Coletânea amiga-escritora-secreta 2022

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Coletânea Coletânea AAmiga-escritora-secreta
2022
miga-escritora-secreta
2022

Coletânea

Amiga-escritora-secreta da Jornada da Escritora 2022

Organização: Débora Porto e Mariana Porto Edição: Débora Porto

Diagramação e revisão: Editora Escritoras Brasileiras ISBN: 978-65-999573-0-7

Todos os direitos reservados às autoras

Sobre ter amigas escritoras

Considerar nossa escrita um presente: essa era a minha intenção quando pensei no tema da confraternização de final de ano da Escola de Escritoras em 2022. Um presente para nós mesmas, um presente para quem nos lê. E, mais do que isso: um presente dedicado à nossa amiga-escritora-secreta.

Os textos reunidos nesta coletânea foram escritos a partir de temáticas indicadas por nossas amigas escritoras, para nos desafiarmos por caminhos desconhecidos.

Todos eles já foram lidos em nosso sarau, mas resolvemos publicá-los para que cada uma de nós pudesse ter esses textos-presentes guardados não apenas na memória.

Que 2023 seja um ano de muita escrita para todas nós.

Com muito carinho,

D É B O R A P O R T O

02 03 04 05 06 01 Estamos condenadas 05 07 13 15 16 19 Não se sabe o quê Cuidar de mim Menina-filósofa ... das coisas pequenas que ninguém lê ... Mineirinho Sumário
07 08 09 10 11 12 Sumário 22 28 29 32 33 34 O Quarto da Discórdia às vezes meio que voo Transformação Furacão Programado nossas mãos Vista
13 14 15 16 17 18 Sumário 35 37 38 41 46 47 Fantasia O sangue que corre em minhas veias é poção mágica de minhas ancestrais O Ciberespaço X O Contato Físico Pertencer Iakissodara, a Preciosa Causos de família
19 20 21 Sumário 54 55 61 Quase bruxa, amiga Mãos que se estendem Nossas Fotos

Estamos condenadas

O que querem me dizer, com essa postura arrebatadora, de inclinações intransigentes e dotes descoloridos voltada para o infinito? Por que tanto julgamento se não conseguem minimamente se apartar do mundo para viverem como sempre quiseram? Não conseguem porque estão presas a ele, como nós. E nada mais são do que sopros de vida da terra arejada, da luz arraigada e da brisa leve. Vocês são tão independentes quanto nós e, por isso, estamos condenadas a viver na companhia umas das outras, flores e mulheres, raízes e traumas a nos atraparem ao solo, presas sem podermos nos mover, na dependência de outras criaturas, quando, no fundo, sabemos que as nossas potencialidades excedem a territorialidade dos nossos corpos e as dores dos nossos ressentimentos.

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Isto porque somos infinitas em nossa beleza e ternura. Entre todas as belezas e dores do mundo, estamos condenadas. Nos dias em que as luzes nos tocarem e o céu profundo não for suficiente para acolher a nossa dor, seremos levadas a recebê-las, suas cores belas e murchas, lutando pela sobrevivência, assim como nós.

E de peito aberto lhes abraçaremos e sugaremos do que sobrou da sua vida o sopro da angústia nossa, sem assim perceber que juntas, estamos condenadas. Do abuso e do receio, violentadas diariamente pelos olhos amargos alheios. Buscam em nós a agradabilidade que lhes falta, sem perceberem o quanto foi duro para nós florescer.

Mas sempre vencemos, belas e fortes, em cada centímetro da decadência do mundo, do solo seco, dos nutrientes que faltam, da ausência do cuidado e da apreciação. Nos expõem envitrinadas, para cobrir os seus erros, enquanto nós devemos ser perfeitas e eles garantem que estamos condenadas.

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Não se sabe o quê

De: Thatiane Melguinha

Para: Cristina Sampaio

Em um período qualquer, lá perto do esfriamento solar, na era de Não se sabe o quê, uma tecnologia muito avançada - para uma humanidade também muito avançada - permitia que os bebês, logo ao nascer, recebessem toda a sabedoria humana acumulada desde os seus primórdios.

Para aquela garotinha, a vida não havia sido diferente - nascera e logo já era sábia, como todos de seu tempo. Por volta de seus 30 sábios anos, seu corpo humano, também “avançado”, no entanto, começou a dar sinais de que algo não ia bem, uns suores estranhos nas mãos e tremeliques nas pálpebras logo puseram todos em alerta. Acontece que a humanidade já tinha evoluído tanto que coisas daquele tipo eram consideradas extintas há milhões e milhões de anos, eram os ancestrais sintomas de ansiedade, preocupação, euforia, medo.

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Em um avançado sistema de comunicação, tão avançado que nem sei dizer como é, todos os humanos da Terra logo compreenderam do que se tratava: uma situação rara, raríssima - o sistema de controle de sofrimento e de sabedoria eterna havia falhado, a garota havia empacado na sabedoria do século XXI. Um caso a ser estudado. No entanto, não houve tempo, os sintomas avançaram rapidamente e logo começou a ter coisas cada vez mais estranhas: sua boca começou a se mexer sozinha e emitir uns sons arcaicos, “palavras”, entenderam. Seu corpo começou a ter necessidades esquisitas, precisava se mexer demais, a barriga fazia alguns roncos muito graves, diziam ser uma forma rude de manifestação corpórea chamada “fome”…

Em um diálogo mega avançado que dispensava até o pensamento, numa rápida transmissão de informações, os seres humanos conjecturaram coletiva e universalmente sobre a situação da menina, sabiam que todo o conhecimento acumulado poderia resolver a questão, no entanto, aquilo não se fazia necessário já que o tempo de encerrar a existência do homo sapiens estava próxima.

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Em um lampejo de lucidez, a garota, cuja mente se abrigava entre bilhões de anos no passado e o presente, conseguiu compreender do que se tratava, afinal, o Sol estava prestes a esfriar, todos deixariam de existir, a humanidade, enfim, encerraria seu longo ciclo. “-O quê?” - começou a gritar desesperada - “Vamos morrer, vamos todos morrer?!” - e correndo de um lado para o outro, botava as mãos na imensa cabeça (já evoluída) e sacudia os braços no ar para em seguida começar a chacoalhar os outros ao redor repetindo sem parar: - Não é possível! Não pode ser! Eu não a-cre-di-to!... Não vamos fazer nada? Meu Deus…Eu quero viver!!!”.

Os seres sábios ao redor, sem palavras, já que estas não mais existiam, apenas transmitiam entre si aquelas percepções todas e resumiam a situação: Pobre humanidade do século XXI, seres incautos e rudimentares, inconsequentes e volúveis às emoções, não tinham o domínio do sofrimento, viviam à mercê da linguagem e eram totalmente dependentes da interação social para sobreviver.

Eis aqui entre nós um raro e incômodo exemplar da história, o que haveria sido da humanidade se até hoje estivéssemos submissos ao medo e a uma visão tão rasa sobre a existência?

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É visível que esta criatura não está preparada para o fim, como haveria alguém de viver sem contar com isso? Falta-lhe o entendimento de que é chegado o tempo de nossa galáxia dar um passo à frente, encerrar mais uma etapa, findar mais um planeta, dar lugar a outras civilizações, o mínimo que podemos fazer é contribuir com a história e assumir nosso lugar.

A garota, cujas sensações de fim de mundo só aumentavam, sentia seu corpo, sua mente e coração reagirem a tudo aquilo. Não podia suportar, até ontem era só mais uma jovem sábia da era de Não se sabe o quê, que exalava inteligência e conhecimento até pelas narinas, como todas as outras criaturas de sua idade, agora, sequer sabia nomear tudo aquilo.

No auge de suas reações, já entrando em colapso, movimentos involuntários passaram a tomar conta de seus dedos, estes, pareciam mirar algo no ar, ritmados e fora de seu controle, o que era aquilo afinal? Não estava aguentando. Os humanos avançados ao redor tentaram tranquilizá-la naquela forma também avançada de comunicação:

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“Acalme-se, essa é só mais uma das necessidades primitivas de seu corpo, deve passar tão logo você a cumpra ” . Em mais uma manifestação de grande evolução tecnológica, fizeram surgir um pequeno artifício esquisito, meio enferrujado, que há bilhões de anos estava guardado no museu das quinquilharias necessárias à evolução. Algo muito antigo. A garota, reagindo instintivamente, posicionou seus dedos alucinados sobre aquela coisa e eles começaram a se mover ainda mais freneticamente. Outra faísca de comunicação e todos, inclusive a garota, souberam que era chegado o momento aguardado e por ela tão temido. Cada um, de posse de sua caixa-legado, onde deveriam guardar aquilo que fosse importante dizer às civilizações que surgiriam após os humanos, fizeram suas últimas contribuições à posteridade. Em sua “infinita” sabedoria, tudo o que os humanos puderam preparar para este momento eram aquelas caixas que flutuariam no espaço milênios após milênios, para todo o sempre, contendo os fragmentos do que um dia foi chamado de “humanidade”.

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Em um misto de desespero, lágrimas, suor e alguma alegria, a garota retirou aquele artefato antiquíssimo do aparelho também antiquíssimo e o depositou na caixa. Na tampa da caixa lacrada, apenas escreveu: Aqui jaz o último poema do mundo.

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Cuidar de mim

De: Pamela Mascarenhas

Para: Cynthia Provedel

Margareth, eu vou falar uma última vez. Eu não tenho interesse em te agradar, ou agradar a Lourdes ou quem quer que seja nesta vizinhança que muito fala. A minha prioridade sou eu. Eu decidi. Não precisa gritar, nem ficar tão magoada, não significa que eu não me importe com vocês. Me importo. Mas preciso cuidar de mim. Vamos precisar de um distanciamento saudável.

Eu também não sei bem o que é distanciamento saudável significa.Mas a gente vai construindo do nosso jeito. Inclusive, quero ouvir sua opinião sobre quais regras poderíamos estabelecer. Se não quiser receber mais minhas ligações, por exemplo.

Você viu tudo. Acompanhou tudo que fiz. Tudo por todos e nada por mim.

Boazinha é a Helena da novela, Margareth. Gente boazinha não existe. O que é ser boazinha? Ser sua escrava? Ser escrava da Lourdes. Me poupe.

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Eu nem espero que você entenda, não. Só que respeite minha decisão.

A minha prioridade sou eu, Margareth.

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Menina-filósofa

De: Jéssica Rayane

Para: Ádria Saviano Fabricio da Silva

ela que sente tanto por todos não se esqueça de sentir por si mesma. menina/ mulher corajosa, independente e sonhadora. a menina da filosofia que ama a liberdade de pensar de criar e de se reinventar.

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das coisas pequenas que ninguém lê

De: Claudia Vecchi-Annunciato

Para: Ana Júlia Poletto

Querida amiga escritora Ana Julia Poletto, Quais são os assuntos que nos movem? Quais nos paralisam, envolvem ou completam? Quais são tão sutis que passam desapercebidos se não estamos atentas?

Venho de um mundo de Ciências, de microscópios, laboratórios, protocolos e técnicas, em busca de saberes concretos. Mas, nesse mundo aparentemente tão frio e distante, ao olharmos de perto como as células de uma planta se organizam para formar uma folha, é possível verificar que existe uma arquitetura orquestrada, delicada e bela, que tudo o que vemos do lado de fora não é comparável.

Nesse mundo microscópico, onde a escala de tamanho está na divisão em dezenas, centenas e até mesmo milhares de partes de um milímetro, existe tanta beleza que é impossível não se encantar, não silenciar e refletir.

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...
...

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Estou falando de silêncio, de formatos e detalhes de milhares de anos de evolução neste planeta que permitiu a cada folha que você já viu ou comeu, possuísse características singulares. Como se milhares de bolhas de sabão de diferentes tamanhos e formas produzissem algo como um bordado ou uma tapeçaria.

Essa beleza tímida não é um assunto sobre o qual se escreve lindos textos que emocionam o leitor. Suas descrições são técnicas, formais e destinadas a um grupo de pessoas que saberá interpretá-las à luz de outras pesquisas, garantindo assim, que essas informações sejam úteis.

Mas, ao pensar na beleza há de se pensar na inutilidade. Ao se aflorar a poesia há se refletir sobre a falta de serventia concreta.

O belo é efêmero, é tocante, é pungente, mexe com a alma, fazendo que seja impossível que ela volte para o lugar do qual partiu. Ao olhar para algo vivo, considerado bonito ou não, reflita por um momento que existe uma miríade de células inimaginavelmente belas que não são vistas, sobre as quais não foram feitos poemas nem romances.

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Afinal, provavelmente não seriam lidos, o que é uma pena, não é mesmo?

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Mineirinho

De: Débora Porto

Para: Kelly Cristina Oliveira

“Escreve para mim nesse papel: ‘Mineirinho’”, disse uma senhorinha baixa e curva, de cabelos prateados. Acompanhando-a, um senhor não muito mais alto, nem menos curvo e quase tão grisalho quanto a companheira assentiu com a cabeça. Não disse uma palavra nos longos minutos que se passaram a seguir.

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Eu esperava o ônibus para a escola com a mochila nas costas, tentando, com uma das mãos em forma de viseira, tapar o sol forte da primeira hora da tarde. Após o pedido, senti um misto de orgulho por saber escrever e ter a letra tão bonita aos dez anos, e de tristeza, por imaginar que os dois não tiveram a mesma oportunidade.

Olhei para os dois vovôs, que me encaravam aguardando a minha resposta. Sem dizer que sim ou não, peguei o papel da mão de um deles. Abri a mochila e retirei do estojo minha caneta azul. Apoiei o papel em um caderno. Comecei a escrever o “M” bem desenhado na folha. legenda

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Um homem passou ao meu lado e praguejou contra os dois, com palavras que eu não entendi. Ergui meus olhos para ver de quem era aquela voz masculina, mas já era tarde. Um arrepio percorreu meus ombros. Me encolhi, ficando tão corcunda quanto os dois estranhos que me fitavam ansiosos.

Continuei minha tarefa, na próxima letra, com um “i” meio torto, que virou quase um “ c ” , e, nessa hora, me ocorreu, pela primeira vez, a estranheza do pedido. “O que mais vocês querem que eu escreva?”, perguntei, tirando mais uma vez a caneta do papel.

Antes que eles respondessem, meu ônibus chegou. Escrevi rapidamente a palavra solicitada. Olhei para a folha e não consegui entender o que escrevi. Acho que foi o sol, mas parecia algo como “Maneirinho”.

Entreguei o papel para a idosa, me desculpei e subi no ônibus. Me sentei no banco ao lado da janela, pela qual olhei em seguida, querendo me despedir direito dos meus novos amigos.

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Não avistei ninguém. Os dois tinham ido embora, levando com eles o pequeno papel em que eu escrevi o que me pediram.

Foi naquele dia que eu comecei a escrever.

Final alternativo: Depois daquele dia, nunca mais consegui escrever.

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O Quarto da Discórdia

De: Marlene Farjalla

Para: Mariana Porto

Era um quarto da casa como um outro qualquer: mobiliado com uma cama de casal e um criado mudo em cada lado; um guarda roupa com quatro portas, todas iguais, onde duas delas eram para guardar as roupas, uma que dava acesso ao sanitário e uma última que ficava sempre trancada. Ele era um quarto destinado a hóspedes, geralmente, parentes e amigos da família. Apelidado de “O Quarto da Discórdia” depois que Carmem, acompanhada do namorado, pernoitou no aposento após a festa de aniversário de sua amiga Clara, anfitriã da casa.

Ninguém entendeu nada quando o casal, dia seguinte, depois de recusarem a tomar o café da manhã, mal se despediu dos donos da casa e foram embora às pressas.

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- Depois eu te ligo - foi o que Carmem, enquanto se dirigia apressadamente para seu carro, quase sussurrando, disse para Clara. O namorado, que se adiantou na frente de Carmem, não proferiu uma única palavra. Clara, quando questionada pelo seu esposo sobre a desfeita do casal, não soube explicar o que estava acontecendo.

Dois dias se passaram. Durante esse tempo, Clara, muito preocupada, mandava várias mensagens para a amiga até que ela respondeu:

- Ele descobriu tudo.

- Como assim, tudo?

- À noite, enquanto eu dormia, ele pegou meu celular, se trancou no sanitário e leu todas as mensagens nossas no meu WhatsApp.

- Sério?

- Você não tinha senha no celular?

- Não.

- E aí?

- Nós discutimos bastante. Tive que o conter para não acordarem todos da casa. Confirmei tudo e terminei o namoro com ele. Ah, também quis saber sobre uma tal chave.

- É claro que você não contou pra ele, não foi?

- Não contei não. Fiquei despreocupada.

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Carmem e Clara se conheceram numa viagem em grupo para a Espanha. Desacompanhadas: o esposo de Clara nunca a acompanhava nas viagens; o namorado de Carmem desistira de última hora depois que se desentenderam. O namoro deles estava por um fio. Além dos ciúmes, o namorado sempre fazia corpo mole na hora de pagar as despesas. Carmem, que estava pagando essa viagem para os dois, vendeu a parte dele para uma amiga que a acompanhou em todo o roteiro.

Durante a viagem, parte terrestre pela região da Andaluzia e no navio de Barcelona no retorno para o Brasil, Carmem e Clara ficaram muito próximas e uma bonita amizade brotou entre as duas. Amizade que se estendeu mais ainda depois que retornaram para a cidade onde moravam. Elas se falavam quase todos os dias através de mensagens pelo WhatsApp. Nos fins de semana elas frequentavam suas casas de praia, próximas uma da outra. Depois de dois meses, a amizade entre as duas amigas, cada vez mais se estreitando, Clara, por mensagem, confessa um segredo seu para a amiga Carmem. Carmem, feliz, também compartilha um mesmo segredo.

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No dia seguinte, Carmem liga para Clara convidando-a para conhecer, à noite, seu apartamento na cidade onde as duas moravam. Clara aceita o convite.

Desse dia em diante as duas não se desgrudavam. Estavam sempre juntas, inclusive quando iam às compras nos shoppings ou em lojas no comércio da cidade. Compras que elas, ao chegarem em suas casas, escondiam as sacolas. Em todas as oportunidades que estavam com seus familiares e/ou amigos, elas davam um jeito de ficarem sozinhas pelos cantos da casa.

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Na noite em que o casal pernoitou na casa de Clara, o namorado de Carmem, desconfiado do comportamento muito achegado entre as duas amigas, também porque Carmem não desgrudava do celular, enquanto ela dormia ele pegou o aparelho da namorada e leu, até onde pôde, as mensagens na caixa do seu WhatsApp. O quarto continuou recebendo hóspedes. Todos queriam uma explicação quando se avisava para o casal: - Vocês vão dormir no “Quarto da Discórdia”.

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Sobre esse nome a dona da casa contava sempre a mesma história da briga dos namorados. Com a ressalva, em tom de brincadeira, para não caírem na armadilha do quarto, pois, entre vários casais que dormiram nele houve discórdia.

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Com a pandemia do Covid, as amigas foram obrigadas a se afastar por vários meses. Mas, continuaram se comunicando por mensagens. Depois que voltaram a se encontrar, num fim de semana na casa de Clara, Carmem, com seu novo namorado, dormiram no “Quarto da Discórdia”.

O Namorado, à noite, acordou e deu por falta de Carmem na cama. Estranhando a demora dela, resolveu ver se ela estava no sanitário. Como era a primeira vez que dormia na casa, se atrapalhou e ao invés de abrir a porta que dava para o sanitário abriu a que estava sempre trancada.

Carmem, que sabia onde Clara escondia a chave da porta do guarda roupa, havia se esquecido de trancá-la depois que passou para o quarto conjugado, onde a amiga, avisada através de mensagem, já a estava esperando. O esposo de Clara, que dormia sempre feito uma pedra, não dava por falta da esposa na cama.

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O atual namorado de Carmem, motivo da discórdia entre ela e o anterior, surpreso, pegou Carmem brincando com Clara no seu quarto secreto, entre uma coleção de bonecas. Nessa noite, não houve discórdia.

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às vezes meio que voo

De: Júnia Gaião

Para: Adna Rahmeier

pra levantar asas aperto os olhos até tudo virar nuvem lanço o coração e lá vou sem capa nem mágica deixo o corpo pendurado no armário ou deitado na rede ele que se entenda com a traça e com a tarde corpos só voam na guerra ou nas tragédias mas as almas, levadas por anjos ou pássaros, exercem esse ofício com arte às vezes meio que morro e a cada imagem que passa no túnel brilhante do voo um frio no ventre me lembra do corpo esquecido na casa mas é dele que, como louca, eu corro

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Transformação

De: Eline Simões

Para: Tais Salem

Luiza atravessou a rua, atravessou sem nem olhar para os lados. O perigo era iminente, mas seu corpo apenas reagia aos comandos do seu cérebro programado: Siga em frente. Luiza seguia. Vivia um estado de torpor. Ela caminhava, como sempre caminhou: De casa para o trabalho, do trabalho para a academia, da academia para o curso de inglês, de qualquer outro destino ou vindo de qualquer outro compromisso, sempre nas mesmas direções. Logo que se mudou para o novo endereço, Luiza se encantava com cada detalhe da arquitetura dos prédios, nas decorações das lojas e vitrines, com cada zumbido novo vindo da vida que passava.

Luiza cumprimentava cada um que cruzava seu olhar e distribuía sorrisos de quem quer fazer amigos, e se sentir em casa. Com o passar do tempo, toda poeira foi se assentando no lugar.

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Não havia vento para espanar para o lado e mudar tudo de lugar. Assim como a poeira que já havia se tornado paisagem, o encantamento de Luiza deixou de existir e seu caminhar não se interrompia nem variava. Um dia, como qualquer outro, Luiza seguiu seu caminho e um tapume lhe impediu de ir em frente. Luiza parou, olhou ao redor, e se deu conta de que já não sabia mais de onde vinha, nem para onde ia. Que rua era aquela, para que lado ela ia? Sem reconhecer os rostos que passavam, sem saber o que perguntar, Luiza sentiu-se tão só, que precisou sentar. Sentou ali, naquele meio fio, que ela tinha deixado de notar. Que curioso meio fio, ela pensou. Sua altura era suficientemente alta para que se sentasse, mas não tão alta que dificultasse a sua passagem. De granito, mas não era só rocha. Ali assentavam musgos e flores que insistiam em crescer pelas frestas. Mesmo encantada pelo meio fio e seus vizinhos, sabia Luiza que precisava seguir, não sabia exatamente para onde, mas que precisava seguir. Sentindo-se como uma lagarta que já não se reconhecia no corpo que possuía, Luiza não pode evitar o processo que se iniciava.

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Ali, naquele meio fio, que surgiu em sua vista após perder seu rumo, Luiza sentou e ficou. Tirou da bolsa um novelo e agulhas sempre usados na espera do cotidiano e começou a forjar em volta de si, um casulo, seu novo lar. Luiza precisava se achar, sem saber que era preciso perder-se de si e do outro. Mas ali, dentro de si, Luiza procurou por tudo aquilo que a fazia caminhar. No início era tudo escuridão que foi se tornando mais claro e límpido. Luiza sabia que para um novo sentido seguir, Luiza tinha que mudar. Suas células deram vez a outras proteínas sintetizar, e assim, pouco a pouco, sua pele, sua cor, sua forma se alteraram dando lugar ao novo que era gestado ali, sentada ao meio fio, envolta do seu casulo. Certo dia, Luiza se sentiu forte, e entendeu que não precisava mais do casulo. Reuniu todas as suas forças e rompeu com aquilo que agora a prendia, esticou pouco a pouco suas novas asas, balançou-as ainda para treinar, e por fim bateu-as forte para sair do lugar. O perigo era iminente, mas sentiu junto com o medo, a adrenalina, e seu gosto doce e viciante que a levaria a seu novo lugar.

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Furacão Programado

De: Mariana Porto Para: Jéssica Rayane

teu corpo parece furacão programado quando decide se tirar para dançar vendaval carrega arrastado tudo o que acaba por tocar do meu coração, leva o ritmo da minha pele, o arrepiar da minha boca, o sorriso e do pulmão, me tira o ar se, bailarina, tu virasse nuvem e então, acabasse por precipitar, me deitaria no chão, para não deixar tua lágrima derramar se o som já não se ouvisse e teu movimento viesse a paralisar eu cantaria para sempre a nossa música para manter infinito o teu balançar

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nossas mãos

Para: Eline Simões

vejo minhas mãos e lembro das suas parede ao encostar em você fazia nossa coreografia favorita nós éramos bons em dançar . arrepio um beijo ou mais na foz do oceano sentiu o gosto do sal as ondas e o som nadando contra ou com a maré não me importava com as coisas ao redor nossas mãos.

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VistaDe: Cynthia Provedel Para: Marlene Farjalla

De uma vista da janela reluzem pontos De uma luz que brilha sobre a pedra Sol que bate à tarde, bem no canto da janela

Uma pedra tão antiga traz à tona pensamentos Quanto olhos essa mesma luz já ofuscou Quem por ela, como eu, se encantou

Uma tribo ancestral Uma fogueira ou um portal Uma pedra medicinal

Todo dia ela me guia Enche os olhos de alegria Enquanto o vento assovia

Dela se sabe nada Só que é minha morada Natureza tão sagrada

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Fantasia

De: Adriana Ruis

Para: Morgana Conceição da Cruz Gomes

Tenho a honra de oferecer-lhe essa poesia Que escrevo com muito amor e alegria Para você que gosta de mistério e fantasia Eu escolho palavras de bem e harmonia

O mistério da Vida que nos acolhe com calor Vivemos com conforto e muita Fé no Criador E louvemos nossa Saúde e Paz com Amor Para chegarmos em nossa velhice com vigor

A fantasia de chegarmos em uma meta final Criamos metas em nossa mente a toda hora E Minha vontade é te mostrar o meu maior ideal De escrever um livro para as crianças de agora

Tenho minhas fantasias e ideais neste momento E Você tem suas fantasias e projetos guardados Todas temos mistérios e fantasias internalizados Para que a Vida tenha graça e contentamento

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O sangue que corre em minhas veias é poção mágica de minhas ancestrais

Para: Claudia Vecchi-Annunciato

houve uma época que as mulheres foram consideradas bruxas a dor cavou buraco no selvagem reservou se distancia a mítica era como se nascer mulher fosse sinônimo de estrada esburacada sendo pavimentadas até quase sermos domadas ora com gritos, ora com sorrisos empurramos essa idéia milhares de anos se passaram construímos dentro de cada uma de nós um calabouço

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lá depositamos segredos de coragem costumes de fortaleza rituais de cura tudo que precisamos saber para sobreviver para entregar movimento ao mundo agora que esse calabouço não é mais encarcerado no segredo metemos o pé na porta desaprendemos o medo descobrimos em uma carta escrita a mão por uma antiga escritora: "nós não somos as bruxas, nós somos o próprio feitiço"

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O Ciberespaço X O Contato Físico

De: Iakissodara Sales

Para: Andressa Caroline Fernandes

Hoje estava lendo um texto de David Lê Breton (Adeus ao corpo) que trata do ciberespaço, um território mágico onde tudo é permitido, nele não existe Identidade, somos O que desejamos ser. Dentro desse reino da liberdade sou e não sou ao mesmo tempo. As limitações que o mundo físico me impõe não existem. Posso voar, andar e correr de um segundo para o outro em diferentes partes do planeta. Não possuo passado nem futuro, consigo ser onipresente e onipotente e é nesse fantástico universo do Ilimitado, que hoje milhares de seres humanos sonham em viver. Nossas crianças, jovens e porque, também não dizer, uma vasta gama de adultos, passa muita das 24hs do dia conectados ao ciberespaço. São super-heróis na literal concepção da Identidade oculta; rostos protegidos por máscaras que fogem de um encontro marcado com o real. O corpo torna-se um invólucro Incômodo da força Imaginativa.

Ponto 1

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Ponto 1

Por que arriscar decepcionar a fantasia do outro e a minha, com um contato físico, se posso ser o objeto de desejo infalível? É pedir demais para o ser humano que tem como meta a felicidade plena. Porém, diante de apelos tão atraentes, me veio um forte questionamento: como viver sem o contato físico? Aquela coisa do olho no olho; de química de pele; do cheiro do outro que nos impregna; do entrelaçar das mãos que nos faz sentirem seguros; do abraço que aquece e dá vida; do beijo que desperta sensações… Isso! sentir o outro, eis o ponto nevrálgico da questão. No ciberespaço o outro é uma construção dos meus mais Inatingíveis desejos de perfeição, lá não Preciso exercer a aceitação do diferente; do Imperfeito; da Impermanência da vida; da falibilidade de tudo que um dia foi criado, Inclusive da máquina que nos conecta a essa magia. As sensações que vivencio não provêm do outro real e sim, de uma Imagem pré-concebida.

Quando questiono sobre o sentir o outro, me refiro a ampla forma de sua significação: A experienciação de ser um " eu " que compartilha com um outro " eu " sua alteridade, numa correlação onde mutuamente construo e sou construído.

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Nesse processo de construção estou exposta às alegrias e tristezas da vida, sem "clicks" deterministas que possam me manter incólume. Um sentido que dá prazer e dor e que só posso tê-lo através do contato físico.

Assim, me deparo com a insubstituível presença do meu corpo, essa complexa teia de terminações nervosas que se ligam em milhares de sinapses nos avisando da aproximação do outro, nos deixando alertas, prontos para amar ou odiar, e nada no ciberespaço substitui, essa, que é a mais fantástica das criações.

Ponto 1

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Pertencer

De: Morgana Conceição da Cruz Gomes Para: Raquel Rodrigues da Costa

Olho e não me reconheço Tudo ao meu redor parece diferente Distorcido O espelho eu já não vejo

Do lado de dentro ainda estão os resquícios Daquilo que imaginei ser Do que achei que precisava ser Tento puxar pela minha memória O momento, o dia, a hora e o lugar E questiono em que parte da vida O trem saiu dos trilhos

As palavras que escutei Os gestos

A minha reação diante de tudo aquilo

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Eu só consigo reverberar os pensamentos

São constantes durante o dia Insuportáveis durante a noite

A insônia me acolhe

A lágrima já nem cai mais O tique taque do relógio ressoa nos meus ouvidos

E a pergunta lateja O que eu vim fazer aqui?

Me recolho e reflito Encolho Entorto Me reviro

É quando percebo que o mal estar Está na pele

No sangue que corre pelas veias (e artérias) Não pertenço a este lugar

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Esse sentimento que sufoca

E cria memórias que não posso apagar Não é porque eu não mereça

É porque ele não me cabe Sou grande demais Preciso entender De uma vez por todas Que essa sensação de peixe fora d’água Não me pertence Não sou bem vinda em um lugar que nunca foi meu de fato Que não foi feito para mim

O que me pertence

É a vida que eu escolho seguir Aquilo que me permito sentir Fazer Acolher

É a verdade que coloco em minhas palavras É o momento que grito E também quando silencio

É quando eu deixo de considerar o olhar O julgamento E o peso que colocam em mim

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Eu sou mais leve do que imagino

Eu sou mais forte do que imagino

Eu sou além de tudo e todas as pessoas que imagino

Eu me pertenço Eu não sou vazia Eu sou e estou cheia

Daquilo que me faz humana Daquilo me faz acertar Em um dia Errar no outro Recomeçar no seguinte

Não preciso de validação De imposição De olhares que recriminam Por ser quem sou Pelo meu jeito de vestir Pelo meu sotaque Pela minha condição financeira

Rostos buscam olhar para o lado quando me veem Corpos cruzam para o outro lado da rua Para não cruzar com o meu Olhos se fecham quando olham para mim

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Mas no fim do dia Da semana Do mês Do ano E da vida

Eu preciso manter meus olhos abertos Para cuidar de mim Para fazer por mim Para sobreviver em meio ao caos

Porque a vida ensina De todas as maneiras possíveis Que preciso lutar Para me pertencer

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Iakissodara, A Preciosa

De: Kelly Cristina Oliveira

Para: Iakissodara Sales

Nesta data festiva, sinto-me muito contente, Ao pensar em ti mesmo sem conhecê-la, Acredito que a sua vida Iakissodara, é para todos nós um presente. Magicamente fui levada para outro ambiente, Onde ouço uma melodia harmoniosa... És única, sabemos bem, Odara é luz, energia boa Para o divino tua alma é preciosa.

Com respeito e gratidão ao dever sagrado, Sabedoria e muita calma, escritora encoraje-se Seja iakiss, seja odara, pois tu tens a sabedoria, Obediência e visão necessária, Tomara vejas a força rara, da mulher que te tornastes Agora, iakissodara é uma jóia rara, única e preciosa.

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Causos de família

De: Lizandra Antunes

Para: Júnia Gaião

O sol de 1º de janeiro sempre parecia mais forte e mais bonito para dona Maria. Os filhos sempre tiravam sarro da situação, já que a mãe era uma grande entusiasta de novos ciclos. Dona Maria amava noites de lua nova e sempre plantava uma nova mudinha nesses períodos. Também fazia questão de começar suas metas na segunda-feira; e caso fosse uma meta mensal e o mês começasse fora de domingo ou segunda, então ela deixava para a próxima semana. Além disso, também era devota do ciclo circadiano e, como aposentada, tinha a oportunidade de manter sua rotina quase que perfeitamente aliada a ele. Casa nova, série nova dos filhos na escola, cabelo novo; tudo tinha crucial importância para ela. Olhando para o retrospecto, não era de se espantar, então, que dona Maria também apostasse alto em suas expectativas sobre o início de um novo ano.

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Como sempre fazia, apressou-se em levantar da cama para buscar seu tradicional pãozinho francês, mesmo que tenha ido dormir bem mais tarde do que o habitual. Dona Maria calçou as sandálias que tinha comprado na Black Friday do ano que acabara de passar; e que, claro, ela tinha separado para que pudesse chegar no ano novo com o pé direito. Checou a casa e percebeu que todos ainda dormiam; o lugar sempre ficava cheio nas festas de final de ano. O filho mais velho e a esposa traziam os netinhos de 5 e 2 anos. A filha do meio ia trazer o namorado, mas acabaram rompendo antes do Natal. E o filho mais novo... bem, dele ela nunca esperava uma namorada em casa. Era mais fácil que os amigos dos jogos online aparecessem do que uma garota que tivesse aceitado se relacionar com ele, já que ele mal dava as caras fora de casa. Seu coração encheu-se de ansiedade para correr na padaria e comprar um belo de um café da manhã para todos eles.

Dona Maria dirigiu-se à única padaria do bairro que ela tinha certeza que estaria aberta em pleno 1º de janeiro; sabia que seu Luís era tão avarento quanto ela era ligada a novos começos, e que, portanto, ele não deixaria de perder um dia de vendas só porque era réveillon.

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Passou tranquilamente pela catraca da entrada, mas sentia certo nível de urgência em concluir sua primeira tarefa do ano. Logo avistou a estufa que procurava. Chegando perto o suficiente, porém, ela percebeu algo que não deveria ser do jeito estava.

— Ô, seu Luís! Cadê os pães fresquinhos? Mas, minha filha, esses aqui são fresquinhos de ontem! Eram de uma encomenda que foi desmarcada em cima da hora, eu teria tido um tremendo prejuízo se os tivesse descartado. Dona Maria se revoltou. — O senhor só pode estar de brincadeira. Ano novo precisa de pãezinhos novos! Ande, seu Luís, eu sei que o senhor já tem uma leva fresquinha no forno, vou aguardar. Tenho certeza que o senhor vai querer oferecer o melhor para a sua cliente mais fiel.

Seu Luís torceu um pouco o nariz, mas foi atrás da fornada fresca que dona Maria queria. Entrou na padaria também dona Salomé, procurando por mais rabanadas e sonhos. As duas eram ainda as únicas dispostas a acordar àquela hora na manhã de réveillon. Mariazinha, que bom te ver! Ô, Salomé! Feliz ano novo!

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Dona Maria e dona Salomé foram vizinhas por décadas, até que a filha de Salomé comprou para ela uma casa duas ruas abaixo. As duas se abraçaram, saudosas.

Seu Luís, já prepara os mesmos doces de ontem pra mim, uma dúzia de cada. E aí, minha amiga, como foram as festas? Família tá bem?

A pergunta fez dona Maria voltar a algumas semanas atrás. Aquele havia sido um final de ano relativamente atípico para a família Rocha. — Então, mulher... por onde eu começo?! Bom, começando que o Natal foi uma loucura, né. Caroline chegou dia vinte e quatro soltando fogo pelas ventas porque tinha terminado com o namorado. Não que vá fazer muita falta, era um encostado, mas a menina parecia que ia matar um aquele dia. Não vi chorar ainda não, mas deve estar chorando escondida porque sabe que eu não gostava do traste. Rivaldo e Rebeca chegaram atrasados com a maionese e os meninos, coitados, tavam tudo meio torto. Agora o Igor... ah, mulher, é difícil, né. Esse menino fica jogando até umas horas, às vezes dá vontade de desligar o computador da tomada. E fora, ainda, as mensagens de feliz natal da minha irmã Alzira, que ficava mandando figurinha no zap achando que tava escrito “Deus te ilumine” e na verdade era “Deus te elimine”. É fogo, viu...

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Dona Salomé gargalhou com as descrições da amiga.

— Ah, Mariazinha... nada diferente de quando o Gomes tava vivo, né?

Dona Maria fez outra volta ao passado. Não, na verdade dessa vez foi pior. Presta atenção na história...

Seu Luís chegou com os doces de dona Salomé e pediu paciência para dona Maria, que a essa altura da conversa já não se importava tanto de esperar.

— O Natal já foi aquele fuzuê, mas ainda não tava um “Deus nos acuda”. Aí, na hora da janta, Rebeca me solta: “vocês já fizeram a fezinha de vocês na Mega da Virada?”. Pra quê, mulher... Só tinha uma semana até o sorteio, que foi ontem, né. E de repente todo mundo achava que era uma boa ideia. Aí toca ela e Caroline na lotérica comprar bilhete pra todo mundo. E pra escolher os números?! Nunca achei que ia ver tanta abobrinha na minha vida... Caroline deu de perguntar pro Universo qual era a vontade dele. Saiu lendo tudo quanto era artigo de horóscopo e essas presepadas tudo aí. Rivaldo foi ver uns dados sobre o Corinthians e ainda achou que São Jorge tava aprovando aquilo. Rebeca, que é metida a granfina, foi ver corrida de cavalo golfe e Mary Kay. E o Igor achou que era

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uma boa ideia perguntar pra aquele amigo dele que fuma baseado e vende jogo do bicho quais os números que mais costumam sair, como se tivesse alguma lógica em sorteio.

Só depois de encerrar sua fala contínua e gesticular foi que dona Maria se deu conta do estado da colega. Dona Salomé se apoiava como podia (como a barriga deixava) com as mãos nas pernas, já enxugando lágrimas. Ela não conseguiu ver a mesma graça que a amiga, mas riu um pouco pela situação dela.

Ai, Mariazinha! Que é que deu nesse povo?! E você, fez sua fezinha no jogo? Dona Maria deu uma risada fraca, relembrando a estratégia escolhida.

— Ah, Salomé... eu apelei pra São Judas, né. Não tinha outro pra recorrer não...

As duas senhoras riram da descrença de Maria. Realmente... os seus filhos se superaram esse ano... Pelo menos alguém enricou?

Seu Luís chegou com os pães e dona Maria pediu a ele os doces e salgados extras que também queria levar. Ela olhou no fundo dos olhos da amiga, e dona Salomé soube que devia se preparar para o final da história.

— Nunca vamos saber. O Benício saiu juntando tudo quanto era papelzinho pela casa e jogou tudo

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dentro do vaso. E o Bernardo, que devia pelo menos ter mais noção do que pode e o que não pode fazer, achou a brincadeira engraçada e foi atrás do irmão mais novo. A Rebeca só chegou quando era tarde demais... Dona Salomé gargalhou ainda mais alto dessa vez. Seu Luís apareceu com os pedidos de dona Maria e ambas pagaram a ele o que lhe deviam pelas compras. Enquanto seguiam juntas sentido à rua, dona Maria repensou o bom humor com o qual saíra de casa naquela manhã. Ficar milionária teria sido extraordinário, mas se ela havia pedido ao santo das causas impossíveis e mesmo assim não havia acontecido... então talvez o Senhor tivesse outros planos para o novo ciclo dela. Dona Salomé puxou um último suspiro antes de controlar a risada.

É, minha amiga... tem coisa que a gente só pode rir mesmo. Que final de ano atribulado!

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Quase bruxa, amiga

De: Ana Júlia Poletto

Para: Nayara Lemos

Na pochete, Joana, a sapa salva do caldeirão, e Ludovico, o louva-deus ateu de um braço só, fugitivo de uma poção mágica de uma sexta 13.

Ela, carregava uma bandeira roxa, com o símbolo de Vênus: não era planeta, era o feminismo pelas ruas da maior cidade de Angus: território daquele Planeta M que agora era a sua nova casa.

Ela e alguns milhares de Outros, caminhavam com suas bandeiras: roxas, 7 cores, vermelhas, e todos os símbolos que se podia imaginar. Porque se podia imaginar.

E marchavam. Não uma marcha bélica: estavam a caminho da base Única de Todos os Poderes. Seria a confraternização do ano 3 nesse Planeta.

Planeta que só habitavam os que tivessem passado pela prova de fogo: (re)escrever suas próprias histórias. E ela passara: Bruxa! a avaliadora havia dito. E escritora ela completou escrevendo.

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Mãos que se estendem

De: Iraci Ferreira Barros da Costa Para: todas as companheiras escritoras

As mãos são instrumentos de troca: Troca de trabalho, troca de afeto, troca de energia… Elas são a parte do corpo com a qual entramos em contato com os objetos, com coisas, com pessoas, captando-lhes as propriedades, sentimentos, texturas.

As mãos são também a forma de promover ajuda, de realizar um trabalho construtivo, altruísta, solidário, comunitário.

São também uma forma de maltratar, ferir, provocar violência.

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Há mãos que sustentam, há mãos que apavoram, há mãos que submetem, há mãos que se recolhem, há mãos que não se doam., executam o automatismo mecânico de suas ações rotineiras e cotidianas, numa letargia dormente, incapaz de perceber as suas ações… Mãos que são apenas ferramentas: aquelas que servem apenas para executar o que lhe é comandado mãos que se movimentam apenas por condicionamentos, sem qualquer expressão de sentimento, inertes, vazias, gélidas.

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Mãos são a nossa expressão social e relacional.

Só podemos tocar as mãos de quem realmente amamos ou mantemos algum tipo de relação mais próxima. Em tempos longínquos, o tocar das mãos era considerado o maior dos afetos que se poderia expressar, em público, os casais de enamorados.

Esses, quando tocavam as mãos em frente da família, era sinal de um grande compromisso, em outros dizeres, de um futuro amoroso. As mãos carregam em si, então, essa simbologia do nosso fazer, do nosso sentir, do nosso expressar, do nosso amar, do nosso compartilhar, do nosso relacionar.

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Tudo isso tem haver com as mãos que sustentam: sustentam as nossas dores, sustentam as nossas alegrias, sustentam os nossos desesperos, sustentam a nossa vida social, sustentam os nossos relacionamentos, sustentam os nossos afetos, sustentam os nossos orgulhos, sustentam os nossos vazios, sustentam as nossas emoções, Sustentam, nos empurrando para a luta, para a vida, para a conquista, para a realização.

O grande segredo das mãos é a troca: A minha mão serve para o outro. A mão do outro serve para mim. Esse é o grande segredo para se constituir enquanto uma mão que sustenta. E com quantas mãos pode-se

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constituir um grande projeto, um grande amor, uma grande amizade?

As mãos são revestidas de um toque que se diferencia, na energia e no sentimento, do que nela colocamos, por algo ou por alguém. São muitas as mãos que participaram do processo da vida: mãos que nos auxiliam no processo na cura; mãos que estão presentes para nos alimentar; para nos manter vivos. Mãos que se estendem para abraçar e apoiar; mãos que seguraram mãos; mãos que se presenteiam; mãos que se estendem para fazer o bem. Há mãos que demonstram cuidado, afeto, piedade, caridade, preocupação.

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Umas se fazem mais presentes, outras de forma esporádica, outras que se mostram na distância, outras que apenas usam aquela característica automática e mecânica, sem tocar, sem se estender. estender as mãos nos momentos de dor e de dúvida, tocar a alma, acalentar o ser, tocar a mão do outro como um símbolo de que se está presente, uma presença que se sente num simples tocar de mãos. De mãos verdadeiras que se relacionam transmitindo esperança, amor, e fé no futuro. mãos que simplesmente se estendem. E você, como estende as suas mãos?

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Os textos aqui publicados são de autoria das participantes da Jornada da Escritora SAIBA MAIS EM WWW ESCOLADEESCRITORAS COM BR/JORNADADAESCRITORA

@ESCOLADEESCRITORAS

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