses Sephardi, foi um escritor e astrônomo da Andaluzia muçulmana. Depois de sua conversão ao Cristianismo, escreveu a Disciplina Clericalis, uma coleção de trinta e três contos árabes de caráter moral, traduzidos do árabe, persa e sânscrito para o latim. (N. do T.) 76 Uma das seis províncias da Macedônia, atualmente região da Grécia. (N. do T.) 77 Flávio Filóstrato (170-250) foi um filósofo sofista que viveu no período dos imperadores romanos. Recebeu os primeiros ensinamentos de retórica em Atenas, e mudou-se posteriormente para Roma. (N. do T.)

sintomas do vinho. A granada afugentava demônios e o hidrópicus privava a lua de sua cor. A selenita crescia ou diminuía de acordo com as fases da lua, e o meloceus, que descobria ladrões, teria seus poderes influenciados apenas pelo sangue de crianças. Leonardus Camillus78 vira uma pedra branca tirada do cérebro de um sapo recém-morto que era um antídoto certeiro contra venenos. O bezoar, encontrado no coração do veado árabe, era um talismã capaz de curar a peste. Nos ninhos de pássaros árabes havia o aspilates, que, segundo Demócrito, protegia seu portador dos perigos do fogo79 .

O rei do Ceilão cavalgou por sua cidade com um grande rubi nas mãos, como parte da cerimônia de sua coroação. Os portões do palácio do Preste João80 eram “feitos de sárdio e incrustados com os cornos da víbora-de-chifres, para que nenhum homem pudesse trazer veneno para seu interior”. Sobre a cumeeira, havia “duas maçãs de ouro, com duas granadas”, de forma que suas partes douradas brilhassem de dia e as granadas, à noite. No estranho romance A Margarite of America, de Lodge81, afirmava-se que nos aposentos da rainha podia-se ver “todas as damas castas do mundo, entalhadas em prata, olhando por límpidos espelhos de peridotos, granadas, safiras e esmeraldas verdes”. Marco Polo vira os habitantes de Zipangu82 depositarem pérolas cor-de-rosa nas bocas dos mortos.

78 Astrônomo italiano, mineralogista e físico, autor de O Espelho das Pedras (The Mirror of

Stones), tratado sobre pedras preciosas. (N. do T.) 79 Alguns dos vocábulos neste parágrafo são adaptações de termos cuja origem é desconhecida.

Não se sabe se o autor os inventou ou se simplesmente caíram em desuso de tal maneira que não há vestígios de suas formas contemporâneas. Portanto, os termos “hidrópicus”, “meloceus” e “aspilates” são adaptações dos originais hidropicus, meloceus e aspilates. (N. do T.) 80 Lendário soberano cristão do Oriente, detinha as funções de patriarca e rei, correspondendo ao imperador da Etiópia. (N. do T.) 81 Thomas Lodge (1558-1625) foi um dramaturgo e escritor inglês. Seu romance A Margarite of America (sem tradução para o português) narra a improvável história de amor entre um príncipe peruano e a filha do rei do grão-ducado de Moscou. (N. do T.) 82 Nome dado ao Japão pelo viajante Marco Polo. Porém, o que ele achava ser o atual arquipélago do Japão era, na verdade, território chinês. (N. do T.)

Um monstro marinho se enamorara da pérola que um mergulhador trouxera para o Rei Perozes83 e matara o ladrão, chorando sua perda por sete luas. Quando os hunos atraíram tal rei para o grande fosso, ele arremessou-a para longe — é Procópio84 quem nos conta essa história — e nunca mais a encontraram, apesar de o imperador Anastácio85 ter oferecido quinhentas moedas de ouro por ela. O rei de Malabar86 mostrara a um certo veneziano um rosário de trezentas e quatro pérolas, uma para cada deus que ele venerava.

De acordo com o historiador Brantôme, quando o Duque de Valentinois87, filho de Alexandre VI, visitou o Rei Luís XII da França, seu cavalo estava carregado de folhas de ouro e seu chapéu ostentava duas fileiras de rubis, emitindo uma luz extraordinária. O Rei Carlos da Inglaterra cavalgava sobre estribos dos quais pendiam quatrocentos e vinte e um diamantes. Ricardo II tinha um casaco coberto com espinelas, avaliado em trinta mil marcos. Hall88 descreveu Henrique VIII, a caminho da torre antes de sua coroação, usando “um gibão de ouro em relevo com a frente cravejada de diamantes e outras pedras valiosas, além de um enorme talabarte em volta do pescoço com grandes rubis-balas”. Os preferidos de James I da Inglaterra usavam brincos de esmeraldas engastados em filigranas de ouro. Eduardo II ofereceu a Piers Gaveston89 uma armadura de

83 Perozes I ou Peroz I (?-484) foi um xá (equivalente a um rei) do Império Sassânida, o último império persa pré-islâmico. (N. do T.) 84 Procópio de Cesareia (500-565) foi um destacado historiador bizantino do século VI. (N. do T.) 85 Anastácio I (430-518) reinou no Império Bizantino de 491 até sua morte. (N. do T.) 86 O reino de Malabar, ou Arakkal, localizado na costa oeste da Índia, foi estabelecido entre os anos 1545 e 1819, quando foi anexado ao Reino Unido Britânico. (N. do T.) 87 Título do príncipe de Mônaco César Bórgia, ou Cesare Borgia (1475-1507), filho do papa

Alexandre I. (N. do T.) 88 Eduardo Hall (1498-1547) foi um cronista e advogado inglês, responsável pela edição de um compêndio sobre os monarcas ingleses que, futuramente, passou a ser conhecido como “Crônicas de Hall”. (N. do T.) 89 Piers Gaveston (1284-1312) foi o primeiro Conde da Cornualha. (N. do T.)

ouro vermelho cravejada de cristais de quartzo vermelhos, com o colarinho de rosas douradas incrustadas com turquesas e um barrete coberto de pérolas. Henrique II usava luvas enfeitadas com joias que chegavam aos cotovelos e tinha uma luva de falcoaria bordada com doze rubis e cinquenta e duas pérolas grandes. A coroa ducal de Carlos, o Audaz, último duque da Borgonha de sua dinastia, era decorada com pérolas em formato de peras e cravejada de safiras.

Como a vida já fora sofisticada! Tão deslumbrante em sua pompa e ornamentação! Até mesmo ler sobre o luxo dos mortos era maravilhoso.

Ele voltou, então, sua atenção aos bordados e às tapeçarias que faziam o papel de afrescos nas frias salas das nações do norte da Europa. À medida que investigava o assunto — e ele sempre teve uma extraordinária capacidade de ficar completamente absorto por qualquer coisa a que se dedicasse — sentia-se quase entristecido ao observar a ruína que o tempo provocava nas coisas belas e maravilhosas. De qualquer forma, ele escapara disso. Um verão seguia o outro, e os junquilhos amarelos floresciam e morriam muitas e muitas vezes, e noites de horror repetiam a história de sua vergonha, mas ele permanecia inalterado. Nenhum inverno arruinara seu rosto ou manchara seu viço. Como era diferente com as coisas materiais! Para onde tinham ido? Onde estava a grande capa com tons violeta, na qual os deuses lutavam contra os gigantes, tecida por garotas morenas para o deleite de Atena? Onde estava o enorme velário90 que Nero estendera sobre o Coliseu de Roma, aquela gigantesca tela púrpura em que estava representado o céu estrelado, com Apolo conduzindo uma carruagem puxada por corcéis brancos com rédeas douradas? Ele ansiava por ver as curiosas toalhas de mesa feitas para o Sacerdote do Sol91, em que se exibiam todas as iguarias que

90 Espécie de toldo usado pelos romanos. (N. do T.) 91 Referência a Heliogábalo, imperador romano entre os anos 218 e 222, que instituiu o culto ao Deus Sol, uma divindade importada de Emesa, atual Homs, na Síria. (N. do T.)

se poderia desejar para um banquete; a mortalha do Rei Quilpérico92 , com suas trezentas abelhas douradas; as fantásticas túnicas que despertaram a indignação do Bispo do Ponto93, enfeitadas com “leões, panteras, ursos, cães, florestas, rochas, caçadores — tudo, na verdade, que um pintor pode copiar da natureza”; e a túnica que Carlos, o Duque de Orléans, usara certa vez, em cujas mangas foram bordados os versos de uma canção começando com “madame, je suis tout joyeux”94 e seu acompanhamento musical trabalhado em fios de ouro, com cada nota — em formato quadrado naquela época — formada por quatro pérolas. Ele leu sobre o quarto preparado no palácio de Reims para o uso da rainha Joana de Borgonha, decorado com “mil, trezentos e vinte e um papagaios bordados, ostentando as armas do rei, e quinhentas e sessenta e uma borboletas, cujas asas eram igualmente decoradas com as armas da rainha, tudo trabalhado em ouro”. Catarina de Médicis encomendara um leito de morte para si com veludo negro polvilhado com quartos crescentes e sóis. Suas cortinas eram feitas de seda adamascada, com grinaldas e guirlandas repletas de folhas sobre um fundo de ouro e prata, e com as barras compostas de franjas bordadas com pérolas. E, no quarto em que estavam colocadas, foram expostos inúmeros objetos da rainha de veludo preto com detalhes prateados. Luís XIV tinha cariátides95 de quase cinco metros de altura bordadas em ouro em seus aposentos. O leito real de Sobieski, rei da Polônia, era feito de brocados dourados de Esmirna96 com versos do Alcorão bordados com turquesas. Seus pés eram de prata dourada, lindamente

92 Quilpérico I (539-584) foi rei da Nêustria, localizada na atual costa atlântica da França, de 561 até sua morte. (N. do T.) 93 Antiga província romana, atualmente correspondente à Armênia e parte da Turquia. (N. do T.) 94 “Senhora, estou muito feliz”, em francês. (N. do T.) 95 Figuras femininas esculpidas, usadas geralmente na estrutura dos antigos templos greco-romanos. (N. do T.) 96 Antiga cidade grega na costa do Mar Egeu. Atualmente, faz parte da Turquia. (N. do T.)

esculpidos e profusamente decorados com medalhões esmaltados e cravejados de joias. Fora trazido do acampamento militar turco defronte à cidade de Viena, e o estandarte de Maomé permanecera sob sua trêmula cobertura dourada.

E assim, por um ano inteiro, procurou acumular os espécimes mais sofisticados de trabalhos em tecidos e bordados que conseguiu encontrar, adquirindo as delicadas musselinas de Délhi, finamente trabalhadas com fios de ouro esticados e costurados com asas iridescentes de besouros; as gazes de Daca, que, por sua transparência, são conhecidas no Oriente como “ar trançado”, “água corrente” e “orvalho da noite”; tecidos com estranhas estampas de Java; elaboradas tapeçarias amarelas da China; livros encadernados com cetins ocres ou sedas azul-claras, com motivos de flores-de-lis, pássaros e outras imagens; véus rendados feitos com ponto húngaro; brocados sicilianos e rijos veludos espanhóis; peças georgianas, com suas moedas douradas, e fukusas japonesas97, com seus tons de ouro e verde e seus pássaros com maravilhosas plumagens.

Também tinha particular paixão pelas vestes eclesiásticas, assim como, na verdade, por tudo conectado ao cerimonial da Igreja. Nas enormes arcas de cedro enfileiradas na galeria oeste de sua casa, ele havia armazenado muitos belos e raros espécimes do autêntico vestuário da Noiva de Cristo, que deve usar púrpura, joias e fino linho, a fim de esconder seu corpo pálido e macilento, desgastado pelo almejado sofrimento e ferido pela autoflagelação. Possuía uma magnífica pluvial98 de seda carmim e damasco tecido com fios de ouro, estampada com um padrão de romãs douradas dispostas sobre flores cerimoniais de seis pétalas, com o desenho do rione

97 Tipo de tecido japonês usado para embrulhar presentes ou limpar os utensílios utilizados na cerimônia do chá. (N. do T.) 98 Paramento litúrgico que faz parte de várias tradições ocidentais do Cristianismo. (N. do T.)

de Roma99 em cada lado, trabalhado em minúsculas pérolas. Os aurifrígios100 eram divididos em painéis que simbolizavam as cenas da vida da Virgem, e sua coroação era representada com sedas coloridas por sobre o capuz. Tratava-se de um trabalho italiano do século XV. Outra pluvial era feita de veludo verde, bordada com conjuntos de folhas de acanto no formato de coração, das quais abriam-se flores brancas com longas hastes e cujos detalhes eram realçados por fios prateados e cristais coloridos. O fecho ostentava a cabeça de um serafim em relevo trabalhado com fios de ouro. Seus aurifrígios eram entrelaçados geometricamente com seda dourada e vermelha, e adornados com medalhas de muitos santos e mártires, entre os quais, São Sebastião. Tinha também casulas101 de seda âmbar e seda azul, de brocados dourados, de seda adamascada amarela e de tecidos de ouro, estampadas com representações da Paixão e Crucificação de Cristo e bordadas com leões, pavões e outros emblemas; dalmáticas102 de cetim branco e seda adamascada cor-de-rosa, decoradas com tulipas, golfinhos e flores-de-lis; frontões de altar de veludo carmim e linho azul; e muitos corporais103, mantilhas para cálices e sudários. Havia algo que excitava sua imaginação nos ofícios religiosos em que tais coisas eram utilizadas.

Esses tesouros, e tudo que ele colecionava em sua adorável casa, eram para ele meios para esquecer, modos pelos quais poderia escapar, por uma temporada, do medo que parecia-lhe, às vezes, grande demais para suportar. Nas paredes do quarto trancado e

99 No original, o autor parece confundir o desenho do rione, uma pinha de bronze que figura em diversos símbolos católicos, com um abacaxi (no original, pine-apple). Optou-se pelo uso da nomenclatura correta. (N. do T.) 100 Faixa ou borda ricamente bordada, parte especialmente de vestimentas eclesiásticas. (N. do T.) 101 Vestes litúrgicas confeccionadas com seda ou damasco. (N. do T.) 102 Dalmática é o traje litúrgico próprio do diácono na Igreja Católica. É colocada sobre a túnica e a estola e utilizada na celebração da missa. (N. do T.) 103 Pano, geralmente de linho, usado na missa junto dos cálices sagrados. (N. do T.)

solitário onde passara tanto tempo de sua meninice, pendurara com suas próprias mãos o terrível retrato cujas feições mutantes mostravam a verdadeira degradação de sua vida e, diante dele, colocara a mortalha púrpura e dourada, como uma cortina. Por semanas não aparecia ali e esquecia-se da horrenda coisa pintada, recobrando seu coração leve, sua maravilhosa alegria, sua concentração apaixonada na mera existência. Então, de súbito, saía sorrateiramente de casa certas noites, descia para lugares pavorosos perto de Blue Gate Fields104 e ali ficava, dia após dia, até que fosse expulso. Ao retornar, sentava-se diante do quadro, por vezes odiando tanto o retrato quanto a si mesmo, por vezes, contudo — cheio do orgulho próprio do individualismo que representa metade do fascínio pelo pecado —, sorria com um prazer secreto para a sombra disforme que era obrigada a carregar o fardo que deveria ter sido dele.

Depois de alguns anos, não suportando ficar muito tempo longe da Inglaterra, desistiu da propriedade que dividia com Lorde Henry em Trouville105, assim como da casinha de paredes brancas em Argel, onde passaram o inverno mais de uma vez. Odiava separar-se do quadro que era parte tão importante de sua vida, além de temer que, durante sua ausência, alguém pudesse ter acesso ao quarto, apesar das elaboradas trancas que mandara instalar na porta.

Tinha plena consciência de que o quadro não lhes diria nada. Era verdade que o retrato ainda preservava, sob toda a imundície e feiura do rosto, uma semelhança marcante com ele; mas o que poderiam deduzir a partir dela? Ele riria de qualquer um que tentasse insultá-lo. Não fora ele que o pintara. O que lhe importava se parecia repugnante e cheio de vergonha? Mesmo que lhes contasse a verdade, acreditariam nele?

104 Blue Gate Fields foi uma das áreas mais degradadas que já existiram ao norte das antigas docas do leste de Londres, durante a Era Vitoriana. (N. do T.) 105 Cidade costeira na França. (N. do T.)

Ainda assim, tinha medo. Às vezes, quando estava em sua grande casa em Nottinghamshire, entretendo os elegantes jovens de sua própria classe — que eram sua principal companhia — e chocando o condado com o luxo imoral e o deslumbrante esplendor do seu modo de vida, subitamente deixava seus convidados e corria de volta à cidade para verificar se não haviam mexido na porta e se o quadro ainda estava no mesmo lugar. E se ele fosse roubado? Só de pensar nisso ficava gélido de horror. Então, certamente o mundo conheceria seu segredo. Talvez o mundo já suspeitasse.

Pois, ao mesmo tempo em que fascinava muitos, não eram poucos os que desconfiavam dele. Quase fora banido de um clube do West End do qual tinha todo o direito de tornar-se membro, dada sua origem e sua posição social, e comentava-se que, em certa ocasião, ao ser levado por um amigo para o salão de fumo do Churchill, o Duque de Berwick e um outro cavalheiro levantaram-se propositalmente e saíram. Curiosas histórias a seu respeito tornaram-se habituais depois que ele passou dos vinte e cinco anos de idade. Havia boatos de que fora visto brigando com marinheiros estrangeiros, em um covil sórdido nas áreas mais distantes de Whitechapel, e de que associava-se a ladrões e falsificadores, conhecendo os segredos de seus ofícios. Suas anormais ausências tornaram-se célebres e, quando costumava reaparecer novamente na sociedade, os homens sussurravam pelos cantos uns para os outros, passavam por ele com olhares desdenhosos ou observavam-no com uma frieza inquisitiva, como se estivessem determinados a descobrir seu segredo.

Certamente, ele nem sequer percebia tais insolências e tentativas de desprezá-lo e, na opinião da maioria das pessoas, suas maneiras sinceras e afáveis, seu encantador sorriso de menino e a eterna elegância da maravilhosa juventude que parecia nunca o abandonar eram, em si mesmos, resposta suficiente às calúnias — pois assim foram chamadas — que circulavam a seu respeito. Observava-se, no entanto, que alguns dos que haviam tido mais intimidade com ele pareciam, depois de um tempo, evitá-lo. Mulheres que o adoravam

à loucura e que, por sua causa, enfrentaram todo tipo de censura social e rebelaram-se contra as convenções foram vistas empalidecendo de vergonha e horror quando Dorian Gray entrava na sala.

Mesmo assim, esses escândalos sussurrados apenas aumentavam, aos olhos de muitos, seu estranho e perigoso encanto. Sua imensa fortuna era um elemento certo de segurança. A sociedade — a sociedade civilizada, pelo menos — nunca se predispõe a acreditar em coisa alguma em detrimento dos que são ricos e fascinantes. Ela instintivamente sente que as boas maneiras são mais importantes que a moral e, em sua opinião, ser altamente respeitável tem menos valor que possuir um bom chef. Afinal de contas, ouvir dizer que o homem que ofereceu um jantar ruim ou um vinho barato tem uma vida privada irrepreensível não é lá muito consolador. Nem mesmo as virtudes cardinais podem remediar entradas frias, como Lorde Henry observara certa vez em uma discussão sobre o assunto, e há, provavelmente, muito a ser dito a favor de sua opinião. Pois os princípios da boa sociedade são, ou deveriam ser, iguais aos princípios da arte. A forma lhe é absolutamente essencial. Ela deve ter a dignidade de uma cerimônia, assim como sua irrealidade, e deve combinar o caráter dissimulado de uma peça romântica com a sagacidade e a beleza que tornam tais peças encantadoras. Seria a falta de sinceridade algo tão terrível assim? Acredito que não. Trata-se apenas de um método através do qual podemos multiplicar nossa personalidade.

De qualquer forma, essa era a opinião de Dorian Gray. Ele costumava espantar-se com a psicologia rasa daqueles que definiam o ego humano como algo simples, permanente, confiável e de essência única. Para ele, o homem era um ser com infinitas vidas e infinitas sensações, uma criatura complexa e multiforme, que elaborava dentro de si estranhos legados de pensamento e paixão e cuja carne era manchada pelas moléstias monstruosas dos mortos. Adorava passear pela fria e desolada galeria de quadros de sua casa de campo e olhar para os vários retratos daqueles cujo

sangue circulava em suas veias. Ali estava Philip Herbert, descrito por Francis Osborne106, em suas Memórias dos Reinados da Rainha Elizabeth e do Rei James, como alguém que fora “acariciado pela corte por seu belo rosto, que não o acompanhou por muito tempo”. Levaria ele, por vezes, a vida do jovem Herbert? Haveria algum estranho germe venenoso rastejado de corpo em corpo até chegar ao dele? Teria sido alguma obscura sensação daquele encanto arruinado que o levara tão subitamente, e quase sem porquê, a proclamar, no ateliê de Basil Hallward, aquela louca súplica que tanto mudara sua vida? Aqui, em um gibão vermelho bordado de ouro com sobretudo incrustado de joias e gorgeira107 e punhos com barras douradas, estava Sir Anthony Sherard, com sua armadura negra e prateada colocada a seus pés. Qual teria sido o legado desse homem? Teria o amante da Rainha Joana de Nápoles lhe transmitido uma herança de pecado e vergonha? Seriam suas próprias ações meros sonhos que o falecido homem não ousara realizar? Aqui, da tela desbotada, sorria Lady Elizabeth Devereux, com seu capuz de gaze, corpete de pérolas e mangas de retalhos cor-de-rosa. Tinha na mão direita uma flor e, na esquerda, segurava um colar esmaltado de rosas brancas e rosadas. Sobre uma mesa ao seu lado, havia um bandolim e uma maçã. Seus pequenos sapatos pontudos continham grandes rosetas verdes. Ele conhecia sua vida e as estranhas histórias que se contavam sobre seus amantes. Haveria nele algo do temperamento dela? Aqueles olhos ovais, com pálpebras pesadas, pareciam olhá-lo com curiosidade. E quanto a George Willoughby, com seus cabelos empoados e seu fantástico tapa-olho? Como aparentava ser mau! Seu rosto era melancólico e moreno, e os lábios sensuais pareciam retorcidos pelo desdém. Delicadas pregas de renda caíam sobre as

106 Francis Osborne (1593-1659) foi um ensaísta inglês de renome na época da restauração inglesa. A obra citada posteriormente é uma de suas menores, dedicada a fofocas sobre a vida na corte. (N. do T.) 107 Gola formada por uma sobreposição de babados. (N. do T.)

mãos amareladas e magras, sobrecarregadas de anéis. Ele tinha sido um janota do século XVIII e amigo, na juventude, de Lorde Ferrars. E quanto ao segundo Lorde Beckenham, companheiro do príncipe regente em seus dias mais selvagens e uma das testemunhas de seu casamento secreto com a sra. Fitzherbert? Como era orgulhoso e bonito, com seus cachos castanhos e a pose insolente! Que paixões teria ele relegado? O mundo julgava-o como um infame. Havia conduzido orgias em Carlton House. A Estrela da Jarreteira108 brilhava em seu peito. Ao lado dele pendia o retrato da esposa, uma mulher pálida de lábios finos, vestida de preto. O sangue dela também corria dentro dele. Como tudo aquilo parecia estranho! E sua mãe com o rosto parecido com o de Lady Hamilton109 e seus lábios úmidos, da cor do vinho — ele sabia o que havia herdado dela. Fora sua beleza e sua paixão pela beleza dos outros. Ela ria para ele em seu folgado vestido de seda. Tinha folhas de videira nos cabelos. O líquido púrpura vazava do cálice que ela segurava. Os cravos da pintura haviam murchado, mas os olhos continuavam maravilhosos tanto na profundidade quanto no esplendor da cor. Pareciam segui-lo aonde quer que fosse.

Mesmo assim, além dos antepassados de nossa própria linhagem, todos temos ancestrais na literatura, muitos deles talvez mais próximos ao nosso tipo e temperamento e, certamente, exercendo uma influência da qual somos muito mais conscientes. Havia ocasiões em que parecia a Dorian Gray que toda a história era simplesmente um registro de sua própria vida, não como ele a vivera realmente, mas como sua imaginação a criara para si, como fora em seu cérebro e suas paixões. Sentia como se as conhecesse todas, essas estranhas e terríveis figuras que passaram pelo palco do mundo e tornaram

108 A Estrela da Ordem da Jarreteira é uma condecoração militar da cavalaria britânica, a mais antiga da Inglaterra, criada em 1348 pelo Rei Eduardo III. (N. do T.) 109 Lady Hamilton (1765-1815) é conhecida por ter sido a amante do oficial britânico Lorde

Nelson e musa do pintor George Romney. (N. do T.)

o pecado tão maravilhoso e o mal tão cheio de sutilezas. Parecia-lhe que, de algum modo misterioso, suas vidas haviam sido a sua própria. O herói do maravilhoso romance que tanto influenciara sua vida tivera, ele mesmo, essa estranha fantasia. No sétimo capítulo ele conta como, coroado de louros para que um raio não o atingisse, sentara-se, como Tibério, em um jardim em Capri e começara a ler os obscenos livros de Elefantis110, enquanto anões e pavões passeavam ao redor dele, e o flautista zombava do aspersor do incensário; como Calígula, participara de farras com jóqueis com camisas verdes em seus estábulos e ceara em uma manjedoura de marfim com um cavalo com o focinho adornado com joias; como Domiciano, vagara por um corredor forrado de espelhos de mármore, buscando com olhos exaustos o reflexo do punhal que deveria acabar com seus dias, agoniado com aquele tédio, aquele taedium vitae111 que atinge aqueles cuja vida nada nega; e espiara através de uma esmeralda transparente a desordem vermelha do circo e, então, em uma liteira112 de pérolas e púrpura puxada por mulas com ferraduras de prata, fora levado pela Rua das Romãs113 até uma Casa de Ouro e ouvira homens gritando por Nero quando passava; e, como Heliogábalo114, pintara o rosto com cores diversas e tomara o lugar das mulheres, buscando a Lua de Cartago e entregando-a ao Sol em um casamento místico. Dorian costumava ler esse capítulo fantástico inúmeras vezes, além dos dois capítulos imediatamente seguintes, nos quais,

110 Elefantis (final do século I) foi uma poetisa e médica grega aparentemente renomada no mundo clássico como a autora de um notório manual de sexo. (N. do T.) 111 Do latim, um estado de tédio extremo; literalmente cansaço da vida. (N. do T.) 112 Cadeirinha portátil e coberta, sustentada por dois varais compridos e conduzida por animais ou escravos. (N. do T.) 113 As romãs, em toda a obra de Oscar Wilde, são — de acordo com estudiosos — um símbolo do pecado, em substituição à maçã bíblica. Na frase assinalada, a “Rua das Romãs” e a “Casa de Ouro” representam, respectivamente, uma vida de pecados e seu templo de culto. A figura de Nero vem coroar esse percurso pecaminoso. (N. do T.) 114 Ver nota 91. (N. do T.)

como em algumas curiosas tapeçarias ou esmaltados habilmente trabalhados, foram retratadas as belas e horríveis formas daqueles cujo vício, sangue e exaustão tornaram-nos monstruosos ou loucos: Filippo, Duque de Milão, que assassinou a esposa e pintou seus lábios com um veneno escarlate para que seu amante pudesse sugar a morte do cadáver que acariciava; Pietro Barbo, o veneziano — conhecido como Paulo II —, que, tamanha a sua vaidade, queria assumir o título de Formoso, e cuja tiara, avaliada em duzentos mil florins, foi paga com a prática de um terrível pecado; Gian Maria Visconti, que usava cães de caça para perseguir homens vivos e cujo corpo assassinado foi coberto com rosas por uma meretriz que o amara; Bórgia em seu cavalo branco, com o Fratricídio cavalgando a seu lado e sua capa manchada com o sangue de Perotto; Pietro Riario, o jovem cardeal arcebispo de Florença, filho e protegido do papa Sisto IV, cuja beleza era apenas igualada por sua devassidão e que recebeu Leonora de Aragão em um pavilhão coberto por seda branca e carmim, repleto de ninfas e centauros, mandando pintar um menino de ouro para que pudesse servi-la no banquete, como Ganimedes115 ou Hilas116; Ezzelino, cuja melancolia só podia ser curada pelo espetáculo da morte e que tinha uma paixão por sangue vermelho semelhante à que os outros homens têm por vinho tinto — o filho do Demônio, como era relatado, que enganou o pai nos dados apostando com ele a própria alma; Giambattista Cibo, que, por pura chacota, tomou o nome papal de Inocêncio e em cujas veias entorpecidas um médico judeu injetou o sangue de três rapazes; Sigismundo Malatesta, amante de Isotta e senhor de Rimini, cuja imagem foi queimada em Roma como inimigo de Deus e dos homens, que estrangulou Polissena com um lenço e ofereceu

115 Ganimedes, na mitologia grega, era um príncipe de Troia, que Zeus levou para o Olimpo para tornar-se copeiro dos deuses. (N. do T.) 116 Na mitologia grega, Hilas era um nobre amado por Hércules, que acaba sequestrado pelas ninfas por causa de sua beleza. (N. do T.)

veneno a Ginevra d’Este em um cálice de esmeraldas e, em honra a uma vergonhosa paixão, construiu uma igreja pagã para cultos cristãos; Carlos VI, que adorava a esposa do irmão tão loucamente que um leproso o avisara sobre a insanidade que tomaria conta dele e que, quando seu cérebro adoeceu e tornou-se alheio a tudo, só podia ser acalmado pelas cartas do tarô árabe117 com as imagens do amor, da morte e da loucura; e, em seu casaco ajustado, chapéu adornado com joias e cachos semelhantes a acantos118, Grifonetto Baglioni, que matou Astorre com sua noiva e Simonetto com seu pajem, cuja beleza era tal que, quando jazia à beira da morte na praça amarela de Perúgia, os que o odiaram não podiam fazer nada além de chorar, e Atalanta, que o amaldiçoara, acabou abençoando-o.

Havia um terrível fascínio em todos eles. Via-os à noite e eles perturbavam sua imaginação durante o dia. A Renascença dominava estranhas maneiras de envenenamento — por meio de um capacete ou uma tocha acesa, de uma luva bordada ou um leque adornado com joias, de um frasco de perfume dourado ou um colar de âmbar. Dorian Gray fora envenenado por um livro. Havia momentos em que ele via o mal simplesmente como um meio para realizar sua concepção da beleza.

117 No original, Saracen Cards fazem referência às Cartas Mamlûk, uma espécie de tarô de origem árabe encontrado no norte da África, no atual Egito. Essas cartas encontram-se atualmente no Museu Topkapi de Istambul, na Turquia. (N. do T.) 118 Plantas ornamentais. (N. do T.)

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