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CAPÍTULO 3

As doze e trinta do dia seguinte, Lorde Henry Wotton caminhou da Rua Curzon até o Albany14 para visitar seu tio, Lorde Fermor, um velho solteirão, amável, porém um tanto quanto bruto, a quem o mundo exterior chamaria de egoísta por não conseguir tirar nenhuma vantagem dele, mas que era considerado generoso pela alta sociedade, já que alimentava as pessoas que o divertissem. Seu pai tinha sido nosso embaixador em Madri quando Isabel era jovem e Prim nem sequer existia15, mas havia se retirado do serviço diplomático em um voluntarioso instante de aborrecimento por não ter sido indicado para a Embaixada de Paris, posto que ele considerava um direito inalienável seu, devido a seu berço, sua indolência, o inglês perfeito de seus relatórios e sua paixão excessiva pelo prazer. O filho, que tinha sido o assistente do pai, demitira-se juntamente com seu chefe, atitude considerada levemente tola à época e, conseguindo alguns meses depois o título de lorde, dedicara-se ao sério estudo da grande arte aristocrática de não fazer absolutamente nada. Ele tinha duas residências enormes na cidade, mas preferia morar em aposentos alugados, já que era menos trabalhoso, e ele fazia a maior parte de suas refeições em seu clube. Dedicava parte de sua atenção à gestão de suas minas de carvão nos condados do centro do país, defendendo essa indústria degenerada sob a alegação de que a única vantagem de ter carvão era permitir

14 The Albany, ou simplesmente Albany, é um antigo palácio setecentista de Londres. Foi convertido, no início do século XIX, em um complexo de apartamentos. (N. do T.) 15 Isabel e Prim são, respectivamente, Isabel II, rainha da Espanha, e Juan Prim, marquês e político espanhol, líder da Revolução Gloriosa (1868), que levou à deposição da rainha. (N. do T.)

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a um cavalheiro a decência de queimar lenha na própria lareira. Na política era conservador, exceto quando os conservadores estavam no poder, período em que os agredia por serem um bando de radicais. Era um herói para seu pajem, que o intimidava, e um terror para a maioria de seus parentes, a quem ele intimidava, por sua vez. Apenas a Inglaterra poderia ter produzido alguém como ele, e ele sempre dizia que o país estava indo para a ruína. Seus princípios eram antiquados e havia muito a se dizer sobre seus preconceitos.

Quando Lorde Henry entrou na sala, encontrou seu tio sentado vestindo um felpudo casaco militar, fumando um charuto e resmungando sobre o The Times. — Bom, Harry —, o que o traz aqui tão cedo? Achava que janotas como você não se levantassem antes das duas e não fossem vistos antes das cinco. — Pura afeição familiar, asseguro-lhe, tio George. Quero pedir-lhe algo. — Dinheiro, suponho — disse Lorde Fermor torcendo o nariz. — Bom, sente-se e conte-me tudo. Os jovens de hoje em dia acham que dinheiro é tudo. — Sim — murmurou Lorde Henry endireitando a lapela do casaco — e quando crescem têm certeza. Mas não quero dinheiro. Apenas as pessoas que pagam suas contas precisam de dinheiro, tio George, e eu nunca pago as minhas. O crédito é o capital do filho caçula e vive-se encantadoramente à custa dele. Além disso, só tenho negócios com os lojistas de Dartmoor e, consequentemente, eles nunca me incomodam. O que preciso é de informações; mas nada útil, claro; apenas informações inúteis. — Bom, posso dizer-lhe qualquer coisa que se encontra em uma enciclopédia inglesa, Harry, apesar de esses camaradas escreverem muita bobagem ultimamente. Quando estava na diplomacia, tudo era muito melhor. Mas ouvi dizer que agora nos contratam por meio de uma prova. O que se pode esperar? Avaliações, meu caro, são um dis-

parate do começo ao fim. Se um homem é um cavalheiro, ele sabe o suficiente e, se não é um cavalheiro, tudo que souber lhe será prejudicial. — O sr. Dorian Gray não se encontra nas enciclopédias, tio George — disse Lorde Henry lentamente. — Sr. Dorian Gray? Quem é ele? — perguntou Lorde Fermor franzindo suas volumosas sobrancelhas brancas. — É isso que vim descobrir, tio George. De certa forma, sei quem ele é. É neto do último Lorde Kelso. Sua mãe chamava-se Devereux, Lady Margaret Devereux. Quero que me diga algo a respeito da mãe dele. Como era ela? Com quem se casou? Você conhecia quase todo mundo quando era jovem, deve tê-la conhecido. Estou muitíssimo interessado no sr. Gray ultimamente. Acabei de conhecê-lo. — Neto de Kelso! — repetiu o velho cavalheiro. — Neto de Kelso!... Claro... Conhecia sua mãe intimamente. Acredito que estive em seu batizado. Ela era uma garota extremamente bonita, Margaret Devereux, e todos os homens ficaram alucinados quando ela fugiu com um jovem sujeito sem nenhum tostão no bolso — um pé-rapado, meu caro, um subalterno de um regimento de infantaria ou algo do tipo. Certamente, recordo-me de toda a história como se tivesse acontecido ontem. O pobre rapaz foi morto em um duelo em Spa16, poucos meses depois do casamento. Há algo sórdido atrelado ao fato. Dizia-se que Kelso contratou um aventureiro miserável, algum belga ignorante, para insultar o próprio genro em público — pagou-lhe para fazê-lo, meu caro, pagou-lhe — e o tal sujeito trespassou o coitado como se fosse um pombo. Tudo foi silenciado, mas — meu Deus! — durante um bom tempo Kelso fez suas refeições sozinho no clube. Disseram-me que ele trouxe sua filha de volta, mas ela nunca lhe dirigiu a palavra novamente. Ah, sim, foi um mau negócio. A garota morreu também, em menos de um ano. Então ela

16 Cidade da Bélgica. (N. do T.)

deixou um filho, não foi? Havia-me esquecido disso. Que espécie de garoto é ele? Se ele é parecido com a mãe, deve ser um belo sujeito. — Ele é muito bonito — admitiu Lorde Henry. — Espero que ele consiga uma boa herança — continuou o velho. — Ele devia ter uma boa quantia de dinheiro à sua espera se Kelso foi justo com ele. Sua mãe tinha dinheiro também. As propriedades de Selby17 foram para ela, por intermédio do avô. Seu avô odiava Kelso, considerava-o um cão mesquinho. Assim como ele também era. Veio uma vez para Madri quando eu estava lá. Meu Deus, como me envergonhou. A rainha costumava perguntar-me a respeito do nobre inglês que estava sempre discutindo os preços das corridas com os cocheiros. Não se falava de outra coisa. Não ousei pôr meus pés na corte por um mês. Espero que ele tenha tratado seu neto melhor do que tratava os cocheiros. — Não sei — respondeu Lorde Henry. — Acredito que o garoto está bem de vida. Ainda não atingiu a maioridade. Sei que Selby é dele. Ele mesmo me disse. E... sua mãe era realmente muito bonita?

— Margaret Devereux era uma das criaturas mais adoráveis que já vi, Harry. O que a levou a comportar-se daquela forma, nunca pude entender. Ela poderia ter se casado com qualquer um que escolhesse. Carlington era louco por ela. Contudo, ela era muito romântica. Todas as mulheres daquela família eram. Os homens não valiam nada, mas, meu Deus, as mulheres eram maravilhosas. Carlington ajoelhava-se a seus pés. Ela mesma confessou-me. Ela riu-se dele e, à época, não havia uma garota em Londres que não corria atrás dele. Aliás, Harry, falando em casamentos absurdos, que bobagem é essa que seu pai me contou sobre Dartmoor querer se casar com uma americana? As garotas inglesas não são boas o bastante para ele? — Está na moda casar-se com americanas agora, tio George.

17 Cidade localizada no centro-norte da Inglaterra. (N. do T.)

— Prefiro as mulheres inglesas a qualquer outra no mundo, Harry — disse Lorde Fermor, batendo com o punho na mesa. — Todos apostam nas americanas. — Mas disseram-me que elas não duram muito — murmurou seu tio.

— Longos noivados esgotam-nas, mas são excelentes nas corridas com obstáculos. Elas captam as coisas no ar. Não acredito que Dartmoor tenha chance. — A que família ela pertence? — resmungou o velho. — Ela tem alguma?

Lorde Henry balançou a cabeça. — As garotas americanas são tão boas em esconder seus parentes quanto as mulheres inglesas são boas em esconder seu passado — disse ele levantando-se para sair. — São comerciantes de carne de porco, suponho. — Espero que sim, tio George, pelo bem de Dartmoor. Ouvi dizer que o comércio de carne de porco é a profissão mais lucrativa na América, depois da política. — Ela é bonita?

— Ela age como se fosse. Como a maioria das americanas. Esse é o segredo de seu encanto. — Por que essas mulheres americanas não podem ficar em seu país? Estão sempre nos dizendo que lá é o paraíso para as mulheres. — E não deixa de ser. É por essa razão que, assim como Eva, elas têm tanta vontade de sair de lá — disse Lorde Henry. — Adeus, tio George. Vou me atrasar para o almoço se passar mais tempo aqui. Obrigado por me fornecer a informação que eu queria. Sempre quero saber tudo sobre meus novos amigos e nada sobre os antigos. — Onde irá almoçar, Harry?

— Na casa de tia Agatha. Tomei a liberdade de convidar o sr. Gray e a mim mesmo. Ele é seu mais novo protégé18 . — Uff! Diga à sua tia Agatha, Harry, para não me incomodar mais com seus pedidos de caridade. Estou farto deles. Ora, a boa mulher pensa que não tenho mais nada a fazer além de escrever cheques para seus modismos tolos. — Certamente, tio George, vou dizer-lhe, mas não surtirá efeito algum. As pessoas dedicadas à filantropia perdem todo o senso de humanidade. É o que as diferencia dos outros.

O velho cavalheiro rosnou em aprovação e tocou a sineta para chamar seu criado. Lorde Henry passou pela galeria da Rua Burlington e seguiu em direção à Berkeley Square19 .

Então era essa a história da família de Dorian Gray. Mesmo da forma grosseira como lhe foi contada, sentiu-se comovido por seu vislumbre de romance inusitado, quase moderno. Uma bela mulher arriscando tudo por uma paixão insana. Algumas semanas selvagens de felicidade interrompidas por um crime sórdido e traiçoeiro. Meses de uma agonia silenciosa e, então, uma criança oriunda da dor. A mãe arrebatada pela morte, o garoto abandonado à solidão e à tirania de um velho incapaz de amar. Sim! Era um pano de fundo interessante. De certa forma, definia o garoto, tornava-o mais interessante. Por trás de tudo que existia de extraordinário, sempre havia algo trágico. Mundos têm um trabalho hercúleo para que a mais humilde flor possa florescer... Como ele estava encantador no jantar da noite anterior quando se sentou à sua frente no clube com seus olhos assustados e lábios entreabertos de prazer e medo; e a luz vermelha dos castiçais dava um rosa mais vivo ao despertar da inquietação no seu rosto. Falar com ele era como tocar um refinado violino. Ele respondia a cada toque e vibração do arco...

18 Literalmente, “protegido” em francês. Também pode ser entendido como “favorito”. (N. do T.) 19 Jardim público em Westminster, na região central de Londres. (N. do T.)

Havia algo terrivelmente cativante no exercício da influência. Nenhuma outra atividade se igualava a ela. Difundir a própria alma em alguém de aparência agradável, deixando-a permanecer ali por um momento; ouvir seus pontos de vista ecoarem no outro, complementados pela música da paixão e da juventude; transmitir seu temperamento a outra pessoa como se fosse um fluido sutil ou um estranho perfume; havia verdadeira alegria nisso — talvez a alegria mais satisfatória que nos restara em uma época tão limitada e vulgar quanto a atual, uma época grosseiramente carnal em seus prazeres e grosseiramente ordinária em seus objetivos... Também era um tipo maravilhoso esse rapaz, que por um acaso tão singular ele conhecera no ateliê de Basil ou, de qualquer forma, poderia ser transformado em um tipo maravilhoso. Ele possuía a graça, a pureza casta da meninice e a beleza comparável àquela eternizada pelas velhas esculturas gregas. Não havia nada que não se pudesse fazer com ele. Poderia tornar-se um Titã20 ou um brinquedo. Que lástima que tanta beleza esteja destinada a desaparecer!... E Basil? De um ponto de vista psicológico, como ele se mostrara interessante! Uma nova forma de arte e uma maneira inédita de se contemplar a vida, sugeridas tão estranhamente pela mera presença física de alguém que nem sequer tinha consciência de tudo isso. O espírito silencioso que habitava um bosque sombrio e caminhava invisível em campo aberto revelava-se subitamente como uma Dríade21 destemida, porque, na alma dele, os que a procuravam ali eram quem despertara aquela maravilhosa visão e a quem unicamente seriam reveladas coisas deslumbrantes; as meras formas e modelos tornariam-se, por assim dizer, refinados e com algum valor simbólico, como se eles mesmos fossem padrões de outra forma

20 Na mitologia grega, os Titãs eram os deuses pré-olímpicos, filhos do Céu (Urano) e da

Terra (Gaia). (N. do T.) 21 Na mitologia grega, as Dríades são, em um sentido mais amplo, as ninfas que vivem nas florestas. (N. do T.)

ainda mais perfeita, de cuja sombra seriam criados; que estranho era tudo isso! Ele lembrava-se de algo assim na história. Não fora Platão, aquele artista do pensamento, quem primeiro o analisara? Não fora Buonarotti22 que o esculpira nos mármores coloridos como uma sequência de sonetos? Mas, no nosso próprio século, era estranho... Sim; ele tentaria ser para Dorian Gray o que, sem saber, o rapaz fora para o pintor que executara seu maravilhoso retrato. Ele tentaria dominá-lo — já o tinha feito, na verdade, mesmo que pela metade. Ele tornaria aquele maravilhoso espírito propriedade sua. Havia algo fascinante nesse filho do amor e da morte.

Subitamente, ele parou e olhou para as casas à sua volta. Percebeu que havia passado pela casa de sua tia fazia algum tempo e, sorrindo para si mesmo, voltou atrás. Quando entrou no saguão escuro, o mordomo disse-lhe que já haviam começado a almoçar. Entregou a um dos criados o chapéu e a bengala e passou à sala de jantar. — Atrasado como sempre, Harry — exclamou sua tia balançando a cabeça.

Ele inventou uma desculpa esfarrapada e, ao tomar o assento vazio ao lado da tia, olhou em volta para ver quem estava presente. Dorian curvou-se timidamente para ele do fundo da mesa, ficando ruborizado de prazer. À sua frente estava a Duquesa de Harley, uma dama de índole e humor admiráveis, apreciada por todos que a conheciam e com proporções estruturais abundantes, o que, em mulheres que não são duquesas, seria descrito por historiadores contemporâneos como corpulência. Ao lado dela, à sua direita, Sir Thomas Burdon, um membro do Partido Radical no Parlamento, que seguia seu líder na vida pública e, na vida privada, acompanhava os melhores cozinheiros, jantando com conservadores e refletindo com os liberais, em conformidade com uma sábia e muito conhecida

22 Michelangelo Buonarroti (1475—1564), o artista italiano que ficou conhecido por seu primeiro nome, Michelangelo. (N. do T.)

regra. O assento à sua esquerda fora ocupado pelo sr. Erskine de Treadley, um velho cavalheiro de considerável charme e cultura, que, no entanto, havia sucumbido aos maus hábitos do silêncio, pois, como explicara certa vez a Lady Agatha, dissera tudo que tinha a dizer antes dos trinta anos. Do seu lado, por sua vez, estava a sra. Vandeleur, uma das amigas mais antigas de sua tia, uma perfeita santa entre as mulheres, mas tão pavorosamente desleixada que lhe parecia um daqueles livros de cânticos mal encadernados. Felizmente para ele, do outro lado dela encontrava-se Lorde Faudel, uma inteligentíssima mediocridade de meia-idade, com a cabeleira tão vazia quanto um pronunciamento ministerial na Câmara dos Comuns23, com quem ela conversava daquela maneira tão séria que é o único erro imperdoável — como ele próprio já notara antes — em que todas as pessoas genuinamente boas caem e que nenhuma delas consegue evitar. — Estamos falando do pobre Dartmoor, Lorde Henry — gritou a duquesa acenando-lhe alegremente com a cabeça do outro lado da mesa. — Você acredita que ele realmente se casará com aquela fascinante jovem? — Acredito que ela tenha decidido pedir a mão dele, duquesa. — Que horrível! — exclamou Lady Agatha. — Realmente, alguém deveria interferir. — Ouvi dizer, por fontes fidedignas, que seu pai tem uma loja de secos e molhados na América — disse Sir Thomas Burdon, com um ar arrogante. — Meu tio sugeriu-me que se trata do comércio de carne de porco, Sir Thomas. — Secos e molhados! O que são secos e molhados? — perguntou a duquesa levantando suas mãos em um gesto de questionamento e enfatizando o verbo.

23 Equivalente britânico à Câmara dos Deputados brasileira. (N. do T.)

— Romances americanos — respondeu Lorde Henry e serviu-se de um pouco de codorna.

A duquesa pareceu confusa. — Não ligue para ele, minha querida — sussurrou Lady Agatha. — Ele nunca fala nada sério. — Quando a América foi descoberta... — disse o membro dos Radicais, começando a apresentar alguns fatos enfadonhos. Como todas as pessoas que tentam exaurir um assunto, ele exauriu seus ouvintes. A duquesa suspirou e exerceu seu poder de interrupção. — Quem dera a América nunca tivesse sido descoberta! — exclamou ela. — Realmente, nossas garotas não têm nenhuma chance hoje em dia. É terrivelmente injusto. — Talvez, afinal, a América nunca tenha sido descoberta — disse o sr. Erskine. — Eu diria que ela foi meramente identificada. — Ah, mas eu conheci espécimes de seus habitantes — respondeu a duquesa vagamente. — Devo confessar que a maioria deles é extremamente bela. E vestem-se bem também. Compram todas as suas roupas em Paris. Quem dera eu pudesse fazer o mesmo. — Dizem por aí que, quando bons americanos morrem, vão para Paris — riu-se Sir Thomas, que tinha um vasto guarda-roupa de trajes rejeitados pelo humor. — Sério? E para onde vão os maus americanos quando morrem? — perguntou a duquesa. — Para a América — murmurou Lorde Henry.

Sir Thomas franziu a testa. — Temo que seu sobrinho tenha preconceitos a respeito do grande país — disse ele para Lady Agatha. — Viajei por toda a sua extensão em carros fornecidos pelos diretores, que, nesse sentido, são extremamente civis. Asseguro-lhe que visitá-lo é bastante educativo. — Mas precisamos realmente conhecer Chicago para sermos educados? — perguntou, choroso, o sr. Erskine. — Não tenho vontade de fazer tal viagem.

Sir Thomas acenou com a mão.

— O sr. Erskine de Treadley tem o mundo em suas estantes. Nós, homens práticos, gostamos de ver as coisas e não de ler a seu respeito. Os americanos são um povo extremamente interessante. São absolutamente sensatos. Penso que essa é sua característica mais marcante. Sim, sr. Erskine, um povo absolutamente sensato. Asseguro-lhe que não há disparates entre os americanos. — Que horror! — exclamou Lorde Henry. — Posso suportar a força bruta, mas a sensatez bruta é totalmente intolerável. Há algo injusto em seu uso. É um golpe baixo no intelecto. — Não o compreendo — disse Sir Thomas, corando bastante. — Mas eu, sim, Lorde Henry — murmurou o sr. Erskine, sorrindo. — Paradoxos estão a caminho... — retorquiu o baronete. — Tratava-se de um paradoxo? — perguntou o sr. Erskine. — Penso que não. Talvez fosse. Bom, o caminho dos paradoxos é o caminho da verdade. Para testar a realidade, devemos vê-la na corda bamba. Quando as verdades tornam-se acrobatas, podemos julgá-las. — Por Deus! — disse Lady Agatha. — Como os homens discutem! Nunca consigo entender sobre o que vocês estão falando. Ah! Harry, estou muito chateada com você. Por que você tentou persuadir nosso gentil sr. Dorian Gray a abandonar o East End? Asseguro-lhe que ele seria de enorme valor. Adorariam ouvi-lo tocar. — Quero que ele toque para mim — Lorde Henry exclamou, sorrindo, espiou o fundo da mesa e captou um olhar radiante em resposta. — Mas eles são tão infelizes em Whitechapel — continuou Lady Agatha. — Posso compadecer-me de tudo, menos do sofrimento — disse Lorde Henry encolhendo os ombros. — Não posso me compadecer disso. É feio demais, horrível demais, angustiante demais. Há algo terrivelmente mórbido na compaixão moderna pela dor. Deveríamos

compadecer-nos das cores, da beleza, da alegria de viver. Quanto menos se falar das amarguras da vida, melhor. — De qualquer forma, o East End é uma questão muito importante — comentou Sir Thomas balançando a cabeça gravemente. — Realmente — respondeu o jovem lorde. — Trata-se do problema da escravidão, e tentamos resolvê-lo divertindo os escravos.

O político olhou para ele com seriedade. — Que mudanças o senhor nos propõe, então? — perguntou.

Lorde Henry riu. — Não desejo mudar nada na Inglaterra além do clima — respondeu. — Fico muito contente com a reflexão filosófica. Mas, como o século XIX entrou em falência por causa do excesso de compaixão, sugiro que apelemos à ciência para retomar o caminho correto. A vantagem das emoções é que elas nos levam à perdição e a vantagem da ciência é que ela carece de emoções. — Mas nós temos responsabilidades tão graves — arriscou timidamente a sra. Vandeleur. — Terrivelmente graves — repetiu Lady Agatha.

Lorde Henry olhou para o sr. Erskine. — A humanidade leva-se muito a sério. É esse o pecado original do mundo. Se os homens das cavernas soubessem rir, a história teria sido diferente. — Ouvi-lo é realmente reconfortante — piou a duquesa. — Sempre me sinto um pouco culpada quando venho visitar sua querida tia, já que não me interesso nem um pouco pelo East End. Daqui para a frente, poderei olhá-la nos olhos sem enrubescer. — Enrubescer é muito atraente, duquesa — observou Lorde Henry. — Apenas quando se é jovem — respondeu ela. — Quando uma velha como eu fica corada, é um mau sinal. Ah! Lorde Henry, gostaria que me dissesse como me tornar jovem novamente.

Ele refletiu por um instante. — Consegue lembrar-se de algum erro grave que tenha cometido nos seus anos dourados, duquesa? — perguntou, olhando-a do outro lado da mesa. — Muitos, receio eu — exclamou ela. — Então cometa-os todos novamente — disse ele seriamente. — Para retomar sua juventude, basta repetir as mesmas loucuras. — Que teoria encantadora! — declarou ela. — Devo pô-la em prática. — Uma teoria perigosa! — ecoou dos lábios tensos de Sir Thomas. Lady Agatha balançou a cabeça, mas não pôde deixar de achar graça. O sr. Erskine apenas ouvia. — Sim — continuou ele —, esse é um dos grandes segredos da vida. Hoje em dia, a maioria das pessoas morre de uma espécie de insidioso senso comum e descobre tarde demais que a única coisa de que não nos arrependemos é de nossos erros.

Uma gargalhada percorreu a mesa.

Ele brincava com a ideia propositalmente; lançava-a no ar e transformava-a; deixava-a escapar e tornava a apanhá-la; dava-lhe brilhos de fantasia e asas de paradoxo. À medida que continuava, o elogio da loucura foi alçado a filosofia e a própria filosofia rejuvenesceu, captando a música insana do prazer e vestindo — como era de se imaginar — seu manto manchado de vinho e sua grinalda de hera, dançando como uma Bacante24 pelas colinas da vida e zombando do apático Sileno25 por estar sóbrio. Os fatos fugiam diante dela como criaturas silvestres assustadas. Seus pés brancos

24 Na mitologia grega, sacerdotisa do culto a Dioniso. Representa uma mulher libertina, licenciosa. (N. do T.) 25 Sileno era, na mitologia grega, um dos seguidores de Dioniso, seu professor e companheiro fiel. Ao contrário do exposto no texto, era sempre representado bêbado e amparado por sátiros ou carregado por um burro. (N. do T.)

pisoteavam o enorme lagar26 onde se encontrava sentado o sábio Omar27, até o suco efervescente da uva transbordar como uma espuma vermelha pelas laterais enegrecidas e ensopadas do tonel, rodeando seus membros nus em ondas púrpuras borbulhantes. Que extraordinário improviso. Ele sentia que os olhos de Dorian Gray estavam fixos nele, e a consciência de que havia alguém entre os que o ouviam cujo temperamento ele desejava fascinar parecia entusiasmar-lhe o espírito e conferir cor à sua imaginação. Fora brilhante, fantástico, irresponsável. Arrebatara seus ouvintes, que seguiam sua voz às gargalhadas. Dorian Gray não desviou o olhar uma única vez, imóvel sob seu encanto, com sorrisos em sucessão sobre seus lábios e uma séria admiração em seus olhos escurecidos.

Por fim, fardada à moda da época, a realidade adentrou a sala na forma de um criado para comunicar à duquesa que sua carruagem a esperava. Ela apertou as mãos fingindo desespero. — Que maçante! — exclamou ela. — Preciso ir. Tenho de buscar meu marido no clube, para acompanhá-lo em alguma reunião absurda que ele deve presidir no Willis’s Rooms28. Se eu me atrasar, com certeza ele ficará furioso e não posso me dar o luxo de uma cena com esse chapéu. Ele é frágil demais. Qualquer palavra rude o arruinaria. Não, preciso ir, Lady Agatha. Adeus, Lorde Henry, o senhor é muito encantador e terrivelmente desmoralizante. Tenho certeza de que não sei o que dizer quanto às suas opiniões. O senhor deve vir jantar conosco uma noite dessas. Na próxima terça-feira? Não tem compromisso nesta terça?

26 Prensa para fazer vinho. (N. do T.) 27 Omar Caiam (1048-1131) foi um poeta, matemático e astrônomo persa. Ficou conhecido no Ocidente em meados do século XIX graças à coleção de poemas Rubaiyat (“quartetos”, em português), traduzida para o inglês por Edward Fitzgerald, em 1839. (N. do T.) 28 Clube da alta sociedade londrina, também conhecido como Almack’s, em funcionamento entre os séculos XVIII e XX. (N. do T.)

— Pela senhora abandonaria qualquer um, duquesa — disse Lorde Henry curvando-se. — Ah, que gentil, e totalmente incorreto, de sua parte — exclamou ela —, então lembre-se de vir — e desapareceu da sala, seguida por Lady Agatha e as outras damas.

Quando Lorde Henry se sentou novamente, o sr. Erskine aproximou-se e, tomando uma cadeira a seu lado, pousou a mão em seu braço. — O senhor fala como nos livros — disse ele. — Por que não escreve um? — Gosto demais de lê-los para me interessar por escrevê-los, sr. Erskine. Gostaria certamente de escrever um romance, um romance tão encantador e tão irreal quanto um tapete persa. Mas na Inglaterra não há público leitor para nada além de jornais, manuais e enciclopédias. De todos os povos do mundo, os ingleses são os que menos apreciam a beleza literária. — Receio que esteja certo — respondeu o sr. Erskine. — Eu mesmo costumava ter ambições literárias, mas abandonei-as há muito tempo. E agora, meu jovem amigo, se é que me permite chamá-lo assim, posso perguntar-lhe o que realmente quis dizer com suas palavras à hora do almoço? — Já me esqueci de quase tudo que disse — sorriu Lorde Henry. — Foi tão desagradável assim? — Muito, na verdade. De fato, considero-o extremamente perigoso e, se algo acontecer à nossa bondosa duquesa, todos devemos considerá-lo o principal responsável. Mas gostaria de conversar com o senhor sobre a vida. A geração a que pertenço é por demais entediante. Algum dia desses, quando se cansar de Londres, venha até Treadley para apresentar-me sua filosofia do prazer, acompanhado de alguns vinhos da Borgonha que tenho a sorte de possuir. — Será um prazer. Uma visita a Treadley seria uma grande honra. Um anfitrião perfeito e uma biblioteca perfeita.

— E, com sua presença, a perfeição será completa — respondeu o velho cavalheiro com uma amável mesura. — Agora devo despedir-me de sua excelente tia. Sou esperado no Athenaeum29 . Está na hora de dormirmos por lá. — Todos irão, sr. Erskine? — Quarenta de nós, em quarenta poltronas. Estamos praticando para tornarmo-nos uma Academia Inglesa de Letras.

Lorde Henry levantou-se, rindo. — Vou para o parque — exclamou ele.

Ao atravessar a porta, Dorian Gray tocou-o no braço. — Deixe-me acompanhá-lo — murmurou. — Achei que havia prometido a Basil Hallward ir vê-lo — respondeu Lorde Henry. — Prefiro ir com o senhor; sim, sinto que devo ir com o senhor. Deixe-me ir. E prometa-me que conversará comigo durante todo o tempo. Ninguém fala tão maravilhosamente quanto o senhor. — Ah! Já falei o suficiente por hoje — disse Lorde Henry, sorrindo. — Tudo o que quero agora é contemplar a vida. O senhor pode vir contemplá-la comigo, se quiser.

29 Clube privado em Londres fundado em 1824, dedicado àqueles que têm algum tipo de destaque na ciência ou nas artes. (N. do T.)

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