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CAPÍTULO 15

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CAPÍTULO 14

CAPÍTULO 14

Naquela noite, às oito e meia, vestindo-se sofisticadamente e usando grandes violetas-de-parma na lapela, Dorian Gray foi conduzido à sala de estar de Lady Narborough por criados servis. Sua testa latejava de nervoso e ele sentia-se extremamente agitado, mas, quando curvou-se para beijar a mão de sua anfitriã, suas maneiras foram graciosas como sempre. Talvez ninguém pareça tão à vontade quanto no momento em que precisa representar um papel. Certamente ninguém que olhasse para Dorian Gray naquela noite acreditaria que ele tinha passado por uma tragédia tão horrível quanto qualquer outra de nossa época. Aqueles dedos de formas tão refinadas nunca poderiam ter agarrado uma faca para cometer um pecado, nem sequer aqueles lábios sorridentes teriam clamado por Deus e por sua bondade. Ele mesmo não conseguia deixar de se espantar com a serenidade de seu comportamento e, por um momento, sentiu intensamente o terrível prazer de uma vida dupla.

Era um grupo pequeno, reunido com certa pressa por Lady Narborough, uma mulher muito inteligente com os restos de uma feiura realmente notável, como Lorde Henry costumava descrevê-la. Ela provara ser uma excelente esposa para um de nossos embaixadores mais entediantes e, tendo enterrado o marido apropriadamente em um mausoléu de mármore, que ela mesma desenhou, e casado suas filhas com homens ricos e bastante idosos, dedicava-se agora aos prazeres da literatura francesa, da culinária francesa e do espírito francês, quando conseguia captá-lo.

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Dorian era um de seus favoritos mais distintos e ela sempre dizia-lhe que ficava extremamente feliz por não tê-lo conhecido quando jovem.

— Eu sei, meu querido, que teria me apaixonado loucamente pelo senhor — costumava dizer — e teria jogado meu chapéu no moinho por sua causa133. É muita sorte não termos pensado em convidá-lo à época. Na verdade, nossos chapéus eram tão pouco atraentes e os moinhos estavam tão ocupados em tentar captar o vento que nunca cheguei a flertar com ninguém. No entanto, Narborough era o culpado de tudo. Ele era terrivelmente míope e não há nenhum prazer em enganar um marido que nunca vê nada.

Seus convidados esta noite eram demasiado enfadonhos. A verdade é que, como ela explicou a Dorian por trás de um leque bastante surrado, uma de suas filhas casadas aparecera subitamente para ficar com ela e, para piorar tudo, havia trazido o marido consigo. — Acho muito indelicado da parte dela, meu querido — sussurrou. — Claro que fico com eles todos os verões depois de voltar de Homburg134, mas uma velha como eu deve respirar um pouco de ar fresco de vez em quando e, além disso, sou eu quem lhes traz um pouco de agitação. O senhor não faz ideia do tipo de vida que eles levam por lá. A pura vida no campo, completamente inalterada. Levantam-se cedo porque têm muito a fazer e vão cedo para a cama porque têm pouco em que pensar. Não há um escândalo nas redondezas desde a época da rainha Elizabeth135 e, por isso, todos caem no sono logo após o jantar. O senhor não deve se sentar ao lado de nenhum dos dois. Deve sentar-se ao meu lado e divertir-me.

Dorian murmurou algum elogio gentil e olhou ao redor da sala. Sim, certamente era um grupo entediante. Nunca vira duas daquelas

133 A expressão em inglês “throw one’s bonnet over the mills” significa agir de maneira perturbada ou imprudente e refere-se ao personagem homônimo do romance Dom Quixote, que joga o chapéu sobre um moinho de vento — que ele imagina ser um gigante — como um desafio contra ele. Optou-se por manter a expressão original. (N. do T.) 134 Pequena cidade suíça. (N. do T.) 135 Trata-se da Rainha Elizabeth I (1533-1603), filha de Henrique VIII e última monarca da

Casa dos Tudor, que governou de 1558 até sua morte. (N. do T.)

pessoas e o resto consistia em Ernest Harrowden, um daqueles medíocres de meia-idade tão comuns nos clubes de Londres que nem sequer têm inimigos, mas que são completamente detestados pelos amigos; Lady Ruxton, uma mulher de quarenta e sete anos vestida de forma espalhafatosa e com nariz adunco, que estava sempre tentando pôr em risco sua reputação, mas tinha tão poucos atrativos que, para sua grande decepção, ninguém jamais acreditaria em algo que a desmerecesse; a sra. Erlynne, uma pobre coitada insistente, com uma encantadora língua presa e cabelos ruivos venezianos; Lady Alice Chapman, a filha da anfitriã, uma garota desleixada e enfadonha, com um daqueles rostos britânicos característicos, os quais, vistos uma única vez, são completamente esquecidos; e seu marido, uma criatura de bochechas vermelhas e bigode branco, que, como muitos da sua classe, parecia acreditar que a jovialidade excessiva poderia corrigir a absoluta falta de intelecto.

Ele já tinha se arrependido de ter vindo, quando Lady Narborough, olhando para o grande relógio ormolu136 que se esparramava em curvas berrantes no consolo da lareira drapeado de malva, exclamou: —Que horror Henry Wotton estar tão atrasado! Por acaso, pedi sua confirmação esta manhã e ele prometeu veementemente não me decepcionar.

Era um alívio que Harry estivesse ali e, quando a porta se abriu e ele ouviu sua lenta e melodiosa voz atribuindo certo charme a algum pedido de desculpas dissimulado, parou de sentir-se entediado.

Mas, durante o jantar, não conseguiu comer nada. Todos os pratos voltaram intocados. Lady Narborough continuava a repreendê-lo pelo que chamava de “um insulto ao pobre Adolphe, que elaborara o cardápio especialmente para o senhor” e, vez ou outra, Lorde Henry

136 Termo usado para a técnica de aplicação de amálgama de mercúrio e ouro de alto quilate, finamente moído, num objeto de bronze. Também conhecido como bronze doré. (N. do T.)

observava-o, admirado com seu silêncio e seus modos distraídos. De tempos em tempos, o mordomo enchia sua taça de champanhe. Ele bebia com voracidade e sua sede parecia aumentar. — Dorian — disse Lorde Henry, afinal, enquanto o chaud-froid137 era servido —, qual é o problema com você esta noite? Você parece indisposto. — Acredito que esteja apaixonado — exclamou Lady Narborough — e que tenha medo de dizer-me receando que eu fique com ciúmes. Ele está certo. Eu certamente ficaria. — Querida Lady Narborough — murmurou Dorian, sorrindo. — Já faz uma semana que não me apaixono — na verdade, desde que Madame de Ferrol deixou a cidade. — Como os homens podem se apaixonar por aquela mulher? — exclamou a velha. — Realmente não compreendo. — Apenas porque ela nos faz lembrar de quando a senhora era uma garotinha, Lady Narborough — disse Lorde Henry. — Ela é o único elo entre nós e seus vestidos de menina. — Ela não lembra em nada meus vestidos de menina, Lorde Henry. Mas eu me lembro muito bem dela em Viena trinta anos atrás e de como eram seus decotes naquela época. — Seus decotes continuam iguais — respondeu ele pegando uma azeitona com os dedos longos — e, quando está com um vestido muito elegante, parece-se com uma edição de luxo de um romance francês ruim. Ela é realmente maravilhosa e cheia de surpresas. Sua capacidade de afeiçoar-se à família é extraordinária. Quando seu terceiro marido morreu, seus cabelos ficaram dourados de tristeza. — Como pode, Harry! — exclamou Dorian. — É a explicação mais romântica — riu a anfitriã. — Seu terceiro marido, Lorde Henry? Isso quer dizer que Ferrol é o quarto?

137 Prato cozido de ave ou caça, servido frio com gelatina, geleia ou molho. (N. do T.)

— Certamente, Lady Narborough. — Não acredito em uma palavra do que diz. — Bom, pergunte ao sr. Gray. Ele é um de seus amigos mais íntimos. — É verdade, sr. Gray? — Ela me garante que é verdade, Lady Narborough — disse Dorian. — Perguntei-lhe se, como Marguerite de Navarra138, ela tinha seus corações embalsamados e pendurados em sua cinta. Disse-me que não, porque nenhum deles tinha um coração. — Quatro maridos! Palavra de honra, isso sim é trop de zèle139 . — Trop d’audace140, disse-lhe eu — exclamou Dorian. — Ah, ela é audaciosa o suficiente para qualquer coisa, meu querido. E como é Ferrol? Não o conheço. — Os maridos de mulheres muito bonitas pertencem às classes de criminosos — disse Lorde Henry, bebericando seu vinho.

Lady Narborough acertou-o com o leque. — Lorde Henry, não me surpreende nem um pouco que o mundo todo diga que o senhor é extremamente malvado. — Mas que mundo diz isso? — perguntou Lorde Henry erguendo as sobrancelhas. — Só pode ser o próximo mundo. Este mundo e eu nos damos muito bem. — Todo mundo que eu conheço diz que o senhor é perverso — exclamou a velha senhora balançando a cabeça.

Lorde Henry ficou sério por alguns instantes. — É perfeitamente monstruoso — disse ele, afinal — a forma como as pessoas, hoje em dia, ficam falando coisas por trás dos outros que são absoluta e inteiramente verdadeiras.

138 Marguerite ou Margarida de Navarra (1492-1549) foi rainha consorte de Navarra pelo seu casamento com o Rei Henrique II. (N. do T.) 139 “Excesso de zelo”, em francês. (N. do T.) 140 “Excesso de audácia”, em francês. (N. do T.)

— Ele não é incorrigível? — clamou Dorian curvando-se para a frente em sua cadeira. — Espero que sim — disse a anfitriã, rindo. — Mas, realmente, se todos os senhores idolatram Madame de Ferrol dessa maneira absurda, deverei me casar novamente em breve para ficar popular. — A senhora nunca se casará novamente, Lady Narborough — interrompeu Lorde Henry. — Foi feliz demais. Quando uma mulher se casa de novo, é porque detestava o primeiro marido. Quando um homem se casa de novo, é porque adorava a primeira mulher. As mulheres tentam a sorte; os homens põem-na em perigo. — Narborough não era perfeito — exclamou a velha senhora. — Se tivesse sido, a senhora não o teria amado, minha querida — foi a réplica. — As mulheres nos amam por nossos defeitos. Se temos o bastante, elas nos perdoam tudo, até mesmo nosso intelecto. Receio que a senhora nunca mais me convidará para jantar novamente depois de dizer isso, Lady Narborough, mas é a pura verdade. — Certamente é verdade, Lorde Henry. Se nós, mulheres, não os amássemos por seus defeitos, onde todos os homens estariam? Nenhum dos senhores se casaria nunca. Seriam um grupo de infelizes solteirões. No entanto, isso não os tornaria muito diferentes. Hoje em dia, os homens casados vivem como solteirões e, todos os solteirões, como homens casados. — Fin de siècle — murmurou Lorde Henry. — Fin du globe141 — respondeu sua anfitriã. — Quem dera fosse realmente fin du globe — disse Dorian, suspirando. — A vida é uma grande decepção. — Ah, meu querido — disse Lady Narborough enquanto colocava as luvas —, não me diga que o senhor tem uma vida exaustiva. Quando um homem diz isso, sabe-se que a vida o esgotou. Lorde Henry é muito perverso e, às vezes, gostaria de também tê-lo sido;

141 Respectivamente “fim de século” e “fim do mundo”, em francês. (N. do T.)

mas o senhor foi feito para ser bom — sua aparência é de pura bondade. Devo encontrar-lhe uma agradável esposa. Lorde Henry, o senhor não acha que o sr. Gray deveria se casar? — Vivo dizendo-lhe isso, Lady Narborough — disse Lorde Henry curvando-se. — Bom, precisamos procurar um par apropriado para ele. Vou examinar a Debrett142 com muito cuidado hoje à noite e elaborar uma lista com todas as jovens damas qualificadas. — Com as respectivas idades, Lady Narborough? — perguntou Dorian.

— Certamente, com as idades levemente editadas. Mas nada deve ser feito com pressa. Quero que seja o que o Morning Post143 chama de aliança adequada e também que os dois sejam felizes. — Que disparate as pessoas falarem sobre casamentos felizes! — exclamou Lorde Henry. — Um homem pode ser feliz com qualquer mulher, desde que não a ame. — Ah! Como o senhor é cínico! — gritou a velha senhora, afastando sua cadeira e acenando para Lady Ruxton com a cabeça. — O senhor deve vir jantar comigo novamente em breve. É um tônico admirável, muito melhor do que o que Sir Andrew receita para mim. Deve me dizer que pessoas gostaria que eu reunisse, no entanto. Quero que seja um evento encantador. — Gosto de homens com futuro e mulheres com passado — respondeu ele. — Ou a senhora acredita que, dessa forma, a festa seria monopolizada pelas mulheres?

142 Debrett’s é uma editora e empresa especializada em etiqueta social, profissional e comportamental. Desde sua fundação, em 1769, edita diversas publicações com listagens de famílias de nobres e pessoas tidas como importantes na sociedade britânica. (N. do T.) 143 O Morning Post foi um jornal conservador britânico publicado em Londres entre 1772 e 1937. (N. do T.)

— Receio que sim — disse ela, rindo, enquanto se levantava. — Mil perdões, minha querida Lady Ruxton — acrescentou. — Não tinha visto que ainda não havia terminado seu cigarro. — Não há problema, Lady Narborough. Fumo demais. Vou começar a moderar meu consumo, no futuro. — Por favor, não faça isso, Lady Ruxton — disse Lorde Henry. — A moderação é algo fatal. Apenas o suficiente é tão ruim quanto uma refeição. Mais do que o suficiente é tão bom quanto um banquete.

Lady Ruxton olhou para ele com curiosidade. — Deve vir explicar-me o que disse algum dia desses, Lorde Henry. Parece-me uma teoria fascinante — murmurou ela, saindo da sala. — Agora lembrem-se de não se estenderem muito falando de política e escândalos — exclamou Lady Narborough da porta. — Se o fizerem, com certeza estaremos nos engalfinhando lá em cima.

Os homens riram, e o sr. Chapman levantou-se, muito sério, da ponta da mesa e juntou-se às pessoas mais importantes144. Dorian Gray mudou de lugar e foi sentar-se ao lado de Lorde Henry. O sr. Chapman começou a falar em voz alta sobre a situação na Câmara dos Comuns. Gargalhou de seus adversários. A palavra doutrinário — palavra tão aterrorizante para a mente britânica — reaparecia de tempos em tempos no meio de suas explosões. Uma aliteração145 servia-lhe como ornamento da oratória. Ele hasteou a Union Jack146 no mastro do pensamento. A estupidez herdada pelo povo — ou o

144 No original, o autor usa duas expressões em inglês, “foot of the table” e “top of the table”, que têm como conotação as áreas ocupadas pelas pessoas menos importantes (ou de companhia menos agradável) e mais importantes, respectivamente, em uma mesa durante um banquete ou outra reunião de pessoas. (N. do T.) 145 Repetição de sons consonantais. O autor usa de ironia para descrever os discursos políticos e, por extensão, a classe política. (N. do T.) 146 Bandeira do Reino Unido. (N. do T.)

bom senso inglês, como ele alegremente denominou — mostrou ser o baluarte adequado para a sociedade.

Um sorriso curvou os lábios de Lorde Henry e ele virou-se, olhando para Dorian. — Está melhor, meu querido amigo? — perguntou. — Parecia bastante indisposto durante o jantar. — Estou muito bem, Harry. Estou cansado. É tudo. — Estava encantador na noite passada. A duquesinha lhe é muito devotada. Disse-me que vai para Selby. — Prometeu-me ir no dia 20.

— Monmouth estará lá também?

— Ah, sim, Harry. — Ele me entedia terrivelmente, quase tanto quanto a ela. Ela é muito inteligente, inteligente demais para uma mulher. Falta-lhe o encanto indefinível da fraqueza. São os pés de argila que tornam precioso o dourado de uma escultura. Seus pés são muito bonitos, mas não são pés de argila. Pés de porcelana branca, se preferir. Passaram pelo fogo, e o que o fogo não destrói acaba enrijecendo. Ela é bastante experiente. — Há quanto tempo está casada? — perguntou Dorian. — Uma eternidade, de acordo com ela. Acredito que já faz dez anos, de acordo com o nobiliário, mas dez anos com Monmouth devem parecer-se muito com a eternidade, ainda mais se acrescentados ao tempo real. Quem mais irá? — Ah, os Willoughbys, Lorde Rugby e sua esposa, nossa anfitriã, Geoffrey Clouston, o grupo de sempre. Convidei Lorde Grotrian. — Gosto dele — disse Lorde Henry. — Muitas pessoas não gostam, mas acho-o encantador. Compensa o vestir-se ocasionalmente de forma exagerada com sua educação sempre absolutamente exagerada. Trata-se de um tipo muito moderno.

— Não sei se ele poderá ir, Harry. Pode ter de ir para Monte Carlo com o pai. — Ah, que estorvo são os parentes! Tente fazê-lo ir. Por falar nisso, Dorian, você partiu muito cedo ontem à noite. Saiu antes das onze. O que fez depois? Foi direto para casa?

Rapidamente, Dorian olhou para ele e franziu a testa. — Não, Harry — disse finalmente —, cheguei em casa perto das três da manhã.

— Você foi para o clube? — Sim — respondeu ele. Então, mordeu o lábio. — Não, não quis dizer isso. Não fui para o clube. Fiquei perambulando. Esqueci o que fiz... Como você é curioso, Harry! Sempre quer saber o que os outros estão fazendo. Eu sempre quero esquecer o que tenho feito. Cheguei às duas e meia, se quer saber a hora exata. Havia deixado minha chave em casa, e meu criado teve de me deixar entrar. Se quer alguma prova a respeito, pode perguntar para ele.

Lorde Henry encolheu os ombros. — Meu querido, não me importo nem um pouco! Vamos para a sala de estar. Não vou querer xerez, obrigado, sr. Chapman. Algo aconteceu com você, Dorian. Conte-me o que foi. Você não é você mesmo hoje à noite. — Não se preocupe comigo, Harry. Estou irritado e de mau humor. Devo ir visitá-lo amanhã ou no dia seguinte. Peça desculpas por mim a Lady Narborough. Não vou subir. Acho que vou para casa. Devo ir para casa. — Tudo bem, Dorian. Espero vê-lo amanhã, à hora do chá. A duquesa estará lá. — Tentarei ir, Harry — disse ele e saiu da sala. Enquanto voltava para casa, tinha consciência de que a sensação de terror que pensara ter estrangulado voltara-lhe. As perguntas casuais de Lorde Henry fizeram-no perder o controle por um instante, e

ele ainda queria estar no controle. Coisas perigosas precisavam ser destruídas. Ele estremeceu. Odiava a ideia de sequer tocá-las.

Ainda assim, precisava fazê-lo. Tinha certeza disso e, ao trancar a porta de sua biblioteca, abriu o compartimento secreto dentro do qual havia enfiado o casaco e a bolsa de Basil Hallward. O fogo da lareira, imenso, estava aceso. Empilhou mais lenha nela. O cheiro das roupas chamuscadas e do couro queimado era horrível. Levou quarenta e cinco minutos para consumir tudo. No final, sentiu-se fraco e enjoado e, depois de acender alguns incensos argelinos em um braseiro de cobre, lavou as mãos e a testa com um refrescante vinagre perfumado com odor de almíscar.

De repente, tomou um susto. Seus olhos adquiriram um brilho estranho e, inquieto, ele mordeu o lábio inferior. Entre duas janelas encontrava-se um grande armário florentino, feito de ébano e incrustado com marfim e lápis-lazúli. Começou a observá-lo como algo capaz de fascinar e amedrontar, algo que continha aquilo que mais desejava e que quase odiava. Sua respiração tornou-se mais rápida. Uma vontade louca tomou conta dele. Acendeu um cigarro e então jogou-o fora. Suas pálpebras caíram até que os longos cílios quase tocaram suas bochechas. Ainda assim, ele continuava a observar o armário. Por fim, levantou-se do sofá em que estivera deitado, foi até ele e, destrancando-o, mexeu em alguma mola oculta. Uma gaveta triangular abriu-se lentamente. Seus dedos moveram-se instintivamente em sua direção, adentraram a gaveta e agarraram algo. Era uma pequena caixa chinesa de laca preta com detalhes de ouro, finamente trabalhada, as laterais moldadas em ondulações curvas e pequenos cordões de seda, dos quais pendiam cristais redondos e borlas com fios de metal trançados. Abriu-a. Dentro havia uma pasta verde, opaca como cera, com um odor curiosamente pesado e persistente.

Hesitou por alguns momentos, com um estranho sorriso inerte no rosto. Então, tremendo, apesar do ambiente terrivelmente quente da sala, ergueu-se e olhou para o relógio. Faltavam vinte

minutos para a meia-noite. Colocou a caixa de volta, fechando as portas do armário ao fazê-lo, e foi para seu quarto.

Quando, com golpes de bronze no ar sombrio, a meia-noite soou, Dorian Gray, com vestes comuns e um cachecol enrolado no pescoço, esgueirou-se silenciosamente de sua casa. Na Rua Bond, encontrou uma carruagem com um bom cavalo. Fez-lhe sinal para que parasse e, com a voz baixa, deu o endereço ao condutor.

O homem balançou a cabeça. — É muito longe para mim — murmurou ele. — Aqui tem um soberano147 para você — disse Dorian. — Terá mais outro se for rápido. — Muito bem, meu senhor — respondeu o homem —, estará lá em uma hora. — E, depois que recebeu sua moeda, disparou em direção ao rio.

147 Um soberano (em inglês, sovereign) é uma moeda do Reino Unido. (N. do T.)

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