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CAPÍTULO 14

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CAPÍTULO 12

CAPÍTULO 12

As nove horas da manhã seguinte, seu criado entrou com uma xícara de chocolate quente em uma bandeja e abriu as persianas. Dorian dormia tranquilamente, deitado sobre seu lado direito, com uma mão sob o rosto. Parecia um menino que cansara de brincar ou de estudar.

O homem teve de tocá-lo duas vezes no ombro antes que ele despertasse e, ao abrir os olhos, um leve sorriso passou por seus lábios, como se tivesse estado perdido em algum sonho encantador. No entanto, não tinha sonhado nada. Sua noite não foi perturbada por nenhuma imagem de prazer nem de dor. Mas a juventude sorri sem nenhuma razão. É um de seus principais encantos.

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Virou-se e, apoiado no cotovelo, começou a bebericar o chocolate. O suave sol de novembro transbordava pelo quarto. O céu estava claro e havia um calor ameno no ar. Quase semelhante a uma manhã de maio.

Pouco a pouco, os eventos da noite anterior arrastaram os pés silenciosos e manchados de sangue até seu cérebro, reconstituindo-se ali com uma terrível precisão. Estremeceu ao lembrar-se de tudo que havia sofrido e, por um momento, voltou-lhe o mesmo estranho sentimento de ódio por Basil Hallward, que o fizera matá-lo sentado na cadeira, e sua frieza intensificou-se. O homem morto continuava sentado lá e, agora, em plena luz do sol. Como aquilo era horrível! Coisas horrendas como aquela eram para a escuridão, não para o dia.

Sentia que, se continuasse a ruminar pelo que passara, ficaria doente ou enlouqueceria. Havia pecados cujo fascínio achava-se muito mais na sua lembrança do que no próprio ato, estranhos

triunfos que satisfaziam mais o orgulho do que as paixões e davam ao intelecto uma sensação excitante de alegria, maior que qualquer alegria que produzissem, ou que pudessem jamais produzir, nos sentidos. Mas esse não era um desses pecados. Era algo a ser banido da mente, a ser amortecido com papoulas, a ser estrangulado antes que estrangulasse alguém.

Quando o relógio bateu meia-hora, ele passou a mão pela testa e então levantou-se apressado, vestindo-se com ainda mais cuidado que o usual, dedicando bastante atenção à escolha da gravata e do alfinete da echarpe e trocando de anéis mais de uma vez. Também despendeu bastante tempo com o café da manhã, experimentando os vários pratos, falando com o criado sobre novos uniformes que pensava em mandar fazer para os criados de Selby e examinando a correspondência. Sorriu ao ver algumas das cartas. Três delas o entediaram. Releu uma várias vezes e então rasgou-a com um leve ar de irritação em seu rosto. — Essa coisa terrível, a memória de uma mulher! — Como Lorde Henry dissera certa vez.

Depois de ter bebido uma xícara de café preto, limpou os lábios lentamente com um guardanapo, acenou para que o criado esperasse e, indo até a mesa, sentou-se e escreveu duas cartas. Uma delas, meteu-a no bolso e, a outra, entregou ao pajem. — Leve isto até a Rua Hertford, número 152, Francis e, se o sr. Campbell estiver fora da cidade, pegue seu endereço.

Assim que ficou sozinho, acendeu um cigarro e começou a desenhar em um pedaço de papel, esboçando primeiro flores e detalhes arquitetônicos e depois rostos humanos. Subitamente, percebeu que todos os rostos que desenhara pareciam ter uma fantástica semelhança com Basil Hallward. Franziu a testa e, levantando-se, foi até a estante de livros e pegou um volume ao acaso. Estava

determinado a não pensar no que acontecera até que fosse absolutamente necessário fazê-lo.

Ao alongar-se no sofá, olhou para a página de rosto do livro. Tratava-se da edição em papel japonês, editada por Charpentier122 com uma gravura de Jacquemart123, de Emaux et Camées124, de Gautier. A encadernação era em couro verde-limão, com um padrão entrelaçado de ouro, pontilhado por romãs. O livro fora um presente de Adrian Singleton. Ao folheá-lo, seus olhos recaíram no poema sobre a mão de Lacenaire, a fria mão amarela du supplice encore mal lavée125, com sua penugem vermelha e seus doigts de faune126. Ele olhou para seus dedos, finos e brancos, estremecendo levemente sem querer, e continuou a folhear o livro até chegar aos adoráveis versos sobre Veneza:

Sur une gamme chromatique, Le sein de perles ruisselant, La Venus de l’Adriatique Sort de l’eau son corps rose et blanc. Les domes, sur l’azur des ondes Suivant la phrase au pur contour, S’enflent comme des gorges rondes Que souleve un soupir d’amour. L’esquif aborde et me depose,

122 Georges Charpentier (1846-1905) foi um editor francês do século XIX, famoso por publicar obras de Zola, Flaubert e Maupassant, entre outras. (N. do T.) 123 Cornélie Jacquemart (1841-1912) foi uma pintora francesa e colecionadora de arte. (N. do T.) 124 Émaux et Camées (literalmente Esmaltes e Camafeus, do francês) é uma coleção de poesias do poeta francês Théophile Gautier (1811-1872). (N. do T.) 125 Do francês, “do tormento, ainda mal lavada”. (N. do T.) 126 Do francês, “dedos de fauno”. (N. do T.)

Jetant son amarre au pilier, Devant une façade rose, Sur le marbre d’un escalier.127

Como eram primorosos! Ao lê-los, tinha-se a sensação de flutuar pelos canais verdes da cidade rosa e pérola, sentado em uma gôndola preta com a proa prateada e um rastro de véu. Seus versos pareciam-lhe as aprumadas linhas azul-turquesa que nos seguem quando navegamos rumo ao Lido128. As súbitas aparições de cor faziam-no lembrar do brilho dos pássaros de pescoço opala-cintilante, que voavam ao redor do alto e hexagonal Campanário ou que pairavam, com uma elegância tão imponente, sobre os arcos sombrios e manchados pela poeira. Recostando-se com os olhos semicerrados, ele continuava a repetir para si mesmo:

Devant une façade rose, Sur le marbre d’un escalier.

Aqueles dois versos continham toda Veneza. Ele lembrou-se do outono que tinha passado por lá e de um amor maravilhoso que o levara a fantásticas e deliciosas loucuras. O romance estava em toda parte. Mas Veneza, assim como Oxford, havia preservado o cenário para o romance e, para os românticos verdadeiros, o cenário era tudo — ou quase tudo. Basil estivera com ele parte do tempo

127 Trecho do poema Sur les Lagunes. Do francês, em tradução livre: “Em encadeamento cromático / De pérolas goteja o seio, / Da Vênus do Adriático, / Branco e rosa seu corpo sobreveio. // As cúpulas, no azul das ondas / Seguindo a frase com o contorno puro, /

Incham-se como gargantas redondas / Que desperta de amor um suspiro. // O esquife aporta e, a mim, pousa / Sobre o pilar, suas amarras jogadas / Na frente de uma fachada rosa, / Sobre o mármore de umas escadas. (N. do T.) 128 Lido di Venezia é uma ilha da Itália com 12 quilômetros de comprimento, localizada em frente à cidade de Veneza. (N. do T.)

e ficara louco com Tintoretto. Pobre Basil! Que maneira horrível de um homem morrer!

Ele suspirou e pegou o livro novamente, tentando esquecer. Leu sobre as andorinhas que entram e saem voando do pequeno café em Esmirna, onde os hadjis129 sentam-se rezando com suas contas de âmbar e os mercadores de turbante fumam seus longos cachimbos com borlas, conversando seriamente entre si; leu sobre o Obelisco na Praça da Concórdia130, que chora lágrimas de granito em seu exílio solitário e sem sol, ansiando por retornar ao quente Nilo coberto de lótus, onde há Esfinges, íbis rosados, abutres brancos com garras douradas e crocodilos com pequenos olhos de berilo, que rastejam sobre a lama verde fumegante; começou a refletir sobre os versos que, extraindo música do mármore manchado de beijos, contam-nos a respeito daquela estranha estátua que Gautier compara a uma voz de contralto, o monstre charmant131, que repousa na sala do pórfiro no Louvre132. Depois de algum tempo, no entanto, o livro caiu-lhe das mãos. Ficou nervoso e um terrível ataque de pavor tomou conta dele. E se Alan Campbell não estivesse na Inglaterra? Vários dias passariam antes que ele pudesse voltar. Talvez se recusasse a vir. O que ele faria, então? Cada instante era de vital importância.

Tinham sido grandes amigos no passado, cinco anos atrás — quase inseparáveis, na verdade. Então a intimidade, subitamente, acabara. Quando se encontravam em sociedade, agora, apenas Dorian Gray sorria. Alan Campbell nunca o fazia.

129 Título honorífico dado aos muçulmanos que já fizeram sua peregrinação a Meca. (N. do T.) 130 O autor faz referência ao Obelisco de Luxor, milenar obelisco egípcio de 23 metros de altura retirado do templo de mesmo nome e colocado no centro da Praça da Concórdia (Place de la Concorde), em Paris. (N. do T.) 131 Em francês, o “monstro encantador”. (N. do T.) 132 Sala que contém um grande vaso de pórfiro (espécie de rocha ígnea, tal qual o granito) vermelho em seu centro, no museu parisiense. (N. do T.)

Era um jovem extremamente inteligente, apesar de não ter um verdadeiro apreço pelas artes visuais, e a pouca noção de beleza da poesia que possuía fora adquirida inteiramente por intermédio de Dorian. Sua principal paixão intelectual era pela ciência. Em Cambridge, passara grande parte do tempo trabalhando no laboratório e obtivera grande distinção nos exames finais de Ciências Naturais do seu ano. Na verdade, ainda dedicava-se ao estudo de química e tinha o próprio laboratório, onde costumava trancar-se o dia todo — para grande aborrecimento de sua mãe, que se dedicara à sua candidatura ao Parlamento e imaginava que um químico era alguém que aviava receitas. No entanto, ele também era um excelente músico e tocava tanto violino quanto piano melhor que a maioria dos amadores. De fato, tinha sido a música que levara Dorian Gray e ele a se aproximarem — a música e a indefinível atração que Dorian parecia exercer sempre que desejasse — e que, na verdade, exercia muitas vezes de forma inconsciente. Conheceram-se na casa de Lady Berkshire, na noite em que Rubinstein lá tocara e, depois disso, costumavam ser vistos juntos na ópera e onde quer que houvesse boa música. Sua intimidade durou dezoito meses. Campbell estava sempre em Selby Royal ou na Praça Grosvenor. Para ele, como para muitos outros, Dorian Gray era o arquétipo de tudo que é maravilhoso e fascinante na vida. Ninguém jamais ficou sabendo se houvera ou não alguma discussão entre eles. Subitamente as pessoas perceberam que eles mal dirigiam a palavra um ao outro quando se encontravam e que Campbell parecia sempre sair cedo de qualquer festa na qual Dorian Gray estivesse presente. Também havia mudado — ficava estranhamente melancólico às vezes, parecia quase ter criado um desgosto pela música e jamais tocava, dando como desculpa, quando lhe pediam para fazê-lo, que estava tão absorto pela ciência que não tinha mais tempo de sobra para praticar. O que, certamente, era verdade. A cada dia que passava parecia mais interessado em

biologia, e seu nome apareceu uma ou duas vezes em algumas das revistas científicas ligadas a certos estranhos experimentos.

Era por esse homem que Dorian Gray esperava. Continuava a olhar para o relógio a cada segundo. Com o passar dos minutos, tornou-se terrivelmente agitado. Finalmente, levantou-se e começou a perambular pela sala, parecendo uma bela coisa engaiolada. Dava passos longos e furtivos. Suas mãos estavam estranhamente frias.

O suspense tornara-se insuportável. O tempo parecia-lhe arrastar-se com pés de chumbo, enquanto ele era varrido para a beirada pontuda de algum precipício escuro por ventos monstruosos. Sabia o que o esperava ali; conseguia de fato vê-lo e, tremendo, esmagou com as mãos úmidas suas pálpebras em chamas, como se tivesse roubado a percepção da visão e levado os globos oculares de volta para sua caverna. Era inútil. O cérebro tinha o próprio alimento a devorar, e a imaginação, tornada grotesca pelo terror, retorcida e distorcida como uma coisa viva pela dor, dançava como uma marionete imunda em um pedestal e sorria através de máscaras em movimento. Então, subitamente, o tempo parou para ele. Sim, aquela coisa cega e de respiração lenta não se arrastava mais e, com o tempo morto, pensamentos horríveis correram rapidamente à sua frente, trazendo um futuro hediondo de seu túmulo, mostrando-o para ele. Ele fitou o futuro. Seu terror absoluto petrificou-o.

Finalmente a porta abriu-se e seu criado entrou. Lançou-lhe um olhar apático. — O sr. Campbell, meu senhor — disse o homem.

Um suspiro de alívio irrompeu de seus lábios ressecados, e a cor voltou às suas faces. — Peça-lhe para entrar imediatamente, Francis. — Sentiu que voltara a ser ele mesmo novamente. Sua disposição covarde o abandonara.

O homem fez uma reverência e retirou-se. Em poucos instantes, Alan Campbell entrou, parecendo muito sério e um tanto pálido, a

palidez intensificada por seus cabelos negros como carvão e suas sobrancelhas escuras. — Alan! Que gentileza a sua. Obrigado por vir. — Pretendia nunca mais entrar em sua casa novamente, Gray. Mas você mandou dizer que era uma questão de vida ou morte. — Sua voz era dura e fria. Falava com prolongada cautela. Havia uma expressão de desprezo no firme olhar penetrante que dirigira a Dorian. Manteve as mãos nos bolsos de seu casaco de pele de cordeiro e parecia não ter notado o gesto com que foi cumprimentado. — Sim, é uma questão de vida ou morte, Alan, e para mais de uma pessoa. Sente-se.

Campbell tomou uma cadeira próxima à mesa, e Dorian sentou-se diante dele. Os olhos dos dois homens se cruzaram. Nos de Dorian, havia infinita compaixão. Ele sabia que o que estava prestes a fazer era pavoroso.

Depois de um tenso momento de silêncio, inclinou-se e disse, bem baixo, mas observando o efeito de cada palavra no rosto daquele que ele mandara buscar. — Alan, em uma sala trancada no alto desta casa, uma sala a quem ninguém tem acesso além de mim, um homem morto está sentado a uma mesa. Já está morto há dez horas. Não se agite e não olhe para mim dessa forma. Quem o homem é, por que ele morreu e como morreu são questões que não lhe dizem respeito. O que você tem de fazer é isto... — Pare, Gray. Não quero saber mais nada. Se o que você me disse é verdade ou mentira, não me interessa. Eu me nego completamente a envolver-me em sua vida. Guarde seus horríveis segredos para você. Eles não me interessam mais. — Alan, eles terão de interessar-lhe. Esse segredo terá de interessar-lhe. Sinto muitíssimo por você, Alan. Mas não posso evitar. Você é o único homem capaz de salvar-me. Sou forçado a envolvê-lo nessa questão. Não tenho outra opção. Alan, você é um cientista.

Você conhece química e coisas afins. Você fez experiências. O que tem a fazer é destruir a coisa que está no andar de cima — destruí-la de tal forma que não sobre nenhum vestígio dela. Ninguém viu essa pessoa entrar na casa. Na verdade, no presente momento ele deveria estar em Paris. Não darão pela sua falta por meses. Quando isso acontecer, não devem encontrar nenhum traço dele aqui. Você, Alan, você deve transformá-lo, e tudo que lhe pertence, em um punhado de cinzas que eu possa espalhar pelo ar. — Você é louco, Dorian. — Ah! Estava esperando você me chamar de Dorian. — Você é louco, estou lhe dizendo — louco por imaginar que eu vou levantar um dedo para ajudá-lo, louco por me fazer essa monstruosa confissão. Não vou ter nada a ver com esse assunto, seja ele qual for. Você acredita que vou colocar minha reputação em risco por você? Que me importam as obras diabólicas em que você se mete? — Foi suicídio, Alan. — Fico feliz por isso. Mas quem o levou a se matar? Você, devo imaginar. — Você ainda se recusa a fazer isso por mim? — Claro que me recuso. Não terei absolutamente nada a ver com isso. Não me importa que vergonha recaia sobre você. Você merece tudo. Não lamentaria vê-lo desgraçado, desgraçado publicamente. Como ousa pedir a mim, dentre todos os homens do mundo, para que me envolva com você nesse horror? Seu amigo Lorde Henry Wotton não deve lhe ter ensinado muito sobre psicologia, sejam quais forem as outras coisas que lhe ensinou. Nada me fará dar um passo para ajudá-lo. Você pediu para o homem errado. Peça para alguns de seus amigos. Não conte comigo. — Alan, foi assassinato. Eu o matei. Você não sabe o quanto ele me fez sofrer. O que quer que seja minha vida, ele teve mais a

ver com sua criação e sua ruína do que o pobre Harry jamais teve. Pode não ter tido a intenção, mas o resultado foi o mesmo. — Assassinato! Por Deus, Dorian, é a isso que você chegou? Não vou denunciá-lo. Não é da minha conta. Além disso, sem que eu me envolva, você certamente será preso. Ninguém nunca comete um crime sem ter feito algo estúpido. Mas não terei nada a ver com isso. — Você deve ter algo a ver com isso. Espere, espere um momento; ouça-me. Apenas ouça, Alan. Tudo que lhe peço é que faça um determinado experimento científico. Você vai a hospitais e necrotérios e os horrores que vê por lá não lhe afetam. Se, em alguma odiosa sala de dissecação ou algum fétido laboratório, você encontrasse esse homem deitado sobre uma mesa de chumbo, com canaletas vermelhas conectadas a ele para tirar-lhe o sangue, simplesmente o consideraria como um admirável objeto de estudo. Não se importaria nem um pouco. Não pensaria estar fazendo nada de errado. Ao contrário, provavelmente sentiria-se fazendo algo em benefício da raça humana, aumentando a quantidade de conhecimento no mundo, satisfazendo a curiosidade intelectual ou algo do gênero. Quero que faça apenas o que já fez tantas outras vezes antes. Na verdade, destruir um corpo deve ser muito menos horrível que aquilo com que você está acostumado a trabalhar. E, lembre-se, essa é a única prova contra mim. Se for descoberta, estou perdido; e seguramente será, a menos que você me ajude. — Não tenho nenhuma vontade de ajudá-lo. Você esquece-se disso. Sou simplesmente indiferente à coisa toda. Não tem nada a ver comigo. — Alan, suplico-lhe. Pense na posição em que me encontro. Pouco antes de você chegar quase desmaiei de pavor. Algum dia você pode vir a saber o que é pavor. Não! Não pense nisso. Olhe para essa situação apenas do ponto de vista científico. Você não se pergunta de onde as coisas mortas em que realiza experiências

vieram. Não se pergunte agora. Já lhe disse muito a respeito. Mas lhe imploro que faça isso. Fomos amigos no passado, Alan. — Não fale sobre aqueles dias, Dorian — eles estão mortos. — Os mortos, às vezes, permanecem. O homem no andar de cima não irá embora. Está sentado à mesa com a cabeça curvada e os braços estendidos. Alan! Alan! Se você não me ajudar, estarei arruinado. Ora, irão enforcar-me, Alan! Você não entende? Vão enforcar-me pelo que fiz. — Não faz sentido continuar a prolongar essa cena. Recuso-me absolutamente a fazer qualquer coisa sobre esse assunto. É loucura sua pedir-me isso. — Você se recusa?

— Sim. — Suplico sua ajuda, Alan. — É inútil.

O mesmo olhar de compaixão retornou aos olhos de Dorian Gray. Então, ele estendeu a mão, pegou um pedaço de papel e escreveu algo nele. Leu o que havia escrito duas vezes, dobrou cuidadosamente o papel e empurrou-o através da mesa. Feito isso, levantou-se e foi até a janela.

Campbell olhou para ele com surpresa e então pegou o papel, abrindo-o. Assim que o leu, seu rosto ficou completamente pálido e ele deixou-se cair sobre a cadeira. Uma horrível sensação de náusea apoderou-se dele. Sentiu como se seu coração estivesse a ponto de bater até a morte em algum buraco vazio.

Depois de dois ou três minutos de um silêncio estarrecedor, Dorian voltou-se e pôs-se de pé atrás dele, colocando a mão sobre seu ombro. — Lamento muito por você, Alan — murmurou ele —, mas você não me deixa nenhuma alternativa. Já escrevi uma carta. Aqui está ela. Você pode ver o endereço. Se não me ajudar, devo enviá-la.

Se não me ajudar, vou enviá-la. Você sabe qual será o resultado se o fizer. Mas você vai me ajudar. É impossível recusar agora. Tentei poupá-lo. Deve ser justo e admitir que tentei. Você foi inflexível, rude, ofensivo. Você me tratou como nenhum homem jamais ousou me tratar — nenhum homem vivo, de qualquer forma. Aguentei tudo. Agora é minha vez de ditar os termos.

Campbell enterrou o rosto nas mãos, e um calafrio atravessou-o. — Sim, é minha vez de ditar os termos, Alan. Você sabe o que eles são. A coisa é muito simples. Venha, não se entregue a essa angústia. A coisa precisa ser feita. Encare-a e simplesmente faça-a.

Um gemido irrompeu dos lábios de Campbell, e todo o seu corpo estremeceu. O tique-taque do relógio no consolo da lareira parecia-lhe dividir o tempo em átomos isolados de agonia, cada um terrível demais para suportar. Ele sentia como se um anel de ferro fosse lentamente se apertando ao redor de sua testa, como se a desgraça com que fora ameaçado já houvesse recaído sobre ele. A mão sobre seu ombro pesava como uma mão de chumbo. Era insuportável. Ela parecia esmagá-lo. — Vamos, Alan, você precisa decidir neste instante. — Não posso fazê-lo — disse ele, mecanicamente, como se as palavras pudessem alterar as coisas. — Você deve. Não tem escolha. Não se demore mais.

Ele hesitou por um momento. — Há uma lareira na sala do andar de cima? — Sim, uma lareira a gás, com amianto. — Terei de passar em casa e pegar algumas coisas no laboratório. — Não, Alan, você não poderá sair da casa. Escreva em uma folha de caderno o que precisa, e meu criado pegará uma carruagem e as trará para você.

Campbell rabiscou umas poucas linhas, secou-as com o mata-borrão e endereçou o envelope a seu ajudante. Dorian pegou o bilhete e leu-o com atenção. Então, tocou a sineta e entregou-o

para seu pajem, com ordens de retornar o mais rápido possível trazendo as coisas consigo.

Assim que a porta do saguão se fechou, Campbell teve um sobressalto e, levantando-se da cadeira, foi até a lareira. Tremia como se tivesse algum tipo de febre. Por quase vinte minutos, nenhum dos homens falou. Uma mosca zumbia ruidosamente pela sala e o tique-taque do relógio parecia o bater de um martelo.

Ao toque da uma hora, Campbell virou-se e, olhando para Dorian Gray, viu que seus olhos estavam cheios de lágrimas. Havia algo na pureza e no refinamento de seu rosto triste que parecia enfurecê-lo. — Você é infame, absolutamente infame! — murmurou. — Cale-se, Alan. Você salvou minha vida — disse Dorian. — Sua vida? Por Deus! Que vida é essa? Você passou de perversão em perversão e agora culminou em um crime. Ao fazer o que estou prestes a fazer — o que você me força a fazer —, não é na sua vida que estou pensando. — Ah, Alan — murmurou Dorian com um suspiro —, gostaria que você tivesse por mim um milésimo da compaixão que tenho por você. — Deu-lhe as costas ao falar e ficou olhando para o jardim. Campbell não lhe respondeu.

Depois de cerca de dez minutos bateram à porta, e o criado entrou carregando um imenso baú de mogno cheio de substâncias químicas, além de uma longa espiral de cabos de aço e platina e dois grampos com um formato bastante curioso. — Devo deixar as coisas aqui, meu senhor? — perguntou para Campbell. — Sim — disse Dorian. — E receio ter outra tarefa para você, Francis. Qual é o nome do homem em Richmond que fornece as orquídeas para Selby? — Harden, meu senhor. — Sim. Harden. Você deve ir neste instante para Richmond encontrar Harden em pessoa e pedir-lhe o dobro da quantidade de

orquídeas que encomendei, com o mínimo possível de orquídeas brancas. Não quero nenhuma branca, na verdade. Está um dia encantador, Francis, e Richmond é um lugar muito bonito — do contrário, não o incomodaria com isso. — Não é nenhum incômodo, meu senhor. A que horas devo estar de volta?

Dorian olhou para Campbell. — Quanto tempo o seu experimento levará, Alan? — disse com uma voz calma e indiferente. A presença de uma terceira pessoa na sala parecia dar-lhe uma coragem extraordinária.

Campbell franziu a testa e mordeu o lábio. — Levará aproximadamente cinco horas — ele respondeu. — Então haverá tempo suficiente para você voltar às sete e meia, Francis. Ou fique por lá, apenas deixe minhas roupas separadas. Pode tirar a noite de folga. Não vou jantar em casa, então não precisarei de você. — Obrigado, meu senhor — disse o homem e deixou a sala. — Agora, Alan, não há um momento a perder. Como esse baú é pesado! Vou levá-lo para você. Você traz as outras coisas — falou rapidamente, de modo autoritário. Campbell sentiu-se dominado por ele. Saíram da sala juntos.

Quando chegaram ao andar de cima, Dorian pegou a chave e girou-a na fechadura. Então parou e um olhar perturbado surgiu em seus olhos. Estremeceu. — Não acredito que eu possa entrar, Alan — murmurou ele. — Para mim, não faz diferença. Não preciso de você — disse Campbell friamente.

Dorian entreabriu a porta. Ao fazê-lo, viu o olhar lascivo no rosto do seu retrato à luz do sol. No chão, diante do quadro, estendia-se a cortina rasgada. Lembrou-se de que na noite anterior, pela primeira vez na vida, havia esquecido de esconder a tela fatal e estava a ponto de avançar para fazê-lo quando recuou com um calafrio.

O que eram aquelas repulsivas gotas vermelhas brilhando, úmidas e cintilantes, em uma das mãos, como se a tela tivesse suado sangue? Como era horrível! Mais horrível, pareceu-lhe naquele momento, a coisa silenciosa que ele sabia estar estendida sobre a mesa, a coisa cuja sombra disforme e grotesca no tapete manchado mostrava-lhe que não havia se mexido, mas continuava ali, como ele a deixara.

Ele inspirou profundamente, abriu a porta mais um pouco e, com os olhos semicerrados e desviando a cabeça, entrou rapidamente, determinado a não olhar nem sequer uma vez para o homem morto. Então, abaixando-se e pegando a tapeçaria dourada e púrpura, jogou-a por sobre a pintura.

E ali parou, com medo de se virar, e seus olhos fixaram-se na complexidade da estampa diante dele. Ouviu Campbell trazendo o pesado baú, os ferros e as outras coisas que pedira para o seu horrível trabalho. Começou a se perguntar se ele e Basil Hallward chegaram a se conhecer e, nesse caso, o que achariam um do outro. — Deixe-me agora — disse uma voz séria atrás dele.

Virou-se e saiu apressado, apenas percebendo que o homem morto fora empurrado para trás na cadeira e que Campbell observava seu rosto amarelo e brilhante. Enquanto descia as escadas, ouviu a chave sendo girada na fechadura.

Passava muito das sete horas quando Campbell voltou para a biblioteca. Estava pálido, mas absolutamente calmo. — Fiz o que me pediu para fazer — murmurou. — E, agora, adeus. Cuide para nunca mais nos vermos. — Você me salvou da ruína, Alan. Não posso esquecer disso — disse Dorian, simplesmente.

Assim que Campbell saiu, ele foi para o andar de cima. Havia um horrível odor de ácido nítrico na sala. Mas a coisa que estava sentada à mesa tinha desaparecido.

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