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CAPÍTULO 9

Na manhã seguinte, enquanto ele tomava o desjejum, Basil Hallward foi levado até a sala. — Estou tão feliz em tê-lo encontrado, Dorian — disse ele, sério — Vim visitá-lo na noite passada e disseram-me que tinha ido à ópera. Certamente, sabia que era impossível. Mas gostaria que tivesse deixado avisado onde tinha realmente ido. Passei uma noite terrível, temendo que uma tragédia pudesse ter sido seguida por outra. Você bem que poderia ter me telegrafado assim que soube do ocorrido. Fiquei sabendo por acaso em uma edição vespertina do The Globe55 que peguei no clube. Vim para cá imediatamente e fiquei muito infeliz por não encontrá-lo. Nem sei como lhe dizer quão triste me senti sobre a coisa toda. Imagino o quanto está sofrendo. Mas onde esteve você? Foi ver a mãe da garota? Por um momento, pensei em segui-lo até lá. Publicaram o endereço no jornal. Nas redondezas de Euston Road, não é? Mas fiquei com receio de intrometer-me em uma dor que eu não poderia aliviar. Pobre mulher! Em que estado deve estar! Além de tudo, sua única filha! O que ela disse a respeito do que aconteceu? — Meu caro Basil, como posso saber? — murmurou Dorian Gray, bebericando um vinho amarelo-palha de um delicado cálice de cristal veneziano ornado com bolhas douradas e parecendo completamente entediado. — Estava na ópera. Você deveria ter aparecido. Conheci Lady Gwendolen, a irmã de Harry. Ficamos no camarote dela. Ela é absolutamente encantadora; e Patti cantou divinamente. Não fale de assuntos horrendos. Se não falamos de

55 The Globe era um jornal britânico, publicado entre 1803 e 1921. (N. do T.)

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algo, é como se não tivesse acontecido. Apenas a expressão, como Harry diz, dá vida às coisas. Devo mencionar que ela não era a única filha da mulher. Ela tem um filho, um rapaz encantador, penso eu. Mas ele não trabalha nos palcos. É um marinheiro ou algo assim. Mas agora conte-me sobre você e sobre o que está pintando. — Você foi à ópera? — disse Hallward, muito lentamente, com um angustiado tom de dor na voz. — Você foi à ópera enquanto Sibyl Vane jazia morta em algum aposento sórdido? Você é capaz de me falar a respeito de outras mulheres sendo encantadoras, de Patti cantando divinamente, antes mesmo de a garota que você amou ter a tranquilidade de um túmulo para adormecer? Ora, homem, há tantos horrores reservados para aquele seu pequeno corpo pálido! — Pare, Basil! Não vou ouvi-lo! — gritou Dorian levantando-se de um salto. — Você não deve me falar dessas coisas. O que aconteceu, aconteceu. O que é passado, passou. — Você chama o dia de ontem de passado? — O que tem o intervalo de tempo a ver com isso? Apenas pessoas superficiais precisam de anos para livrar-se de uma emoção. Um homem que é senhor de si pode acabar com uma dor tão rápido quanto pode criar um prazer. Não quero ficar à mercê de minhas emoções. Quero utilizá-las, desfrutá-las e dominá-las. — Dorian, isso é horrível! Alguém transformou-o completamente. Você parece exatamente igual àquele maravilhoso menino que, dia após dia, costumava vir até meu ateliê para posar para seu retrato. Mas, naquela época, você era simples, espontâneo e afetuoso. Você era a criatura mais pura de todo o mundo. Agora, não sei o que lhe aconteceu. Você fala como se não tivesse coração nem qualquer compaixão. Tudo isso é influência de Harry. Posso vê-lo.

O rapaz enrubesceu e, dirigindo-se à janela, olhou por alguns momentos para o verde e cintilante jardim, completamente banhado pelo sol.

— Devo muito a Harry, Basil — disse, afinal —, muito mais do que devo a você. Você apenas ensinou-me a ser vaidoso. — Bom, já sou punido por isso, Dorian — ou serei, no futuro. — Não sei o que quer dizer, Basil — exclamou ele virando-se. — Não sei o que você quer. O que você quer? — Quero o Dorian Gray que eu costumava pintar — disse o artista, com tristeza. — Basil — disse o rapaz, aproximando-se dele e pousando a mão em seu ombro —, você chegou tarde demais. Ontem, quando soube que Sibyl Vane havia cometido suicídio... — Suicídio! Por Deus! Não há dúvidas disso? — clamou Hallward olhando para ele com uma expressão horrorizada. — Meu querido Basil! Certamente você não acredita que foi um acidente comum? É claro que ela se matou.

O homem mais velho enterrou o rosto entre as mãos.

— Que horrível — murmurou, sendo atravessado por um arrepio. — Não — disse Dorian Gray —, não há nada horrível nisso. Trata-se de uma das grandes tragédias românticas de nossa época. Via de regra, as pessoas que atuam levam vidas extremamente ordinárias. São bons maridos, esposas fiéis ou algo entediante do gênero. Você sabe a que me refiro — virtudes da classe média e esse tipo de coisas. Como Sibyl era diferente! Ela viveu sua melhor tragédia. Ela sempre foi uma heroína. Na última noite em que ela atuou — na noite em que você a viu —, teve uma péssima atuação porque tinha conhecido a realidade do amor. Quando soube que se tratava de uma ilusão, ela morreu, assim como Julieta teria morrido. Ela passou mais uma vez à esfera da arte. Há algo de mártir nela. Sua morte tem toda a inutilidade patética do martírio, toda a sua beleza desperdiçada. Mas, como estava dizendo, você não deve pensar que não sofri. Se tivesse vindo ontem, em um momento preciso — por volta

das cinco e meia da tarde ou talvez quinze para as seis —, teria-me encontrado aos prantos. Nem mesmo Harry, que aqui estava, que foi quem me trouxe a notícia de fato, não tinha ideia pelo que eu estava passando. Sofri imensamente. Então tudo passou. Não consigo repetir uma emoção. Ninguém consegue, à exceção dos sensíveis. E você é extremamente injusto, Basil. Você veio aqui para me consolar. Muito encantador de sua parte. Você vê-me consolado e fica furioso. Que pessoa mais solidária! Você lembra-me de uma história que Harry me contou a respeito de um certo altruísta que desperdiçou vinte anos de sua vida tentando retificar alguma queixa ou alterar alguma lei injusta — não me lembro exatamente. Finalmente conseguiu, e nada podia exceder sua decepção. Ele não tinha mais absolutamente nada a fazer e quase morreu de tédio, tornando-se um misantropo convicto. Além disso, meu querido velho Basil, se você quer consolar-me, é melhor ensinar-me a esquecer o ocorrido ou vê-lo sob o ponto de vista artístico apropriado. Não era Gautier56 que costumava escrever sobre la consolation des arts57? Lembro-me de, certo dia, ter pego um livrinho com capa de pergaminho em seu ateliê e deparado-me com essa encantadora frase. Bom, não sou como aquele jovem rapaz de quem você me falou quando nos encontramos em Marlow, aquele que costumava dizer que cetim amarelo poderia consolar todas as tristezas da vida de qualquer pessoa. Amo as coisas belas que podem ser tocadas e manuseadas. Velhos brocados, bronze patinado, trabalhos de laca, esculturas de marfim, ambientes refinados, luxo, pompa — há muito a se desfrutar com tudo isso. Mas o caráter artístico que eles criam ou, de qualquer forma, revelam, significa muito mais para mim. Ser espectador da própria vida, como Harry diz, é fugir de seus sofrimentos. Sei que você está surpreso em ouvir-me falar assim. Você não tinha

56 Théophile Gautier (1811-1872) foi um poeta, dramaturgo, jornalista, crítico de arte e literário francês. (N. do T.) 57 O “consolo nas artes”, em francês. (N. do T.)

percebido como eu havia mudado. Era um menino imaturo quando me conheceu. Agora sou um homem. Tenho novas paixões, novos pensamentos, novas ideias. Sou diferente, mas você não deve gostar menos de mim. Estou mudado, mas você deve continuar sendo meu amigo. Claro, gosto muito de Harry. Mas eu sei que você é melhor que ele. Não é mais forte — você tem medo demais da vida —, mas é melhor. E como éramos felizes juntos! Não me abandone, Basil, e não brigue comigo. Sou o que sou. Não há nada mais a ser dito.

O pintor sentiu-se estranhamente comovido. Queria muitíssimo ao rapaz, e sua personalidade fora a maior reviravolta em sua arte. Não poderia suportar a ideia de repreendê-lo ainda mais. Afinal, sua indiferença era provavelmente apenas um estado de espírito passageiro. Ele tinha tantas coisas boas, havia nele tantas coisas nobres. — Bom, Dorian — disse ele por fim, com um sorriso triste —, não vou falar com você sobre esse horrível episódio novamente. Só espero que seu nome não seja relacionado ao caso. O inquérito deve acontecer esta tarde. Chegaram a intimá-lo?

Dorian balançou a cabeça, e um olhar de irritação passou pelo seu rosto ao ouvir a palavra “inquérito”. Havia algo tão grosseiro e vulgar em tudo ligado a esse tipo de coisa. — Eles não sabem meu nome — respondeu ele. — Mas ela certamente sabia? — Apenas meu primeiro nome e tenho quase certeza de que ela nunca o mencionou a ninguém. Disse-me uma vez que estavam todos curiosos para saber quem eu era e que ela sempre lhes dizia que meu nome era Príncipe Encantado. Era gracioso de sua parte. Você deve me fazer um desenho de Sibyl, Basil. Gostaria de ter algo mais dela além da memória de uns poucos beijos e algumas palavras patéticas interrompidas. — Vou tentar fazer algo, Dorian, se for de seu agrado. Mas você deve vir posar para mim novamente. Não consigo continuar sem você.

— Nunca mais poderei posar para você, Basil. É impossível! — exclamou recuando assustado.

O pintor olhou-o fixamente. — Meu querido garoto, que tolice! — exclamou ele. — Você não pretende me dizer que não gosta do que lhe fiz? Onde está? Por que você colocou o biombo na frente dele? Deixe-me olhá-lo. É a melhor coisa que já pintei. Mova o biombo, Dorian. É simplesmente vergonhoso seu criado ter escondido meu trabalho dessa forma. Senti que a sala parecia diferente quando entrei. — Meu criado não tem nada a ver com isso, Basil. Você não imagina que eu o deixaria arrumar minha sala para mim. Ele ajeita minhas flores, às vezes — e isso é tudo. Não! Fui eu mesmo que o fiz. Havia muita luz incidindo no retrato. — Muita luz! Certamente que não, meu querido amigo. É um lugar admirável para ele. Deixe-me vê-lo. — E Hallward caminhou em direção ao canto da sala.

Um grito de terror irrompeu dos lábios de Dorian Gray, e ele se interpôs entre o pintor e o biombo. — Basil — disse ele, parecendo muito pálido —, você não deve vê-lo. Gostaria que não o fizesse. — Não ver meu próprio trabalho! Você não fala sério. Por que não deveria vê-lo? — exclamou Hallward, rindo. — Se você tentar olhar para ele, Basil, dou-lhe minha palavra de honra que nunca mais falarei com você enquanto viver. Falo com muita seriedade. Não posso lhe dar uma explicação, e você não pode me pedir nenhuma. Mas, lembre-se, se tocar nesse biombo, está tudo acabado entre nós.

Hallward estava estupefato. Olhava para Dorian Gray com absoluto espanto. Nunca o vira assim antes. O rapaz realmente perdera a cor de tanta raiva. Apertava as mãos, e as pupilas dos olhos pareciam discos de fogo azul. Seu corpo todo estremecia.

— Dorian! — Não diga nada! — Mas qual é o problema? Certamente não vou olhar se você não quiser — disse ele, friamente, dando meia-volta e dirigindo-se à janela. — Mas, realmente, parece demasiado ridículo que eu não possa ver meu próprio trabalho, ainda mais considerando que vou exibi-lo em Paris no outono. Antes disso, provavelmente deverei dar-lhe outra mão de verniz e, sendo assim, terei de vê-lo qualquer dia desses; por que não hoje? — Exibi-lo! Você quer exibi-lo? — exclamou Dorian Gray, uma estranha sensação de terror apoderando-se dele. Seu segredo seria mostrado para o mundo? As pessoas admirariam o mistério de sua vida? Era impossível. Algo — ele não sabia o que — deveria ser feito imediatamente. — Sim, suponho que você não vá se opor. Georges Petit está reunindo todos os meus melhores quadros para uma exibição especial na Rue de Sèze58, que deverá ser inaugurada na primeira semana de outubro. O retrato ficará fora apenas um mês. Acredito que você pode facilmente prescindir dele durante esse tempo. Na verdade, sei que estará fora da cidade. E, já que você o mantém sempre atrás de um biombo, não deverá se importar.

Dorian Gray passou a mão sobre a testa. Havia gotas de suor nela. Ele sentiu que estava às portas de um terrível perigo. — Há um mês, você me disse que jamais o exibiria — exclamou ele. — Por que mudou de ideia? Pessoas como você, que se julgam muito consistentes, têm tantas variações de humor quanto os outros. A única diferença é que seus humores são completamente sem sentido. Você não pode ter esquecido que me assegurou sole-

58 Georges Petit (1856-1920) foi um dos principais marchands do final do século XIX e início do XX, tendo representado Degas, Rodin, Picasso, Cézanne e Gauguin. Sua galeria funcionou no número 8 da Rue de Sèze, em Paris, até 1933. (N. do T.)

nemente que nada no mundo o levaria a enviá-lo para nenhuma exibição. Disse a Harry exatamente a mesma coisa.

Parou subitamente, e um brilho invadiu seu olhar. Lembrou-se de que Lorde Henry dissera-lhe certa vez, meio sério, meio brincando: “Se você tem quinze minutos a perder, peça que Basil lhe conte por que ele não quer exibir seu retrato. Ele contou para mim e foi uma revelação”. Sim, talvez Basil também tivesse um segredo. Iria tentar perguntar-lhe o porquê. — Basil — disse ele, aproximando-se muito dele e olhando-o nos olhos —, ambos temos um segredo. Deixe-me saber o seu e lhe contarei o meu. Qual foi sua razão para recusar-se a exibir meu retrato?

Sem querer, o pintor estremeceu. — Dorian, se lhe contasse, talvez passasse a gostar menos de mim e, certamente, riria à minha custa. Não poderia suportar que fizesse nenhuma das duas coisas. Se prefere que eu nunca mais veja seu quadro, contento-me com isso. Sempre terei você para olhar. Se prefere que o melhor trabalho que já fiz fique escondido do mundo, contento-me com isso. Quero mais sua amizade que qualquer fama ou reputação. — Não, Basil, você tem de me contar — insistiu Dorian Gray. — Acredito ter o direito de saber. — A sensação de terror havia passado, dando lugar à curiosidade. Estava determinado a descobrir o mistério de Basil Hallward. — Vamos nos sentar, Dorian — disse o pintor, aturdido. — Vamos nos sentar. Apenas responda-me a uma pergunta. Você notou algo estranho na pintura? Algo que, a princípio, talvez não tenha lhe chamado a atenção mas que, subitamente, revelou-se? — Basil! — exclamou o rapaz, agarrando os braços da cadeira com as mãos trêmulas e olhando para ele com um olhar assustado e enfurecido. — Percebo que notou. Não fale nada. Espere até ouvir o que tenho a dizer. Dorian, no momento em que o conheci, sua perso-

nalidade teve a mais extraordinária influência sobre mim. Senti minha alma, minha mente e minha vontade dominadas por você. Você tornou-se para mim a personificação de um ideal oculto cuja memória assombra a nós, artistas, como um sonho extraordinário. Passei a idolatrá-lo. Comecei a sentir ciúme de qualquer um que falasse com você. Queria tê-lo só para mim. Só ficava feliz quando estava ao seu lado. Quando você se afastava de mim, ainda estava presente na minha arte... Claro, nunca deixei que soubesse nada disso. Teria tornado tudo impossível. Você não teria me compreendido. Eu mesmo custava a entender. Apenas sabia que vira a perfeição de perto e que o mundo se transformara em algo maravilhoso aos meus olhos — talvez maravilhoso demais, pois, em uma idolatria tão delirante residem muitos perigos, o perigo de perder seu ídolo, tão grande quanto o perigo de mantê-lo... Semanas passaram-se e eu tornava-me mais e mais extasiado por você. Então, algo novo ocorreu-me. Já o havia pintado como Páris59 com uma delicada armadura e como Adônis portando um manto de caçador e uma refinada lança. Coroado com pesadas flores de lótus, você sentara-se na proa da barca de Adriano, olhando para as esverdeadas águas turvas do Nilo. Inclinara-se sobre o lago de algum bosque grego e viu, no seu reflexo tranquilo, o esplendor da própria face. E tudo acontecera como a arte deve ser — de forma inconsciente, idealizada e remota. Um dia — um dia fatal, às vezes penso — decidi pintar um maravilhoso retrato seu, exatamente como você é, sem o vestuário de épocas antigas, mas com suas próprias roupas e em sua própria época. Se foi o realismo do método ou a simples fascinação de sua personalidade, tão intimamente exposta para mim, sem névoa ou véu, não posso dizer. Só sei que, enquanto trabalhava no retrato, cada lasca, cada camada de cor parecia-me revelar meu segredo. Fiquei com receio de que outros descobrissem minha idolatria.

59 Na mitologia grega, Páris era um dos filhos do Rei Príamo de Troia com a Rainha Hécuba. Ao raptar Helena, a esposa do rei de Esparta, deu início à Guerra de Troia. (N. do T.)

Senti, Dorian, que transmitira coisas demais, que colocara muito de mim mesmo nele. Foi então que resolvi nunca deixar que o quadro fosse exibido. Você ficou um pouco aborrecido, mas então não tinha percebido o que ele significava para mim. Harry, com quem eu falara sobre o assunto, riu-se de mim. Mas isso não me importava. Quando o quadro ficou pronto e sentei-me sozinho com ele, senti que estava certo... Bom, depois de alguns dias que o retrato deixou meu ateliê, e assim que me libertei da fascinação intolerável de sua presença, pareceu-me que tinha sido um tolo ao imaginar ter visto algo nele, algo além do simples fato de que você estava extremamente bonito e de que eu podia pintá-lo. Mesmo agora não posso deixar de sentir que é um erro pensar que a paixão que vivenciamos na criação reflete-se completamente na obra criada. A arte é sempre mais abstrata do que imaginamos. Formas e cores falam-nos de formas e cores — nada mais. Muitas vezes parece-me que a arte oculta muito mais completamente o artista do que o revela. Então, quando recebi esse convite de Paris, decidi fazer do seu retrato a obra principal da minha exibição. Nunca me ocorreu que você recusaria. Percebo agora que você estava certo. O quadro não pode ser exposto. Você não deve ficar bravo comigo, Dorian, pelo que lhe disse. Como disse para Harry uma vez, você foi feito para ser idolatrado.

Dorian Gray inspirou profundamente. A cor voltou às suas faces e um sorriso divertiu-se em seus lábios. O perigo acabara. Estava seguro por enquanto. Ainda assim, ele não podia deixar de sentir uma enorme compaixão pelo pintor, que acabara de lhe fazer tão estranha confissão, e imaginou se ele mesmo alguma vez se deixaria dominar de tal forma pela personalidade de um amigo. Lorde Henry tinha o encanto de ser extremamente perigoso. Mas não passava disso. Era inteligente demais e cínico demais para ser verdadeiramente idolatrado. Será que algum dia alguém o preencheria com tão estranha idolatria? Seria essa uma das coisas que a vida lhe reservava? — Acho extraordinário, Dorian — disse Hallward — que você possa ter visto tudo isso no retrato. Você o viu de fato?

— Vi algo nele — respondeu —, algo que me pareceu muito curioso.

— Bom, agora você não se importará se eu quiser vê-lo?

Dorian balançou a cabeça. — Você não deve me pedir isso, Basil. Não poderia de forma nenhuma deixá-lo ficar em frente àquele quadro. — Mas certamente deixará algum dia. — Nunca.

— Bom, talvez esteja certo. Então, adeus, Dorian. Você foi a única pessoa na minha vida que realmente influenciou minha obra. Tudo que fiz de bom devo a você. Ah! Você não sabe o quanto me custou dizer-lhe tudo que disse. — Meu querido Basil — disse Dorian —, o que você me disse? Apenas que sentiu que me admirava demais. Isso nem sequer é um elogio. — Não pretendia elogiá-lo. Tratava-se de uma confissão. Agora que a fiz, algo parece ter saído de mim. Talvez nunca se deva expressar sua idolatria em palavras. — Foi uma confissão muito decepcionante. — Ora, o que você esperava, Dorian? Você não viu nada além disso na pintura, não é? Havia algo mais a ser visto? — Não, não havia nada mais a ser visto. Por que pergunta? Mas você não deve falar sobre idolatria. É uma tolice. Você e eu somos amigos, Basil, e devemos continuar assim. — Você tem Harry — disse o pintor, com tristeza. — Ah, Harry! — exclamou o rapaz, com um riso contido. — Harry passa seus dias dizendo coisas incríveis e as noites fazendo coisas improváveis. Exatamente o tipo de vida que eu gostaria de levar. Mas, ainda assim, não acredito que recorreria a Harry se estivesse em apuros. Muito antes, procuraria você, Basil. — Você posaria novamente para mim?

— Impossível! — Ao recusar, você arruína minha vida de artista, Dorian. Nenhum homem encontra duas coisas ideais na vida. Raros encontram uma sequer. — Não posso lhe explicar, Basil, mas nunca mais posarei para você novamente. Há algo fatal em um retrato. Ele tem vida própria. Tomarei chá com você. O que será igualmente agradável. — Ainda mais agradável para você, receio — murmurou Hallward, com um ar de tristeza. — E, agora, adeus. Sinto muito por você não me deixar olhar para o quadro uma vez mais. Mas nada se pode fazer. Entendo perfeitamente como se sente.

Assim que ele saiu da sala, Dorian Gray sorriu para si mesmo. Pobre Basil! Como sabia pouco da verdadeira razão! E como era curioso que, em vez de ter sido obrigado a revelar o próprio segredo, havia conseguido, quase por acaso, extrair um segredo de seu amigo! Quanta coisa aquela estranha confissão explicara-lhe! Os ridículos ataques de ciúmes do pintor, sua feroz devoção, seus extravagantes elogios, as reticências curiosas — agora, ele as compreendia todas e sentia pena. Parecia-lhe haver algo trágico em uma amizade tão colorida pelo amor.

Ele suspirou e tocou a sineta. O retrato deveria ser escondido a qualquer custo. Ele não poderia correr o risco de ser descoberto novamente. Fora uma insanidade de sua parte permitir que aquilo ficasse, mesmo por uma hora, em uma sala à qual todos os seus amigos tinham acesso.

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