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CAPÍTULO 8

Passava muito do meio-dia quando acordou. Por várias vezes, seu criado havia entrado sorrateiramente no quarto, na ponta dos pés, para ver se ele se movia e perguntara-se o que fizera seu jovem patrão dormir até tão tarde. Finalmente o sino tocou, e Victor entrou delicadamente com uma xícara de chá e uma pilha de cartas em uma pequena e antiga bandeja de porcelana de Sèvres. Ele abriu as cortinas de cetim cor de oliva, com seu forro azul-cintilante, penduradas diante das três grandes janelas. — Monsieur dormiu bastante esta manhã — disse ele, sorrindo. — Que horas são, Victor? — perguntou Dorian Gray, sonolento. — Uma hora e quinze, monsieur.

Como era tarde! Sentou-se e, bebericando um pouco de chá, voltou-se às cartas. Uma delas era de Lorde Henry e havia sido entregue pessoalmente naquela manhã. Hesitou um instante e então colocou-a de lado. Abriu as outras com indiferença. Continham a coleção habitual de cartões, convites para jantar, ingressos para exibições privadas, programas de concertos beneficentes e todo tipo de coisas que eram despejadas sobre jovens elegantes todas as manhãs durante a temporada. Havia uma conta bem pesada de um conjunto de toilette Luís XV entalhado em prata, que ele ainda não tivera coragem de enviar a seus tutores, pessoas extremamente antiquadas — eles ainda não haviam percebido que vivíamos em uma época na qual as coisas desnecessárias eram nossas únicas necessidades; e também havia vários informes de agiotas da Rua Jermyn, redigidos de maneira muito amável, oferecendo-se para adiantar de imediato qualquer quantia em dinheiro, com taxas de juros bastante razoáveis.

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Levantou-se cerca de dez minutos depois e, vestindo um elaborado roupão de caxemira bordado de seda, passou ao banheiro com piso de ônix. A água fria refrescou-o depois de seu longo sono. Parecia ter esquecido tudo por que havia passado. Uma vaga sensação de ter participado de alguma estranha tragédia passou por sua mente uma ou duas vezes, mas vinha revestida da ilusão de um sonho.

Assim que se vestiu, foi até a biblioteca e sentou-se para tomar um leve café da manhã francês, que lhe fora servido em uma pequena mesa redonda próxima à janela aberta. Fazia um dia magnífico. O ar tépido parecia impregnado de especiarias. Uma abelha entrou na sala e zumbiu ao redor do vaso à sua frente, estampado com um dragão azul e repleto de rosas amarelo-vivo. Sentia-se perfeitamente feliz.

De repente, seu olhar recaiu sobre o biombo que colocara em frente ao retrato, e ele assustou-se. — Frio demais para o monsieur? — perguntou o criado, colocando o omelete sobre a mesa. — Fecho a janela?

Dorian balançou a cabeça. — Não estou com frio — murmurou.

Seria tudo verdade? Estaria o retrato realmente mudado? Ou teria sido simplesmente sua imaginação que o fizera ver um olhar de maldade onde havia apenas alegria? Certamente uma tela pintada não poderia se alterar. Aquilo era absurdo. Seria uma boa história para contar a Basil qualquer dia desses. Ela o faria sorrir.

Mesmo assim, como era intensa sua lembrança da coisa toda! Primeiro no fraco crepúsculo, depois na brilhante aurora, havia visto o toque da crueldade ao redor dos lábios distorcidos. Chegava a ter medo de que seu criado deixasse a sala. Sabia que, quando estivesse sozinho, teria de examinar o retrato. Temia a certeza. Quando o café e os cigarros foram trazidos e o homem virou-se para ir embora, sentiu um desejo feroz de dizer-lhe para ficar. Quando a porta fechava-se atrás dele, chamou-o de volta. O homem ficou à espera de suas ordens. Dorian olhou para ele por um momento.

— Não estou em casa para ninguém, Victor — disse, soltando um suspiro. O homem fez-lhe uma reverência e retirou-se.

Então, ele levantou-se da mesa, acendeu um cigarro e atirou-se em um sofá luxuosamente estofado localizado em frente ao biombo. Tratava-se de um biombo antigo, de couro espanhol folheado a ouro, ornamentado com uma estampa florida no estilo Luís XIV. Examinou-o com curiosidade, imaginando se alguma vez já tinha acobertado o segredo da vida de um homem.

Deveria movê-lo, afinal? Por que não deixá-lo onde estava? De que adiantava saber? Caso tudo fosse verdade, era algo terrível. Caso contrário, por que se preocupar com aquilo? Mas e se, por obra do destino ou por algum acaso fatal, olhos que não os seus espiassem o que havia por trás dele e vissem a terrível mudança? O que ele faria se Basil Hallward chegasse e pedisse para olhar sua pintura? Basil certamente faria isso. Não; a coisa tinha de ser examinada e imediatamente. Qualquer coisa seria melhor que esse pavoroso estado de dúvida.

Levantou-se e trancou ambas as portas. Pelo menos estaria sozinho quando olhasse para a máscara de sua vergonha. Afastou o biombo e encarou o próprio rosto. Era absolutamente verdade. O retrato havia mudado.

Como se lembraria continuamente mais tarde, sempre com grande espanto, a princípio sentia-se olhando para o retrato com um interesse quase científico. Que tal mudança tivesse ocorrido, era incrível para ele. E, mesmo assim, era real. Haveria alguma afinidade sutil entre os átomos que se moldavam em formas e cores na tela e a alma que residia dentro dele? Seria possível que eles produzissem o que sua alma pensava? Aquilo que ele sonhava, tornariam eles realidade? Ou existiria alguma outra razão, ainda mais terrível? Ele estremeceu, encheu-se de pavor e, voltando para o sofá, ali ficou, contemplando a pintura com um horror doentio.

Uma coisa, no entanto, ele sentia que o quadro fizera por ele. Tornara-o consciente do quão injusto, quão cruel ele tinha sido

com Sibyl Vane. Não era tarde demais para reparar seus atos. Ela ainda poderia ser sua esposa. Seu amor egoísta e irreal daria lugar a alguma influência mais elevada, seria transformada em alguma paixão mais nobre, e o retrato que Basil Hallward pintara seria para ele um guia através da vida, seria para ele o que a santidade é para alguns, a consciência para outros e o temor a Deus para todos nós. Havia opiáceos para o remorso, drogas que poderiam acalentar qualquer senso moral. Mas estava aqui um símbolo visível da degradação do pecado. Aqui existia um sinal onipresente da ruína a que os homens conduziam suas almas.

O relógio bateu três horas, e quatro, e também o toque duplo de meia hora, mas Dorian Gray não se moveu. Ele tentava reunir os fios escarlate da vida para tecê-los em um padrão; tentava encontrar seu caminho através do labirinto sanguíneo da paixão em que perambulava. Ele não sabia o que fazer nem o que pensar. Finalmente, foi até a mesa e escreveu uma carta apaixonada para a garota que amara, implorando seu perdão e admitindo loucura. Cobriu páginas e páginas de palavras devastadas pela tristeza, seguidas de palavras ainda mais devastadas pela dor. Havia certa luxúria na autocomiseração. Quando admitimos nossa culpa, sentimos que ninguém mais tem o direito de nos culpar. É a confissão, e não o sacerdote, que nos dá a absolvição. Quando Dorian terminou sua carta, sentiu que tinha sido perdoado.

Subitamente bateram à porta, e ele ouviu a voz de Lorde Henry do lado de fora.

— Meu caro garoto, preciso vê-lo. Deixe-me entrar imediatamente. Não posso suportar que se tranque dessa maneira.

Não lhe deu nenhuma resposta a princípio e permaneceu praticamente imóvel. As batidas continuaram, ficando cada vez mais altas. Sim, era melhor deixar Lorde Henry entrar e explicar-lhe a nova vida que iria levar, brigar com ele se fosse necessário, separar-se

dele se fosse inevitável. Levantou-se de um salto, retornou rapidamente o biombo para a frente do quadro e destrancou a porta. — Sinto muito por tudo, Dorian — disse Lorde Henry ao entrar. — Mas você não deve pensar demais no assunto. — Você está falando de Sibyl Vane? — perguntou o rapaz. — Sim, claro — respondeu Lorde Henry, afundando-se em uma cadeira e retirando lentamente suas luvas amarelas. — É horrível, de certo ponto de vista, mas não é culpa sua. Diga-me, você foi aos bastidores vê-la, depois que a peça acabou? — Sim. — Tinha certeza de que o fizera. Discutiu com ela? — Fui brutal, Harry — perfeitamente brutal. Mas está tudo certo agora. Não lamento nada do que aconteceu. Serviu para ensinar-me a conhecer-me melhor. — Ah, Dorian, estou tão feliz que tenha levado desta forma! Temia encontrá-lo afundado em remorsos, arrancando seus lindos cabelos. — Passei por tudo isso — disse Dorian, balançando a cabeça e sorrindo. — Estou absolutamente feliz agora. Para começar, descobri o que é a consciência. Não é o que você me afirmara ser. É o que há de mais divino em nós. Não seja insolente, Harry, nunca mais — pelo menos não diante de mim. Quero ser bom. Não consigo suportar a ideia de ter uma alma hedionda. — Uma base artística muito encantadora para a ética, Dorian! Parabenizo-o por ela. Mas como você irá começar? — Casando-me com Sibyl Vane. — Casando-se com Sibyl Vane! — exclamou Lorde Henry, levantando-se e olhando para ele, perplexo e assustado. — Mas, meu querido Dorian... — Sim, Harry, eu sei o que você vai dizer. Algo horrível a respeito do casamento. Não diga nada. Nunca mais me diga coisas do tipo novamente. Dois dias atrás, pedi Sibyl em casamento. Não vou quebrar minha promessa. Ela será minha esposa.

— Sua esposa! Dorian... você não recebeu minha carta? Escrevi-lhe esta manhã e mandei meu criado trazê-la. — Sua carta? Ah, sim, lembro-me. Ainda não a li, Harry. Temia que houvesse nela algo de que não fosse gostar. Você despedaça a vida com seus epigramas. — Então não sabe de nada? — O que quer dizer?

Lorde Henry atravessou a sala e, sentando-se ao lado de Dorian Gray, tomou suas mãos e apertou-as com firmeza. — Dorian — disse ele —, minha carta... não se assuste... era para contar-lhe que Sibyl Vane está morta.

Um grito de dor irrompeu dos lábios do rapaz e ele levantou-se de um salto, arrancando as mãos do alcance de Lorde Henry. — Morta! Sibyl morta! Não é verdade! É uma mentira horrível! Como ousa dizer isso? — É a pura verdade, Dorian — disse Lorde Henry, sério. — Está em todos os jornais matutinos. Escrevi para pedir-lhe que não recebesse ninguém até minha chegada. Haverá um inquérito, claro, e você não deve se envolver nele. Em Paris, coisas do tipo tornam um homem popular. Mas, em Londres, as pessoas são tão preconceituosas. Aqui, ninguém deve ser introduzido à sociedade com um escândalo. Deve-se reservar tal coisa para inspirar algum interesse quando se é velho. Suponho que não saibam seu nome no teatro, não é? Se não sabem, está tudo bem. Alguém o viu às voltas no camarim dela? Esse é um ponto importante.

Dorian não respondeu por alguns momentos. Estava atordoado com o horror. Finalmente balbuciou, com a voz contida: — Harry, você falou em inquérito? O que quer dizer? Por acaso Sibyl...? Oh, Harry, não posso suportar isso! Seja rápido. Diga-me tudo de uma vez. — Não tenho dúvidas de que não foi um acidente, Dorian, embora deva ser divulgado dessa forma para o público. Parece que,

ao sair do teatro com a mãe, por volta de meia-noite e meia, ela disse que tinha esquecido algo no andar de cima. Esperaram-na por algum tempo, mas ela não desceu novamente. Finalmente, encontraram-na morta no chão de seu camarim. Havia ingerido algo por engano, alguma coisa horrível que se usa no teatro. Não sei o que foi, mas continha ácido cianídrico ou alvaiade. Imagino que deva ter sido ácido cianídrico, já que parece ter morrido instantaneamente. — Harry, Harry, isso é horrível! — gritou o rapaz. — Sim, é muito trágico, certamente, mas você não deve se envolver nisso. Vi no The Standard 49 que ela tinha dezessete anos. Pensei até que seria ainda mais jovem. Parecia uma criança e sabia tão pouco sobre atuação. Dorian, você não pode deixar que isso lhe afete os nervos. Deve vir jantar comigo e, depois, passaremos na ópera. É noite de Patti50 e todos estarão lá. Você pode ir ao camarote de minha irmã. Ela estará acompanhada de algumas mulheres muito elegantes. — Então assassinei Sibyl Vane — disse Dorian Gray, um pouco para si mesmo. — Matei-a, tão certo quanto se tivesse cortado seu pequeno pescoço com uma faca. Mesmo assim, as rosas não estão menos encantadoras. Os pássaros cantam com a mesma felicidade de antes no meu jardim. E hoje à noite jantarei com você, então irei à ópera e, imagino, cearei em algum lugar depois disso. Como a vida é extraordinariamente dramática! Se tivesse lido tudo isso em um livro, Harry, provavelmente teria chorado. Mas de alguma forma, agora que isso realmente aconteceu, e comigo, parece maravilhoso demais para lágrimas. Eis aqui a primeira carta apaixonada de amor que já escrevi na minha vida. O curioso é que minha primeira carta apaixonada de amor tenha sido escrita para uma garota morta. Imagino se essas pálidas e silenciosas pessoas a quem chamamos

49 Jornal londrino fundado em 1827. Atualmente é chamado The Evening Standard. (N. do T.) 50 Adelina Patti (1843-1919) foi uma aclamada soprano do século XIX, sendo exaltada nas maiores capitais musicais da Europa e das Américas no auge da sua carreira. (N. do T.)

de mortos podem sentir algo? Sibyl! Será que ela pode sentir, saber ou ouvir? Ah, Harry, como a amei um dia! Agora, parece-me que foi anos atrás. Ela era tudo para mim. Então veio aquela noite horrorosa — foi realmente na noite passada? — quando representou daquela forma terrível e quase despedaçou meu coração. Ela explicou tudo para mim. Foi absolutamente patético. Mas não me emocionei nem um pouco. Achei-a superficial. Subitamente aconteceu algo que me fez ter medo. Não posso dizer-lhe o que, mas foi algo terrível. Eu disse que voltaria para ela. Senti que havia agido da forma errada. E agora ela está morta. Meu Deus! Meu Deus! Harry, o que devo fazer? Você não sabe o perigo que eu corro, e não há nada para me manter na linha. Ela teria feito isso por mim. Ela não tinha o direito de se matar. Foi egoísmo da parte dela. — Meu querido Dorian — respondeu Lorde Henry, tirando da carteira um cigarro e uma caixa de fósforos dourada —, a única forma de uma mulher modificar um homem é entediando-o de tal forma que ele perca qualquer interesse possível na vida. Se você se casasse com essa garota, seria muito infeliz. Claro, você a teria tratado com bondade. Sempre podemos ser gentis com pessoas com as quais não nos importamos. Mas ela logo teria descoberto que você lhe era absolutamente indiferente. E, quando uma mulher descobre tal coisa a respeito do marido, ou ela se torna terrivelmente desleixada ou começa a usar chapéus muitíssimo elegantes, pagos pelo marido de alguma outra mulher. Não digo nada a respeito da incorreção social, que teria sido abjeta — algo que, certamente, eu não teria permitido —, mas asseguro-lhe que, de qualquer forma, a coisa toda teria sido um completo fracasso. — Suponho que sim — murmurou o rapaz, andando de um lado para o outro da sala e parecendo terrivelmente pálido. — Mas acredito que era meu dever. Não é minha culpa que essa terrível tragédia tenha me impedido de fazer o que era certo. Lembro-me de você ter dito uma vez que há certa fatalidade nas boas

resoluções — que elas são tomadas sempre tarde demais. As minhas, com certeza, foram. — As boas resoluções são tentativas inúteis de interferir nas leis da natureza. Originam-se na vaidade mais pura. Seu resultado é absolutamente nulo. Propiciam-nos, vez ou outra, algumas emoções inúteis e deslumbrantes, do tipo que dispõem de certo encanto para os fracos. Isso é tudo que pode ser dito a seu respeito. Não são nada além de cheques que os homens sacam em um banco em que não têm conta. — Harry — exclamou Dorian Gray, aproximando-se e sentando-se ao seu lado —, por que razão não posso sentir essa tragédia tanto quanto gostaria? Não me considero insensível. Você me vê assim? — Você fez muitas coisas tolas durante a última quinzena para ter o direito de carregar esse título, Dorian — respondeu Lorde Henry, com seu agradável e melancólico sorriso.

O rapaz franziu o cenho. — Não gosto dessa explicação, Harry — retrucou ele —, mas fico feliz que não me considere insensível. Não o sou de modo nenhum. Sei que não sou. Ainda assim, devo admitir que isso que aconteceu não me afetou como deveria. Parece-me simplesmente um final maravilhoso de uma peça maravilhosa. Tem a beleza terrível de uma tragédia grega, uma tragédia em que tive grande participação, mas pela qual não cheguei a me ferir. — Essa é uma questão interessante — disse Lorde Henry, que encontrava extraordinário prazer em brincar com o egoísmo inconsciente do rapaz —, uma questão extremamente interessante. Imagino que a verdadeira explicação seja esta: frequentemente, as verdadeiras tragédias da vida acontecem de maneiras tão pouco artísticas que nos ferem por sua violência crua, sua absoluta incoerência, sua absurda falta de sentido, sua completa ausência de estilo. Elas nos afetam assim como a vulgaridade nos afeta.

Dão-nos a impressão de pura força bruta e revoltamo-nos contra isso. Às vezes, no entanto, uma tragédia que possui elementos artísticos de beleza cruza nossa vida. Se esses elementos de beleza são reais, a coisa toda simplesmente agrada a nosso senso de efeito dramático. Subitamente, percebemos que não somos mais os atores, mas simples espectadores da peça. Ou, ainda melhor, somos ambos. Assistimos a nós mesmos, e o mero encanto do espetáculo nos cativa. No seu caso, o que de fato aconteceu? Alguém se matou por amor a você. Quem dera eu tivesse passado por tal experiência. Teria-me apaixonado pelo amor pelo resto da vida. As pessoas que me adoraram — não foram muitas, mas houve algumas — sempre insistiram em continuar vivas, muito tempo depois de eu deixar de me importar com elas ou elas comigo. Tornaram-se corpulentas e entediantes e, quando as encontro, logo começam a lembrar-se do passado. Essa memória terrível das mulheres! Que coisa temerosa ela é! E que completa estagnação intelectual revela! Deveríamos absorver as cores da vida, mas nunca lembrar de seus detalhes. Detalhes são sempre vulgares. — Devo plantar papoulas no meu jardim51 — suspirou Dorian. — Não há necessidade — objetou seu companheiro. — A vida tem sempre papoulas em mãos. Certamente, vez ou outra, as coisas permanecem. Uma vez, usei apenas violetas por toda uma temporada, em luto por um romance que não morria. Finalmente, no entanto, acabou morrendo. Não me lembro o que o matou. Acredito que foi a proposta dela de sacrificar o mundo inteiro por mim. Esse sempre é um momento terrível. Preenche-nos com o horror da eternidade. Bom — duvido que vá acreditar em mim —, há uma semana, na residência de Lady Hampshire, achei-me sentado ao lado da dama em questão durante o jantar e ela insistiu em relembrar a coisa toda novamente, desenterrando o passado e evocando o futuro.

51 As papoulas eram símbolo de luto na sociedade vitoriana (meados do século XIX). (N. do T.)

Eu havia enterrado meu romance em um Campo de Asfódelos52 . Ela o arrastou para fora mais uma vez e assegurou-me de que eu arruinara sua vida. Sou obrigado a dizer que comeu bastante bem no jantar, então não me senti nem um pouco angustiado. Mas que falta de gosto demonstrou! O único encanto do passado é estar no passado. Mas as mulheres nunca sabem quando a cortina caiu. Sempre querem um sexto ato e, assim que o interesse na peça acaba, propõem uma continuação. Se lhes fosse permitido fazer tudo a seu modo, toda comédia teria um final trágico e toda tragédia culminaria em uma farsa. Elas são encantadoramente artificiais, mas não têm nenhum senso artístico. Você é mais afortunado que eu. Asseguro-lhe, Dorian, que nenhuma das mulheres que conheci teria feito por mim o que Sibyl Vane fez por você. Mulheres comuns sempre se consolam. Algumas delas o fazem buscando cores sentimentais. Nunca confie em uma mulher que use a cor malva, não importa a sua idade, ou em uma mulher com mais de trinta e cinco anos que goste de laços cor-de-rosa. Isso sempre quer dizer que elas têm uma história. Outras consolam-se grandemente ao descobrir as boas qualidades de seus maridos. Ostentam sua felicidade conjugal como se fosse o mais fascinante dos pecados. A religião conforta algumas. Seus mistérios têm todo o charme de um flerte, disse-me certa vez uma mulher, e posso entender perfeitamente. Além disso, nada torna alguém mais vaidoso do que lhe dizer que é um pecador. A consciência nos torna todos egoístas. Sim; não há fim para os consolos que as mulheres encontram na vida moderna. Na verdade, não mencionei o mais importante de todos. — Qual é ele, Harry? — disse o rapaz, com indiferença. — Ora, o consolo mais óbvio. Tirar o admirador de outra pessoa

52 O Campo de Asfódelos, de acordo com a mitologia grega, é um local do Mundo Inferior, reino pertencente a Hades, o rei dos mortos. Neste lugar ficam vagando todas as almas que, depois de seu julgamento, não foram consideradas nem más nem boas, são simplesmente

“irrelevantes”. (N. do T.)

quando se perde o próprio. Na boa sociedade, isso sempre oculta as faltas de uma mulher. Mas realmente, Dorian, como Sibyl Vane deve ter sido diferente de todas as mulheres que conhecemos! A meu ver, há algo muito bonito em relação à sua morte. Fico feliz de viver em um século em que tais maravilhas acontecem. Elas nos fazem acreditar na veracidade das coisas com que todos brincamos, como o romance, a paixão e o amor. — Fui terrivelmente cruel com ela. Você esquece-se disso. — Temo que as mulheres apreciem a crueldade, a crueldade absoluta, mais do que qualquer outra coisa. Elas têm instintos deliciosamente primitivos. Nós as emancipamos, mas mesmo assim elas permanecem escravas à procura de seus donos. Elas adoram ser dominadas. Tenho certeza de que você foi esplêndido. Nunca o vi verdadeira e absolutamente furioso, mas imagino o quão encantador deve ter soado. E, no fim das contas, anteontem você me disse algo que, naquela ocasião, pareceu-me simples fruto da sua imaginação, mas agora entendo que era absolutamente verdadeiro e detém a explicação de tudo. — O que foi, Harry? — Você me disse que Sibyl Vane representava para você todas as heroínas românticas — que ela era Desdêmona uma noite e Ofélia na outra; que, se ela morria como Julieta, voltava à vida como Imogênia. — Ela nunca mais voltará à vida novamente agora — murmurou o rapaz, enterrando o rosto em suas mãos. — Não, ela nunca mais voltará à vida. Ela encenou seu último papel. Mas você deve pensar em sua morte solitária naquele camarim espalhafatoso simplesmente como um fragmento horripilante de alguma tragédia jacobina53, como uma maravilhosa

53 Tragédias jacobinas eram aquelas escritas e encenadas durante o reinado de Jaime I, da

Inglaterra (1566-1625). (N. do T.)

cena de Webster, Ford ou Cyril Tourneur54. A garota nunca viveu realmente, então nunca morreu de verdade. Para você, pelo menos, ela sempre foi um sonho, um fantasma que se movia por meio das peças de Shakespeare, tornando-as mais encantadoras por sua simples presença, um instrumento pelo qual a música de Shakespeare soava mais rica e cheia de alegria. No momento em que ela entrou em contato com a realidade da vida, arruinou-a, foi arruinada por ela e então morreu. Fique de luto por Ofélia, se quiser. Deposite cinzas na cabeça por Cordélia ter sido estrangulada. Grite contra o céu porque a filha de Brabâncio morreu. Mas não desperdice suas lágrimas com Sibyl Vane. Ela era menos real do que elas.

Ficaram calados. A noite escurecia a sala. Vindas do jardim, silenciosamente e em movimentos rápidos, as sombras rastejaram para dentro da sala. Exaustas, as cores desbotavam.

Depois de algum tempo, Dorian Gray levantou os olhos. — Você acaba de explicar-me para mim mesmo, Harry — murmurou ele com uma espécie de suspiro de alívio. — Senti tudo que você me disse, mas, de alguma forma, tive medo do que sentia e não pude expressá-lo para mim mesmo. Como você me conhece bem! Mas não falemos mais do que aconteceu. Foi uma experiência maravilhosa. Nada mais que isso. Pergunto-me se a vida ainda tem algo tão maravilhoso reservado para mim. — A vida tem tudo reservado para você, Dorian. Não há nada que você, com sua extraordinária beleza, não seja capaz de fazer. — Mas suponhamos, Harry, que eu fique debilitado, velho e enrugado. O que acontecerá, então? — Ah, então — disse Lorde Henry levantando-se para sair —, então, meu querido Dorian, você teria de lutar por suas vitórias. Em seu estado atual, elas lhe são oferecidas. Não, você deve manter sua

54 John Webster (1580-1632), John Ford (1586-1639) e Cyril Tourneur (1575-1626) foram dramaturgos jacobinos. (N. do T.)

boa aparência. Vivemos em uma época em que, para ser sábio, lê-se demais e, para ser belo, pensa-se demais. Não podemos prescindir de sua presença. E agora é melhor vestir-se e dirigir-se ao clube. Já estamos demasiado atrasados. — Acho que vou encontrá-lo na ópera, Harry. Estou cansado demais para comer. Qual é o número do camarote de sua irmã? — Vinte e sete, penso eu. Fica no balcão nobre. Você verá seu nome na porta. Mas sinto muito que não venha para o jantar. — Não estou com vontade — disse Dorian, indiferente. — Mas sinto-me extremamente agradecido por tudo que me disse. Você é certamente meu melhor amigo. Ninguém jamais me compreendeu como você. — Estamos apenas no início de nossa amizade, Dorian — respondeu Lorde Henry apertando-lhe a mão. — Adeus. Devo vê-lo antes das nove e trinta, espero. Lembre-se, Patti irá cantar.

Enquanto fechava a porta atrás do amigo, Dorian Gray tocou a sineta e, em poucos minutos, Victor apareceu com os lampiões e fechou as persianas. Dorian esperou impacientemente que ele saísse. O homem parecia levar um tempo interminável para fazer qualquer coisa.

Assim que ele saiu, correu para o biombo e afastou-o. Não; não havia mais mudanças na pintura. O quadro recebera a notícia da morte de Sibyl Vane antes mesmo que ele soubesse. Tinha consciência dos eventos da vida assim que ocorriam. A violenta crueldade que arruinara os delicados traços da boca apareceram, sem sombra de dúvida, no exato momento em que a garota tomara o veneno, fosse ele qual fosse. Ou seria ele indiferente aos resultados? Ou tomaria conhecimento apenas do que se passava dentro da alma? Ele perguntou-se, esperando um dia poder ver a mudança acontecendo diante de seus olhos e estremeceu ao desejá-lo.

Pobre Sibyl! Que romance havia sido tudo aquilo! Muitas vezes, ela simulara a morte no palco. E então a própria morte a tocara, levando-a consigo. Como representara essa terrível última cena?

Ela o teria amaldiçoado ao morrer? Não! Ela morrera por seu amor por ele e, agora, o amor lhe seria sempre sagrado. Ela expiara tudo com o sacrifício da própria vida. Ele não pensaria mais no que ela o fizera passar, naquela horrível noite no teatro. Quando pensasse nela, seria como uma maravilhosa figura trágica enviada ao palco do mundo para mostrar-lhe a suprema realidade do amor. Uma maravilhosa figura trágica? Lágrimas surgiram em seus olhos ao lembrar-se de sua aparência infantil, de seus modos caprichosos e cativantes e de seu encanto tímido e trêmulo. Afastou as lembranças rapidamente e olhou mais uma vez para o quadro.

Sentiu que chegara a hora de fazer sua escolha. Ou a escolha já teria sido feita? Sim, a vida decidira por ele — a vida e sua própria e infinita curiosidade acerca da vida. Juventude eterna, paixão infinita, prazeres sutis e secretos, alegrias perversas e pecados ainda mais perversos — ele deveria ter todas essas coisas. O retrato carregaria o fardo de sua vergonha; assim seria.

Uma sensação de dor pairou sobre ele quando pensou na profanação reservada ao belo rosto na tela. Certa vez, em uma imitação infantil de Narciso, ele beijara, ou fingira beijar, aqueles lábios pintados, que agora lhe sorriam de forma tão cruel. Por várias manhãs seguidas, sentara-se diante do retrato, maravilhado com sua beleza, parecendo-lhe, às vezes, quase apaixonado por ela. Será que mudaria a cada humor a que ele sucumbisse? Tornaria-se ele algo monstruoso e repugnante, devendo ser escondido em um quarto trancado, afastado da luz do sol que tantas vezes transformara seus maravilhosos cachos em ouro cintilante? Que lástima seria! Que lástima seria!

Por um momento, pensou em suplicar para que a terrível afinidade que existia entre ele e o quadro deixasse de existir. O quadro mudara em resposta a uma súplica; talvez permanecesse inalterado em resposta a uma súplica. Ainda assim, quem — ciente de qualquer coisa a respeito da vida — abriria mão da possibilidade de permanecer sempre jovem, por mais fantástica que ela fosse ou a despeito das consequências que ela provocasse? Além do mais,

tudo isso estava realmente sob seu controle? Teria sido de fato uma súplica que produzira essa troca? Não haveria alguma estranha razão científica para tudo isso? Se o pensamento poderia influenciar um organismo vivo, não poderia também exercer sua influência sobre coisas mortas e inorgânicas? Sem um pensamento ou desejo consciente, coisas fora de nós não poderiam vibrar em uníssono com nossos humores e paixões, átomo atraindo átomo por meio de algum amor secreto ou estranha afinidade? Mas a razão não tinha importância. Nunca mais instigaria nenhum terrível poder por meio de súplicas. Se o quadro tinha de mudar, então que mudasse. Era tudo. Por que investigar sua causa tão atentamente?

Ora, teria muito prazer em observá-lo. Seria capaz de adentrar os lugares secretos de sua mente. Para ele, esse retrato seria o mais mágico dos espelhos. Assim como revelara-lhe seu próprio corpo, também lhe revelaria sua própria alma. E, quando o inverno o atingisse, ele ainda estaria onde tremula a primavera, no prenúncio do verão. Quando o sangue abandonasse seu rosto, deixando para trás uma máscara pálida como giz com olhos apáticos, ele manteria o fascínio da juventude. Nenhuma flor de sua beleza jamais murcharia. Nenhuma pulsação de sua vida jamais enfraqueceria. Como os deuses gregos, ele continuaria forte, ágil e jovial. Que lhe importava o que iria acontecer com a imagem colorida na tela? Ele estaria a salvo. Isso era tudo.

Colocou o biombo de volta no lugar onde estava diante do quadro, sorrindo ao fazê-lo, e passou ao seu quarto, onde o criado já o esperava. Uma hora depois, estava na ópera, e Lorde Henry inclinava-se sobre sua cadeira.

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