Que falta faz uma viagem

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Este livro é fruto de fomento interno do Edital IFRS N.18/2021 - Auxílio Institucional à Extensão

Edição: Débora Porto

Revisão: Sheila Katiane Staudt e Fabiana Cardoso Fidelis Capa e Diagramação: Livro Perfeito Editorial e Editora Polifonia

Reitor

Júlio Xandro Heck Pró-reitora de Extensão Marlova Benedetti

Diretora-geral do Campus Canoas Patrícia Nogueira Hübler Coordenador de Extensão do Campus Canoas Marcos Daniel Schmidt de Aguiar

Todos os Direitos Reservados Catalogação na publicação Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166

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Que falta faz uma viagem / Sheila Katiane Staudt (Organizadora), Fabia na Cardoso Fidelis (Organizadora), Maristela Rodrigues (Organizadora). –Porto Alegre: Polifonia, 2022.

160p.; 15 X 21 cm ISBN 978-65-87420-17-2

1. Narrativas de viagens. I. Staudt, Sheila Katiane (Organizadora). II. Fidelis, Fabiana Cardoso (Organizadora). III. Rodrigues, Maristela (Organizadora). IV. Título.

CDD 910.4

Índice para catálogo sistemático

I. Narrativas de viagens

"Tive milhões e milhões de aventuras.

O que eu contei a vocês não é nem a metade do que vi." (Marco Polo)

Sumário

Apresentação .............. ...................................................................... .......7

Sheila Katiane Staudt, Fabiana Cardoso Fidelis e Maristela Rodrigues África África do Sul ...........................................................................................13 Jacqueline Staudt Missel

América

Goiás: enveredando nos sertões goianos e seus habitantes ..................20 Fábio de Freitas Santana Quilombo Anastácia, de Viamão: vez e voz para os quilombos, rea firmação de saberes, resistências e potencialidades ................................24 Laianes Kitielle Correia

Minha navegação de vida ..............................................................28 Sílvia Letícia Dias de Souza Conhecendo a ilha de Cuba em 15 dias .................................... ......40 Eliane Catarina de Souza

Cidade-fantasma, fantasmas da cidade ...................................50 Paula Biegelmeier Leao

Providence, Rhode Island: um pedaço do mundo ..................56 Marcelo Santos Matheus:

O ser mochileiro: um guia para a viagem e para a vida, com relato ..66 Iúri Baierle Bertollo

Uma viagem em busca da neve: da Patagônia argentina e chilena até o Ushuaia .........................................................................................77 Maristela Rodrigues

Oceania

Aventuras na Terra-Média ...............................................................86

Gustavo Neuberger Europa

Sob as ruas de Paris .........................................................................94

Maristela Rodrigues e Sheila Katiane Staudt

Paris: um pedaço do meu coração ..................................;;;...........109 Juliana Paz Moraes

Polônia: imaginário, encontros e ressignificações .......................116 Jaqueline Russczyk

Il viaggio ecosostenibile ............................................................126 Maria Cristina Santonocito

Viaggiare e conoscersi: partenariato culturale tra Italia e Brasile ..............................................................................................................131

Lucia Vitiello e Maria Cristina Santonocito Altos e baixos ...................................................................................133 Edison Silva Lima Portugal ...........................................................................................144 Círio de Melo

The map of my life: arrivals & departures ......................................146 James Francis Duignan

Nápoles/ Napoli: mito e metáfora, hipótese de uma possível viagem/ mito e metafora, ipotesi di un viaggio possibile .................................152

Lucia Vitiello

Apresentação

"Há quem passe pela floresta e só enxergue lenha."

Durante a pandemia de COVID-19, que assolou e ainda assola o mundo todo desde o início de 2020, os seres da Terra alteraram, de algu ma forma, a maneira como realizam suas tarefas diárias, a forma como se socializam, o jeito de se importar com os demais seres, repensaram a forma de se alimentar, de se exercitar, e também, como e quando e com quem viajar.

Por aproximadamente dois anos, tivemos nosso direito de ir e vir to lhido, com o risco de uma contaminação iminente, em virtude de um vírus que não sabíamos como se portava e com que letalidade agiria em cada pessoa. Entretanto, o contato com nossos familiares, amigos e o compartilhar das coisas mais simples ganharam prioridade nesses tempos de distanciamento social e isolamento.

Animais silvestres foram encontrados mais próximos dos centros ur banos a fim de nos lembrar que fomos nós quem invadimos o lugar deles e não o contrário, possibilitando o difícil exercício da empatia para com esses coabitantes do nosso planeta, percebendo o quão belos e úni cos são todos esses locais e sua diversidade de espécies se percebidos e entendidos a partir de sua singularidade.

Tivemos um maior contato com a natureza, e até fazer uma simples horta ou um jardim num pequeno espaço das nossas residências nos

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permitiram viajar ou conhecer e/ou criar outros tipos de “viagens” sem sair do lugar, deslocamentos para dentro de nós mesmos, viagens vir tuais com o uso de aplicativos, como visitas inéditas a museus espalhados pelos quatro cantos do mundo. Foi possível andar por cidades de todos os continentes em tempo real, enfim, a tecnologia tornou-se aliada para um trânsito por meio das telas de celulares e computadores nos espaços de nossos lares.

Viajar não é apenas sair de um lugar para o outro, a trabalho ou a passeio, a fim de conhecer pontos turísticos, descansar, comer e beber, fugir da rotina, mas sim aumentar conhecimentos sobre o vasto mundo ao redor, adquirir novas experiências e, principalmente, conhecer a si mesmo.

Reviver viagens realizadas há tempos, seja através da memória ou de fotografias, nos permite descobrir que todos temos um pouco viajantes e um pouco turistas. Tais adjetivos não são diferenciados pela quantidade de fotos que tiramos ou pelas nossas atitudes, se são longas ou curtas as viagens, se são planejadas ou não, se usamos mala ou uma simples mochila, se levamos muitos ou poucos bens pessoais, a diferença está em algo mais intangível que transcende os limites do desconhecido.

E como fez falta viajar... sair da rotina, experimentar novos lugares, sabores, cheiros, climas, conviver com pessoas diferentes, arranhar frases em outro idioma, afinal uma língua estrangeira é um universo a ser descoberto... Passamos também a olhar o nosso país e a nossa cidade de maneira diferente, como também percebemos detalhes até então desper cebidos, uma cadeira desconfortável que passou a ser nossa companhia por muitos meses, os discursos de nossos governantes, a música de uma maneira nunca vista - as lives, shows de artistas diretamente de seus lares com arrecadações para aqueles que ficaram sem emprego, a cultura e suas reinvenções, a necessidade de estar mais próximos da natureza, uso de energia sustentável, como cada um lida com o lixo, enfim, foram inúme ras as percepções que podemos obter quando viajamos e estamos abertos e enxergar com o coração.

O turista é um observador, olha as diferenças culturais, mas não tem muita facilidade de participar delas, o que é mais vivenciado pelo viajante.

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O viajante participa de rituais, gosta de visitar mercados, fazer parte do cotidiano do novo lugar a ser desbravado. Muitas são as diferenças entre um e outro, mas todos já fomos ambos em nossa jornada.

Desejamos que essa leitura possa proporcionar a todos os leitores uma curiosidade em conhecer novos lugares, ultrapassar o desconheci do e abrir os horizontes.

Viajar é passar por um portal que inspira e transforma vidas.

12 anos do Programa de Extensão “Olhares sobre as cidades: expe riências de viagem”: vivências, conexões e parcerias internacionais

Desde a criação do Programa Ciências sem Fronteiras pelo Gover no Federal, em 2011, a internacionalização dos Institutos Federais vem sendo prioridade nas políticas internas do IFRS que cria a Assessoria de Assuntos Internacionais, a fim de promover a mobilidade bilateral, par cerias e acordos com Instituições e Universidades estrangeiras, gerando assim desenvolvimento ao país. Contudo, a prioridade do Programa eram alunos dos Cursos Superiores dos IFs sem ênfase nos alunos do Ensino Médio.

O projeto de extensão “Olhares sobre as cidades: experiências de via gem” promove, desde 2011, o evento anual Feira das Cidades. Em 2021, ele se torna um Programa de Extensão com vistas a abarcar um proje to de parceria internacional entre o IFRS Campus Canoas e o Istituto di Istruzione Superiore Via Copernico, situado em Pomezia, na Itália, cidade metropolitana de Roma. A partir de uma palestrante convida da - Lucia Vitiello, funcionária do Consulado Geral da Itália em Porto Alegre e professora leitora de italiano na UFRGS - na X Feira das Ci dades de 2020, realizada totalmente de forma virtual, foi pensada uma colaboração entre as duas instituições de Ensino Técnico e Tecnológico recém mencionadas, com ênfase nos alunos de Ensino Médio. Para a escrita do acordo de parceria levou-se em consideração três objetivos da Agenda 2030: 4. Educação de qualidade; 5. Igualdade de gênero e o 11. Cidades e comunidades sustentáveis, este último diretamente ligado às premissas do Programa extensionista que são a cidade e a viagem.

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Alguns pontos já concluídos até o momento foram: estudo da AGEN DA 2030; seleção dos 25 alunos brasileiros dos 2ºs anos e 3ºs anos dos Cursos Técnicos Integrados (público-alvo do intercâmbio estudantil) através das notas de língua inglesa; encontros virtuais ao longo de 2021 e 2022 entre os alunos italianos e brasileiros via Google Meet; escrita de um acordo de parceria institucional entre o Cônsul Geral da Itália em Porto Alegre, Roberto Bortot, o reitor do IFRS, Júlio Heck e o diretor do IIS Via Copernico de Pomezia, Francesco Celentano, publicado no Diário Oficial da União em 19 de agosto de 2022; oferta de curso de língua italiana, a partir de 2024, com uma professora italiana nas de pendências do IFRS Canoas a cargo da Embaixada da Itália em Brasília; intenção de realizar a coirmandade (“gemellaggio”) entre as cidades de Canoas e Pomezia, fomentando o turismo e relações estratégicas entre as cidades coirmãs. Desta forma, o programa pretende promover a in ternacionalização do IFRS, a qual é responsável pelo aprimoramento de estudantes e servidores, promovendo a solidariedade entre os países e o intercâmbio técnico-científico em prol de uma educação de qualidade e excelência com vistas à formação integral de nossos discentes de Ensino Médio, público este não contemplado nas políticas públicas anteriores.

A partir da busca e pesquisa acerca da fundamentação teórica sobre os temas cidade e viagem, busca-se entender este espaço plural no mundo moderno, aplicando diferentes estratégias de ensino-aprendizagem acerca deste tema atual e instigante em sala de aula, bem como propi ciando trocas de experiências com a sociedade.

O contato in loco através de visitas a 12 Consulados e Instituições Inter nacionais em Porto Alegre pela coordenadora e colaboradores do projeto, ao longo de 2018-2019, trouxe parcerias externas sólidas que realizarão palestras virtuais e/ou presenciais, minicursos, debates, enfim, tudo em prol de um alargamento do olhar dos nossos alunos e servidores, bem como levarão as demandas locais aos seus pares.

Repensar as cidades do século XXI através dos objetivos da AGENDA 2030-2050, principalmente, o objetivo 11, acerca das cidades e comuni dades sustentáveis nos faz caminhar do micro ao macro, começando a perceber a sustentabilidade presente em nossa escola, depois na cidade

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de Canoas, passando ao nosso Estado, ao nosso país, e, finalmente, che gando na cidade de Pomezia, na Itália, no seu Instituto e em seu país.

Desde 2014 foi pensada a coleta dos relatos orais realizados pelos palestrantes-viajantes nas Feiras das Cidades em forma de livro com crônicas de viagem do século XXI, textos estes muito apreciados pe los europeus no século XVI com o advento das grandes navegações. O registro escrito das experiências perpetua dois tipos de memória: a do viajante, ao processar mais uma vez a sua trajetória e reviver momentos da travessia, bem como a do projeto de extensão, uma vez que eterniza, na forma de texto, a narração oral. Dois livros de crônicas de viagem já foram publicados pelo projeto: Crônicas de viagem do século XXI: olhares sobre as cidades (2014) e Feira das Cidades: travessias do século XXI (2018).

A habilidade escrita, incentivada a partir da coleta de relatos de via gem, recupera e retrabalha locais e vivências a partir da rememoração de deslocamentos suspensos em virtude da pandemia de COVID-19. A pergunta ‘Que falta faz uma viagem?’ serviu de divulgação para a X Fei ra das Cidades, em novembro de 2020, sendo, portanto, o título desta 3ª edição impressa e, pela primeira vez em formato E-book, de crônicas de viagem provenientes desse programa de extensão plural, o qual também se reinventou ao utilizar as tecnologias digitais no seu evento anual, que doravante será bienal.

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Sheila Katiane Staudt Fabiana Cardoso Fidelis Maristela Rodrigues Novembro de 2022.

África

ÁfricadoSul

País localizado geograficamente ao sul do continente africano, banhado pelos Oceanos Índico e Atlântico, cuja capital administrativa é Pretória e a legislativa fica na Cidade do Cabo. A África do Sul tem 58,5 milhões de habitantes e é um país multirreligioso, dos quais 66% são cristãos. O idioma oficial é Africâner, além do Inglês e de diversas línguas tribais. Europeus compõem 12% da população (holandeses, franceses, alemães e ingleses). Principais cidades: Joanesburgo, Pretória, Durban, Cidade do Cabo.

A decisão pelo destino se deu após provar um vinho Pinotage, típico da África do Sul. A viagem iniciou por Joanesburgo, portão de entrada dopaís, porsinalumlindoaeroporto, comboainfraestruturaebastante movimentado.

Dava-se o início da aventura, primeira coisa retirar o carro locado e sair do aeroporto até o hotel no centro cidade de Joanesburgo, mas o detalheéqueotrânsitoecarrossãoemmãoinglesa!Depoisde15horas de voo, sair dirigindo pela cidade super movimentada e tudo ao contrário é literalmente uma aventura. No dia seguinte, saímos para visitar o Soweto, Museu do Apartheid que conta a história deste triste período que o país enfrentou. Durante a visita, observei um grupo de alunos de escola de ensino fundamental, todos uniformizados e numa certa

1 Jacqueline Staudt Missel, Bacharel em Turismo, especialização em Planejamento Estratégico, Marketing, Gestão Ambiental, convidada da Professora Sheila K Staudt para participar da Feira das Cidades 2017 – IFRS Campus Canoas. E-mail: megajak@hotmail.com

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ordem de conduta. Mas apreender o que foi a divisão social imposta pelos invasores/colonizadores, onde os negros/nativos não podiam fre quentar os mesmos lugares (hospital para branco e hospital para negro, praça para branco, praça para negro) tudo era dividido em preto e bran co, jamais um branco podia se relacionar com uma negra ou vice-versa.

Fonte: arquivo pessoal

Isso pode se notar até hoje, apesar de Nelson Mandela sair da prisão e se tornar Presidente, do atual presidente ser negro, dificilmente verá um casal (um negro e uma branca). Por onde andei pude observar que a maioria dos cargos superiores e proprietários de negócios ainda são de brancos. Acho que isso é a única coisa que vai demorar a mudar. Entre tanto, a existência de um bom ensino e do intercâmbio com os países colonizadores, o país dispõe de um razoável desenvolvimento.

Após este primeiro impacto, uma super cidade, um centro bonito e organizado, a periferia no entorno empobrecida, saímos em direção a cidade do Sol “Sun City”, onde ficamos 2 dias hospedados com o obje tivo fazer um safari no Pilanesberg Park. O hotel The Palace of the Lost City, faz jus ao nome, um palácio estilo suntuoso na cidade perdida. Logo na chegada um chafariz de antílopes em tamanho real já dava o tom, e quando o mensageiro abriu a grande porta de madeira entalhada, podia se ver, através do grande lobby, um grande lustre em forma de copa de árvore bem ao fundo. Sim, o lustre do salão de café que tam bém tem um elefante como decoração central embaixo do grande lustre. Tudo de fato muito suntuoso, a mata em que o hotel está inserido e os macacos circulando no entorno do hotel fazem a pessoa sentir-se na selva. A cereja do bolo de fato é o safari no Pilanesberg Park logo ao lado do hotel. Foi possível observar todos os Big Fives da África (elefante,

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leão, rinoceronte branco, búfalo, leopardo) e também girafas, antílopes, hipopótamos, entre outros.

Próxima aventura: dirigir por seis horas, em mão inglesa, até o Kruger Park. Chegamos no final do dia, no limite do horário de entrada de turistas/hóspedes de hotéis, em estilo tenda dentro do Park. Leva mos uma hora da portaria até o Hotel Tenda, pois já caía a noite e não conhecíamos o caminho, não recomendo a ninguém fazer o mesmo. Andávamos com luz alta sem perceber que podíamos atrair os animais, quando chegamos o staff do hotel estava a postos nos aguardando ansio samente, correram em nossa direção para saber se estávamos bem, pe garam nossas malas levaram para recepção, entramos e nos acomodaram e prepararam um belo jantar num deck com uma imensa árvore no centro e sobre o rio. Após o jantar, fomos acompanhados a nossa tenda, tudo com palafitas, a uma altura do chão, por conta dos animais, fomos orientados a não sair da tenda sozinhos, se fosse necessário deveríamos chamar a recepção pelo rádio que já estava na frequência certa. Durante a noite, se algum elefante sentasse perto da tenda ou se esfregasse na mesma, tínhamos uma buzina para espantar ou abrir a janela e tirar fotos. Não vimos nada, dormimos, pois às 4 horas da manhã, o mensa geiro vinha nos buscar para o safari do despertar dos animais. O safari foi lindo! Paramos no meio do Park e tomamos um café com Amarulla, feito pelo guia, admirando as zebras. Não vimos todos os animais como no Pilanesberg Park. No dia em que saímos, após andarmos uns dez minutos, encontramos uma manada de elefantes alvoroçados no meio da estrada. Que susto! Foi necessário dar uma ré lentamente e aguardar os elefantes saírem da estrada.

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Fonte: arquivo pessoal

No retorno para Joanesburgo, passamos por um vale de produção de frutas, belíssimo. O pomar todo plantado milimetricamente em fileiras, tudo irrigado e coberto com sombrite, penso que para proteger de even tual granizo ou geada, do sol forte ou outra função. Seguindo viagem, pegamos um caminho recomendado, passando por uma serra incrível “Blyde River Canyon”.

Chegando a Johanesburgo, tomamos o último voo do dia para Cidade do Cabo, um voo de 2 horas, muito tranquilo. Chegando pegamos novamente um carro e fomos para um hotel Vinícola a 20 minutos do aeroporto na cidade vizinha de Stellembosch. Ficamos dois dias hospedados para descansar das aventuras em um regime enogastronômico. A cidade de Stellembosch é um núcleo universitário, vibrante, cheia de atrações culturais, a cidade tem wi-fi free ao entrar na cidade, o wi-fi da cidade já se conecta diretamente ao celular.

Após dois dias de descanso pegamos estrada novamente pela Rota Jardim, serpenteando o litoral, já pelo mar do Índico de um azul tur-quesa lindo. Saindo da Cidade do Cabo em direção a Knysna.

Um percurso de paisagens belíssimas, passando pelo balneário badala do de George até chegar ao balneário de Knysna, pequena cidade à beira da lagoa que desemboca no mar. Knysna é um balneário muito frequen tado por europeus, amantes de esportes aquáticos, observação de baleias,

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trilhas pelas montanhas verdes do entorno, e no parque há uma reserva de elefantes. Vale a visita. O pôr do sol na marina é lindo, no entorno tem um waterfront com restaurantes muito bons.

Partindo para a próxima cidade Oudtshoorn, na região de criações de avestruz, colônia holandesa, com o objetivo de visitar The Cango Caves (cavernas), um grande complexo de câmaras e túneis com apro ximados 4 km de extensão. Estas cavernas foram habitadas há mais de 80 mil anos pelos San, possivelmente um dos primeiros grupos a habitar a África do Sul. As cavernas foram redescobertas pelos Holandeses em 1780, acredita-se que tiveram seu início de formação há mais de 20 milhões de anos. Durante a visita, podemos observar estalagmites e es talactites com mais de 3 milhões de anos. Vale muito um desvio de rota e fazer esta visita.

Após cruzar esta região de montanhas calcárias passando por fazendas de criação de avestruzes, como um passe de mágica ao passarmos por um túnel se abriu um vale verde magnífico e chegamos à cidade de Franschhoek, pelo nome já podemos perceber que a cidade é to talmente influenciada pelos franceses, não só no nome, mas seus ha bitantes fundaram um recanto com comidas, cultura, costumes, etc. Não esquecendo os vinhos, ah os vinhos... Eu me apaixonei pelo tipo Pinotage. Dica: tome o trem que percorre as vinícolas e aproveite! A cidade tem um centrinho super charmoso, cheio de cafés e pequenos restaurantes.

Para finalizar Cape Town (Cidade do Cabo), o que dizer desta sur preendente cidade, muita cultura, muita gastronomia, muito lazer e mais. Coisas que não podem ficar de fora da lista de visitas: ir até o Cabo da Boa Esperança, no retorno um stop em Simon’s Town, praia dos pinguins sul

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africanos. A cidade se formou ao redor da Table Mountain (Montanha da Mesa), o nome se deve a ter o formato de uma mesa e o platô ter aproxi madamente 1 km, sendo considerada uma das 7 maravilhas do mundo. Do alto da montanha podemos avistar toda a cidade e a beleza da marina Vitoria e Alfred Waterfront, outro ponto imperdível. Não esquecendo da Robben Island, onde Mandela passou parte da sua vida, os vários Museus (Arte Contemporânea, Diamante, etc.) E o mercado verde, imperdível para conhecer plantas, flores e comidas típicas. Depois disso tudo, se não quiser fazer nada, pode escolher uma praia do oceano Atlântico ou Índico e relaxar...

Há tantas outras coisas que poderia dizer, contar, narrar que seriam quase um livro. Por fim, esse destino merece estar em qualquer lista de lugares a serem visitados.

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América

Goiás

Enveredando nos sertões goianos e seus habitantes

Fábio de Freitas Santana2

Viajar é viver um sonho acordado. É permitir perder-se para, enfim, se encontrar no meio do novo, do desconhecido. Vivenciar aquilo que nunca imaginou, apesar de todos os planejamentos. Assim funciona o intercâmbio de alteridades. Minhas experiências de viagem não são iluminadas pelas luzes parisienses, ou submersas nas águas de Veneza, mas são tão belas quanto essas, pois se baseiam nos afetos e memórias deixadas a cada momento.

A título de conhecimento: sou baiano, morei no Rio Grande do Sul por cinco anos e, atualmente, vivo em Goiás, onde curso Letras. Pre tendo relatar aqui meu contato com o Goiás, no tempo em que ainda era um estudante do curso técnico em informática pelo IFRS Campus Canoas e vinha para essas terras visitar minha mãe, a fim de fugir do caos que uma cidade grande representa e matar as saudades da minha fiel amiga. O ano é 2017. Aguardo ansiosamente o fim do ano letivo para enfim explorar as terras goianas. Assim que sou dispensado, o pri meiro instinto foi arrumar as malas e esperar o dia de ir ao aeropor to embarcar rumo ao merecido descanso. Sempre priorizei passar os meus aniversários – que ocorrem pontualmente no dia 24 de dezem

2 Fábio de Freitas Santana, Graduando em Letras pela Universidade Federal de Catalão, egresso do IFRS Campus Canoas. Participou das V, VI, VII, VIII, IX e X edições da Feira das Cidades. E-mail: fabio.freitasantana@gmail.com

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bro – com ela e meu então padrasto, Edson. Só voltava para Canoas em fevereiro, perto do início das aulas, e já com o material comprado.

O percurso é longo. De Porto Alegre a Goiânia são umas cinco horas de viagem, em média, considerando o deslocamento até São Pau lo, para em conexão alçar voo até a capital do Estado de Goiás. Ao chegar, me deparo com minha mãe e padrasto me esperando no ae roporto. Damos abraços, beijos e seguimos viagem. Do aeroporto, rumamos à rodoviária, compramos nossas passagens para o interior: à época, a cidade de Itapaci era o ponto de destino. Chegamos à noi te, comemos e vamos dormir, pois a viagem foi longa e cansativa. Quando fixo Itapaci como ponto de destino, me refiro ao fato de que o plano inicial é ficar por lá e dormir o máximo que eu puder, além de brincar com meus cachorros, comer manga direto do pé e posar como modelo nas lentes da mãe, já que esta gosta de se aventurar na fotografia.

Fonte: arquivo pessoal

Como falei no início do meu relato, vivenciamos o inesperado, mes mo com todo o planejamento do mundo. O que isso significa? Não dormi o tanto que gostaria, pois a área precisava ser varrida, cachorros precisavam de banho e eventuais passeios surgiam. O bom de estar no interior é poder contar com mais cidadezinhas interioranas em seu en torno, que possuem o charme de contar com pessoas abertas a compar tilharem suas particularidades culturais conosco. Refiro-me a pequenas dicas na hora do pão de queijo, receita de pamonha recheada, doce ou salgada, chás de ervas naturais que curam de tudo, até mesmo coração partido. A sabedoria popular goiana é apaixonante. O Brasil é um país engraçado. A cada ponto em que chegamos nos vemos diante do inespe rado: não há como prever o que se encontrará. É como viver em um país que abriga vários países dentro de si. A comida, o modo de falar, de ver

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a vida, práticas culturais, enfim, tudo novo. E essa “novidade” nos afeta profundamente. Minha mãe, por exemplo, de todos os seus mais de dez anos habitando o Goiás, aprofundou seus conhecimentos em ervas medicinais, aprendeu a fazer pamonha (deliciosas, diga-se de passagem), biscoito de polvilho e galinhada com pequi.

Fonte: arquivo pessoal

Itapaci não é grande, possuindo em média 20 mil habitantes. Mas tem uma riqueza cultural belíssima. Os passeios à represa para apreciar as capivaras tomando seu banho de sol. Curtir as festas do Divino e de Reis, as Romarias e Pecuárias, que abrilhantavam a cidade e davam um ar religioso e sertanejo. Dessas festas, só pude assistir à Folia de Reis, com os palhaços dançando em com seus guarda-chuvas de casa em casa. Fora o acolhimento das pessoas. Essas me faziam sentir um goiano de coração em menos de um mês. É a beleza do interior.

Antes de ir embora e encarar o Sul novamente, preciso comemorar o aniversário de minha mãe, 1º de fevereiro. Não abro mão de ter esse momento com ela. Decidimos assim, de última hora visitar Ceres, uma cidade vizinha que sempre quisemos conhecer. Menos de 30 minutos nos separam de nosso destino, um local novo, diferente. Novas pessoas, novas histórias. Passeamos, tiramos foto, comemos e agradeço por mais um ano ao lado daquela que amo.

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Fonte: arquivo pessoal

Já está chegando o dia de ir embora, 2018 bateu à porta junto ao Tra balho de Conclusão de Curso – TCC, a formatura, Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, faculdade e futuro. Volto para casa triste, pela despedida, mas ainda assim alegre, pois sabia que no fim do ano retor naria para lá novamente.

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Quilombo Anastácia

, de Viamão:

vez e voz para os quilombos, reafirmação de saberes, resistências e potencialidades

Laianes Kitielle Correia3

Localizado na rua Carmindo Sousa Gomes, número 621, no Bair ro Estância Grande, Viamão, o Quilombo Anastácia é considerado um local de difícil acesso, pois apesar de amparado por diversas políticas públicas desenvolvidas especificamente para comunidades com características como as suas, segue enfrentando dificuldades as quais o po der público não tem obtido êxito em resolver. Entre estas dificuldades, podemos citar serviços considerados básicos, cujo acesso deveria ser universal, a exemplo de escolas de educação infantil, ensino fundamen tal e médio, levando boa parte dos jovens quilombolas a residirem em outras localidades para receber educação de qualidade; além do difícil acesso à rede pública de saúde, ou até mesmo a precária manutenção de 3 Graduanda em Engenharia Cartográfica na UFRGS, comunidade externa do IFRS Campus Ca noas. Participou da IX Feira de Cidades. E-mail: laianes.kitielle@gmail.com

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estradas que dão acesso ao território, dificultando o deslocamento dos remanescentes em dias de chuva.

O evento presente neste relato ocorreu no ano de 2018, e foi elaborado almejando aprofundar o conhecimento sobre as lutas diárias da comunidade, visando ressaltar para a comunidade acadêmica a necessi dade do aperfeiçoamento das leis que abrangem os territórios dos povos originários.

A visita ao Quilombo Anastácia teve uma duração de 2 dias. O início de nossas atividades se deu em uma manhã ensolarada, na qual ocorreu a oficina de produção de sabão nomeada “Sabão ecológico: Produção a partir da reutilização de óleo de cozinha”, desenvolvida entre discentes e moradores da comunidade. A ação foi pensada visando propor a refle xão a respeito do descarte irregular de resíduos sólidos e a reutilização dos resíduos de acordo com a Lei 12.305/2010, incluindo a possibilida de de utilizar o sabão proveniente da oficina como gerador de renda. A comunidade participou ativamente, propondo-se a auxiliar nas etapas do processo, e interagindo diretamente com os estudantes responsáveis por conduzir a atividade.

Ainda na mesma manhã, ministramos a oficina de artesanato com papel filtro de café, que consiste na utilização dos filtros de café já uti lizados para revestir potes e garrafas de vidro, dando origem a peças artesanais únicas, feitas pelas próprias mãos dos presentes no local. No período da tarde, foi ofertada a última atividade do dia, desenvol vendo então a oficina de confecção de bonecas “Abayomi”. Nesse mo mento relembramos a história e origem das bonecas que eram confec cionadas pelas mães para acalentar os seus filhos durante as terríveis viagens a bordo dos navios tumbeiros. Essa atividade de reutilização de

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retalhos foi uma grande aliada para os participantes, contribuindo para o reaproveitamento de tecidos, evitando que os mesmos fossem descar tados no ambiente de forma irregular.

Após finalizar o primeiro dia de atividades na comunidade, contamos com um lanche coletivo realizado com alimentos arrecadados pelos vi sitantes convidados para participar do evento, incluindo um bate-pa po descontraído e troca de experiências entre os participantes. Com o anoitecer, fomos contemplados por uma janta preparada por Dona Be renice, presidente da associação Quilombo Anastácia, com alimentos colhidos nas terras Quilombolas, incluindo receitas típicas do local.

O segundo dia de evento foi contemplado por algumas dificuldades que não estavam inclusas na programação, a comunidade permaneceu parte do dia sem energia elétrica em consequência de um temporal que atingiu o município na noite anterior.

Na manhã de domingo, foi realizada a horta vertical, a oficina “Horta Quilombo Anastácia: Alimentação na Palma da mão”, com a finalidade de expor uma nova alternativa de exposição de hortaliças. Para essa ati vidade contamos com o auxílio de vários residentes do local, e inclusive pessoas da comunidade externa, como os alunos do curso de Arquitetura da UFRGS.

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Essa viagem vem como resultado de uma ação extensionista parte do “Projeto Integrador: Saberes Socioambientais”, no mês de setembro de 2018. O evento “Vez e Voz para os Quilombos: Reafirmação de Saberes, Resistências e potencialidades” teve como objetivo trazer uma reflexão aprofundada para a situação das comunidades Quilombolas no Rio Grande do Sul, na busca de fortalecer o diálogo a respeito dos direitos e políticas públicas voltadas para os remanescentes. Tal ação originou também um evento realizado no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul Campus Porto Alegre do IFRS.

Como resultado da experiência, houve as trocas de experiências e conhecimento entre os discentes, docentes e comunidade externa e in terna dos Quilombos, de maneira a estimular a valorização cultural e o combate ao preconceito a respeito dos povos originários.

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Minha navegação de vida

Sílvia Letícia Dias de Souza4

Nascer é uma benção. Viver é um privilégio. Nascer e viver vêm de mãos dadas com todo o amparo divinal. Assim começa minha navega ção de vida.

Eu nasci no dia 16 de dezembro de 1992, na cidade de Portão, mas fui registrada em Porto Alegre.

Eu relatarei partes da minha história de vida sobre outro universo, contarei alguns fatos vividos, em grande parte, na cidade de Porto Ale gre, capital do Rio Grande do Sul. Relatando sobre aquilo que é invisível e que não é percebível por muitos viajantes, turistas e, até mesmo, pelos próprios moradores de Porto Alegre.

A minha história é muito grande, emocionante com momentos de muita tristeza, mas também com alguns momentos de alegria e de gran de aprendizado. Não posso dizer que não tive infância. Tive sim, mas diferente de muitas crianças.

Eu morei na rua desde o meu nascimento, de 1992 até 2004, quando completei doze anos com os meus pais biológicos. Eles eram usuários de drogas, álcool e fumo. Tenho vários irmãos – comprovadamente são oito. Dizem que tenho mais sete irmãos que foram adotados por famí lias que pediram sigilo.

4 Professora de séries iniciais, estudante do curso de Licenciatura em Ciências Naturais no Institu to Federal de Porto Alegre. Participou de três edições da Feira das Cidades: VII, VIII e IX. E-mail: silvialeticiasouza92@gmail.com.

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Eu me lembro de conviver apenas com dois irmãos mais novos do que eu: Isaias e o Malaquias. Neste período, nós dormíamos na rua, que compreendia entre o centro histórico de Porto Alegre e as ruas Voluntários da Pátria, Farrapos, Sertório, Cristóvão Colombo, e em muitas outras, sempre embaixo das marquises ou improvisação com papelões ou em prédios abandonados.

Deixo aqui uma pergunta: Quando você anda pelas ruas de Porto Alegre o que você mais aprecia?

Vamos relembrar um pouco: temos a Praça da Alfândega, a Praça da Matriz, a Catedral, Palácio do Governo, o Largo Glênio Peres, arredores do Mercado Público e muitos outros. Nestes lugares nós procurávamos o lugar que não soprava tanto vento, aquele que menos molhava, o que tinha menos insetos e ratos e sempre carregando as nossas muambas, isto é, apenas um carrinho com alguns pertences.

Girei muito pela Praça da Alfândega, Mercado Público, pedindo es molas, dormindo e fazendo as minhas proezas. Hoje, penso muito por onde andei.

Já observou o Viaduto da Borges, o Viaduto da Conceição, o da João Pessoa? O da Borges com aquela escadaria e aquela iluminação! Esses viadutos nós compartilhávamos com outros moradores de rua, onde, no silêncio da noite, coisas horríveis aconteciam, desde o uso exagerado de drogas, promiscuidade do mais baixo mundo de misérias, envolven do até nós, crianças.

A Ponte do Rio Guaíba, hoje se sabe que é um verdadeiro cartão pos tal de Porto Alegre, mas tempos atrás morei embaixo de uma de suas alças, reciclando lixo junto com meus pais. Dormia em cima de papelão, que era o meu colchão, um pano velho era a minha coberta e o meu travesseiro era um tijolo. Nessas nossas andanças, muito pedi dinheiro nas sinaleiras da Estação Farrapos, entorno da Avenida Ceará, do Aero porto e muitas outras avenidas, sempre correndo entre os carros.

Falando em Aeroporto, sempre tive muita vontade de conhecer o nosso Aeroporto Salgado Filho por dentro, mas os seguranças nunca deixavam entrar. E uma vez passei por uma grande aventura, o meu pai resolveu roubar um carrinho, aqueles que são usados para colocar as

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bagagens e me colocou dentro e saiu voando, acho que mais rápido que os aviões, para que ninguém visse. Foi um barato, naquela época. Muito brinquei no Monumento do Laçador e abordava as pessoas pedindo moedas e lanches.

Vocês já observaram as árvores de Porto Alegre? Para mim serviram muitas vezes de casa, de abrigo. Tem uma árvore perto do Hotel Deville, entre a BR 116 e a Avenida dos Estados. É uma árvore redonda, e seus galhos vão até o solo. Quando passarem por ali, lembrem-se que já morei naquele local.

Já cuidei de carros no entorno da Universidade Federal do Rio Gran de do Sul-UFRGS, quando nem sabia o que era uma Universidade; e em muitos outros pontos de grande fluxo de automóveis de Porto Alegre, como no Zaffari da Cristóvão, na Praça da Matriz. Na época, eu não tinha noção histórica, não sabia o que significava o Palácio do Governo, Assembleia Legislativa, Teatro São Pedro, o Palácio da Justiça, etc. O objetivo era ganhar uns trocados porque os meus pais assim exigiam. E, quando me distraía, brincando, e que não pedia, recebia castigos muito fortes. Até garrafadas na cabeça eu levei, tenho muitas cicatrizes.

Vocês já perceberam que o pouco que estou relatando é a minha me mória de criança, vivenciada até os meus doze anos em plena rua e pela irresponsabilidade de meus pais. Toda a minha infância foi muito negligenciada, e tive muitos momentos perigosos e deprimentes para uma criança.

Entre muitas situações, lembro-me que um dia nós fomos numa casa pedir um prato de comida, e a senhora da casa nos mandou trabalhar, nós ficamos quietas. Quem pede na rua encontra muitas pessoas boas que além de oferecer algo para nós comermos ou vestirmos, conversa vam e nos davam conselhos. Mas, também tem muita gente estúpida que além de não dar nada nem olhava para gente, não davam um sorri so, achavam que nós não éramos seres humanos.

Lembro-me, com muita gratidão, de uma senhora que morava num prédio no segundo ou terceiro andar na Avenida Cristóvão Colombo, que sempre nos dava algo para comermos. Ela colocava em uma sacola e amarrava em uma cordinha para que eu pudesse pegar lá embaixo. A

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sua comida e o seu lanchinho eram gostosos e nos faziam muito bem. Ainda, existem pessoas muito generosas. O mais difícil era quando não ganhávamos nada para comer e precisávamos ir às lixeiras para encontrar algo para nos alimentarmos. Já comi muito pão duro e mofado com água, comidas e frutas estragadas.

E o Rio Guaíba? É lindo acompanhar o pôr-do-sol em contraste com suas águas. Vocês devem ter visto aqueles enormes montes de areia que é dragado do rio? Vocês imaginem deslizar daqueles montes de areia, lá de cima sentada em um papelão? Fiz isso muito, de pés descalços muitas vezes, dava um frio na barriga. Os meus banhos, muitos deles, foram no rio, tanto no inverno como no verão, onde a mãe pegava lascas de sabão gaúcho, que encontrava nos lixos, e nos esfregava com toda vontade e depois aproveitava para lavar as nossas poucas roupas. E o pai pescava ou tentava pegar com a mão alguns peixes que vinham até a beirinha do rio. Ele fazia um fogo e colocava uma lata de tintas para preparar um ensopado com os poucos peixes que eram pescados.

Já observaram as pombas que ficam em torno dos velhos prédios e dos armazéns do Cais do Porto? Outra coisa que comemos muito foi arroz com pomba, preparado pelos meus pais.

O nosso Parque da Redenção! Acredito ser o parque mais importante da cidade, devido ao seu tamanho. É muito bonito, bem arrumado e bastante verde. Nele encontramos: parquinho para as crianças, audi tório, pequenos lagos, um passeio pelo Brique, o Monumento dos Ex pedicionários, Recanto do Buda. É ótimo para dar uma volta e respirar um ar puro.

Naquela época, o que nós usufruíamos da Redenção era tomar banho nos espelhos de água e brincar de se jogar e, a mãe aproveitava para lavar as poucas peças de roupas. Tirávamos alguns dias morando ali. Eu ficava sempre na volta do Recanto do Buda para pegar as moedinhas, aquelas que as pessoas colocavam. Eu usava para comprar algodão doce e pipoca. Coitado do Buda! Mas, muito me ajudou para comer gulodi ces.

Assim, também o Gasômetro, hoje está lindíssimo. Eu adorava brin car entre as pedras, banhar-me nas águas do Rio Guaíba e também to-

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mar banho nos chuveiros que lá tinha. Outra coisa que nós fazíamos era comer as oferendas de Iemanjá. Perdoem-me, mas muito nos alimentou.

O Lago dos Açorianos, agora todo revitalizado. Está muito bonito. Na época nós chamávamos de água verde devido ao seu mau estado de conservação. Todo morador de rua sempre procura os lugares onde tem água, porque a água é primordial em nossa vida. Girei muito pela Praça da Alfândega, Mercado Público, sempre com as nossas muambas, pedindo esmolas, dormindo e fazendo as minhas proezas. Hoje penso muito por onde andei.

Gente, eu já aprontei muito. Eu era muito arteira. Eu me sentia dona de Porto Alegre e, por onde eu andava, gostava de mexer com as pessoas, dava muitas gargalhadas acompanhando a minha mãe. Vivíamos livres, sem teto e sem casa. Falando sobre casa. A minha mãe biológica, uma vez, ganhou uma casa na Ilha da Pintada, passou algum tempo ela vendeu ou trocou para pagar as dívidas com traficantes. Também tivemos outra casa, esta foi uma casa que invadimos no Bairro Navegantes, como não tinha luz, usávamos uma vela para iluminar. E uma noite, a mãe e o pai estavam muito bêbados e deixaram a vela acesa perto da parede. Sabem o que aconteceu? Pegou fogo na casa, perdemos o pouco que tínhamos. Devido a tantos sofrimentos acredito que mais esse episódio fez pouca diferença em nossas vidas.

Vocês sabem que a maioria dos moradores de rua sempre tem um cachorrinho. Eu tinha um, que se chamava Toby, todo pretinho, peque no, carinhoso e muito serelepe. Com muito pesar ele teve um fim muito trágico, naquela noite do incêndio. Meu Toby!

Todo usuário de drogas, como era o caso de meus pais e devido a sua dependência eles ficam reféns dos traficantes. Muitas vezes, eles saiam de perto do traficante, andavam por vários pontos de Porto Alegre, mas terminavam retornando para a Vila Tio Zeca. Às vezes, eles até fugiam a pé sempre me levando junto para outras cidades, como por exem plo: Região Metropolitana, Vale dos Sinos, Região da Serra. Já caminhei muito a pé, tenho até os meus pés tortos de tanto caminhar. Repetidas vezes andava de pés descalços ou com calçados nada compatíveis com a minha numeração. Nunca soube o que era um calçado novo. Lembro

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como se fosse hoje o meu pai fazendo um calçado para mim com garra fas pet. Era muito engraçado!

Ainda nas imediações da Vila Tio Zeca, entre os bairros Navegantes, Humaitá e Farrapos, muitos fatos horripilantes aconteceram. Quem não conviveu com este submundo não faz noção do que é. A mãe teve o parto do Malaquias, na frente de uma das Agências dos Correios, do Bairro Na vegantes, eu tinha seis anos na época e tive que atacar o carro da Brigada Militar para que os policiais tomassem as devidas providências.

A mãe quando ficava bêbada batia no meu pai, eu tinha que separar, mas, às vezes, não podia porque tinha que cuidar dos meus dois irmãos, ela nos batia bastante devido ao seu estado de embriaguez.

Assim mesmo, fomos tocando a vida para frente até que, certa noite, estava tudo calmo e muito quente, eu, meus pais e mais dois irmãos me nores que estavam dormindo embaixo da aba de uma empresa, quando deu a louca no meu pai de ir beber. Ele saiu e não voltou. A mãe foi atrás para buscá-lo e também ficou bebendo e dançando no bar. Ficamos somente nós três: meus irmãos Malaquias e Isaias e eu. Como já era tarde demais e eles não voltavam eu fui atrás deles, deixando os dois pe quenos sozinhos. Nessa época, eu tinha sete anos. E, quando voltamos, eu a mãe e o pai, não encontramos mais os meus dois irmãos, ficamos apavoradas, fomos até o guarda da empresa perguntar se ele tinha visto alguma coisa, ele nos falou que ouviu choro de crianças e foi ver. Aí en controu os meus irmãos sozinhos e chorando. Ele chamou a Brigada e, talvez o Conselho Tutelar, para onde eles foram recolhidos.

Mas os dias, os meses e os anos foram passando, não podíamos ir ao Fórum porque a mãe tinha medo de que eles também me recolhessem para um abrigo e assim nunca mais fomos procurá-los. A mãe me conta va muito pouco de sua vida, ela me falava que teve quinze filhos e mais eu, inclusive gêmeos, mas teve que dar, porque não tinha condições de criá-los.

Observem o que aconteceu comigo... Quando a mãe ficava devendo para os traficantes, me deixava na casa deles, como forma de pagamen to, vocês imaginem o que acontecia. E, ainda tinha que fazer os serviços domésticos, fazer entregas da maconha ou o crack, além de cortar, em-

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balar e vender. As pessoas consumiam na minha frente, era triste de ver as meninas novas e lindas consumindo aquilo com grande desespero, ficando em estado miserável. Teve uma vez que a viatura da Brigada passou ao meu lado, eu fiquei com muito medo porque estava carregan do droga, em uma mochila, mas eles não viram, passaram reto e foram embora, eu tinha apenas uns oito ou nove anos de idade.

Na Praça Pinheiro Machado em Porto Alegre, muito brinquei e to mava banho nas torneiras. E um dia estava com muita fome e nas suas imediações tinha uma casa com um grande pé de bergamota, não pen sei nada, subi na árvore para pegar algumas frutas para comer, só que neste meio tempo vi um tijolo voando, veio direto no meu pé direito, quebrando e causando um grande ferimento. Fiquei por muito tempo internada no Hospital Conceição de Porto Alegre. Na época não entendi o porquê que aquele senhor fez aquilo comigo, apenas estava com fome!

Muitos dias, muitas noites, muitas festas e muitos natais que passá vamos na rua, às vezes, só tinham para comer arroz e feijão que a mãe cozinhava em latas de tinta, apesar das dificuldades e tristezas sempre levantávamos a cabeça e seguíamos em frente. A mãe apesar de ter HIV e ser drogada sempre fazia uma oração a Deus que sempre nos ajudou e nos atendia. Ela carregava sempre uma Bíblia. Eu tenho ainda esta Bíblia que guardo como uma grande recordação dela. Nunca deixei me abalar, porque sabia que Deus tinha alguma coisa boa reservada para mim. Quando podia estava sempre de bom humor com a vida, apesar das várias dificuldades que passamos. Na minha visão, naquela época era até divertido morar na rua.

Quando moramos em Novo Hamburgo o meu pai brigou com a mãe. E, nós ficamos embaixo de um viaduto e ele sumiu, procuramos por toda parte e não achamos mais. Arrumamos as poucas roupas que tí nhamos numa sacola e fomos para Porto Alegre a pé para procurá-lo, mas não encontramos mais, não deixou rastros ou pistas. Espero que ele esteja bem e tenha largado todos os seus vícios.

Na noite de Natal de 2003, entre festas e foguetórios que presenciáva mos de longe, a minha mãe me perguntou o que eu queria de Natal e eu respondi: “Mãe, eu quero uma vida melhor para nós”. Ela ficou parada

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e não falou nada e depois me respondeu: “Minha filha a única coisa que nós temos é morar na rua e pedir auxílio para sobreviver na vida”. Então, eu falei para ela que um dia nós iríamos vencer na vida, porque já tínhamos perdido todos os meus irmãos e só restavam nós duas: eu e ela, mas tudo dependia de Deus.

Passaram alguns dias e a mãe já estava muito doente, já não conseguia mais andar, então fomos para Esteio, cidade da grande Porto Alegre, onde mora uma senhora, conhecida da mãe. Então, esta senhora internou a mãe no Hospital São Camilo e ficou cuidando de mim. Mas eu ti nha que ajudar ela no serviço da casa e tinha que catar latinha e papelão, ela me mandava pedir na rua para que eu pudesse ter cama e comida. Na época, eu tinha onze, quase doze anos. Ao longo de minha vida até os doze anos eu já pedi em muitas casas por todas as cidades por onde andávamos. Talvez, já pedi na casa de muitos de vocês que estão lendo este relato, porque quando se anda na rua, bate-se de porta em porta e não se conhece as pessoas.

Em fevereiro de 2005, eu continuava morando com esta senhora e queria muito estudar e ela foi me matricular numa Escola Estadual em Esteio. Como eu não tinha documentos, a Diretora da Escola me enca minhou para o Conselho Tutelar da cidade que a partir daí me recolheu para o Abrigo Amigo dos Meninos de Esteio (AME).

A mãe ainda continuava no hospital vindo a falecer em 26 de abril de 2005, com apenas 48 anos de idade. Então minha vida mudou, fiquei sozinha, sem a minha mãe, que tanto amava, continuei morando no abrigo, onde tive muitas amigas e todas nós tínhamos tarefas, e a minha era limpar os banheiros, lavar ou secar a louça, conforme a escala. O abrigo me matriculou na Escola Estadual Santo Antônio Maria Claret, eu ingressei direto na 2ª série, porque tinha doze anos e já sabia ler. E foi a mãe que me ensinou a ler e escrever, através de gibis, revistas e jornais que encontrávamos no lixo. Nessa escola, como as minhas notas e o meu comportamento eram ótimos, eu recebi uma medalha e um diploma de Honra ao Mérito.

No abrigo, além de fazer as minhas tarefas eu adorava ajudar no ber çário, onde tinha muitos bebês. E no berçário tinha uma tia muito legal

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e durona, mas assim mesmo eu gostava dela. Ela se chamava Cândida. Um dia pedi para ir à casa dela, mas ela disse que eu tinha que pedir para psicóloga do Abrigo, que logo deixou e foi assim que conheci a sua família, e passei a frequentar a casa deles todos os finais de semana. Mas quando eu tinha que voltar para o abrigo, eu chorava dizendo que tinha saudades de meus irmãos e de meus pais. O tempo foi passando e um dia, no final do mês de outubro de 2005, o tio Jomar esposo da Tia Cândida me perguntou se eu queria morar com eles. Era tudo o que eu queria e disse que sim! Apesar, que já nessa época, na casa deles, eu já tinha a minha cama, parte no guarda-roupa, mas eu queria mais, eu queria um lar, uma família.

A partir de novembro de 2005, iniciaram-se todos os trâmites judiciais para a minha adoção por parte dessa família, desde a entrega de docu mentação, entrevistas, etc. Foi tudo muito rápido, Deus abençoou tudo, porque no dia 05 de dezembro de 2005, os meus futuros pais receberam o Termo de Compromisso Provisório de Guarda de Menor. A partir desta data passei a morar com essa grande família e fui muito bem recebida pelos meus pais, minhas três irmãs e dois irmãos. Dentro de um ano, saiu a documentação completa de minha adoção.

Em fevereiro de 2006, fui matriculada no Colégio Adventista de Es teio, na 3ª série do Ensino Fundamental. Lá fui muito bem recebida pela professora e por toda a turma, mesmo existindo uma grande diferença de idade entre nós. Cultivamos uma ótima e sincera amizade que per manece até hoje. Estudei com a mesma turma na 4ª e 5ª séries, tenho ótimas recordações e até hoje converso com eles.

No dia 16 de dezembro de 2007, eu completei os meus 15 anos. Ganhei a minha primeira e grande festa, com muitas homenagens, muitos convidados, muitos presentes e um delicioso coquetel. Foi um momen to muito marcante, jamais esquecerei, apesar de rir e chorar muito, tudo brilhava neste dia, especialmente eu, que era a estrela da festa.

No final do ano de 2008, eu pedi para os meus pais para adiantar os meus estudos. Então, em março de 2009, passei a frequentar as aulas do EJA. Foi muito difícil fazer três anos juntos sexta, sétima e oitava séries, mas consegui!

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Em dezembro de 2009, aconteceu a minha primeira formatura do En sino Fundamental, mais um objetivo atingido, porque a nossa vida preci sa ter metas e através de um passo atrás do outro, chegaremos lá.

Em fevereiro de 2010, retornava para a Escola Adventista de Esteio para cursar o Ensino Médio, concluindo em 2012. Mais uma formatura e mais uma etapa vencida, aqui eu já tinha 20 anos. Por incentivo de mi nha família fiz os Estudos Adicionais fazendo curso Normal, concluin do, em dezembro de 2014, a minha terceira formatura como professora de ensino de séries iniciais.

No final do ano de 2015, fiz vestibular no Instituto Federal de Edu cação, Ciências e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) em Canoas. Cursei parte da faculdade de Matemática, encontrei muitas dificuldades, muitas vezes, pensei em desistir. Mas no primeiro semestre de 2019, eu troquei de curso, hoje estou cursando a Faculdade de Ciências da Nature za, também no Instituto Federal campus Porto Alegre.

A partir do ano de 2013 até o ano de 2019, trabalhei com a Educação Infantil, já exerci as funções de auxiliar de professora e professora titu lar. Hoje, sou professora estadual, trabalhando com crianças de séries iniciais no município de Canoas.

Mas, quero dizer a todos que em 30 de junho de 2012, a minha vida teve outra grande mudança, através de uma reportagem do jornal Zero – Hora, localizei seis irmãos biológicos. Os dois irmãos que eu cuidava na rua, o Malaquias e o Isaías, foram adotados por uma família france sa. Já estiveram aqui no Brasil em 2015 me visitando juntamente com seu pai por adoção, que é sociólogo e prefeito de uma cidade francesa.

Outras duas irmãs também foram adotadas por outra família de origem alemã, sendo que também moram na França, e tive a honra de receber a visita delas, a Mara e a Claudia, com seus pais por adoção, no ano de 2017.

Tenho outro irmão, o Ismael, que foi jogador de futebol, muito conhe cido no meio futebolístico, como Ismael Gaúcho, jogou nas categorias de base do Inter e em vários outros clubes internacionais. Hoje é empresário, está morando aqui no Rio Grande do Sul, é casado e tem dois filhinhos. Ele enfrentou muitas dificuldades por não encontrar uma família disposta

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a adotá-lo, perambulando pelos abrigos de Porto Alegre e teve grandes consequências por falta do amor de uma família.

Já a minha irmã mais velha mora em Porto Alegre e tem um filho lindo. Ela também teve várias adoções sem sucesso, morando em diferentes abrigos e lutou muito com a dificuldade de não ter encontrado uma famí lia, em que pudesse ter o privilégio de ser chamada de filha. Quando se tem uma família, se tem um lar, por mais simples que seja. Podemos sentir o amor e aprender os valores da vida, nos sentindo como gente, tendo todo o suporte para irmos vencendo. Mas, para isso, cada um de nós precisa fazer a sua parte.

Aproveito também para expressar o meu orgulho em poder entrar num banco, fazer as minhas transações financeiras, não ser barrada e nem precisar ficar na porta pedindo moedas. Isto é uma grande con quista! Poder comprar minhas roupas, meus calçados, meus produtos de beleza, os meus xampus, os meus cremes e não precisar usar lascas de sabão gaúcho. E também ir ao shopping, ao aeroporto e entrar livremente. Outras grandes vitórias!

E agora refletimos... Eu poderia não ter nascido. E o mundo conti nuaria a sua marcha sem mim. Mas eu existo. Estou viva. Sou adotada. Estou rodeada pelo calor humano e pela amizade de tantos corações que me querem bem.

Viver é estar a caminho, em busca de uma constante realização pes soal.

Para isto eu precisei e preciso muito da benção de Jesus, compreensão para crescer, para vencer, para seguir em frente com otimismo, coragem e perseverança.

Meus olhos se voltam a Deus, enquanto o meu coração agradece por ter chegado até aqui.

Hoje minha vida é uma benção. Agradeço a minha família, aos ami gos e colegas que tenho, pois todos me ajudam na hora que preciso e também estão por perto nas horas boas que passamos.

Porém, afirmo que todos nós temos que contar a nossa história, pre cisamos mostrar que podemos ir longe, podemos atravessar horizontes,

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principalmente não ter vergonha de ser como somos. Acredito que vie mos ao mundo para fazer a diferença!

Quem quer mudar de vida consegue, basta querer e correr atrás. Assim continua a minha navegação de vida.

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Conhecendo a ilha de Cuba em 15 dias

Vou relatar aqui algumas percepções sobre minha viagem a Cuba que ocorreu em fevereiro de 2016. Porém, a ideia de conhecer Cuba não veio da noite para o dia; tem uma longa história antes disso que, primei ramente, vou falar um pouco a respeito.

Quando era adolescente, no ano de 1989, muitas notícias do universo político me chamaram a atenção. Um dos fatos marcantes foi a queda do muro de Berlim e um par de anos depois, em 1991, a dissolução da União Soviética. Naquele período também conheci o livro “A Ilha”, de Fernando de Morais, escrito em 1975, o ano em que nasci. A leitura desse livro me estimulou muito e não consigo traduzir em palavras as provocações que este causou em mim na época. Então, da leitura de “A Ilha” nasceu a vontade de conhecer Cuba.

Nasci no noroeste gaúcho e sou filha de pequenos agricultores. Em 1989, meus pais trabalhavam em propriedade arrendada. Não havia, na época, escolas perto de casa e nem transporte escolar. Devido a isso e a vontade de continuar os estudos, meus pais conseguiram vaga em um colégio interno de freiras, localizado na cidade vizinha, para que eu pu desse concluir minha formação no ensino fundamental. Este internato de caridade recebia, na época, filhas de pequenos agricultores para que

5 Professora de Geografia na rede municipal de Sapucaia do Sul, RS. Participou da Feira das Cidades do IFRS Canoas no ano de 2017. E-mail: ecs2207@yahoo.com.br

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tivessem acesso à escola. Foi nesse colégio interno que li meu primeiro livro de literatura e, com isso, a revelação de um mundo e realidades até então desconhecidos.

Fernando de Morais relatou em seu livro que na América Central havia uma Ilha onde a educação estava disponível para todos e para estudar não era preciso sair de casa e deixar sua família. Saí de casa cedo, continuei meus estudos, mas o sonho de conhecer a Ilha de Cuba continuava presente.

Assim, depois de algumas décadas, em 2 de fevereiro de 2016 deco lamos do aeroporto Salgado Filho em Porto Alegre e após sete horas de viagem pousamos no Panamá. Ali foram mais duas horas de espera para em seguida rumar em direção de Havana.

A chegada em Havana foi de madrugada. As ruas estavam escuras, mas apesar disso, eu sentia segurança. Com o amanhecer seguimos para conhe cer a cidade. Chamou-me a atenção a existência de poucos supermercados. Dentro do supermercado os produtos eram caros. As frutas eram vendidas em carrinhos conduzidos manualmente e as pessoas do local faziam filas para pegar refresco, uma espécie de refrigerante local, levando em mãos garrafas para levar o líquido deste refresco.

Aula de música em uma escola. Fonte: arquivo

pessoal

No meio da manhã, as ruas de Havana estavam bem movimentadas, principalmente por turistas de países da Europa Ocidental. Chamou bastante a atenção a leveza urbana de Havana, transmitindo uma at mosfera tranquila. Não existia pressa naquela cidade. Foi possível ouvir a musicalidade da cidade, Havana transpirava, no meu modo ver, cultura. É uma cidade com baixa poluição sonora. O som que embala

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a capital de Cuba é sua música e cultura. Surpreendeu-me a baixa po luição visual, praticamente não existe na cidade placas com anúncios comerciais.

Aqui trago um texto de Frei Betto, que atesto a partir do que vivenciei nos dias em que estive em Cuba, quando ele afirmou:

Advirto os amigos: se você é rico no Brasil e for viver em Cuba conhecerá o inferno. Ficará impossibilitado de trocar de carro todo ano, comprar roupas de grife e viajar com frequência para férias no exterior. E, sobretudo, não poderá explorar o trabalho alheio, manter seus empregados na ignorância, “orgulhar-se” da Maria, sua cozinheira há 20 anos, e a quem você nega acesso à casa própria, à escolaridade e ao plano de saúde. Se você é classe média, prepare-se para conhecer o purgatório. Embora Cuba já não seja uma socie dade estatizada, a burocracia perdura, há que ter paciência nas filas dos mer cados, muitos produtos disponíveis neste mês podem não ser encontrados no próximo devido às inconstâncias das importações. Se você, porém, é assala riado, pobre, sem-teto ou sem-terra, prepare-se para conhecer o paraíso. A Revolução assegurará seus três direitos humanos fundamentais: alimentação, saúde e educação, além de moradia e trabalho. Pode ser que você tenha muito apetite por não comer o que gosta, mas jamais terá fome. Sua família terá es colaridade e assistência de saúde, incluindo cirurgias complexas, totalmente gratuitas, como dever do Estado e direito do cidadão. (BETTO, 2021).

Frei Betto consegue expressar as diferentes formas de ver, observar, interpretar e relatar Cuba. Cada um olha para aquele país a partir da realidade que vive e conhece.

Na passagem em Havana optamos por nos hospedar em casa de fa mílias. Essa foi uma opção barata e interessante. Fazendo assim, conhe cemos um pouco do dia a dia do povo de lá. Reparei que as famílias são extremamente acolhedoras e têm, através da recepção de turistas, uma renda extra. Pagamos 30 CUC (moeda usada para os turistas), para uma diária de um quarto. Normalmente, havia no quarto uma cama de casal e uma cama de solteiro. Ao dividirmos o quarto por três, a diária custa va 10 CUC por pessoa. Na época da viagem cada CUC equivalia a um Euro. Habitualmente, as famílias não forneciam alimentação e optamos por almoçar em restaurantes e para a janta comprávamos pães e frutas da comunidade.

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Havana, Malecon. Vista da casa onde ficamos hospedados. Fonte: arquivo pessoal

Uma pergunta que não quer calar: como pode um país ter tanto com tão pouco? Escola integral, saúde universal, música e esporte em todo lugar, entre outras coisas. O povo cubano aprendeu a valorizar a alimen tação, não há desperdício de alimentos. Aliás, há falta de vários manti mentos básicos. Tenho a impressão de que o país tem como prioridade o fornecimento de comida para sua população.

Nota-se que Cuba aposta no turismo como o setor mais importante da sua economia. Os hotéis destinados aos turistas estão sempre lotados. Todos os dias ancoram em Havana cruzeiros de diferentes países.

Havana, turistas chegando em um cruzeiro. Fonte: arquivo pessoal

Havana, para mim, foi uma experiência apaixonante. Seus carros an tigos lembram cenas cinematográficas de outros tempos. Transmite a impressão de uma viagem ao passado. A frota de carros é antiga e bem conservada. Devido ao bloqueio econômico há dificuldade para impor tar peças e automóveis novos.

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Na capital Havana reina a serenidade. Não há correria e nem estresse e as pessoas nas ruas conversam tranquilas e calmamente. Senti-me bas tante segura naquele ambiente, mesmo sendo estrangeira. As armas de fogo estão proibidas em todo país e o cidadão que for flagrado com uma arma será preso. Não há relatos de homicídios em todo território cubano. A segurança realmente me impressionou. Isso me leva a refletir sobre o quanto a sociedade brasileira perde por tolerar a violência do dia a dia. Você pode caminhar sozinho na madrugada de Havana sem ser perturbado ou ter medo de ser assaltado, uma sensação que, para saber como é, tem que ser vivida. Dei-me conta que desconhecia a tranquilidade e o valor da segurança quando se está na rua.

Realizamos a travessia pela ilha com carro e motorista alugados. A data de fabricação do carro era de 1952. Aqui no Brasil esse carro não passaria de uma valiosa peça de museu de automóveis. O motorista, com formação em comunicação social, e também nosso guia, nos acompa nhou a viagem toda. A partida deu-se em Havana, seguindo para a Baía dos Porcos, Praia Larga e Cienfuegos. Cienfuegos é uma cidade de co lonização francesa com uma arquitetura preservada. Cidade lindíssima, com muitas praças e avenidas largas.

O povo cubano, em 2016, estava bastante motivado com a visita do Presidente Barack Obama, havia esperança de que o bloqueio norte-americano, aos poucos, pudesse ser retirado.

Posso destacar, da minha percepção, alguns pontos que considero posi tivos em Cuba: a segurança, a educação, o povo poliglota e a inexistência de moradores de rua ou usuários de drogas. A escassez de produtos bási cos é o principal motivo de críticas da população ao governo. As pessoas afirmam que o bloqueio econômico é o principal fator, mas não o único. Informaram-nos que, às vezes, falta produto para o tratamento da água das cidades e, por isso, as famílias têm a cultura de sempre ferver a água que chega até suas casas. Em uma das casas onde nos hospedamos, relata ram-nos que é necessário ter a autorização governamental para realizar o abate de um bovino. A prioridade da pecuária é a produção de leite para as crianças e a carne de rês é destinada a pessoas que precisam de dieta especial, como os doentes.

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Mesmo em viagem exerci a condição de professora quando, entre vários outros momentos, procurei observar e analisar a poluição das cidades. Comparado com a região metropolitana, verifica-se que tem pouca produção de lixo, provavelmente influenciado pela escassa dis ponibilidade de produtos industrializados, contrário do que acontece aqui. Embalagens de plástico, como garrafas PET, são raras de serem observadas em lixeiras. As garrafas existentes estão em reaproveitamen to pelas famílias.

Ficou-me evidente que o maior orgulho do povo cubano é a qualidade de sua educação, pois, em sua maioria, afirmam que “éramos uma nação de analfabetos e a revolução nos transformou”. As escolas têm o básico para seu funcionamento e a atmosfera das salas de aula parece bastante serena e calma, tanto para os professores quanto para os estudantes. Em visita a uma escola primária, observamos que, no final do dia, os alunos deixam seu material na classe para continuar no dia seguinte. A professo ra nos relatou que os alunos fazem todas as atividades na escola, o que nós chamamos de ensino integral, e quando as crianças estão em casa é para aproveitar a convivência familiar.

Escola primária na cidade de Cienfuegos e alunos do ensino médio nas ruas de Santiago de Cuba Fonte: arquivo pessoal

É sensata e oportuna uma análise crítica acerca da condição do bloqueio econômico imposto àquele país, que perdura décadas, questionando: como seria Cuba se não houvesse esse bloqueio? Pois se trata de uma sociedade com alta escolaridade (a maior da América Latina?), cujo povo conhece sua história e se vê protagonista do processo

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revolucionário. É um povo que manifesta orgulho da sua cultura, da sua educação, do seu sistema de saúde público e da história revolucionária. Novamente, comparando com o Brasil, quando existem, há poucas far mácias, supermercados, propagandas nas ruas, embalagens no lixo, produ tos industrializados. Acabei conhecendo cerveja, refrigerante e água mine ral, todas estatais. O contrário que temos aqui, uma vez que o consumo é o motor da economia e, por isso, parece estranho existir um lugar no mundo onde isso não seja prioridade, a cultura de consumir.

Para as diferentes regiões do país, nota-se que o consumo não é es timulado, não tem destaque para a propaganda. As crianças não con somem balas e chicletes, é vedada a produção por questões de saúde pública. Não há embalagens plásticas para feijão, arroz, pães e frutas. Cada um que vai às compras de pão, por exemplo, deve levar a sacoli nha de casa.

Na visita ao Museu da Revolução, notamos que há muitas pessoas trabalhando, ou seja, em todos os setores do museu havia pessoas aten dendo e orientando os visitantes. Pareceu-me claro que o propósito ali é atender da melhor maneira os turistas. Quando perguntados, nos infor maram que em todo lugar é assim. Todos têm alguma coisa para fazer e que o Estado precisa prover o emprego. O salário é em torno de 25 dólares e a carga horária é reduzida, às vezes, a jornada é só de dois dias na semana. As pessoas complementam sua renda, normalmente, no setor do turismo.

Há museus na maioria das cidades e estes sempre abertos para visitação. Tivemos a oportunidade de conhecer os museus nas cidades de Havana, Trinidad, Cienfuegos, Santiago de Cuba, Santa Clara, Bayamo e Serra Maestra. Tivemos a oportunidade de observar, em um dos mu seus, múmias egípcias e do Império Inca. Os cubanos enfatizam e des tacam muito, nesses museus, a sua história e a história da humanidade. Nos finais de semana, grupos de alunos fazem passeios históricos nos museus, parques e outros locais de visitação.

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A atuação do Estado mostra-se presente na individualidade dos cida dãos cubanos. O dono da hospedagem D. Pedro, onde fizemos nossa pri meira estadia, nos relatou que ele inicialmente trabalhava na construção civil. Ao passar por problemas de saúde, sob a orientação do médico, ele mudou de atividade e, dessa forma, foi encaminhado pelo Estado para o setor de hospedaria familiar. Em cada bairro ou rua há centros de acolhi mento onde as pessoas podem se dirigir para falarem de suas necessida des que podem ser saúde, alimentação, moradia, etc. O problema de um cidadão cubano é também um problema de Cuba. A cultura da solidarie dade é algo admirável em Cuba.

Há manifestações de descontentamento com setores do governo, mas essa insatisfação parece não diminuir o valor dado pela população à revolução. O motorista nos relatou que, de vez em quando, aparece em muros escritas como “Fora Fidel” ou “Não temos comida”. Quando isso acontece, em pouco tempo, o muro é pintado para apagar as mensa gens. Enquanto isso, ao longo do caminho que percorremos, havia mui tas placas na beira da rodovia com fotos de “heróis” revolucionários e frases salientando a revolução.

Na província de Camaguey, destaca-se o setor agrário, com produção de açúcar, feijão e gado. Há muitas fazendas estatais na produção e pro cessamento de leite e seus derivados.

Cuba tem uma ótima estrutura rodoviária, estradas com boa e eficiente sinalização pelas rodovias e cidades, mas a conexão de internet é muito precária, embora ela esteja disponível, gratuitamente, em praças públicas de cidades maiores. Nos finais da tarde, vimos grandes grupos de jovens se reunirem em praças para acessarem a internet e se comunicarem com familiares que vivem em outras cidades ou outros países. Há muitos estu dantes indianos frequentando as faculdades, principalmente de medicina. A música está presente nas ruas e casas, parece que todo dia é domingo. As pessoas não manifestam estresse ou agressividade. Os moradores são muito prestativos entre si, se ajudam uns aos outros sempre que possível.

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Passamos por cinco províncias e tive a impressão de que passei por uma única comunidade.

Na minha percepção, a diversidade religiosa presente na ilha é algo surpreendente. Há várias religiões cristãs e de matrizes africanas. As igrejas estão abertas na maior parte do tempo, não havendo muitos fre quentadores, mas estão inseridas no cotidiano cubano. Bayamo é uma cidade encantadora, artística e sustentável. Tivemos a oportunidade de falar com uma jovem que trabalhava na faxina de uma das casas onde nos hospedamos. O trabalho de faxina que ela realiza em casas de hospedagem é para complementar a renda, pois atua como assistente social na cidade. Ela disse que gostaria de sair de Cuba para ter uma renda melhor e que o Brasil seria um dos países para o qual ela gostaria de migrar.

Em Bayamo, fomos ao cinema para assistir um filme cubano. Filme “Em Silabar”, de 1998. Na entrada havia uma grade de filmes norte-a mericanos, franceses e cubanos que estavam em exibição naquele cine ma. Os ingressos para os filmes tinham preços simbólicos, considerados muito baratos quando comparados com os praticados nos cinemas bra sileiros.

Santiago de Cuba, cidade mais oriental da ilha é bem movimentada, barulhenta e com trânsito intenso. Visitamos uma escola local deno minada de Unidade escolar 26 de Julho. Antigamente, o prédio era um quartel e prisão. Ainda, junto a essa escola, funciona um dos museus da Revolução. Ficou a impressão de escola com alunos alegres, falantes, interagindo com a aprendizagem. Os pais entram na escola para pegarem seus filhos.

Em Santiago, visitamos também o cemitério de Santa Ifigênia. Ocor reu ali que uma multidão se aproximava do cemitério. Minha curiosi dade foi tamanha e indaguei o vigia acerca do povo que se reunia ali e ele me respondeu que quando uma pessoa morre, além de amigos familiares, também colegas de trabalho são liberados para acompanhar o enterro.

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À noite, assistíamos à TV cubana. Na programação havia desenhos infantis de produção local. A população cubana em sua maioria é negra e eles estão na TV, no governo, na saúde, educação, em todos os setores da sociedade. Aqui no Brasil também temos a maioria da população ne gra, mas não temos a participação dessa população nos espaços televi sivos, políticos e outros setores da sociedade. Dessa forma, foi em visita a Cuba que me dei conta do racismo estrutural presente em nosso país. Já que o assunto é televisão, cabe destacar que as novelas brasileiras são grandes atrações naquele país.

Mesmo criticando o governo, os cubanos parecem celebrar a Revo lução. Eles reconhecem que a revolução foi importante para alfabetizar o povo e amenizar a fome. Muitos foram para a luta e muitos deixaram suas vidas por sonhos de um futuro melhor. Percebe-se que a Revolu ção ainda se manifesta forte na alma e na vida dos cubanos, certamente porque foi pautada na busca pela igualdade e justiça social. Igualdade e justiça são concepções clamadas e buscadas mundo afora todos os dias, mas o povo cubano, mesmo com suas limitações de acesso, parece usu fruir pela vivência diária desses preceitos.

REFERÊNCIAS

BETTO, F. Cuba Resiste!, Revista IHU Online, São Leopoldo, 2021. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/ espiritualidade/78-noticias/611078-cuba-resiste -artigo-de-frei-betto. Acesso em: 2 ago. de 2021.

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Cidade-fantasma, fantasmas da cidade

Hoje eu me peguei imaginando como seria – como será? – falar sobre a pandemia como pertencendo a um passado distante. Eu me imagino daqui a trinta ou quarenta anos, sentada em uma poltrona confortável, uma xícara de café quente nas mãos, batendo papo com os netos que eu ainda não tenho. Eles me perguntam (projeto de escola, talvez?) sobre a vida durante o COVID-19.

– Eu tenho que levar vocês para conhecer Bodie – digo. – Bodie, vovó? – Sim, a cidade-fantasma.

– O que é que têm a ver Bodie e a pandemia? Meu olhar se perde na distância, enquanto rememoro aqueles tempos sombrios.

– Que bom que vocês estão sentados; a história é longa... E eu começo... Bodie, meus queridos, é uma cidade-fantasma aqui na Califórnia. Dá umas cinco horas daqui (de carro). Ela foi fundada em 1876 e chegou a ter uma população de quase 10 mil habitantes. Pensem em uma cidade

6 Paula Biegelmeier Leao (aka Paula Leao Madsen), Mestre em Linguística Aplicada pela UFRGS, Professora de Língua Portuguesa e Inglesa do IFRS Campus Feliz e de Língua Inglesa na Universidade da Califórnia, Berkeley. Participou de diversas edições da Feira das Cidades. E-mail: paula.leao@feliz.ifrs.edu.br

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promissora: ela foi construída ao redor de uma recém-descoberta mina de ouro!

Várias pessoas migraram para Bodie com vistas a enriquecerem. A corrida pelo ouro, o sonho dourado: uma das várias versões do Ame rican Dream. A cidade foi construída com madeira, sonhos e lágrimas. Não é fácil minerar ouro. Não é fácil viver no meio do nada, em uma zona desértica, árida. Poucos fizeram dinheiro; a maioria gastou seus últimos recursos sem sucesso e teve de ir embora, em busca de outro lugar para reconstruírem suas vidas. Bodie, de promissora e convida tiva, tornou-se inóspita, hostil; sua população se reduziu de quase dez mil habitantes em 1876 a zero em 1915. Assim nasceu, cresceu e morreu a cidadela. Os “ossos” continuam lá até hoje: construções antigas, resis tindo, recontando a história de um passado de outra forma extinto. Sim, hoje as pessoas só vão a Bodie para visitar suas ruínas. O lugar é real mente interessante, parece que ficou estacionado no tempo... O Estado da Califórnia reconhece Bodie como um centro histórico e, para uma cidade onde não mora ninguém, até que ela está bem: recebe cerca de 200 mil visitantes ao ano.

Seu avô e eu visitamos Bodie em 2016, quando ainda éramos namo rados. Nosso relacionamento estava em plena época de florescimento, o que contrastava intensamente com a paisagem da cidadezinha. Sol intenso, secura, nem sinal de chuva por meses e meses a fio. Rachaduras no solo. Aridez. Sede.

Bodie é basicamente composta por uma rua principal com constru ções dos dois lados e uma ou outra ruela perpendicular com umas casi nhas esparsas, como que salpicadas aqui e ali. Em pouco mais de uma hora, exaurem-se as novidades – isto é, se você não se permitir digeri-las devagarinho, do jeito que eu gosto. A gente passou umas boas três ou quatro horas lá. Seu avô e eu espiávamos para dentro das construções e ficávamos nos perguntando como teria sido a vida ali. Eu ainda tenho essas fotos. Olhem aqui, aqui era a escola. Olhem como a mesa e as ca deiras eram diferentes. As mesas eram acopladas às costas das cadeiras, então, a pessoa que sentava na cadeira de trás usava a mesa presa às costas da cadeira da frente. Diferente, né? Como eu queria poder abrir

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esses livros pra ver o que ensinavam ali... Quantas perguntas eu tenho! Será que os alunos usavam uniforme? Será que tinham mochila? Acho que não, pensem, isso foi no século XIX...

Figura 1: Bodie, cidade-fantasma na Califórnia, Estados Unidos. -

Figura 2: antiga sala de aula em Bodie, Califórnia.

Fonte: Arquivo pessoal

Olhem como era a igreja. Essa foi a única construção em que pude mos entrar. Bancos em fila, um órgão antigo, empoeirado, na frente, em um canto. Uma mensagem à frente do altar dizendo “praise waiteth for thee o God in Zion” (trecho de um salmo, pelo que eu pesquisei. A tra dução mudou com o tempo também, mas isso não vem ao caso agora).

Figura 3: antiga igreja em Bodie, Califórnia

Figura 4: Mercadinho da cidade-fantasma de Bodie, na Califórnia. Fonte: arquivo pessoal

A minha parte favorita de Bodie foi o mercadinho. Só pudemos espiar pelo lado de fora, narizes colados ao vidro das janelas, tentando absorver as histórias do lado de lá. As prateleiras ainda cheias de produtos de séculos atrás. Séculos. O fascínio de olhar ao vivo esse retrato presente

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de um tempo tão passado ainda ecoa dentro de mim. Bodie, uma cidade parada no tempo.

Parada

no tempo...

Assim ficou a nossa cidade durante as primeiras semanas da pande mia. Isso foi em março de 2020. Lemos nas notícias. Vimos na TV. O susto, o imenso susto, ao recebermos um som de alarme alto e intenso nos celulares (independentemente de operadora ou plano), seguido por uma mensagem que dizia “Serviço de alerta público: ordem de ficar em casa em virtude do COVID-19 estendida até no mínimo 03 de maio”. A região inteira fechou as portas de todas as lojas, todos os restaurantes, todas as casas, dos tribunais... Abertos somente supermercados, farmácias, delegacias, hospitais. Parques vazios. Ruas vazias. Escolas vazias. Parecia uma nova Bodie, uma Bodie diferente, com outro tipo de aridez. Aridez vinda de um intenso temor de desaparecermos.

Figura 5: captura de tela do celular da autora mostrando a mensagem de emer gência recebida em 31 de março de 2020 por todos os habitantes da microrregião de Contra Costa, na Califórnia, sobre o lockdown.

Fonte: Arquivo pessoal

Foram tempos sombrios – em diversos tons de sombra, alguns mais carregados que outros. Desejo de entrar em negação, de fingir que nada daquilo estava acontecendo. Desejo de contato humano. Solidão. Von tade de fugir, de viajar. Voos cancelados. Aeroportos fechados. Vidas em suspenso. Estávamos vivos, mas opacos. Tornamo-nos fantasmas vivos. Viajar é perder-se e reencontrar-se. Viajar é limpeza de alma, é pas sar rascunhos a limpo, é reescrita de destinos com finais, por vezes, imprevistos. A falta que uma viagem faz deixa um gosto de estagnação

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na alma. Pior ainda, para aqueles que têm seres amados longe (no meu caso, na outra ponta do continente), não viajar é quase como desviver, é uma dor visceral em camadas de desejo, saudade e privação. Somando-se a esse sofrimento, não poder nem fazer as pequenas viagens inter municipais, nem as dentro da cidade, ou no bairro, ou mesmo na rua foi um encarceramento extra de corpo e de mente.

Como é que a gente sobreviveu a isso? Eu ainda me pergunto ocasio nalmente. No início, muita esperança (e negação da extensão e gravidade do fato): vimos a população como um todo se unindo para lutar contra o vírus, cada um fazendo a sua parte, ficando em casa. Esperança pueril de que a união faria a força, de que estávamos naquela luta to dos juntos. Depois, vimos a situação começando a mudar: gente recla mando que era muito ruim usar máscara. Gente se negando a manter distanciamento. Gente fazendo festas clandestinas. Vimos várias dessas pessoas sendo hospitalizadas; algumas voltando para casa, outras (mui tas, muitas) não. Vimos o número de mortos ultrapassar o nosso entendimento.

Vimos clamor por vacinas. Vimos vacinas sendo criadas com investi mento e velocidade impressionantes – a tecnologia já existia e, havendo recursos, surgiu logo o produto final. Vimos as vacinas serem dispo nibilizadas gratuitamente. Seu avô fez parte do primeiro grupo a ser vacinado, pois ele trabalhava na área da saúde. Logo a seguir, eu tam bém recebi a oportunidade, pois trabalhava para o governo. Eu estava grávida do seu pai, primeiro trimestre. Houve quem dissesse que não era uma boa ideia, que não se sabiam os efeitos que essa vacina teria na saúde dele. Minha médica recomendou, e eu, confiante nela e na ciência, fui vacinada. Logo, estudos foram publicados demonstrando que bebês de pessoas vacinadas durante a gravidez nasceram saudáveis e com anticorpos contra a doença.

E, choque dos choques, vimos pessoas se recusando a tomarem a va cina em nome de quê? Para alguns, liberdade de escolha e/ou descon fiança da segurança da vacina; para outros, resistência política, como se a vacina tivesse sido criada por um partido específico (não foi) e, por

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isso, os do outro partido não a queriam; para uma minoria, questões religiosas.

Passado um tempo, vimos a vasta maioria das pessoas vacinadas sobrevivendo ao vírus; enquanto hordas de pessoas não vacinadas conti nuavam sendo hospitalizadas, várias delas não resistindo. Vimos cho cantes 99% das subsequentes mortes por COVID sendo de pessoas não vacinadas. E vimos a teimosia de parte da população em não admitir que as vacinas são efetivas; uma teimosia que se estabeleceu como um tentáculo poderoso da pandemia. Um tentáculo que estrangulou mi lhões de vidas.

E eu me lembro de perguntar a mim mesma, ao ler sobre a segunda variante do vírus (que teria sido controlada caso a vacinação tivesse sido abraçada por todos), mais contagiosa, mais severa: será que a gente vai ser a nova Bodie? Será que este país – ou mesmo o mundo – vai se trans formar em uma imensa Bodie?

Voltando para o presente, em meados de 2021. Grávida de sete meses e meio, eu quero poder ter este bebê com saúde e possibilitar a ele uma vida de viagens pequenas e grandes. Que ele experiencie a plenitude do transiente e nela se encontre enquanto pessoa. Quero ter netos e dizer a eles daqui a trinta ou quarenta anos que deu tudo certo, que a gente obviamente não se transformou em uma nova e imensa Bodie. Neste momento, ainda não podemos afirmar nada disso. Fica no meu cora ção, ainda, a esperança (essa teimosa) – e eu torço para que ela não seja igual àquela mina de ouro: promissora, de curta duração e, por fim, abandonada.

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Providence, Rhode Island: um pedaço do mundo7

Marcelo Santos Matheus8 "Viajar é trocar a roupa da alma."

Mário Quintana

O início de tudo...

O doutorado no Rio de Janeiro, com orientação específica (prof. João Fragoso), era um sonho já pensado e elaborado há tempos. No final de 2011, mesmo com a dissertação inacabada, viajei ao Rio para tentar a sorte. Naquele dezembro, quando saiu o resultado da seleção (4º lugar, com bolsa, sem a qual seria inviável realizar o doutorado fora do Rio Grande do Sul, garantida), tudo começou.

Lembro da primeira reunião com o professor João, em março de 2012: “Marcelo, uma das únicas exigências que faço ao meus orientados é que façam sanduíche fora do Brasil! O Estado brasileiro está há anos aumentando o investimento em educação e, ao mesmo tempo, em um esforço de internacionalização de nossos programas de pós-graduação e, logo, a passagem por outra Universidade, em outro país, outra cultu ra, interagindo em outra língua, etc., é essencial não só para o seu de

7 Esse texto é um desdobramento da apresentação intitulada “Providence - Rhode Island (EUA)”, proferida na VI Feira das Cidades / IFRS – Campus Canoas, em 2016

8 Professor de História do IFRS Campus Canoas. Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participou como ouvinte de quatro edições e como comunicador de uma edição da Feira das Cidades. E-mail: marcelo.matheus@canoas.ifrs.edu.br

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senvolvimento como historiador e pesquisador, mas para a própria for mação de quadros mais qualificados para o Brasil”. Retomo essa questão mais à frente.

Dentre as alternativas colocadas à mesa, escolhemos a Universidade de Brown, em Providence, Rhode Island/EUA, sob orientação do prof. Ro quinaldo Ferreira, um dos maiores africanistas (leia-se, historiador que tem como objeto de estudo a história de alguma sociedade e cultura afri cana) vivos9. Roquinaldo deu seu aceite e o processo prosseguiu.

A etapa seguinte foi participar do edital do Programa de Doutorado -sanduíche no Exterior da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão ligado ao Ministério da Educação), para que a saída do Brasil, início dos estudos em outro país e demais questões burocráticas (como a bolsa ser paga no exterior, etc.) fossem organizadas e autorizadas. Por obra do destino, fui contemplado e o pla no de estudos aprovado. Passagens compradas, o passo seguinte seria dado em Providence.

Contudo, antes de embarcar, era necessário providenciar um lugar para morar os quatro meses que ficaria em Providence (uma rápida di gressão: foi ofertada uma estadia de nove meses, todavia, como meu fi lho tinha apenas 6 meses, optei por ficar um tempo menor). Como não conhecia ninguém na cidade, tive que procurar na internet, conversar e negociar até alugar um quarto em uma casa de quatro pisos, onde mo ravam outras seis pessoas.

A chegada aos EUA

Depois de todos os trâmites, em especial no que diz respeito ao passaporte e ao visto para os EUA, em agosto de 2014, embarquei para o sanduíche. Como Providence é uma cidade de médio porte, do ponto de vista do tamanho de sua população (pouco menos de 200 mil habitantes, sendo boa parte deles de estudantes temporários), seu aeroporto quase não recebe voos internacionais. Assim, fiz escala em Boston, distante uma

9 Ainda não mencionei: meu tema de pesquisa é a história da escravidão no Brasil, entre o final do século XVIII até sua abolição, em 1888. Não irei tratar ou aprofundar tal assunto, que será abordado marginalmen te ao longo do texto, pois o foco aqui é outro – minha experiência em Providence

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hora de Providence, onde aguardei por duas horas, até o horário de saída do ônibus. Enquanto lanchava, lembro-me de ouvir uma jovem ao lado conversando com seu pai. Ela argumentava, quase implorando, para que ele a deixasse fazer a graduação na Universidade de Stanford, na Cali fórnia, ou seja, do outro lado do país. Nada mais filme estadunidense na sessão da tarde. Nada mais cliché.

Chegando em Providence, fui recebido na rodoviária pelo prof. Ro quinaldo e sua família, que me levaram até à casa que aluguei para verificar a segurança, a seriedade de quem me alugou o quarto, etc. Essa foi uma característica da forma com que Roquinaldo me tratou, muito além de suas obrigações como orientador: me convidava para almoçar em sua casa, organizava reuniões com outros docentes para me apre sentar e, por último e mais importante, recebeu-me em sua disciplina ministrada naquele semestre, sobre abolição da escravidão em diferen tes partes do continente africano.

Recebido na casa pelo proprietário, logo conheci meus colegas de habitação: um americano, integrante do partido democrata e defensor da causa LGBT; outra americana, filha de vietnamitas refugiados da Guerra do Vietnã (1955-1975); uma francesa, que trabalhava com cinema; e, por fim, um indiano que morou apenas um mês enquanto estive lá10. Não é preciso dizer que essa diversidade foi enriquecedora.

1. Feira de produtores rurais [ao fundo], com música ao vivo.

2. A WaterFire11, festa realizada anualmente em Providence. Fonte: arquivo pessoal

Providence, por sua vez, se mostrou uma cidade muito tranquila e agradável, recheada de parques. Como cheguei no verão, diversos even

10 Com o casal que morava separadamente no térreo não tive nenhum contato

11 Para mais informações, ver: https://waterfire.org/

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tos estavam sendo realizados aos finais de semana, como é possível ver na imagem acima.

Aliás, a ocupação de espaços públicos é a tônica em Providence. Desde a revitalização do rio Providence, utilizado de maneira recreativa e des portiva pela população (vide Anexo I), até mesmo a maior festa anual, a WaterFire. Essa última tem uma especificidade: preconiza e incentiva a ocupação do centro à noite, quando são realizados diversos eventos, ban cas para a comercialização de comida e bebidas são montadas e, o auge da noite, um show de fogos sobre a água é realizado.

Em razão do bairro onde morava, e onde ficava a Brown, ser razoa velmente plano e sem muitas ladeiras, comprei uma bicicleta nos pri meiros dias, a qual utilizava para passear e ir à universidade e às biblio tecas. Óbvio que ela não me acompanhou no retorno, sendo revendida antes de voltar ao Brasil.

Finalmente, a gastronomia: Providence, apesar de não ser um grande centro urbano, em razão da universidade e da diversidade de nacionalidades que passam por ela, tem muitos restaurantes especializados em diferentes culinárias. Dentre aquelas não muito afeitas a um brasileiro, em um dia, a convite da colega de casa, provei comida vietnamita. Em razão de Roquinaldo ser fanático em comida indiana, diversas vezes fui a restaurantes com essa especialidade. Porém, o que mais frequentava (por gosto e em função do preço) eram os restaurantes de comida mexicana (único lugar que encontrava o famoso feijão!).

A Universidade de Brown

Nos EUA, se convencionou a chamar de Ivy League algumas das mais antigas e prestigiadas universidades do país. Fundada em 1764, Brown faz parte desse seleto grupo12. O nome vem da família Brown, cofunda dores e alguns dos maiores incentivadores e investidores da universida de no seu início.

12 As demais universidades que compõe a Ivy League (ou “Liga da Hera” – a planta que cresce em paredes, algo comum em prédios dessas instituições) são Columbia (que fica em Nova Iorque), Cornell (Ithaca-NY), Dartmouth (Hanover, estado de New Hampshire), Harvard (Boston), Pensilvânia (Filadélfia), Princeton (Princeton, no estado de New Jersey) e Yale (New Haven, no estado de Connecticut).

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Curiosidade: Rhode Island era um dos maiores portos receptores de africanos escravizados dos EUA. Enquanto John Brown era um rico co merciante de seres humanos, seu irmão, Moses, era um abolicionista.

Brown tem mais de 7 mil alunos. Muitos, muitos, mas muitos deles estrangeiros. Outra curiosidade: pelo observado, cerca de 50% desses estrangeiros eram coreanos, chineses e indianos. Era, e continua sendo, impressionante o investimento desses países para que seus estudantes ganhem experiência internacional e, depois, retornem para seu país, contribuindo para o desenvolvimento da nação. Mas, para isso, é neces sário um mercado (não só de consumo, mas a promoção de sua indús tria também) interno aquecido...

A Universidade tem mais de 200 prédios, distribuídos pelo bairro onde está inserida. Além de um campus central, casas antigas e históri cas ao redor dele servem de sala de aula, algo que fornece um charme todo especial à Brown.

O primeiro passo para o aluno estrangeiro é fazer o cartão para poder circular pelos diferentes recintos e, mais importante, bibliotecas da Universidade (Anexo II). Assim como seus prédios de sala de aula e administração, o sistema de bibliotecas de Brown também é descentra lizado. Há sete delas.

Em frente ao prédio histórico da John Carter Brown Library. Manifestação na Universidade de Brown em repúdio ao desaparecimento de jovens mexicanos.

Fonte: arquivo pessoal

No tempo que estive em Providence, a que mais frequentei foi a John Rockefeller, onde estava boa parte do acervo que necessitava para minha pesquisa (leia-se, obras sobre a história da escravidão no Texas, uma zona fronteiriça e com criação de gado, da mesma forma que o Rio Grande do

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Sul, foco do meu trabalho). Dentre as bibliotecas, grande destaque para a John Carter Brown, cujo acervo de obras históricas é impressionante. Lembro que, durante uma visita guiada em que acompanhei Roquinaldo e o historiador João José Reis, então professor da Universidade da Bahia, o curador expôs um dos poucos originais de Cultura e Opulência no Brasil, de André J. Antonil, do século XVIII, adquirido pela biblioteca por “200 mil dólares”, nas suas palavras13.

Além da grande diversidade de nacionalidades/culturas, uma das experiências que mais me marcou na Universidade de Brown foi uma ma nifestação de repúdio a uma tragédia acontecida no México. Em 2014, 43 estudantes mexicanos desapareceram. Conforme a versão oficial do governo, os jovens foram presos pela polícia de Iguala em setembro e entregues a um cartel de drogas, que os assassinou e queimou seus cor pos.

Em sua homenagem, e em apoio às investigações, 43 cadeiras com os rostos dos desaparecidos foram colocadas no pátio da parte central da Universidade. Infelizmente, até hoje, setembro de 2021, as famílias procuram por seus corpos14.

O curso de inglês e a International House of Rhode Island

Durante um ano, antes de ir para os EUA, frequentei aulas de inglês no Brasil, já que havia encerrado o curso de línguas há bastante tempo. Ainda assim, em Brown aproveitei o curso oferecido pela International House para estudantes estrangeiros.

O curso tinha uma dinâmica bem simples: a professora levava um texto, que todos deveriam ler e, logo após debatê-lo, aprimorando assim a língua inglesa. Um dos aspectos mais legais das aulas era a diversidade da origem dos frequentadores: tive colegas da França, Laos, Colômbia, Brasil, Itália, Coréia do Sul, China e outros que a memória agora não alcança.

13 Sobre a obra, ver: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/222266#:~:text=Livros%20raros-,Cul tura%20e%20opul%C3%AAncia%20do%20Brasil%2C%20por%20suas%20drogas%20e%20minas,es tes%2C%20e%20outros%20generos%20e

14 Sobre a questão, ver: https://noticias.r7.com/internacional/pais-de-43-jovens-que-sumiram -no-mexico-em-2014-buscam-respostas-27042021

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Com efeito, foi marcante o dia que a teacher levou um texto sobre mulheres estadunidenses que entram em depressão, pois querem en gravidar, entretanto, têm medo de perder o emprego, já que não há lei trabalhista que garanta tal direito em todos os estados. Lembro-me da dificuldade de explicar para a professora que, em boa parte do mundo, o “Dia do Trabalho” é no 1º de maio muito em função de um (tris te) acontecimento que havia ocorrido nos... EUA, onde não é feriado! Mesmo com a ajuda do colega Alan, paraense e doutorando em antropologia da USP, com quem fiz amizade, foi difícil fazê-la entender tal questão, pois “nunca tinha ouvido falar sobre isso”.

Sendo recebido pelos anfitriões no Thanksgiven, organizado pela International House.

Fonte: arquivo pessoal

Outra rápida digressão: em uma janta, onde a francesa que morava co nosco fez panquecas francesas, também foi complicado explicar para os estadunidenses que moravam com a gente não só sobre as leis que garan tem férias e licença maternidade, mas também descanso semanal remunerado, 13º, previdência, etc. Mesmo com a ajuda da cozinheira, já que na França também existem esses direitos, fiquei com a impressão que eles acharam que estávamos inventando – essa triste realidade dos EUA, ao lado da falta de um sistema público de saúde, é pouco mencionada, tanto no senso comum quanto em filmes hollywoodianos, que só exploram aspectos positivos do país. Sobre as “panquecas francesas”, tinham gosto muito parecido com as panquecas feitas por minha avó, mas achei melhor não fazer tal comentário...

A International House, além do curso de inglês, oferecia uma vez por mês (a um custo bem razoável) um “jantar internacional”, do ponto de vista da culinária. No tempo que estive em Providence fui em dois: um

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com comida argentina e outro com refeição típica da Alemanha. Além destes, poucos dias antes da data de meu retorno, a International Hou se organizou o famoso Thanksgiven (comemoração do dia de Ação de Graça).

O mais interessante destes encontros era com quem era realizada a confraternização. Não havia lugares marcados, ou seja, a mesa e o lu gar que você ocupava era por chegada. Assim, você podia ficar ao lado de alguém da Alemanha, Gana, Inglaterra (alguns dos que lembro com quem conversei) ao longo do jantar. Assim, se Providence, muito em razão da Universidade, era um pedaço do mundo em solo americano, a International House era um dos locais por primazia onde esse mundo se encontrava, dialogava e confraternizava.

O time de futebol

Essa impressionante interação entre pessoas oriundas de diferentes culturas se fez presente também em outro campo, literalmente: no fute bol. A Universidade de Brown tem uma vida desportiva bastante agita da. Do ponto de vista das competições, ela joga apenas contra as da Ivy League, já que essas instituições não são propriamente especialistas em produzir grandes jogadores para as ligas profissionais. Lembro que, nos meus primeiros dias em Providence, assisti a primeira partida de futebol americano da temporada, entre Brown e Harvard.

O interessante é que os espaços (quadras, campos, etc.) ficam abertos à noite e aos finais de semana para a prática de esportes. É nestes mo mentos que, por exemplo, um campeonato interno de futebol é realiza do entre os estudantes da Universidade, inclusive os estrangeiros. Quem me convidou para participar foi o já mencionado Alan.

O Leftlovers (nunca quis perguntar o porquê do nome) foi mais uma experiência da impressionante diversidade existente em Brown. No time havia dois brasileiros, três italianos, um egípcio, um equatoriano, um finlandês (o organizador e capitão do time), dentre outros. No já congelante novembro de 2014, sagramo-nos campeões! Um esforçado estudante de história, mas medíocre jogador de futebol no Brasil, tor nou-se artilheiro no time campeão daquela temporada.

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Leftlovers, campeão do torneio de futebol interno da Universidade de Brown. Fonte: arquivo pessoal

Palavras finais

Em razão da proximidade com Boston, Nova Iorque, Filadélfia, Prince ton, dentre outras cidades, a estada em Providence propiciou a realização de outras viagens de cunho cultural. Em Boston, pude passear pelas partes históricas e assistir uma partida do Boston Celtics (quando caiu a ficha do quanto nossos clubes de futebol têm que aprender sobre entretenimento com as ligas desportivas dos EUA). Em NY, tive a oportunidade de ir à exposição “Genesis” de um dos maiores brasileiros vivos, Sebastião Salgado, no International Center of Photography Museum. Esticando a viagem, fui visitar um amigo que, como eu, estava realizando sanduíche, mas na histórica Universidade de Princeton, de onde fui para também conhecer a histórica Filadélfia.

Por fim, uma última impressão: durante minha estadia e experiência na Universidade de Brown, ficou nítido que todas as nações que têm um projeto de Estado, de desenvolvimento, investem para que as gerações futuras adquiram experiência internacional, conhecimento para além daquele ensinado dentro de suas fronteiras, enfim, investem em edu cação, pesquisa, ciência e tecnologia a fim de que o futuro do país seja de desenvolvimento, oportunidades e de soberania no cenário interna cional (e a pandemia está nos mostrando duramente o que é ser depen dente da produção externa de insumos, materiais, seringas, luvas, vacinas, etc.). Quando fui para o doutorado sanduíche, o Brasil estava nesse momento. É curioso lembrar disso, pois enquanto estava fora ocorria a eleição para presidente de 2014, a qual todo o mal (i.e., a utilização da internet e das redes sociais para disseminar mentiras, manipulando o

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jogo político) que estava por vir começou, ainda que de maneira tímida, a colocar a cabeça para fora do esgoto de onde nunca deveria ter saído.

Esse apontamento/lembrança não é (apenas) um lamento. Apesar do que já foi dito, a História não tem fim e momentos tristes, como os atuais, passam. Portanto, a mensagem deixada para os estudantes de Ensino Médio e Graduação não é de pessimismo, mas de que as con quistas/direitos obtidos hoje são fruto de batalhas e vitórias de gerações passadas. Assim, se baixarmos a cabeça e desistirmos da luta por um país menos injusto e mais inclusivo, democrático e desenvolvido, nosso legado será negativo. Do contrário, se soubermos absorver derrotas mo mentâneas e não desistirmos da luta, gerações futuras se beneficiarão de conquistas que, no curto prazo, podem parecer irrisórias. Como disse, a História está sendo escrita. E desistir dela não é uma escolha. Ao menos espero que não.

Fonte: Arquivo pessoal

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O ser mochileiro

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um guia para a viagem e para a vida, com relato Iúri Baierle Bertollo15

Quem nunca quis largar tudo em um momento de estresse e viajar o mundo para o resto da vida? Ou mesmo vender sua arte na praia, mes mo sem ser um bom artista? Indo mais além, quem nunca quis comprar uma kombi e transformar em um motorhome? Muito bem, esse sou. Entretanto, já adianto que não fiz nada disso, ainda...

O objetivo desse texto, além de fazer um breve relato é instigá-lo a viajar – independentemente de suas condições – é chamá-lo pelo seu instinto pré-histórico de nômade e por seu desejo de conhecimento, para aprender, para ser livre e, sobretudo, nos últimos tempos de doenças e sobrecargas mentais, chamá-lo para o autoconhecimento. Por isso, para facilitar a organização, o texto será separado em tópicos introdutó rios e, posteriormente, dois relatos.

Mochilão

Esse é um termo que caiu em popularidade há algum tempo, crian do termos adjacentes e alterando/criando significados, então criarei um significado próprio de acordo com os meus mochilões. De acordo com as vozes da minha cabeça, o mochilão é um estilo de viajar que se asse

15 Iúri Baierle Bertollo, Avicultor, Gerente de Pousada e Mochileiro/Trilheiro nas horas livres. Estudante de Engenharia Química, Licenciado em Matemática e egresso do curso Técnico em Agropecuária do IFRS Campus Sertão. Participou da VIII Feira das Cidades. E-mail: iuri.bert@gmail.com

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melha ao minimalismo, tendo o mínimo de consumo e gastos possíveis, afinal, quanto menos gastar, mais tempo para viajar. Isso quer dizer que você passará fome? Não, mas quer dizer que você preferirá trocar uma porção de camarões em um bistrô rotativo por um lanche enquanto caminha. Quer dizer que irá preferir um hostel a um hotel com café da manhã farto, ou mesmo, aos mais “raízes”, acampar em lugares al ternativos (praias, montanhas, campings gratuitos...). Quer dizer que irá preferir pegar carona com desconhecidos a ônibus, até vai preferir caminhar a pegar ônibus.

Precisa ser radical e não gastar nada em uma viagem? Claro que não! Cada um opta por algum estilo de viagem que não necessariamente está “catalogado”, afinal, cada um tem suas experiências, seus gostos e estilos, e o principal objetivo do mochilão é justamente esse: o autoconheci mento; principalmente quando se viaja sozinho. Conhecer-se é tão im portante e te torna uma pessoa melhor, mais autoconfiante, mais alegre e com a autoestima elevadíssima, te dá autonomia para fazer tudo que queiras sem depender de ninguém.

Dinheiro

Ok, vamos começar pelo básico e, provavelmente, o mais importante. Eu poderia dizer que o dinheiro não é fundamental em uma viagem, entretanto isso seria utópico e até falso. O dinheiro é importante, o di nheiro traz conforto e comodidades e também salva vidas.

Em contrapartida, posso afirmar que o dinheiro não é fator limitante, apesar de ser fator determinante em muitos casos. O importante é estabe lecer um orçamento para a viagem que caiba em seu plano de gastos (e, aliás, viajar é investimento!) e não fugir desse orçamento. Precisamos sa ber quanto temos para gastar e estarmos conscientes que não poderemos fazer todos os passeios de determinado destino - com essa consciência, viajar será muito mais leve e feliz.

Todos já ouviram ou leram a frase “As melhores coisas da vida são de graça”. E isso faz todo o sentido, afinal, são os momentos que marcam, e momentos são grátis (na maioria das vezes), uma conversa, um sorriso, uma caminhada, a paisagem da janela do quarto, um banho de cachoei

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ra... São momentos que fazem o todo e são momentos que marcam nos sas memórias, por isso, tente fugir um pouco da vida de Instagramer e aproveite a vida que não é tão instagramável assim.

Antes de qualquer compra, pergunte-se: “Eu realmente quero isso? Eu realmente preciso disso?” Se a resposta for sim para ambas as per guntas, provavelmente você deva comprar, do contrário, repense. Sem pre uso essa tática de “cambiar” o valor das coisas em tempo. Afinal, para conseguirmos dinheiro precisamos investir tempo no trabalho e, portanto, pergunto-me, por exemplo: “Eu trabalharia uma hora inteira para tomar essa caneca de chopp?” Com essa relação, torna-se mais evi dente qual o verdadeiro valor do dinheiro.

Claro que ninguém aqui precisa ser um Tio Patinhas da vida, mas são maneiras de repensar os gastos, que podem ser usados na viagem ou em qualquer momento da vida.

Itens indispensáveis

Provavelmente todos nós já tenhamos alguns itens ou acessórios que consideramos essenciais como, por exemplo, o smartphone, indispen sável a qualquer viajante. É por meio do smartphone que será realizada a pesquisa pelo destino, pela hospedagem e por corrida por aplicativo, que serão realizadas possíveis reservas, fotografias, cálculos, lembretes, anotações, controle de gastos, comunicação e também será o smartpho ne seu possível passatempo, seja por um E-book, jogo, vídeo ou mú sica. É o smartphone, desde que bem usado, que facilitará a viagem e, portanto, também considero indispensável um carregador portátil, caso decida ficar mais que um dia sem pousada.

Nem é necessário comentar sobre os produtos de higiene pessoal, certo? Pasta e escova dentais, perfume, papel higiênico (que, aliás, ser ve como guardanapo e como pano também), desodorante, sabonete, gel para cabelo e pente sempre carrego comigo, mas outros itens são adicio nados, a depender do destino, como protetor solar, repelente e xampu.

Lembre-se: a aparência e primeira impressão ajudam muitíssimo, esteja cheiroso!

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A toalha, já dizia no Mochileiro das Galáxias, é um dos objetos mais úteis para um mochileiro, além de sua função original, pode ser usada como cobertor, travesseiro, pano para “banho de gato”, esteira para sentar/deitar na praia, dentre outras funcionalidades. Ultimamente, venho substituindo a toalha por uma canga, mais leve, que implica em secagem mais rápida, e tem a estampa da bandeira do Brasil, o que facilita na hora de pedir carona, principalmente, no exterior.

O restante dos itens é alternativo a cada pessoa, tem gente que não vive sem uma faca junto, ou sem um alicate. Eu, por exemplo, sempre tenho um kit de primeiros socorros, que envolve agulha, pinça, espara drapo, gaze, cortador de unha, algum remédio para dor e febre e colírio, também sempre carrego algum lanche, água e, muito provavelmente, estarei com um “kit cozinha”, com uma panela pequena, ebulidor elé trico (vulgo “rabo quente”), isqueiro e talheres, para fazer refeição em quase qualquer lugar.

Gostaria de contar todos os rolês já feitos, com detalhes, desde os mais simples aos mais sórdidos. Todavia, por formalidades, relatarei apenas dois episódios que considero marcantes.

Relato 1

Acordei cedo, relutante com o despertador, afinal, a noite passada havia sido muito cansativa. Estava no sótão de um chalé, na montanha. A cidade era El Bolsón, na Argentina, cidade cuja existência só soube na noite anterior, quando peguei um ônibus em Bariloche às pressas - meu destino era outro.

O café da manhã, ao invés de ser o farto café da manhã com ovos mexidos e chimias que estou acostumado, foram pães secos e torrados, pois era o que tinha. Mesmo assim, estava empolgado, iria finalmente conhecer um glaciar que estava naquela montanha, acordei elétrico e nada pode ria me tirar isso, coloquei no maps rapidinho a distância até o glaciar e acusou 12 km de caminhada na montanha. Ora, 12 km é uma distância tranquila, em 2 horas estarei apreciando o glaciar.

A subida, relativamente íngreme, era por estrada de terra, onde po deriam passar alguns carros para eu pedir carona. Contudo, nenhum

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carro por ali passou, obviamente não perdi o foco nem a alegria, pois sou muito teimoso. Após um longo tempo de caminhada, cheguei em um estacionamento que sinalizava para onde seriam as trilhas e, para minha alegria, havia um carro estacionado. “Não morrerei só”, pensei. Depois do estacionamento a trilha seguia, mas dessa vez só era possível a pé. Sem problema. Subindo o bosque por uma trilha estreita, sopra, de repente, um vento extremamente frio e forte, teria congelado, se não estivesse usando uma segunda pele e um casaco apropriado para o frio. Junto com o vento, vieram os primeiros flocos. ESTAVA NEVANDO em setembro, nunca senti tamanha felicidade por alguns míseros flocos de neve, continuei subindo a trilha com um sorriso de orelha a orelha indes critível, saltitando enquanto corria morro acima em meio à neve que caía. A intensidade foi aumentando e eu cada vez mais feliz, até que o casaco ficou molhado e o frio já ficava em contato com a pele. Nessa parte da trilha, com uma nevasca tremenda e com o vento cortando, pensei em desistir, a neve já cobria toda a trilha e não havia como saber para onde ir. Ou eu subo, olho o que tem para olhar rapidinho e volto, ou volto logo e garanto não ficar em estado de hipotermia. Obviamente decidi continuar, afinal, “Eu não vim até aqui, pra desistir agora...”, como diz a canção. E se gui, tremendo de frio, mas ainda feliz por estar presenciando uma nevas ca daquela magnitude. Passei por um bosque onde fizeram esculturas nos troncos de árvores queimadas e, vendo aquilo deserto, coberto de neve, parecia cena de filme de terror, com esse pensamento, um calafrio percor reu meu corpo. Pensei em me esconder na entrada do bosque, onde havia um quiosque, mas totalmente fechado, então dei uma olhadinha super -rápida a ponto de não guardar memórias fortes das esculturas e segui a trilha, cada vez mais ao alto.

Continuei resvalando no gelo que estava se formando abaixo da neve e, prestes a desistir, avistei uma casinha. Era um refúgio na montanha, teria corrido em direção a ele, mas estava difícil até para caminhar, então fui caminhando mesmo, ainda na nevasca, com os flocos “cain do” na horizontal e dependendo do vento, os flocos subiam, formando uma dança gelada. Não tinha sinal de vida dentro do refúgio, fiquei um tempo do lado de fora em um toldo, apareceu um gatinho todo cober-

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to de neve, não entendi como ele estava ali, sem passar tanto frio. Dei um pouco da minha água para ele, afinal, sem chance de tomar água já congelando, ele tomou e ficamos esperando, até que apareceu um homem, bonito e de porte atlético, ele abriu o refúgio e pediu para que eu entrasse. Este era o dono do carro que estava no estacionamento, mas não era o responsável pelo refúgio, apenas foi dormir no refúgio e, coincidentemente, estava hospedado no mesmo hostel que eu.

Antes de me acomodar no refúgio, segui mais um pouco, meu objetivo era o glaciar e não desistiria tão fácil. Continuei subindo até que não dava para enxergar mais que dois metros na frente, de tão branco que estava era como se eu fosse um pontinho preto em uma folha A4. Em seguida, pisei em um buraco que estava coberto de neve e me afundei até a cintu ra, encarei isso como um sinal e decidi voltar para o refúgio. Essa era a descida mais íngreme até então e, por estar coberta de gelo e neve, caí e desci escorregando de bunda por cerca de 30 metros, foi bem divertido e acabei rindo de mim mesmo por um tempo, pensei em voltar para fazer novamente, mas não conseguiria subir o gelo.

Voltei ao refúgio e o camarada ainda estava lá, conversamos um pou co e ele comprou um vinho Latitud 33° do Refúgio para nós, pois havia uma vendinha de emergência e o dono do Refúgio já chegara para acen der o fogo. Nos esquentamos no fogão a lenha enquanto meu casaco, luvas e meias secavam e a nevasca diminuía.

São nesses momentos que eu olho para o Universo e vejo como a vida é linda; as probabilidades de ter encontrado ele, de ter encontrado o Refúgio e de ter presenciado uma nevasca eram mínimas (já fica a dica para ficarem de olho na previsão de neve quando vão para regiões montanhosas), mas aconteceu e deixou a minha vida mais feliz, junto ao sentimento de segurança por não estar sozinho e poder estar prote gido do frio. Quando a nevasca passou, descemos até o estacionamen to, entre um tombo e outro, algumas fotos e uma guerrinha de bola de neve e ele me cedeu carona para retornar ao Hostel, então colocamos as correntes nos pneus e partimos. Foi um bom retorno, admirando toda a neve atrás de nós e o gelo na pista em nossa frente. Em comemoração às novas amizades, juntamos todo o pessoal do Hostel e fomos para um

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bar, tomar uma “pinta” (cerveja), a propósito, as cervejas da Patagô nia são excelentes e dançar tango (nenhum de nós sabia dançar tango). Quando voltamos ao hostel, dormi enquanto esperava a fila do banho e só acordei no dia seguinte com todos rindo da posição que dormi hahaha (risada amarela).

Relato 2

Verão, todo mundo ama praia, sol e usar poucas roupas. Aproveitan do a melhor estação do ano para ter férias, fui para o litoral catarinense, apesar de meu destino inicial ser a Chapada Diamantina. Sem muito tempo para ir tão longe de carona, fui para Santa Catarina utilizando a Identidade Jovem (outra super dica para quem quer viajar de graça) e paguei o total de zero reais. Alguns dias após passar em Ponta Grossa (PR) e Balneário Camboriú, onde descobri a maravilhosa Praia do Pi nho, uma praia naturista, peguei um ônibus interurbano e fui até Porto Belo, sem saber muito o que havia por lá. Chegando já de noite, sem ter onde ficar, passei no mercado antes que fechasse e comprei um lanche e café da manhã, falei com o dono de um foodtruck para pedir informação, por exemplo, se podia acampar na areia, se era seguro. “Poder não pode, mas algumas pessoas acampam embaixo do píer”, disse ele. Era tudo que eu queria saber, se tem quem fez, é porque eu posso bancar o doido caso alguém venha me questionar.

Montei a barraca embaixo do píer, dessa vez eu estava em um mochilão carreira solo e foi maravilhoso tirar esse tempo somente para mim, para fazer o que bem entender. Peguei uma lanterna e continuei len do “O clube da luta”, livro que estava me cativando, apesar de não ter

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achado o filme tão bom. Dormi ao som das ondas calmas do mar e com o livro no meu colo, o clima estava muito agradável, a ponto de preci sar dormir com um casaco. Ao amanhecer, fiquei um tempo acordado dentro da barraca enquanto ouvia alguns murmúrios do estilo “Olha, alguém está acampando ali” e ouvia os passos de quem caminhava e corria por ali, como exercícios matinais. É maravilhoso perceber que o mundo inteiro não precisa de você para seguir girando, e estar ciente disso é libertador para fazer muitas coisas, pois tira muita responsabilidade desnecessária dos ombros.

Ao abrir a barraca havia um morador de rua que vendia pulseiras.-” Ah, Iúri, como você sabe que era morador de rua? Está julgando as pessoas”. Calma jovem, explico. Ele me ofereceu as pulseiras que já tinha feito e, como não uso adornos, recusei. Então ele insistiu que eu o ajudasse a comprar o café da manhã, com algum dinheiro. Abrindo a carteira, dei uma nota de dois reais para ele, não tinha muito e ofereci esse valor por que já estava ficando com medo (hehe). Eu sabia que esse valor não seria para o café da manhã, mesmo assim não quis discutir, ele saiu e logo de pois apareceu na minha frente outra vez, pedindo dinheiro mais uma vez. Achei desaforo isso, expliquei que acabei de dar dinheiro para ele e ele insistiu, ofereci as moedas que tinha no bolso ainda, que não eram mui tas, e ele me deixou em paz.

Desmontei a barraca, arrumei a mochila e fui pegar o primeiro barco para a Ilha de Porto Belo em um trapiche mais distante, onde a traves sia era mais barata. Antes de chegar ao trapiche de embarque, ouvi uns assobios e, como sou do interior, acostumado só com assobios de pássa ros, olhei para a fonte do som como um suricato. Era o morador de rua que acabara de me usurpar.

Ele estava sentado na beira da praia junto com um amigo e fumando um baseado, logo pensei que aquele baseado era o meu dinheiro, mas nada de não se admirar. Ele me chamou e acabei indo ao encontro deles sem nem saber o que me motivou a ir falar novamente com ele.

Ele me agradeceu muito porque fui o primeiro a dar dinheiro para ele, me apresentou a seu amigo e me ofereceu um “tapa”. Eu, como educado que sou, aceitei. Nunca gostei de maconha e, provando aquele baseado,

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me recordei o porquê: coisa ruim demais. Inventei alguma desculpa e fui pegar o barco para fazer a travessia. Como ainda era bem cedo, fui sozinho na embarcação, aproveitando a brisa do vento, enquanto a outra brisa batia, foi um momento bem feliz, a propósito. Sentia como se fizesse parte do oceano ao mesmo tempo em que sentia o mar sob meus pés.

Ao desembarcar na ilha, percebi que fui o primeiro turista a chegar, inclusive junto com os trabalhadores de lá. Explorei a ilha e, quando estava estirado na areia tomando banho de sol e aproveitando aqueles momentos de liberdade e privacidade, percebi que estava chegando um barco pirata no cais, era o primeiro grupo de turista que estava chegan do e, quando desembarcaram todos, foram chamados para a praia cen tral por um animador - Eles eram argentinos, assim como quase todos em Santa Catarina no verão. Fiquei muito empolgado em ver a alegria deles e o animador do grupo os chamou para começarem a dançar.

O animador, nitidamente brasileiro, estava falando em espanhol e convidou todos para dançarem que estaria valendo alguns brindes para os melhores dançarinos. Ouvi isso mesmo? Brindes? Levantei-me e fui dan çar ao lado da melhor idade, o único de sunga em meio a tantos maiôs e shorts. Ganhei o primeiro lugar dos homens e o animador me chamou ao palco improvisado na areia para me dar o brinde, era um vale tirolesa e quando fui agradecer, agradeci em um péssimo portunhol - o que eu estava pensando? Que estava em Buenos Aires?

Fiquei mais um tempo dançando e aproveitando as boas energias, depois fui ao museu da ilha, onde tinha um esqueleto de preguiça gi gante, e fiz uma trilha que dava a alguns mirantes e a pinturas rupestres. Aproveitei o resto da ilha e fui descer na tirolesa antes de voltar ao con tinente. Apesar de curta, o melhor da tirolesa foi uma breve conversa com a instrutora que comentou já ter pulado de paraquedas e disse que foi a melhor sensação do mundo, iniciou naquele dia minha obsessão por pular de paraquedas.

Já no continente, meu plano era seguir para Bombinhas, então fui para o mercado comprar algum lanche e seguiria a pé. Uma rua antes

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do mercado, quem encontro? Snoop, o morador de rua de antes, ele me chamou novamente para conversarmos e como já estávamos bem ami gos, aceitei. Falei que iria comprar um miojo e ele disse que isso não se comia, pois dava câncer, então me ofereceu uma esfiha que tinha ganho de uma senhora e comprou uma garrafa de 51 para bebermos enquanto conversávamos - SIM, GANHEI COMIDA E BEBIDA DE UM “MEN DIGO”. Como não havia copos, ele pegou uma garrafa PET de água de 500 ml que foi jogada no canto da calçada, cortou com seu canivete e lavou com um pouco da própria cachaça e, prontamente, já tínhamos dois copos para virarmos pequenos goles enquanto conversávamos. Passou-se um tempo e outro morador de rua aproximou-se, ficou um tempo conversando conosco e voltou a fazer seja lá o que estava fazen do. Conversando com Snoop, notei como era inteligente, sabia muito de história, inclusive história da Argentina e do Chile, já viajou por muitos lugares e, pasmem, me contou quanto ganhava vendendo pulseiras - na quele dia ganhou mais de 100 reais trabalhando só de manhã, havia dito que em média, no verão, ganhava 80 reais. Depois de algum tempo, fui ao mercado, mas dessa vez não comprei miojo e, sinceramente, foram poucas vezes desde então que comi macarrão ou outras comidas instan tâneas. Despedindo-me do Snoop, segui meu destino a pé e abandonei esse amigo nada convencional que me lembrarei para sempre.

A reflexão é que a mesma pessoa que senti medo no início, mas ajudei relutante, ajudou-me de bom grado e mostrou ser alguém totalmente diferente dos meus estereótipos postos sobre ele e, convenhamos, to dos temos preconceitos, mas alguns de nós admite isso e tenta mudar, outros não. São essas atitudes que nos fazem acreditar na humanidade e são essas coisas simples que fazem valer a pena o convívio social, as viagens e, principalmente, os mochilões.

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Resumindo, você deve viajar, não apenas como forma de conhecer novas paisagens, mas sim como forma de aprender em todas as situa ções, dominando sempre as rédeas e, principalmente, dominando seu próprio pensamento.

Viajar sozinho te dá paz, te dá liberdade e você aprende a viver na melhor companhia que é (ou deveria ser) você mesmo. Quando se aprende isso, ficar sozinho em casa, ficar em silêncio com outras pes soas ou tomar um chopp sozinho no bar não vai mais trazer sentimento de solidão, mas sim de liberdade e felicidade interior. Muito mais que um mochilão solo, é uma aula de autoconhecimento, é aprender a lidar com as emoções (as vezes você pode se sentir sozinho, e está tudo bem), com o dinheiro, com a programação. É aprender a ter compromissos e, sobretudo, a se conhecer e se amar.

Por isso, convido vocês a viajarem, pode ser na cidade vizinha ou até mesmo na própria cidade, convido vocês a chamarem os amigos ou, se estes não puderem, convido a irem sozinhos mesmo. Viajar transforma e mostra como o mundo é e como pode ser. Viajar é esperança na huma nidade e é esperança em si mesmo. Viaje.

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Uma viagem em busca da neve

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da Patagônia argentina e chilena até o Ushuaia Maristela Rodrigues16

Viajar apura os sentidos, abre horizontes, pinta o mundo com novas cores e desafia os seus limites. Faz com que retornemos à rotina com outro olhar. E como já dizia o grande poeta gaúcho Mário Quintana: “Eu não tenho paredes, só tenho horizontes”.

Sempre tive vontade de conhecer os extremos no mundo. A aurora boreal, os polos, o deserto e, com certeza, uma viagem ao Fim do Mun do não poderia faltar.

Uma road trip meticulosamente planejada teve origem a partir da contratação de uma empresa de turismo de Porto Alegre, chamada Trip Latina17. Tive o prazer de realizar uma reunião presencial com os donos da empresa e obtive todas as informações necessárias.

O mais legal dessa viagem foi que eu não conhecia nenhum dos via jantes. Fora o guia, todos os outros integrantes foram apresentados no dia do encontro, já em Bariloche - Argentina. Dá um pouco de medo, insegurança em viajar para outro país, sem conhecer ninguém, mas me aventurei.

Depois de nos conhecermos, passamos 15 dias em uma viagem por terra, entre 16 e 30 de março de 2020, fazendo paradas maravilhosas

16 Formada em Direito pela PUC-RS, servidora pública do Poder Judiciário do RS. Comunidade externa. Participou de quase todas as edições da Feira das Cidades. Uma ávida viajante. E-mail: maris_dance@hot mail.com

17 https://www.triplatina.tur.br/patagonia

faz uma viagem

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Que falta

entre Chile e Argentina, tendo como destino o Ushuaia – o famoso “Fim do Mundo”.

Em Bariloche, conhecida como a cidade dos esportes da neve, numa época que ainda não tinha iniciado o inverno, fizemos um passeio pelas 7 Lagunas, cuja paisagem e natureza são lindas.

Depois que saímos de Bariloche, descemos pela Ruta 40 na Argentina e, logo em seguida, atravessamos a fronteira com o Chile na Comuna de Futaleufu, Rumo à Carretera Austral ou Ruta 718.

No Chile, passamos pela cidade de La Junta e visitamos o Parque Queulat, no qual fizemos um trekking por um lindo caminho em meio à mata nativa, mirantes que permitiam apreciar a majestade do local para, ao final, vermos uma linda cachoeira, cuja água era originada do derre timento do gelo que cobria uma das montanhas, o famoso Ventisqueiro Colgante. É um glaciar suspenso que fica a 1200m de altura, com aproxi madamente 20 km de extensão. Vale a pena a vista.

Passamos pela cidade de Coyhaique e, ainda pela Carretera Austral, pudemos observar o Mirador Cuesta del Diablo, vista para o Cerro Cas tillo e a Laguna Verde, até que chegamos na cidade de Puerto Rio Tran quilo.

Lá, fizemos um excelente passeio para conhecer as Capillas del Már mol, em um tour de barco pelo lago General Carrera, no qual passamos por formações rochosas de mármore, que são as Cavernas, as Capillas

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Fotos: Carretera Austral ou Ruta 7 e Ventisqueiro Colgante. Fonte: Arquivo pessoal
18 https://getoutside.com.br/carretera-austral-guia-com-tudo-o-que-voce-precisa-saber/

e a Catedral del Mármol. Após esse passeio, permanecemos na Carrete ra Austral e atravessamos a fronteira novamente para a Argentina. Per noitamos na Estância La Serena (perto da cidade Perito Moreno - não podemos confundir com o Glaciar). O céu no interior, longe das luzes urbanas, é maravilhoso...

Saindo de Perito Moreno, seguimos ainda pela Ruta 40 até El Chal tén. É um povoado pequeno no qual, logo na chegada, já tivemos uma vista imponente da Cordilheira dos Andes, sobre a qual reinava soberano o monte Fitz Roy. Como eu já tinha feito o trekking no Parque Queulat, resolvi não subir o monte mais famoso, mas fiz, com uma das integrantes da trip, o trekking Cerro Torre.

Como a caminhada foi menos extensa, tivemos tempo para contem plar a vista das montanhas com neve, um lago lindo e cheio de pedaços de gelo em face do degelo da geleira e conseguimos até segurar uns blo cos que flutuavam na água. Depois do passeio, seguimos viagem rumo a El Calafate, onde fizemos um tour de barco, nos aproximando do glaciar Perito Moreno, o qual possui 5 km de largura e 60 metros de altura. O glaciar é considera do uma das reservas de água doce mais importantes do mundo.

pessoal

Uma experiência única poder estar tão próximo de uma geleira for mada há milhares de anos. Fiz um trekking sobre as geleiras, no qual tive que colocar solados com grampos amarrados no tênis e, ao final, em comemoração à superação deste desafio, um copo de whisky com o gelo da geleira.

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Cerro Torre e El Calafate. Fonte: Arquivo

Fotos: Glaciar Perito Moreno e Bahia Lapataia. Fonte: Arquivo pessoal

Pernoitamos na cidade de El Calafate e, na manhã seguinte, ingressa mos novamente no Chile, chegando ao povoado de Puerto Natales. O ob jetivo desta vez seria fazer uma trilha no Torres del Paine. Mais uma vez não fiz o trekking mais longo, cujo destino seria chegar à base das torres. Viagem para mim tem que ter contemplação, novos sabores, paisagens, mas com prazer, não dá para se torturar nas longas caminhadas. Então, fiz um tour de carro e, em seguida, uma caminhada pelo parque Torres del Paine, onde é possível avistar além das torres, o lago Gray e outras montanhas que ficam dentro do parque.

No final da trilha, conseguimos ver parte da geleira no alto das mon tanhas descendo a encosta. Incríveis as observações visual e auditiva, que nos chamou muita atenção. Passamos também pelas Laguna Azul, Laguna Amarga e Lago Sarmiento.

No dia seguinte, saímos de Puerto Natales rumo ao Fim do Mundo. Nesse dia chegamos a Punta Arenas para pegarmos uma balsa a fim de cruzarmos o Estreito de Magalhães (lembram dos estudos na escola?), com a intenção de chegarmos a Ushuaia, cidade mais austral do mundo. Mas ainda tivemos que andar mais um pouco de carro até o destino, pois a balsa vai só até a cidade de Porvenir, ainda no Chile, passando em se guida, novamente pela fronteira com a Argentina.

Ao chegarmos em Ushuaia, fizemos alguns passeios indispensáveis. Dentre eles, o Trem do Fim do Mundo, no qual realizamos um tour acompanhado de uma narrativa foi possível conhecer mais sobre a his tória do local. O trem está localizado dentro do Parque Nacional Tierra

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del Fuego e o trajeto é o mesmo caminho que era utilizado pelos presos que habitavam essa região há décadas.

Ainda dentro do parque, está situada a Baía Lapataia, que se forma às margens do Canal Beagle. Existe uma placa de identificação do lugar, que significa “Baía da Madeira”, na língua yámana, onde termina a Ruta Nacional 3, que corta a Argentina de norte a sul desde Buenos Aires.

Nos dias que se seguiram, visitei também o presídio. Desta vez, fiz o pas seio sozinha. Sua construção teve início em 1902, incialmente com presos militares. Mas com o passar do tempo, em razão da distância e isolamen to, presos perigosos foram mandados para lá, inclusive os condenados por crimes políticos. Na visita pude perceber a simplicidade das acomodações e o frio no interior dos corredores. Na época, ainda não havia eletricidade, então os aquecedores existentes ficavam nos corredores das galerias e como a cidade é muito úmida e congelante nos meses de inverno, os presos passa vam muito frio. Um dos mais famosos criminosos que lá esteve foi Cayetano Santos Godinho, apelidado de “El Petiso Ojudo” (baixinho orelhudo). Foi o primeiro serial killer conhecido da Argentina. Sua carreira de crimes hediondos começou quando criança, aos sete anos de idade. Sua história foi para as telas do cinema como “El ninho de Barro”, sob a direção de Jorge Algora Madrid. Cayetano nasceu em Buenos Aires, em 1896, e faleceu, de forma não esclarecida em 1944, em sua cela no Presídio de Ushuaia19. Fizemos também um passeio de catamarã pelo Canal Beagle, onde ti vemos uma bela vista das montanhas da Cordilheira dos Andes ao redor

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Fonte: Arquivo pessoal
19 https://www.cidadeecultura.com/presidio-de-ushuaia/

da cidade do Ushuaia, de algumas ilhas com lobos marinhos e aves fue guinas que habitam a região (skúas, albatrozes, gaivotas, cauquenes e patos), a famosa Isla Martillo ou, mais conhecida como pinguinera (ilha com muitos pinguins, mas com muitos cormoranes20) e o emblemático farol Les Eclaireurs (Os iluministas /Os escoteiros /Os iluminadores)21. No passeio, fomos orientados a observar a possibilidade do surgimento de alguma baleia no mar gelado e, para nossa surpresa, foi rápido, mas conseguimos vê-la.

Na cidade mais austral do mundo ainda tivemos o prazer de conhe cer o Glaciar Martial, que é uma famosa montanha da Patagônia Ar gentina, coberta de neve nos meses de inverno. Está localizada a 1.050 metros acima do nível do mar e possui um aerosila (teleférico) para que os amantes dos esportes de inverno possam chegar mais rápido na montanha e usufruir da vista.

Tivemos que fazer todo o trajeto a pé, porque ainda não havia nevado no local. O inverno ainda não havia começado, apesar do frio intenso, inclusive o café com o teleférico estava desativado. Mas, de qualquer forma, tivemos uma linda vista da montanha com o gelo no topo. Mas a neve tão esperada ainda nada...

Como não podia deixar de ser, em cada lugar que passamos, souve nirs dos pontos de parada nos acompanharam para casa.

Novos sabores ficaram marcados: cordeiro patagônico, a centolla (é uma espécie de caranguejo gigante encontrado nos oceanos, normal mente, próximos aos polos do planeta, ou seja, muito ao norte ou muito ao sul), a merluza negra (ou “bacalhau de profundidade” - é um pescado nobre e muito apreciado pela alta gastronomia), o bife de chorizo, empanadas argentinas, doce de calafate e os alfajores. Já as bebidas, muitos vinhos e cervejas típicas.

Em cada parada, seja em hotel, pousada ou hostel; cada comida típica, bebida e paisagem; sempre abrem nossa mente para o novo, renovando nossas energias e oportunizando a observação do desconhecido.

20 Cormoranes = uma ave que se assemelha muito com os pinguins. A grande diferença entre eles é que os cormoranes podem voar, enquanto os pinguins não voam.

21 Possui 11 metros de altura e 3 metros de largura em sua base. Sua iluminação alcança até 14 km de dis tância e o acendimento é automático, assim que a luz natural se acaba

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Esta foi a última viagem ao exterior que fiz antes da pandemia que vivemos desde 2020. Relembrar esta viagem me fez perceber o quanto sair da rotina faz falta, o quanto conhecer novos destinos é importante ao nosso desenvolvimento pessoal. Experienciar, com os cinco senti dos cada momento, vivenciar como se moradores locais fôssemos (via jantes, e não somente turistas) gera em nós a energia necessária para a superação de novos desafios. Abre nossa mente e perspectivas para singulares caminhos. Amplia nossos interesses para realizações que não imaginávamos.

Mais de 4000 km de estrada, dois países (Argentina e Chile), várias aduanas, geleiras, lagos, pampas, Mano Valter (só quem estava lá sabe rá), “la pasta”, alfajor até o teto, cochilos aleatórios, muitas risadas... 15 dias para relembrar eternamente!

Muitas frases nas mais diversas paradas que fizemos (restaurantes, postos de gasolina, hospedagens), também proporcionam a nossa re flexão.

Fonte: arquivo pessoal

Nesta ida ao fim do mundo, tivemos um caminho encantador, estra das longas, montanhas com neve, trilhas e caminhadas, guanacos22, pores do sol e céus estrelados. Só faltou ver a neve caindo, aqueles floquinhos brancos que vemos nos filmes, fazer um boneco de neve, jogar bolas de neve nos amigos, mas tenho certeza de que em um próximo destino não vai faltar oportunidade. Se até aqui no interior do Rio Grande do Sul, no inverno de 2021 nevou, tenho certeza de que ainda terei o prazer de sentir os floquinhos brancos e gélidos na pele.

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Que
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https://www.youtube.com/watch?v=Ir7vfVAMRME

Da Ruta 40, passando pela Carretera Austral ou Ruta 7, até o fim da Ruta 3; atravessando pelo Canal Beagle, que une o oceano Pacífico ao Atlântico; de Bariloche ao Fin del Mundo, uma das viagens mais encantadoras que fiz e com certeza não será a última.

Saliento que todas as viagens, independente do destino escolhido, lon gas ou curtas, são sempre enriquecedoras. Em momentos que não temos a possibilidade de viajar, seja em razão de uma pandemia, problemas fi nanceiros, inseguranças, não importa o motivo, com a tecnologia que temos atualmente, sempre é possível conhecer coisas novas.

Eu tive o prazer de dar início às aulas online dos idiomas árabe e fran cês, fiz aulas de dança do ventre, me aventurei na culinária libanesa, en tre tantos outros cursos, palestras e meditações, além de conhecermos outros lugares, podemos dar um pouco de atenção ao nosso interior.

Na X Feira das Cidades, realizada em novembro de 2020 de maneira virtual, participei de uma mesa redonda chamada She Goes23, na qual as participantes relataram suas experiências ao viajar sozinhas. Esta viagem à Patagônia foi para mim uma excelente experiência compartilha da com pessoas de diversos lugares, vivenciando novos conhecimentos e me proporcionando o autoconhecimento. Recomendo a vivência!

Itinerário marcado no app maps.me e foto 13 no Ushuaia

Fonte: Arquivo pessoal

23 Vide: https://www.facebook.com/shegoesapp/ - é uma comunidade para todas as mulheres que gostam de viajar, acreditando que juntas são mais fortes e que podem ser ou fazer o que quiserem

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Oceania

Aventuras na Terra-Média

Conhecer a Nova Zelândia era um sonho já há algum tempo, e final mente em 2019 surgiu a oportunidade de conhecê-la. É um país mundial mente conhecido especialmente por ter sido palco das filmagens de “O Senhor dos Anéis”, e ser berço da invenção de diversos esportes radicais. Na minha viagem, o objetivo era conhecer esses destinos relacionados aos filmes, e praticar algumas dessas aventuras radicais. Além disso, entre uma atividade e outra, foi possível conhecer a culinária local e também de diversos outros países (já que a Nova Zelândia conta com imigrantes do mundo todo), e visitar diversas vinícolas e cervejarias que também são bem conhecidas no país.

A primeira parada da viagem foi na sua maior cidade, Auckland. Após os dois primeiros dias reservados para conhecer a cidade e uma ilha próxima que concentrava diversas vinícolas, fui conhecer o ponto mais alto da cidade: a Sky Tower. Similar a diversas torres de outras cida des do mundo, ela possui como diferencial a prática de duas atividades mais interessantes: SkyWalk e SkyJump. Optei por realizar ambas. O SkyWalk é uma caminhada em uma plataforma que circunda a parte mais alta da torre do lado de fora, preso a um cabo de segurança. A volta é realizada com um grupo de 4 pessoas e um instrutor, que ao longo do caminho vai propondo alguns “desafios” para os mais corajosos tenta rem. Por exemplo, ficar na ponta dos pés bem no canto da plataforma, e caminhar olhando para cima ou de olhos fechados. Bastante diverti

24 Professor de Informática do IFRS Campus Canoas. E-mail: gustavo.neuberger@canoas.ifrs.edu.br

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do, dura vários minutos o passeio, além de proporcionar ótimas vistas. Como tudo na Nova Zelândia, é possível contratar a filmagem profissional do local, mediante taxa extra. Já o SkyJump é algo bem mais rápido: consiste em pular do alto da torre até o chão, não dura mais do que alguns segundos. Mas já serviria de preparação para a prática inventada na Nova Zelândia: o bungee jump.

No dia seguinte, já com o carro alugado para percorrer todo o país, fui mais para o norte do país, conhecer alguns pontos relacionados à cultura Maori do país. Um desses passeios era percorrer de ônibus a Ninety Mile Beach. Houve uma parada onde emprestavam pranchas para os passageiros descerem as enormes dunas de areia da praia. Fiz isso somente uma vez, pois era bem desgastante subir as dunas antes para ter alguns segun dos de adrenalina na descida. No retorno, o ônibus acabou atolado na areia, e foi necessário chamar um guincho para buscá-lo. No dia seguinte, um passeio de barco pelo arquipélago da região, que possuía uma atividade extra opcional: nadar junto com golfinhos. Me inscrevi para a ativida de, mas o capitão acabou informando que naquele dia as condições não estavam adequadas, e acabaram reembolsando todos os que planejavam participar dessa atividade.

Partindo para o próximo destino, paradas em praias famosas do país, em especial uma que ficava com a água quente em certos horários do dia, cheguei em Rotorua, uma das cidades mais procuradas pelos viajantes, devido à atividade geotermal da região. Ali foi inventada outra atividade radical da Nova Zelândia: o Zorb. Ela consiste em entrar dentro de uma enorme bola de plástico e ser atirado morro abaixo. No local que fui, além da descida mais simples, também ofereciam um trajeto em zigue-zague e outro em um morro bem mais alto. Enfim, foi uma das atividades mais divertidas que fiz durante a viagem, e poderia ter ficado o dia inteiro fazendo isso se não fosse tão caro.

Ainda nos arredores de Rotorua, me inscrevi para participar de um rafting no que diziam ser o trajeto comercial com a maior queda d’água do mundo em que iniciantes podem praticar. Diziam que um a cada quatro botes acabava virando durante essa queda, mas o que eu estava

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por sorte acabou não virando. Era a minha primeira vez praticando ra fting, e foi divertido, mas bem cansativo.

Minha última parada em Rotorua foi visitar o Velocity Valley, um pequeno parque que concentra diversas atividades relacionadas à veloci dade: um barco a jato de alta velocidade, um simulador de paraquedis mo, um pêndulo gigantesco, e um bungee jump de aproximadamente 20 metros. Não muito alto para os padrões neozelandeses, mas valeu como preparo para o que estava por vir, já que eu nunca havia feito algo parecido antes. Só achei que depois tive um pequeno enjoo, porque a corda ficou rodopiando no final.

A próxima parada era muito especial: Hobbiton, o local onde foi construída a vila dos Hobbits para filmar as primeiras cenas de O Se nhor dos Anéis. A princípio, todos os sets dos filmes seriam destruídos após as filmagens, mas esse foi o único autorizado a permanecer intacto, e virou uma atração turística. Existem vários passeios pela vila, mas o mais especial é a visitação noturna, que inclui um banquete completo na taverna que aparece nos filmes. Foi necessário reservar com meses de antecedência, e todo o restante da viagem foi planejado em volta dessa data. Foi uma experiência inesquecível e um dos pontos altos da viagem.

No dia seguinte, parti para as Cavernas de Waitomo, um conjunto de cavernas que fica iluminada por causa de larvas fosforescentes, um fenômeno muito raro que acontece ali. Eles oferecem diversos tipos de passeios, dos mais simples aos mais radicais, e eu fui no completo: o Black Abyss. Neste passeio, com capacidade máxima para 8 visitantes junto com 2 guias, a entrada na caverna é feita através de um rapel de 20 metros. A seguir, é realizada uma tirolesa acima de um abismo da caverna, para então iniciar o passeio, onde podemos flutuar em cima de pneus através do córrego da caverna, apreciando as luzes das larvas. Durante o trajeto, temos que passar por passagens bem estreitas onde pensei que iria ficar trancado, e para sair da caverna é necessária uma escalada por pedras de 4 metros de altura. Durante todo o trajeto, os guias contavam histórias para nos assustar, de quanto as pessoas se ma

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chucavam durante todo o passeio, mas no final disseram que era apenas para aguçar nossos sentidos e aproveitar mais o passeio.

Seguindo viagem, o destino seria Taupo, mas no caminho paradas estratégicas para visitar lugares que aparecem nos filmes: Gollum’s Pool, onde a criatura perde o Um Anel; e a montanha que era utilizada como o Mt Doom de Sauron, onde o anel precisava ser destruído. Então era hora de seguir para o último destino da Ilha Norte: a ca pital Wellington. Diversos pontos para visitar, mas relacionado com os filmes, o mais importante era o Weta Cave Studio, local onde são produ zidos equipamentos e fantasias para muitos filmes famosos, em especial O Senhor dos Anéis.

Durante a noite, embarquei no ferry que leva para a Ilha Sul, onde é possível atravessar com o carro que estava utilizando. O dia seguinte se ria meu aniversário, e para a data, programei não uma, nem duas, mas três atividades especiais. O destino era a pequena cidade de Kaikoura, pequena, mas famosa pelos passeios que oferece. Durante a manhã, fiz o Seal Swin, passeio para nadar em alto mar entre focas selvagens da região. Tive bastante dificuldade e não pude apreciar muito, pois apesar de ter feito aulas de natação em piscinas no passado, nadar com corren teza em alto mar usando pés de pato é bastante diferente. No início da tarde fui no Whale Watch Scenic Flight, um passeio em um pequeno avião para tentar avistar baleias gigantes em alto mar. Tive sorte e pude avistar várias delas. No final da tarde, era a vez do Sunset Seal Kayak, passeio de caiaque no mar durante o pôr do sol. O caiaque mais moder no, modificado para ter um pedal e facilitar a navegação.

Pausa nas atividades radicais para curtir alguns dias de tranquilidade turistando e visitando vinícolas, e também aproveitando para visitar a joalheria Jens Hansen, que era a contratado para criar os anéis dos fil mes, onde pude comprar uma réplica do Um Anel com as inscrições em élfico. Era chegada a hora para partir para a região das geleiras Franz Josef e Fox.

Eu havia programado dois dias de estadia para realizar com calma duas atividades imperdíveis na região: salto de paraquedas observando as geleiras, e caminhada em cima das geleiras, sendo transportado para

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lá de helicóptero. Mas então uma série de imprevistos começou a alterar todo o planejamento. Na primeira tarde, iria realizar o primeiro salto de paraquedas da vida, mas ao chegar ao local, fui informado que as condições climáticas não estavam boas, e reagendei para a tarde do dia seguinte, que a princípio estava livre. Sem problemas até aí... Na manhã seguinte seria a caminhada na geleira. Fui até o local, estava tudo certo, todos vestiram seu equipamento e prontos para partir. Então foi avisado no alto falante que houve uma alteração súbita nos ventos e não poderia ser realizado o passeio naquele horário. Uma fila para reagendar, fui passado para a manhã seguinte. Não era o ideal, pois já planejava partir bem cedo para o destino seguinte, mas tudo bem, seriam apenas pou cas horas de atraso. A seguir, parti para o paraquedismo já reagendado. Estava tudo certo, entrei no ônibus para o aeroporto. Chegando lá, era possível ver o pessoal do horário anterior aterrissando, e parecia tudo correr bem. Todo mundo que estava junto comigo já estava com unifor me, com equipamento e treinado, quando fomos avisados que os ventos haviam se alterado, mas isso era normal, bastaria esperar algum tempo e as condições poderiam melhorar. Duas horas depois, nada de melhora, e disseram que poderíamos reagendar. Minha única opção era a manhã seguinte, mas daí o horário conflitaria com o da caminhada... Decisão difícil, agora teria que optar por apenas um dos dois. Mas como anos antes eu já havia caminhado em uma geleira na Patagônia, resolvi fazer o paraquedismo que seria minha primeira vez. Saí dali e teria que pedir o reembolso da caminhada, o que acabou se tornando bem difícil, pois argumentavam que eu já havia reagendado e não poderia cancelar com menos de 24 horas de antecedência. Foi necessário explicar toda a situação para o gerente, mas no final ele aceitou realizar o reembolso. No dia seguinte, partindo para o voo do salto de paraquedas, tudo correu bem e foi uma experiência inesquecível. Apenas recomendo o uso de remé dios contra enjoo, pois no final do pouso, o paraquedas pode começar a girar um pouco como aconteceu comigo. O momento de abertura do paraquedas também causa um impacto forte e algumas regiões do cor po podem ficar doloridas. Também recomendo contratar o pacote com

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pleto, onde outro paraquedista salta ao mesmo tempo filmando toda a experiência que com certeza vai querer relembrar.

Alguns dias reservados para relaxar, incluindo um dia no principal festival de cervejarias artesanais no país, que por coincidência aconte ceria do dia que estava em Christchurch. Fui para Akaroa, uma praia próxima, para praticar um esporte chamado NightSUP (Stand-up Pa ddle), ficando em pé em cima de pranchas iluminadas durante a noite, observando a fauna marinha. Para meu azar, procurei os responsáveis e acabei não achando, tentando contato de todas as maneiras. Seria o segundo passeio cancelado em toda a viagem. Dias depois, finalmente me retornaram e disseram que eu era o único inscrito do dia (era um domingo à noite), e por isso foi cancelado. Mas acabaram me reembol sando o valor. De volta a Christchurch, um passeio de gondola no Rio Avon.

Na saída de Christchurch, acordei bem cedo para uma parada em Canterbury, região plana ideal para a prática de balonismo, que também seria minha primeira vez em tal aventura. Era apenas um respon sável pelo passeio, então todos os visitantes também precisavam ajudar a preparar o balão de ar quente. Mas no fim valeu muito a pena.

A parada seguinte seria em uma pequena cidade chamada Twizel, que é próxima ao local da filmagem da maior batalha de O Senhor dos Anéis. A responsável pelo tour possuía diversas fotos comparando os campos com as cenas dos filmes, além de bandeiras utilizadas no filme e apetre chos para nos fantasiarmos de orcs e cavaleiros.

A viagem se aproximava ao fim, mas era hora de ir ao local mais vi sitado da Nova Zelândia: o Milford Sound, um dos fiordes mais belos e famosos do mundo. O dia estava perfeito, sem neblina ou chuva. In clusive escutei um neozelandês comentando que todos os amigos dele que já haviam visitado o local nunca haviam pego um tempo tão bom. Além do passeio de barco pelo fiorde, agendei um passeio de caiaque no fiorde. Mas esse caiaque era bem mais difícil de manobrar que o anterior, pois contava apenas com o remo, sem pedal, mas acabei me acostumando com isso depois de algum tempo.

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Pausa para alguns passeios e visitas a vinícolas, era hora do destino final: Queenstown, a capital mundial dos esportes radicais. Antes de en trar na cidade, parei na Kawarau Bridge, ponte onde o bungee jump foi inventado. Mas acabei não pulando ali, pois havia agendado outro local mais radical, reservado para o dia final da viagem. Em Queenstown e arredores há muito o que fazer. No primeiro dia, fui nos Jets aquáticos: Shotover Jet e KJet, lanchas de alta velocidade (até 100km/h), que mal tocam a água e fazem giros radicais. À noite, subi de gondola na montanha da cidade, onde é possível praticar o Luge, tipo um carrinho de rolimã que desce a pista com a força da gravidade. No dia seguinte fui no Hydro Attack, um veículo experimental misturando lancha e subma rino, com espaço para duas pessoas, onde é possível fazer movimentos rápidos como um tubarão. Bem turbulento, acabei me sentindo bastan te enjoado.

Dia final da viagem, atividades muito especiais estavam reservadas: a Trilogia Nevis (Nevis Bungy, Nevis Catapult e Nevis Swing). A partir do centro da cidade, um ônibus nos levava a um enorme desfiladeiro para essas três atividades. A primeira foi o bungee jump de 134 metros, o maior do país e um dos maiores do mundo. Achei bem mais legal este do que o menor, pois havia mais tempo de apreciar o que estava acontecendo. Depois, o Nevis Catapult, um aparelho que te joga no ar, e a sensação é que está voando como superman. Para finalizar, o Nevis Swing, parecido com um balanço de parquinho, mas gigantesco sobre o desfiladeiro, e considerando o maior swing do mundo. Todas atividades inesquecíveis, e no final me disseram que eu era o único “madman” que estava realizando toda a trilogia naquele dia.

Horas finais da estadia na Nova Zelândia, restava apenas arrumar as malas, inclusive empacotando todas as garrafas compradas durante a viagem, que não foi tarefa fácil, mas no fim chegaram todas intactas em casa.

Resultado final: muitas fotos, vídeos e histórias para contar, diversas atividades radicais que nunca imaginei que iria realizar na vida.

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Europa

Sob as ruas de Paris

Inicio este relato ressaltando que a amizade oportuniza o conheci mento. Eu, Maristela, conheço a Sheila há muitos anos, antes mesmo da primeira edição da Feira das Cidades, que ocorreu em 2011. Fomos vizinhas na praia de Rainha do Mar e construímos uma amizade muito bonita.

Sheila foi para França em 2017, a fim de fazer seu pós-doutorado em Estudos Literários na Université Sorbonne Nouvelle Paris 3 e me convi dou para visitá-la. Como sou uma viajante entusiasta, não pude recusar e fiquei com ela e sua família no final do ano de 2017 e início de 2018, em Maisons-Alfort, cidade metropolitana de Paris.

Tive a oportunidade de conhecer muitos pontos turísticos da linda ci dade Luz e, dentre os maravilhosos lugares, descobrimos locais inusitados no subsolo de Paris – locais que começaram a interessar a pesquisadora Sheila na condição de moradora e não apenas viajante27.

Escrever a quatro mãos após ter visitado os mesmos lugares é um desafio instigante pois refazemos a viagem, os percursos, retornando,

25 Formada em Direito pela PUC-RS, servidora pública do Poder Judiciário do RS e colaboradora entusiasta do Programa de Extensão “Olhares sobre as cidades: experiências de viagem”, participa, desde 2011, como palestrante-viajante das Feiras das Cidades

26 Pós-doutora pela Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, professora do Instituto Federal de Educação, Ci ência e Tecnologia do RS – IFRS campus Canoas e coordenadora do Programa de Extensão “Olhares sobre as cidades: experiências de viagem” desde 2011.

27 Referência ao texto de Cecília Meireles Roma no qual a escritora diferencia esses dois sujeitos turista X viajante.

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através da memória, por espaços e tempos que serão perpetuados por meio da escrita.

Esgotos parisienses ou Musée des égouts de Paris (por Sheila)

Após ter visitado Paris em 2007, 2012 e retornado em 2017 para ali permanecer por um ano para meus estudos de pós-doutorado na Uni versité Sorbonne Nouvelle Paris 3, refleti sobre a vida subterrânea que borbulhava abaixo dos monumentos tão majestosos e da arquitetura ca racterística da capital francesa. Para ir à Sorbonne, eu pegava o RER28 três vezes na semana, pois aluguei um apartamento em Maisons-Alfort, cidade metropolitana a 3 km da capital. Por mais que visse muitas pes soas pelas ruas, havia um trânsito intenso nas estações de metrô, além dos turistas e viajantes, havia os trabalhadores metroviários, os comer ciantes em suas lojas29, os artistas que espalhavam suas melodias dentro e fora dos trens, os refugiados árabes sobrevivendo pelos bancos naque las profundezas, enfim, tanto abaixo quanto acima da cidade, a chama30 permanecia acesa pelas artérias escondidas daquele grande queijo suíço feito de canais e galerias sob as largas e encantadoras ruas-avenidas de Paris.

Ao comentar essa sensação de onipresença de vida pulsando no sub solo da capital francesa com minha orientadora Mme Jacqueline Penjon, ela de imediato me aconselhou a realizar uma visita aos esgotos de Paris. Apesar de ser a minha terceira vez na cidade nunca havia ouvido falar em uma visita aos égouts de Paris. Mas um direcionamento tão assertivo com vistas a entender a construção subterrânea da cidade me motivou e somente realizei o passeio com a chegada da Maristela no final de 2017 para passar o réveillon conosco, como tantos outros réveillons passados juntas no litoral gaúcho desde 2009.

28 RER ou Réseau Express Régional - é o trem que atravessa a fronteira da capital parisiense e vai aos “ban lieues” (subúrbios), região metropolitana de Paris, bem como cidades mais afastadas.

29 Nas estações Châtelet-Les Halles e Musée du Louvre, há inclusive academia, cinema e um shopping no subsolo com Starbucks, Louis Vitton, Mc Donald’s, etc. fator que aumenta a permanência de pessoas sob as ruas parisienses.

30 Referência a Italo Calvino Seis propostas para o próximo milênio.

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Se já havia ratos nas ruas da cidade, imagina nos esgotos? O valor da entrada era de apenas 2 euros. A entrada fica a 800m da torre Eiffel, no início da Pont d’Alma, na beira do rio Seine (rio Sena). O cheiro era muito forte e havia bonecos de pelúcia de ratos pelos cantos. Seguimos uma guia que explicava como foram pensadas as estruturas para com portar as cheias do rio. Segundo eles, atualmente não teria como ter uma cheia de grandes proporções devido ao moderno equipamento de contenção das águas da chuva no Seine. Entretanto, choveu muito du rante o período que lá fiquei, e muitos transtornos ocorreram devido à “monte de la Seine” (cheia do Sena). Passado e futuro se misturavam naquela explicação acerca das formas de desentupir os túneis dos esgotos, nos quais muitos objetos foram recolhidos ao longo dos anos como espadas, joias, roupas, moedas de ouro e de prata de muitos países, etc. alguns deles expostos aos visi tantes. Uma imensa bola de ferro passava para limpar e desobstruir os canais de escoamento dos esgotos, evitando assim bloqueios nos túneis.

Foto 1: Espadas encontradas nos esgotos parisienses entre outros objetos. Foto 2: Grande bola utilizada no desentupimento dos esgotos.

Fonte: Sheila Staudt

Em 1850, a insalubridade da capital francesa demandava por cuidados nas redes de resíduos e saneamento urbano. Com as benfeitorias arquite tônicas projetadas pelo prefeito Barão Haussmann, o engenheiro Eugène Belgrand criou um programa de abastecimento de água e uma vasta rede de esgoto para comportar o crescimento de Paris. As vias subterrâneas ex pandiram-se para Gennevilliers nas margens agrícolas da capital com 650

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km de extensão em 1878, ano da morte de Belgrand. Atualmente, a rede percorre mais de 2.100 km subterrâneos, com um volume de 8 milhões de m3, abertos para 26.000 bueiros.

Os esgotos estão a 7 metros da superfície da cidade e as linhas de me trô são mais profundas e ficam a 36 metros. Obviamente, se houver do rio Seine, a água escoa pelos esgotos e, por conseguinte, algumas linhas de metrô podem ficar comprometidas. São camadas subterrâneas de vi das em movimento em galerias que escoam lágrimas, chuva, dejetos dos seres humanos que não têm ideia de tudo o que se passa sob seus pés...

Catacumbas ou Les Catacombes de Paris (por Maristela)

Lugar muito interessante despertou minha curiosidade. Tive que convencer a Sheila, que não fazia a mínima questão de conhecer este lugar tão assustador e diferente, a encarar tal aventura. Talvez por se encon trar no subsolo da cidade, o convite começou a aguçar o interesse já despertado desde sua chegada à capital francesa.

Não sabia de todos os detalhes, mas fiquei muito entusiasmada em visitar um ossário, que é dos mais famosos do mundo e o maior, com mais de 6 milhões de corpos. Sheila e eu ficamos na fila em três opor tunidades diferentes, e quando estávamos perto de entrar, a quantidade de pessoas daquele dia, que se limitava a 200, era atingido, todos que ainda estavam à espera teriam que retornar em outro dia. Persistimos e conseguimos finalmente visitar o lugar. Chegar bem cedo é uma dica preciosa para conseguir visitar as catacumbas31.

A história da construção desse local é a seguinte, na antiguidade, as Igrejas possuíam seus próprios cemitérios e na cidade de Paris havia muitos. Diante do volume de pessoas enterradas nesses cemitérios, em decorrência da elevada taxa de mortalidade na época em razão da pes te bubônica, tifo, tuberculose e varíola, os parisienses passaram a ficar doentes, em face da matéria orgânica que lá se decompunha, pois as residências eram muito próximas desses locais. Assim, em 1780, o ce mitério “des Saints-Innocents” foi fechado e, em 1785, o Governo deter

31 Vídeo sobre as catacumbas: <https://www.youtube.com/watch?v=Ux7SPPr-xeM>

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minou que os cemitérios deveriam ficar na periferia da cidade. Os restos mortais existentes nos cemitérios no centro de Paris foram removidos e colocados em túneis abandonados de pedreiras. Essas pedreiras possuem aproximadamente 400 km de extensão, mas menos de 2 Km são visitados. Os túneis das pedreiras eram utilizados para a extração de calcário, que seria utilizado na construção de monumentos da cidade, tais como a Catedral de Notre-Dame, outras igrejas e o próprio Museu do Louvre. Nem todas as galerias são passíveis de visitação, inclusive trancadas com grades.

Esses túneis se localizam a 20 metros abaixo da superfície, então para acessar as catacumbas tivemos que descer 131 degraus. Isto significa que fica abaixo dos esgotos e até mesmo do Rio Sena.

Tais túneis foram construídos ainda no período romano, para outras fi nalidades. Diz-se que os membros da Resistência Francesa usaram ativa mente o sistema de túneis subterrâneos durante a II Guerra Mundial.

Inicialmente, os ossos dos cadáveres foram jogados nas catacumbas de qualquer jeito. Posteriormente, as montanhas de ossos e crânios fo ram enfileiradas, fixados por cimento, formando esculturas, tendo vá rios poetas consagrados escrito versos no percurso que visitamos, o que concede às catacumbas a reflexão sobre a fragilidade humana, a efeme ridade da vida. Além dos poemas, há placas indicando a origem dos ossos, de qual Cemitério haviam sido removidos.

Poema constante na placa da foto traduzido: Eles eram o que nós so mos. Poeira, brinquedo do vento. Frágil como os homens, fraco como o nada.

Logo no início do trajeto há vários ossos expostos separadamente em um balcão de vidro com a descrição das doenças que tinham acometido aquelas pessoas. Também há referência acerca da história da construção e formação das catacumbas.

No teto das galerias, tem uma linha preta que é óleo queimado, a qual indicava para os mineiros da pedreira o caminho a ser seguido para a saída, haja vista a característica labiríntica do local.

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Les Catacombes.

Foto: Maristela Rodrigues

Restos mortais de vários cemitérios foram para lá removidos: as primeiras ossadas transferidas saíram do cemitério Saint-Nicolas-des -Champs em 1786 e do Saints-Innocents. Ao entrar nas Catacumbas, há uma frase emblemática:

“ARRETE: C’EST ICI L’EMPIRE DE LA MORTE” (Pare, aqui é o império da morte.)

A cada nova escultura que passávamos, olhávamos com atenção as ossadas, curiosas para saber qual a razão da morte daqueles corpos. Minha impressão foi de lugar misterioso, parecendo com um filme de terror, num primeiro momento. Mas depois, percebe-se que há vida, onde pessoas trabalham, mesmo diante de tanta morte.

Visitando um lugar assim, percebemos o quanto nossa vida é passa geira e o quanto precisamos dar valor às coisas mais simples, ao conhe cimento, às viagens, aos amigos e amores.

Comprova o quanto somos todos iguais, ricos, pobres, brancos, ne gros, homens, mulheres; que os ossos lá encontrados foram de pessoas, quem sabe um parente distante, que viveram, tiveram sentimentos, aprendizados e desafios.

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Esse lugar me lembrou muito outro ossário que visitei em Portugal, A Capela dos Ossos, em Évora32.

Cripta sob a Igreja Notre-Dame (por Sheila e Maristela)

A famosa igreja no coração da Île de la Cité – locus de nascimento de Lutèce – o primeiro nome dado pelos romanos a Paris, em homenagem à Nossa Senhora ou La Notre-Dame, esconde dentro, fora e abaixo de si ricos tesouros históricos e arquitetônicos. A imponente catedral encanta a todos e, em especial, aos domingos, às 9h da manhã, há a missa gre goriana, na qual íamos frequentemente ao longo desse ano morando na França. O canto gregoriano, todo em latim, intensificado pela acústica maravilhosa da catedral parece nos transportar através do tempo à Ida de Média e conectar-nos com uma força poderosa que parece transcen der alma e espírito, devolvendo uma paz indescritível.

Abaixo do templo religioso encontra-se a cripta, a qual revela resquí cios arqueológicos das civilizações que por ali passaram, bem como a história da construção da suntuosa igreja católica com uma arquitetu ra singular que carrega um misto de diferentes épocas e estilos em sua estrutura, fato que fez o escritor Victor Hugo eternizar o monumento nas páginas de um romance – Notre-Dame de Paris – a fim de atrair os franceses para visitarem o lugar que ficara abandonado e sem reformas por anos.

A entrada da cripta fica no pátio em frente à catedral e tem o com primento de 118m e 29m de largura (2.200m² de superfície). Entre os anos de 1965 e 1972, foram feitas escavações e encontrados restos de uma civilização antiga. Apenas em 1974 foi preparada para e aberta ao público em 1980. Acima destes restos de construções e objetos antigos, havia um orfanato da época do Renascimento, de nome “Hospice des Enfants-Trouvés”, além de uma capela.

32 Temos a oportunidade de saber mais um pouco sobre as catacumbas pelo site oficial: https://www. catacombes.paris.fr/catacumbas-de-paris

E para obtermos uma visão diferente daquele local misterioso, ainda temos os seguintes livros e filmes:

- Filme: As Above so Below (Assim na Terra como no Inferno), de John Erick Dowdle (2014)

- Livro: O Pêndulo de Foucault, de Humberto Eco

- Livro: Os Miseráveis, de Victor Hugo

- Livro: O labirinto de ossos, de Rick Riordan, da coleção “The 39 clues”

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Em 1772, um grande incêndio devastou o mais antigo hospital pa risiense Hôtel-Dieu e destruiu a capela Sainte-Agnès, com exceção do subsolo. Infelizmente, em 2019, outro incêndio no telhado da catedral, provocado por reformas e restaurações fechou por tempo indetermina do as visitas na Notre-Dame, levando consigo a flecha de madeira que guardava signos sagrados da Igreja Católica. Construída em 1980 na parte subterrânea do Átrio da catedral de Notre-Dame de Paris, a crypta33 compõe um acervo (museu), com vistas a preservar o material lá encontrado, no qual podemos ver moedas antigas de ouro e cobre, restos das construções romanas. Segundo infor mações na internet, a cripta não chegou a ser atingida com o incêndio da Catedral, ocorrido em abril de 2019. Descobrir a história do Velho Mundo pelas escavações que remon tam ao século I a.C. escondidas na base da catedral é como adentrar segredos escondidos, tesouros do nosso próprio passado que, uma vez descobertos, aguçam ainda mais nossa capacidade de observação acerca das origens dos povos e da evolução humana ao longo dos séculos.

La Pyramide Inverseé no Museu do Louvre

Abaixo da famosa pirâmide de vidro, com aproximadamente 21 me tros de altura (há divergências na internet), há uma “pirâmide invertida”, construída sob o Pátio de Napoleão. A pirâmide que mais chama a aten ção de quem visita o Museu é sem dúvida a Pirâmide de vidro, mas ainda se pode perceber no seu entorno mais três pirâmides de vidro menores, no subsolo a pirâmide invertida e na sua base, uma pequena pirâmide de pedra. A pirâmide invertida tem apenas 84 losangos e 28 triângulos, em comparação à existente na superfície, que possui 603 losangos e 70 triângulos de vidro. Inaugurada em 1993, projeto do arquiteto I.M. Pei.

Em que pese ficar na parte externa, a pirâmide de vidro é uma miniatura da grande pirâmide de Keops (iguais proporções e ângulos em escalas reduzidas). Tendo como entrada principal a grande pirâmide de vidro, acessamos o museu pelo Shopping Center Carrousel, visua 33 Para mais informações, veja o site: https://www.crypte.paris.fr/fr/la-crypte/la-crypte/plus-de-2000-ans -d-histoire

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lizamos a pirâmide invertida e iniciamos a vista ao Louvre pela parte egípcia de cuja riqueza cultural sou cada dia mais maravilhada.

A função arquitetônica da pirâmide invertida é uma claraboia/janela, em um centro comercial subterrâneo, em frente ao museu.

Diante de tantas belezas no Museu do Louvre, a pirâmide invertida, num primeiro olhar, não foi o que mais me chamou a atenção, em que pese a suntuosidade da construção. Mas analisando com mais cuidado e lendo sobre toda a parte arquitetônica, percebo que uma pequena pe dra sustenta, aparentemente, uma grande estrutura de vidro invertida e, acima da superfície, mais uma estrutura, ainda maior, nos mostrando a ausência de obviedade, ou seja, o óbvio seria o grande sustentar o pequeno, e não o contrário.

A pirâmide invertida no subsolo do Musée du Louvre.

Foto: Maristela Rodrigues

O que a estrutura nos ostenta é que a pequena pedra “sustentaria” a imensa pirâmide invertida, frágil, de vidro. Na realidade, a pequena pirâmide não sustenta a de vidro acima dela, mas me instigou a refletir sobre tamanha estrutura.

Segundo o arquiteto Ieoh Ming Pei, que é adepto da medicina chinesa, a qual usa maquetes de pirâmides para vários tratamentos de saúde, essa linda obra de arte teve o intuito de que os visitantes entrassem no Museu com a mente aberta e plena de vibrações positivas, recebendo através desse monumento forças energéticas diretamente do universo (cósmico), juntamente com as forças telúricas (terrestre), garantindo à pessoa uma abertura na consciência, habilitado ao descobrimento de

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novos conhecimentos e novas experiências, idealmente importantes para se aprender viver no presente com inteligência e sabedoria.

Segundo o escritor Dan Brown, autor do Livro o Código Da Vinci (romance fictício), a pirâmide invertida é percebida como um cálice, um símbolo feminino, enquanto que a pirâmide de pedra abaixo é in terpretada como uma lâmina, um símbolo masculino: toda a estrutura poderia, assim, expressar a união dos sexos, o in e o iang. Além disso, a protagonista de Brown conclui que a pirâmide de pedra pequena é realmente apenas o vértice de uma pirâmide maior (possivelmente o mesmo tamanho que a pirâmide invertida acima), embutida no chão, como uma câmara secreta.

Outra interpretação sobre o significado da pirâmide invertida foi feita por Raphael Aurillac, no livro Le guide du Paris maçonnique. O autor decla ra que o Louvre costumava ser um templo maçônico e que as várias pirâmi des de vidro construídas nas décadas mais recentes incluem o simbolismo da maçonaria, cujo significado Rosa Cruz V.I.T.R.I.O.L. (Visita Interiorem Terrae Rectificandoque / Invenies Occultum Lapidem, «Visite o interior da terra... e você vai encontrar a pedra secreta»).

(No filme As Above so Below (Assim na Terra como no Inferno), de John Erick Dowdle (2014), mencionado nas catacumbas, há referência ao V.I.T.R.I.O.L.) Caves do Louvre

Quando se viaja a Paris, sabe-se que lá existem os champagnes e os vinhos mais conhecidos, famosos e caros do mundo e, viajantes que somos, Sheila e eu queríamos degustar o que estivesse a nosso alcance, apenas para exercício dos sentidos...

Na época de Luiz XV, o Louvre era utilizado como Palácio do Rei e, com medo de invasões, o rei não queria que seus vinhos mais raros ficassem dentro do Palácio, por isso mandou construir as caves a uma distância de mais ou menos 300 metros e em torno de 5 metros de profundidade, a fim de proteger seus vinhos mais valiosos. Através de túneis subterrâneos, havia um acesso secreto e subterrâneo do Palácio às caves.

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Les Caves du Louvre.

Foto: Maristela Rodrigues

Nas caves, há salas sensoriais, para que o viajante sinta os aromas dos vinhos. Localiza-se no primeiro distrito de Paris, perto do famoso museu. No século XVIII surgiram as adegas do Louvre, as quais foram criadas por Trudon, sommelier de Luís XV, no porão de sua mansão (hotel particulier), a qual se localiza na 52 rue de l’Arbre Sec, 1er arron dissement (próximo ao Forum des Halles e ao Museu do Louvre). Essas adegas por muito tempo abrigaram a reserva de vinhos finos servidos ao rei e sua corte.

Em pesquisa, tive o conhecimento que Luís XV sempre presenteava sua amante, a famosa Madame Pompadour, com o vinho Tokaji Aszú34, vinho ícone húngaro, cuja descrição em latim era “Vinum Regum, Rex Vinorum”, (“vinho dos reis, rei dos vinhos”), o qual provavelmente era armazenado na cave.

Ao chegar ao museu, tínhamos várias opções de visitação, com va riados preços, mas como queríamos aproveitar para conhecer o lugar e não tínhamos agendado com antecedência, fizemos a visitação simples, autoguiada.

Achei o lugar bem escondido nas ruelas de Paris. Sem muita propa ganda, comparando-se com os demais pontos turísticos, mas muito bem-organizado. Os visitantes são surpreendidos por um espaço sub 34 Mais informações: https://www.wine.com.br/winepedia/curiosidades/tokaji-aszu/

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terrâneo cuidadosamente projetado com muita cortiça, madeira e aço, no qual a pessoa vai ser capaz de descobrir o mundo do vinho através dos cinco sentidos, quando se realiza a visita mais demorada.

Passamos pela sala denominada “Terroir”, permitindo que os amantes do vinho descubram e entendam os diferentes tipos de solo e como eles influenciam na bebida. Sentidos utilizados seriam a visão e olfato.

Na “Salle des Arômes”, podemos testar nossas qualidades olfativas, com atividades lúdicas.

No espaço “Le Chai” (Adega), aprende-se sobre a história da adega real e pode-se perceber os barris que guardam produtos de 15 diferentes variedades de uvas. Sentido utilizado visão.

Na visita mais demorada é possível adentrar nas demais salas denomi nadas de “laboratório” e “sala de engarrafamento”, nas quais acontecem as oficinas de vinificação e o engarrafamento, rotular e selar o vinho que produzirão na aludida oficina. Fica para a próxima viagem...

Por fim, após toda a imersão neste mar de conhecimentos, nós como enófilos ávidos, chegamos no momento de degustar um exemplar da diversidade de vinhos e espumantes existentes no local.

Em que pese nossa visita ter sido breve, adorei a parte sensorial, na qual podíamos sentir os aromas das rolhas, com traços de vinhos de vários tipos e solos.

Metrôs parisienses (por Sheila)

Ah... como era bom pegar um trem (RER)35 ou o metrô e, muitas vezes, errar a direção e descer e trocar o lado da plataforma e ir, final mente, para o destino desejado...

A primeira vez que vi ratos em Paris foi na linha do metrô, mais es pecificamente nos trilhos. Era uma família de ratos e as pessoas que esperavam o metrô, conectadas em seus celulares, não viam o que eu estava vendo. Apavorada, o meu medo era que os bichos subissem até a plataforma onde estávamos, tamanho alvoroço em que se encontravam.

35 A diferença entre o RER e o metrô era a distância percorrida e a saída da capital, fato que influenciava no preço da passagem. O RER cobria muitas cidades metropolitanas e ficava na superfície externa ao sair de Paris e adentrava o subsolo nas margens da capital e, por isso, era mais caro. O metrô era mais barato e cobria toda a capital e, algumas vezes, avançava duas ou três estações para fora dos seus limites. As linhas 2 e 6 possuem trechos na superfície e eu adorava pegá-las para ver a cidade de cima.

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Um senhor notou o meu pânico e me disse: “C’est normal ça! Demain ils vont disparaître.” (“Isso é normal! Amanhã eles desaparecerão”). Passados alguns dias desse episódio, comecei a notar que havia um pó branco em certas partes dos trilhos que deveria ser veneno para elimi nar os bichanos.

Segundo uma reportagem mostrada naquele final de ano, havia deze nas de ratos perto da torre Eiffel e na praça do Châtelet. Confesso que, após tê-los visto nos trilhos, nem mesmo nos esgotos ou nas catacumbas eu vi ratos (apesar de senti-los o tempo todo pelas galerias subterrâneas das catacumbas). Na superfície, minha atenção era toda para a beleza dos prédios, dos monumentos e das praças e, talvez, por isso, não notei aqueles outros seres pelas ruas da capital.

As linhas dos metrôs parisienses datam de 1899, mas os projetos e as escavações começaram anos antes. O interessante é a sua distância do solo. As linhas ficam a 36 metros abaixo dos esgotos que estão a 7 metros da superfície. Em 2018, a capital francesa enfrentou mais uma cheia do rio Seine e algumas estações passam, literalmente, por dentro do rio – caso da Ilê de la Cité, a ilha em que fica o coração de Paris, onde está a Notre-Dame – e tais estações foram tomadas pelas águas, ficando interditadas. A Maristela queria passear de barco pelo Seine, mas a cheia não permitiu, pois as embarcações não passavam debaixo das inúmeras pontes da cidade devido à altura das águas. Esse é, realmente, um bom motivo para retornar a Paris...

A linha 8 do metrô também me levava para Maisons-Alfort, contudo era mais distante do meu apartamento se comparado ao RER que esta va na frente do meu prédio. Em 2018, houve cinco meses de greves na França e, por esta razão, os transportes metroviários foram interrompi dos ou sofriam atrasos, principalmente, o RER, que ia para a região me tropolitana de Paris. Entretanto, a quantidade de opções de transporte urbano – ônibus, metrô, táxis, Uber, etc. – não me permitiu sentir o im pacto dessas greves que remontam às greves estudantis de 1968 – como a história é cíclica, por vezes, ela torna a se repetir... Além das greves no transporte público, a ocupação das universidades pelos alunos, em 2018, iniciadas pelos discentes da Universidade Paris-Tolbiac e que se espalhou pela Sorbonne, Nanterre, etc. foi outro fato que interrompeu

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as minhas aulas. As novas reformas de acesso ao Ensino Superior decre tadas por Emmanuel Macron, as quais passariam a ter critérios para a admissão dos alunos a partir de 2021, fato nunca antes cogitado no país, desagradaram os estudantes. Tal situação me fez refletir acerca das va gas públicas quase inexistentes no Brasil e na grande diferença entre os “nossos” problemas e os “deles”. Cerca de 450 centros de Ensino sofre ram bloqueios nos meses de greve e protestos dos estudantes franceses.

Enfim, deslocar-se em uma cidade que permite ao cidadão o direi to de ir e vir livremente, com acesso a diferentes meios de transporte subterrâneos e de superfície é uma conquista ainda a ser travada por essas viajantes nascidas em Porto Alegre, a capital dos gaúchos. Quando olhamos para a linha férrea de superfície da empresa Trensurb, iniciada no ano de 1985, pensamos que este seja um dos começos para um trans porte planejado e inclusivo de primeiro mundo na capital dos pampas36 ligando-a não apenas às cidades metropolitanas, mas às demais cidades e capitais do Brasil.

Considerações finais

Durante a pandemia de COVID-19, que teve início aqui no Brasil no início do ano de 2020, ficamos cerceados do direito de ir e vir, ou seja, impedidos de viajar e conhecer novas culturas. Sheila e eu sentimos muita falta de conhecer novos lugares, apreciar outros sabores e utilizar os cinco sentidos a fim de ampliar os conhecimentos. Escrever esse relato, relem brar uma linda viagem que muito nos marcou, também foi uma forma de reduzir a sede por novos destinos, já que em face da preservação da saúde de todos, tivemos que evitar os passeios, aglomerações, confraternizações. Mas também descobrimos muitas outras formas de aprendizado através das plataformas virtuais (cursos de idiomas, culinária, astronomia, aulas de dança, etc.), o que aumentou ainda mais nossa vontade de, quando nossas vidas voltarem ao “novo normal”, possamos dar mais valor a essas descobertas.

“Seja sobre ou seja sob, Paris é demais!”

(Que ce soit dessus ou dessous, Paris c’est super!) Referências

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Referência à cidade de Porto Alegre.

RAMUS, Cécile; SYLVESTRE, Dan. Au fil des lignes du métro37. IN: L’Itinérant. Édi tion bilangue Français-English. Ed. Com’Sol: Paris, 2018.

Sites pesquisados:

<https://www.atex.com.br/blog/design-e-arquitetura/laje-nervurada-mundo-pira mide-louvre/>

<https://reservando.parisinfo.com/il4-oferta_i272-visita-e-degustacao-de-vinhoscaves-du-louvre.aspx>

<https://www.facebook.com/lescavesduparadis/photos>

<https://www.gazetadopovo.com.br/viver-bem/turismo/novo-museu-de-paris-mos tra-historia-vinho-frances/>

<https://blog.panrotas.com.br/direto-de-paris/2015/06/12/a-verdade-sob-a-pira mide-invertida-do-louvre/>

<https://www.tricurioso.com/2019/10/25/7-coisas-que-voce-nao-sabia-sobre-as-ca tacumbas-de-paris/>

<https://mundodocurioso.com.br/fatos-interessantes-sobre-catacumbas-paris/>

37 Livreto bilíngue francês-inglês vendido dentro do metrô pelos próprios criadores a 2 euros em 2018.

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Paris: um pedaço do meu coração

Juliana Paz Moraes38 "Paris responde a tudo que um coração deseja."

Frederic Chopin

Ah, Paris!

A emoção que surge no peito ao falar desse lugar maravilhoso, é algo que carrego comigo até hoje. Falar sobre Paris me leva às doces recorda ções dos três dias mais sonhados que pude viver em 2018. Tudo começou quando eu estava prestes a completar 15 anos em 2018. Esta é uma data muito importante na vida de uma menina, pois o sonho da festa mágica estaria por vir. Eu, de forma alguma, desejei isso ao longo da minha vida, não gostava da ideia de festa, decoração, vestido e toda a organização que é necessário ter para algumas horas de comemoração. Então, nesse meio tempo, uma pequena hipótese de viagem surgiu, mas mal sabia eu que poderia ir tão longe. Paris sempre foi meu sonho. Os filmes me encantavam, tinha quadros na parede do meu quarto e, também, a clássica mini Torre Eiffel de decoração, mas para mim era impossível chegar lá, na própria capital da França. Comecei a pensar em alguns lugares possíveis para viajar com minha mãe e meu pai no lugar da festa de 15 anos. E foi aí que tudo começou a acontecer. Eu tinha um casal de vizinhos muito querido que estava indo morar na Alemanha. Ok, e o que isso tem a ver com Paris? Como nós éramos

jujubamoraes63.jm@gmail.com

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38 Juliana Paz Moraes, Aluna do curso Integrado de Administração do IFRS Campus Canoas. Participou da XVIII Feira das Cidades como palestrante e da XIX como bolsista.

muito próximos e por muitos anos nos consideramos da família, o con vite para ir visitá-los, na Alemanha, sem dúvidas, chegou a nós. A ideia era muito empolgante, mas a pergunta principal era: como iríamos fazer isso? Aparentemente estava longe da nossa realidade viajar para tão longe assim, ainda mais para um outro continente. Então, como os meus 15 anos estavam chegando, eu tive a brilhante ideia de viajar para a Europa, visitar nossos vizinhos e conhecer outros países. Conversei várias vezes com meus pais para ver as possibilidades da minha ideia, e, sim, depois de algumas tentativas deu certo. Ufa! Tá, mas, e agora? Com que dinheiro vamos ir para outro continente em menos de um ano? E, a partir daí, os planos começaram a sair do papel.

A primeira coisa a fazer foi o passaporte. A segunda, foi comprar Euros, e a terceira, foi comprar as passagens e fazer o seguro saúde. Mas antes disso tudo acontecer, eu não trabalhava e de alguma forma precisava ajudar financeiramente na viagem. E, mais uma das minhas brilhantes ideias, entrou em cena. Comecei a vender brigadeiros e beijinhos no copinho, inicialmente na escola onde estudava no fundamen tal. Depois, comecei a vender panelinhas de coco, a minha especiali dade. A partir disso eu vendia na escola, na vizinhança, na igreja, para os amigos e familiares. Aonde eu ia as panelinhas estavam comigo - e foram um sucesso! Minha mãe, Simone, é artesã domiciliar e, na época, ela também ajudou com uma renda extra, entregando panfletos no centro de Canoas. Meu pai, Fabiano, é mecânico hidráulico. Ele fazia hora-extra e também vendeu as férias. Agora sim, todos unidos no pro pósito de juntar o máximo de dinheiro possível, nos meses seguintes, e, claro, economizando também.

Até então, as coisas estavam sendo resolvidas aos poucos. Mas e a língua? Como eu me comunicaria lá? Eu não era fluente em inglês, es panhol, francês e muito menos em alemão. Então, fiz um caderninho com tudo o que eu precisaria saber sobre aeroporto, mercados, pontos turísticos e comecei a me programar para ver vídeos de inglês para via gens. Adiantou alguma coisa? Não. Infelizmente, eu tinha vergonha de tentar falar algo e eu também não tinha uma boa escuta para o inglês. E como eu me virei? Mímicas, simples assim. Ah, e saia um espanhol en-

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rolado com português junto com um pouco de inglês. E também tinha o santo Google Tradutor, então foi tranquilo - e por sinal, bem engraçado.

O dia da viagem estava chegando e a ansiedade ficava cada vez mais forte. Marcamos a saída no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, no dia 17 de julho de 2018. Mesmo eu já tendo feito aniversário em fevereiro, preferi passar o verão de lá viajando. Dias antes da viagem, pegamos malas emprestadas, organizamos os documentos e estávamos nos preparando. E o dia chegou. Acordei às 5h da manhã. Ansiedade a mil e pra ajudar, uma chuva torrencial. Uma amiga da família nos levou até o aeroporto, fizemos o check-in e fomos para a sala de embarque. Eu nunca tinha viajado de avião na minha vida, e do nada eu fica ria 14h em função de voos. Nossa viagem foi com vários embarques e desembarques. Saímos de Porto Alegre e fomos para São Paulo. De lá, pegamos o voo internacional e fomos para Madri. Depois, pegamos o último avião para a Bélgica e, de trem, fomos para a Alemanha. Encon tramos nosso vizinho na estação de Kohl e, finalmente, chegamos ao nosso destino: Neuss.

Aproveitamos dias quentes na Alemanha, passeando por tudo. En quanto estávamos lá, planejamos a nossa ida para ficar três dias em Pa ris e para passar um dia na Holanda. Ao total ficamos vinte e três dias na Europa e fazíamos tudo de trem, a pé e de ônibus.

Para ir a Paris, fomos de ônibus. Foram dez horas de viagem, um pouco desconfortáveis, porém era mais barato do que ir de trem. Em barcamos a noite no ônibus e chegamos à França pela manhã. Tínha mos reservado um hostel e fomos a pé até lá com a ajuda do Google Maps. Nosso check-in era às 15h da tarde e tínhamos chegado às 11h da manhã. Encontramos o lugar e mandei mensagem no Whatsapp para a dona, avisando que já estávamos lá. Como nós não tínhamos nenhuma chave, quando uma pessoa saiu na porta do hostel, aproveitamos e se guramos a porta rapidamente para entrar sem ela ver (sim, entramos de penetra). Quando entramos, vimos que aparentemente não tinha cara de hostel, e sim de um apartamento bem antigo, sem nenhuma recep ção. Achamos estranho, e, então, mandei uma foto da parte de dentro da entrada para a dona. Quando ela finalmente tinha visualizado as mi-

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nhas mensagens, ela disse para sairmos de lá, pois estávamos no lugar errado. Ela disse que tínhamos invadido um apartamento e que o lugar certo não era ali de jeito nenhum. Saímos dali rapidamente, com cara de paisagem. Ninguém percebeu nada - ainda bem.

A dona do hostel mandou mensagem dizendo para procurar uma cai xa preta na parede da rua. Ela disse que as chaves estariam ali dentro, e que poderíamos entrar no lugar ao lado do apartamento que tínhamos invadido. Aparentemente não tinha nenhum hostel ali do lado do apartamento, havia apenas uma loja com uma porta de vidro e um banner sobre imobiliária. Mas, a caixa estava lá, do lado dessa porta. Ela nos deu a senha e abrimos a caixa. Muitas chaves caíram no chão e pergun tamos para ela onde era o lugar. Até que ela disse para entrarmos na por ta de vidro. Por um minuto, ficamos sem entender. Pegamos as chaves e fomos abrir a porta de vidro. À direita tinha outra porta branca, e quan do abrimos não tinha nada - até olharmos para baixo. Ali tinha uma escada caracol. Achamos estranho, mas descemos. E quando chegamos lá embaixo, estávamos no nosso hostel. Jamais imaginamos que seria na entrada de uma loja e num lugar para baixo. Mandei foto do lugar para confirmar se estávamos no lugar certo e sim, graças a Deus, estávamos. Depois dessa confusão, descansamos bastante. Minha mãe saiu e foi passear e comprar algo para comermos. Porém, ela saiu sem celular e sem avisar para mim e meu pai, que estávamos dormindo. No final das contas, ela tinha se perdido em Paris. As ruas são encruzilhadas e é muito fácil de se perder. Ela foi pedindo ajuda para as pessoas na rua, dizendo apenas o que ela se lembrava, o nome da rua “Broca” que estávamos. Ela se comu nicava através de mímicas e os franceses também. Até que ela conseguiu chegar ao hostel - enquanto eu e meu pai ainda estávamos dormindo. No dia seguinte, acordamos cedo, tomamos café e fomos para a para da de ônibus. Nosso destino era o Arco do Triunfo. Chegamos lá, porém no dia estava acontecendo o “Tour de France”, uma competição anual de ciclismo de estrada realizada na França, disputada em etapas. O arco estava fechado, só dava para tirar fotos de longe. Havia uma feirinha distribuindo banana, refrigerante e umas provinhas de comida. Depois de tirarmos fotos no arco, fomos finalmente conhecer a Torre.

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Pegamos o ônibus e fomos ao encontro dela. Lembro-me da sensação de ver aquela majestosa e tão sonhada Torre Eiffel pela primeira vez. Eu fiquei encantada, realizada demais. Eu não conseguia acreditar que eu estava lá, depois de tanto esforço. Ficamos a admirando por um bom tempo. Tiramos muitas fotos, o dia estava lindo demais. Almoçamos no gramado, já que tínhamos levado lanche e ficamos ali, apreciando aquela vista.

Depois do almoço fomos para baixo dela, bem de pertinho. Nós não subimos na Torre porque tinha muita fila e ia demorar muito, ainda queríamos conhecer outros lugares. Então fomos para o Museu do Lou vre, onde só tiramos foto pelo lado de fora e para a Catedral de Notre -Dame, onde entramos.

Ao final da tarde, passamos em um mercado, compramos bolinhos e suco de laranja. Queríamos ver a Torre à noite, então voltamos para lá e ficamos sentados fazendo nosso piquenique. Havia muitas pessoas fa zendo o mesmo, elas vão em grupos e ficam conversando e observando a Torre, sentadas no gramado. Ela estava iluminada e a cada uma hora ela brilhava por cinco minutos. Estar ali, vendo a Torre brilhar, ao lado da minha família era um sonho. Eu me lembro da sensação de felicidade

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que explodia no meu coração. Às vezes não consigo descrever ao cer to esse sentimento. Mas sei que foi mágico. O tempo passou voando e quando fomos ver já era uma hora da manhã. Não queríamos ir embora dali, mas procuramos a primeira estação de ônibus e fomos para o hos tel descansar. No dia seguinte, iríamos passear novamente.

No segundo dia, fomos ao estádio do Paris Saint-Germain, ao Arco do Triunfo, que já estava aberto, e passeamos pela Champs Élysées. Co memos um lanche no McDonald’s e fomos nos despedir da Torre. Meu pai subiu no Arco do Triunfo e tirou uma das fotos que mais amo da viagem.

À noite, fomos a uma pizzaria chamada «La Comedia», e o sistema é bem diferente do nosso. A pizza vem inteira, do sabor que tu escolheres. Nós pedimos uma de frango com queijo e uma de carne com ovo. Porém, a carne era moída e era só um ovo estalado no meio da pizza. Era gostoso, porém bem diferente da pizza do Brasil. Eles não têm pizzas doces e nem rodízio. A água da torneira da França não é muito agradável, pois tem gosto e cheiro. Para o consumo, não é muito recomendado, então tínhamos que comprar.

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No último e terceiro dia, nosso destino foi a Disneyland de Paris. Fomos de trem até lá, com todas as malas. Nós demoramos um pouco até largarmos as malas no maleiro e comprarmos os ingressos, mas deu tudo certo. O primeiro brinquedo que fomos foi a tradicional xícara maluca. O segundo brinquedo, foi o do Piratas do Caribe, em que en tramos em um tipo de barco que nos levava por dentro dos lugares do filme. Depois fomos a várias montanhas russas e conhecemos todas as partes do parque. Foi um dia bem cansativo, mas superdivertido. É tudo mágico lá, como num sonho.

No fim da tarde, pegamos o trem, fomos para a estação de ônibus e voltamos para a Alemanha. Foram mais 10h de viagem de volta. Fica mos mais alguns dias na Alemanha e voltamos para o Brasil. Fizemos todo o trajeto de trens e voos novamente e, finalmente, chegamos em casa. Ao retornar para casa, a ficha demorou para cair, ainda era um sonho e a adrenalina estava alta.

Recordar dessa viagem, aquece meu coração, me traz de volta sentimentos de pura realização e alegria. Depois de 2018, não consegui via jar mais, principalmente com a pandemia. A falta de uma viagem se acumula a cada dia e, ao mesmo tempo, me faz dar mais valor para as viagens que pude fazer. Colecionar memórias com pessoas que amamos não tem preço, ainda mais quando vamos ao encontro do desconhecido em uma viagem. Paris foi meu sonho realizado e guardo com muito carinho cada momento em meu coração. Espero ter compartilhado esse lugar único da melhor forma possível, pois Paris me conquistou e um pedaço do meu coração pertence a ela.

Agradeço aos meus pais, Simone Moraes e Fabiano Moraes, por terem topado essa viajem junto comigo, aos nossos eternos vizinhos da Alemanha: Júlio, Fernanda e Lívia, e também a todos que de alguma forma contribuíram para esse sonho ter sido realizado.

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Polônia

:

imaginário, encontros e ressignificações

Jaqueline Russczyk39

Sou quem sou. Inconcebível acaso como todos os acasos.

Fossem outros os meus antepassados e de outro ninho eu voaria ou de sob outro tronco coberta de escamas eu rastejaria. (SZYMBORSKA, 2011, p. 100)

A viagem à Polônia começa a ser imaginada desde muito cedo em minha vida, caracterizando o itinerário percorrido de modo diferenciado em relação a outras viagens planejadas e realizadas. Foi o desejo de conhecer o país dos meus ancestrais que orientou o percurso. A expe riência vivida trouxe encontros, descobertas e ressignificações, pois o familiar se tornou exótico e no peculiar fui encontrando familiaridades, a partir das possíveis aproximações culturais com a minha própria trajetória de vida.

39 Professora de Sociologia do IFRS Campus Canoas. Participou da V, VI e VII edições da Feira das Cidades. E-mail: jaqueline.russczyk@canoas.ifrs.edu.br

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Para minha surpresa a almejada viagem ocorreu repentinamente quando recebi o convite da Universidade Marie Sklodowska-Curie, Departamento de Estudos Portugueses (Uniwersytet Marii Curie-Sklodowskiej, Zaklad Studiow Portugalistycznych), de Lublin, para proferir uma palestra sobre a pesquisa desenvolvida na Tese de Doutorado sobre o modo de vida da juventude rural e a educação, especialmente o en sino de sociologia como dispositivo para o desenvolvimento humano. Chegando lá fui convidada para ministrar outra palestra junto a Escola Superior de Negócios e Administração de Lublin (Wyższa Szkoła Pr zedsiębiorczości i Administracji w Lublinie), com uma exposição sobre desenvolvimento, juventude rural e modos de vida no Brasil.

Não houve muito tempo para organizar a viagem e ela ocorreu no período de meados de dezembro de 2014 a meados de janeiro de 2015. A cidade de chegada e de boa parte da minha permanência na Polônia foi a capital, Varsóvia (Warszawa), localizada no centro-leste do país. Em Varsóvia fiquei hospedada no alojamento da Universidade de Varsóvia. Em seguida, me desloquei a Lublin (Lubelskie), leste polonês, me hospedando no alojamento feminino da Universidade Marie Sklo dowska-Curie. Terminados os compromissos profissionais, as cidades de Zakopane (Zakopane) e Cracóvia (Kraków), ambas ao sul do país, foram visitadas.

Ponte sobre o Rio Vístula (Wisła) - Varsóvia. Acesso para Lublin, Zakopane e Cracóvia.

Fonte: arquivo pessoal

Inúmeros foram os percursos, as visitas e os deslocamentos realiza dos. A Polônia é um país pequeno e recortado por linhas férreas ligando as suas várias regiões de mar, montanhas, campos e lagos, bem como com seus castelos, palácios, museus, parques, universidades, etc.. Terra

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marcada pelo folclore e pelas contribuições de expoentes como Nicolau Copérnico, Frédéric Chopin, Marie Sklodowska-Curie, Bronislaw Ma linowski, Władysław Strzemiński, Karol Wojtyla, Wislawa Szymborska, Zygmunt Bauman, Andrzej Wajda, Olga Tokarczuk, entre outros. Dian te de tantos elementos naturais e culturais, nesse relato de experiência apenas alguns aspectos da viagem realizada serão trazidos, seja pela fa miliaridade, seja pela peculiaridade evidenciada.

Palácio Wilanów – Varsóvia.

Palácio Lazienkowski – Varsóvia. Parque Lazienki – Varsóvia. Fonte: arquivo pessoal

Do familiar ao exótico

Minhas recordações remetem aos meus avós conversando em polo nês, cantando canções polonesas nas rodas de brincadeiras e até mes mo durante a lida diária do trabalho agrícola, passado vinculado à vida camponesa. Meus ancestrais compunham um grupo de poloneses e de descendentes de polonês fixados em um local hoje chamado de “Linha Bom Jardim”, zona rural do município de Guarani das Missões, no Rio Grande do Sul.

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Devido à ancestralidade polonesa e a convivência com imigrantes poloneses conheci um pouco da Polônia por meio da história oral re passada de geração em geração, assim como pelos relatos de familiares que viveram e/ou que ainda vivem na Polônia. Dessa forma, o habitus incorporado pela socialização foi emergindo e sendo ressignificado in loco, em 2014/2015. Os relatos das guerras e ocupações territoriais, a língua, a culinária, a música, a dança, a religiosidade, parte da arquite tura em madeira e das vestimentas típicas me conduziram ao reconhecido em cada momento vivido na Polônia.

No entanto, mesmo reconhecendo familiaridade com a culinária po lonesa, o estranhamento foi inevitável devido à língua e a diversidade encontrada. Tal peculiaridade foi vivenciada já no período natalino, isso porque a viagem ocorreu no fim do ano de 2014, temporada caracteri zada por rituais como a ceia da vigília de Natal, que se inicia logo ao fim da tarde. As ruas e os demais ambientes foram tomados pela koledy, que são canções de natal como, por exemplo, a “Bóg Sie Rodzi”, de Francis Karpinski, de 1792. Além disso, nessa ocasião de confraternizações cos tuma-se servir doze tradicionais pratos.

A culinária polonesa inclui carnes de todos os tipos (porco; peixes – em especial a carpa; aves – como o pato; etc.). A sopa é tradicional (acompanhada ou não de pães caseiros também vendidos nas feiras ao ar livre), destaca-se a sopa de beterraba. Outro prato tradicional é o chucrute e os pierogi (cozido, assado ou frito). Pelo fato de o país ser expressivo produtor de maçã, são muitas as tortas e doces que utilizam essa fruta, juntamente com as framboesas e as amoras, incluídas tam bém no conhecido bolinho por nós chamado de “sonho” e que também pode ser recheado com algumas flores. As bebidas mais comuns são os chás e a vodca.

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Krémowka – “doce do Papa”. Banca de pães - feira no Rynek – Cracóvia Fonte: arquivo pessoal

Vista da cidade de Cracóvia – Rio Vístula. Castelo Wawel – Cracóvia. Fonte: arquivo pessoal

Como tive a oportunidade de confraternizar com os poloneses pude ouvir muitas histórias e adentrar na cultura polonesa. Os relatos sobre a época do comunismo e os conflitos presentes no país eram frequentes, inclusive tive acesso a bilhetes utilizados como “moedas” para comprar ou trocar bens de uso pessoal e de consumo, relatos que lembravam o período vivido como uma época de invasões, escassez e limitações.

Bilhete para aquisição de produtos – memória da Polônia comunista. Palácio da Cultura e Ciência, símbolo da Varsóvia comunista. Fonte: arquivo pessoal

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Ao fazer turismo, nem sempre estabelecemos aproximações como a oportunidade que tive em conviver com os poloneses, inclusive pas sando dias em suas residências, pois como possuo familiar residindo no país obtive acessos e convites que nem sempre ocorrem ou, por ve zes, demoram tempo para ocorrer porque dizem respeito aos hábitos, a cultura e a convivência entre as pessoas. Observei e presenciei o es tranhamento com o envolvimento masculino no cuidado e educação das crianças, assim como presenciei o estranhamento alheio quando estabeleci aproximação ao brincar e/ou observar as crianças no meu entorno. Outro exercício de alteridade, já descrito aqui, foi em relação à inclusão de determinadas flores como alimento, junto a isso devido ao fenótipo das mulheres polonesas, ou seja, em geral são mulheres altas, me direcionei a encontrar roupas para uso próprio no setor juvenil.

O hábito da leitura como algo comum à população foi identificado nos espaços públicos e privados em que circulei. Também, na época, me chamou a atenção a permissão de acesso dos animais domésticos ao trem, aos ônibus, aos cafés, enfim, aos vários ambientes de uso comum. Além disso, não esperava encontrar e me causou surpresa tamanha ade são pelo uso do carro como transporte, isso porque o transporte público é de qualidade, abundante e acessível, bem como por já ter viajado para outros países da Europa esperava encontrar a preferência de uso dos bondes, trens, metrô, ônibus e bicicleta.

Os momentos passados em coletividade foram de descontração, con versas e de trocas culturais. Quando mencionei meu interesse em conhe cer um campo de concentração não encontrei consenso entre os polone ses sobre a indicação em ir ou não ao local. Muitos poloneses relataram o mal-estar ao se deparar com a história marcada pelas atrocidades do período nazista, outros mencionaram a importância da permanência dos campos de concentração na atualidade como um lugar de memória para o não esquecimento, ou seja, lembrar para não repetir os horrores do passado. Diante dos posicionamentos controversos, decidi ir ao campo de concentração de Majdanek, em Lublin.

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Foto 11: Memorial do campo de concentração Majdanek – Lublin. Fonte: arquivo pessoal

Do exótico ao familiar

O familiar, pouco a pouco, foi tornando-se exótico ao mergulhar nas peculiaridades daquilo que já presenciara de outras maneiras, isto é, por meio de filmes, documentários e livros. Os gostos e aromas foram iden tificados, mas também ressignificados. Do mesmo modo, a paisagem comum das feiras, dos artesanatos e da arquitetura me aproximou das características preservadas pelos imigrantes poloneses no sul do Brasil. Em especial, me identifiquei com a cidade de Zakopane, a capital do inverno e dos esportes de inverno, na base das Montanhas Tatra. Essa cidade é caracterizada pelas construções em madeira: casas, igrejas, es tações e, distintivamente, o seu cemitério (Cemitério Nacional Peksowy Brzyzek, construído por volta de 1850) com túmulos em meio às ár vores, obra do artista Stanislaw Witkiewicz, sepultado no local, e que, juntamente com as lembranças deixadas junto aos túmulos por aqueles que ali passam, fazem do local uma verdadeira manifestação e exposi ção artística.

Estação de trem – Zakopane. Zakopane. Fonte: arquivo pessoal

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Wielka Krokiew Ski Jump- Zakopane e Montanhas Tatra – Zakopane. Fonte:

arquivo pessoal

A neve e o vento gelados se contrapunham ao aquecimento fornecido pelo calor humano recebido, aos poucos o estranho foi sendo assimila do e adaptado. Foram muitas as visitas aos museus, castelos, parques, cemitérios, óperas, restaurantes, igrejas, feiras, cafés, etc. Entres esses deslocamentos encantou-me encontrar nas avenidas centrais de Varsó via bancos em que você podia sentar-se, acionar um dispositivo e ouvir as músicas de Chopin. Também me impressionou a recorrente presença de grupos de crianças polonesas nos museus visitados, observando e conhecendo tudo atentamente. De forma especial me emocionei muito ao ir pela primeira vez à Ópera, no Teatr Wielki, local de sociabilidades múltiplas, gostei tanto que retornei e após acompanhar Lohengrin de Wagner foi à vez de Nabuco, de Verdi.

Por gostar de cinema não poderia deixar de fora a visita ao museu do cartaz (Muzeum Plakatu) situado na capital polonesa. A Polônia tam bém é reconhecida pela escola na produção gráfica e designers que re fletem aspectos políticos, sociais, culturais, econômicos e identitários do país ao longo da sua história. São milhares de cartazes e propagandas de filmes e demais produções culturais e artísticas. Nesse encontro vi sualizei algumas produções de Andrzej Wajda, como os cartazes sobre o filme polonês Katyn, que trata do massacre ocorrido em 1940. Pelos pôsteres conheci a produção sobre Janusz Korczak, médico, pedagogo e escritor polonês, fundador de um orfanato e passando anos de sua existência com as crianças, inclusive, no Gueto de Varsóvia (de forma terrível findou a sua vida no campo de extermínio nazista de Treblinka).

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Museu do Cartaz (Muzeum Plakatu) – Varsóvia. Fonte: arquivo pessoal

Desse modo, pelos espaços transitados, partilhados e convividos, o exótico foi se tornando familiar, conhecido e vivenciado. Fui pro duzindo da heterogeneidade e da diversidade encontrada em um povo e em um país, meus sentidos e interpretações ao que via, sentia e ouvia.

Do retorno ao encontro com o self

As transformações interiores foram sendo processadas no encon tro com a música, com a arte, com a arquitetura, com a culinária, com a literatura por meio dos livros lidos durante a viagem e que contribuíram na imersão aos lugares recém-conhecidos. Foram vivências e experiências partilhadas ao longo de um mês de deslocamentos pela Polônia. Fui sendo agraciada com presentes e lembranças recebidos pelos amigos que fui fazendo nessa viagem. Entre broches, íman e souvenir ganhei o livro: “História de Literatura Polonesa”, livro de Henryk Siewierski. Ainda sobre livros, um em especial me marcou muito pelo contexto: o desconhecido frio de um exterior nevando e os dilemas da fé, dos conflitos humanos em meio à peste. O livro “Uma missa para a cidade de Arras”, de Andrzej Szczypiorski, causou em mim uma sensação de força, poder, contradições e de resistência de um povo tão rico culturalmente e afetado por tantos horrores hu manos. Momento que marcava também transformações particulares em minha vida, que foram se encontrando e se acomodando com

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a introspecção gerada pela leitura e que afloraram reflexões sobre a condição humana:

A cada um chega a hora da revolta. O importante é o homem escolher a hora certa. Se eu tivesse saído de Arras no tempo da loucura, salvaria apenas o bom senso, que, aliás, nunca me faltou. Saindo de pois de tudo isso, salvei uma migalha de fé. Não é muito, mas dá para viver mais um pouco neste melhor dos mundos (SZCZYPIORSKI, 2001, p.154).

E assim a viagem findou. E, por hora, findo também as socializa ções a respeito do vivido na Polônia que habita em mim e na Polônia que foi por mim habitada.

Zakopane.

Fonte: arquivo pessoal

Referências

SZCZYPIORSKI, Andrzej. Uma missa para a cidade de Arras. Editora Estação Liberdade, 2001.

SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Pr zybycien – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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Il viaggio ecosostenibile

Viaggiare mantenendo gli standard attuali comporta effetti negativi dal punto di vista ecologico, sociale ed economico. Per esempio, viaggiare in aereo per andare da Roma a New York comporta un’emissione di anidride carbonica pari all’uso medio di un anno di automobile. La soluzione non è rinunciare al viaggio, che ci permette di creare magici e utili scambi di cultura tra le persone, ma adottare accorgimenti che rendano i nostri viaggi “sostenibili” seguendo uno stile di vita semplice che preservi il pianeta. Ciascuno di noi viaggiando ha un ruolo fonda mentale nel rispetto dell’ambiente; occorre acquisire la consapevolezza che mettere in atto comportamenti che non danneggino l’equilibrio del nostro pianeta sia una sorta di “green mission”.

Per esempio, pensiamo all’organizzazione della nostra valigia

Organizziamo il bagaglio prevedendo di usare una borraccia termi ca che mantenga fresca l’acqua in estate e calde le bevande in inverno. Portiamo con noi delle posate evitando quelle di plastica; utilizziamo fogli di carta cerata per avvolgere il cibo, evitando alluminio e pellicola trasparente.

40 Istituto Via Copernico Pomezia, Roma, Responsabile Progetto Erasmus e Scambi Internaziona li. E-mail: mariacristina.santonocito@hotmail.com

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Se decidiamo di andare al mare, usiamo delle creme solari che siano sicure per la pelle e non contengano sostanze dannose per l’ambiente marino. Portiamo con noi shampoo e bagnoschiuma solidi, oli essenziali da usare come battericidi, cicatrizzanti e disinfettanti. Nei limiti del possibile, iniziamo ad acquistare capi e prodotti per l’igiene, di marchi che si impegnino attivamente nella sostenibilità; acquistiamo prodotti che sostengano l’economia locale.

Come progettare un viaggio in modo sostenibile

L’ideale sarebbe usare treno e autobus di linea, in quanto questi mezzi di trasporto sono l’alternativa meno inquinante. Affidarsi a Tour Ope rator che organizzino viaggi rispettosi dell’ambiente e della popolazione locale. Rivolgersi ad hotel che certifichino l’uso di energie rinnovabili e riducano l’impatto negativo per l’ambiente. Se possibile partire in bas sa stagione per aiutare l’economia locale e risparmiare sull’importo del viaggio.

Comportamenti da adottare durante il viaggio

Informarsi sulla cultura e le tradizioni del paese che si visita per rispettare gli usi e i costumi locali. Mangiare cibo locale per non privarsi di una esperienza unica, in quanto il cibo è identità di un popolo. Evi tare l’uso di moto d’acqua, sperimentare il trekking, la bici, il kajak, che sono più salutari. Non portare via reperti naturali come conchiglie o sabbia, rischiando multe e rovinando l’ambiente naturale; non dare da mangiare agli animali selvatici perché si rischia di alterare il loro ciclo vitale e l’intero ecosistema.

Evitare l’acquisto di bevande in contenitori di plastica, non abbando nare rifiuti e, se possibile, raccogliere quelli che troviamo anche se non sono stati prodotti da noi. Continuare a fare la raccolta differenziata anche in vacanza.

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Turismo sostenibile al mare (hotel)

Caratteristiche:

• energia 100% verde e proveniente da fonti rinnovabili

• prodotti ecolabel per le pulizie e raccolta differenziata

• set di cortesia con prodotti eco-bio e paraben free nelle camere e nella Spa

• sostenibilità ambientale verso l’uso di detergenti e il consumo di acqua

• plastic free

• stampa brochures e cataloghi carta riciclata ed ecologica ed inchio stri vegetali

• auto di servizio 100% elettriche

• alimentazione sana fatta di ingredienti di stagione, genuini e locali, preferibilmente a chilometro 0

• tessuti naturali e locali

• sostegno del territorio con escursioni guidate da parte di personale locale

Turismo sostenibile al lago (hotel)

Caratteristiche:

• uso di materiali come pietra, legno e vetro locali

• controllo qualità dell’aria con ventilazione meccanica e recupero calore

• riduzione dei consumi energetici

• utilizzo della luce naturale grazie alle grandi vetrate

• controllo qualità acustica con materiali isolanti e fibra di vetro

• plastic free

• sostenibilità ambientale verso l’uso di detergenti e il consumo di acqua

• tessuti naturali e locali

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Turismo sostenibile in montagna (hotel)

Caratteristiche:

• costruito con materiali naturali come il legno e seguendo le norme della bioarchitettura

• utilizzo della luce naturale grazie alle grandi vetrate

• energia 100% rinnovabile

• riscaldamento a pavimento nelle zone comuni e ad acqua nelle ca mere

• sostenibilità ambientale verso l’uso di detergenti e il consumo di acqua

• plastic free

• camere prive di sostanze tossiche e di inquinamento elettromagne tico

• alimentazione sana fatta di ingredienti di stagione, genuini e prove nienti dall’orto biologico dell’hotel

• utilizzo di prodotti naturali e locali nella Spa

Turismo sostenibile in città

Caratteristiche:

(hotel)

• zero emissione di CO2 nell’aria

• illuminazione led a basso consumo

• set di cortesia biodegradabili

• sostenibilità ambientale verso l’uso di detergenti e il consumo di acqua

• plastic free

• carta riciclata ed ecologica

• auto di servizio 100% elettrica

• raccolta differenziata

• orto sul tetto fornitore di erbe aromatiche utilizzate in cucina

• alimentazione sana fatta di ingredienti di stagione possibilmente a chilometri 0

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Turismo sostenibile in campagna (hotel)

Caratteristiche:

• utilizzo di materiali della bioedilizia per il restauro conservativo, inclusa la piscina

• utilizzo di materiali e colori naturali per gli arredi

• illuminazione led a basso consumo

• sostenibilità ambientale verso l’uso di detergenti e il consumo di acqua

• eliminazione set di cortesia con utilizzo di dispenser

• cosmetici per bagno bioaziendali e carta igienica biodegradabile

• plastic free

• raccolta differenziata

• riscaldamento solare e utilizzo di stufe a pellet con certificazione per il legno riciclato

• alimentazione sana fatta di ingredienti di stagione a chilometri 0 e biologici

• vendita prodotti alimentari biologici

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Viaggiare e conoscersi

:

partenariato culturale tra Italia e Brasile

Lucia Vitiello41

Maria Cristina Santonocito42

Il viaggio di studio rappresenta il tipo esperienza che più si presta alla metafora della vita come percorso di scoperta: si parte per imparare del le cose e se ne apprendono inaspettatamente altre, sicuramente più in teressanti e forse utili di quelle che eravamo venuti a cercare, una sorta di serendipity che ricorda il destino di quel celebre viaggiatore che parte per arrivare nelle Indie e scopre le Americhe (mi riferisco ovviamente a Cristoforo Colombo). Il viaggio, in fondo, lo possiamo considerare un pretesto per uscire dalla nostra “comfort zone”, dalle nostre più o meno fondate certezze, per verificare la solidità e la forza delle nostre informa zioni e convinzioni, la reale consistenza delle idee che abbiamo sulle cose. Chi viaggia ha, o dovrebbe avere, l’aspirazione a conseguire una visione della realtà delle cose più efficace e vera. Facendo riferimento al viaggio di studio, ritengo molto significativo il progetto che l’Istituto Federale di Rio Grande do Sul di Canoas (Brasile) sta elaborando con L’Istituto Via Copernico di Pomezia (Italia). Lo sco po di questo progetto è quello di creare un partenariato strategico trans nazionale tra l’Italia e il Brasile e in particolare tra la città di Pomezia e la 41 Lettrice Ministeriale UFRGS, Consolato Generale di Italia. E-mail: luciavitiello1@hotmail.it 42 Istituto Via Copernico Pomezia Roma, Responsabile Progetto Erasmus. E-mail: mariacristina.santono cito@hotmail.com

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città di Canoas, per sviluppare iniziative rivolte ai campi dell’istruzione, formazione e innovazione tecnologica, scambio di esperienze e knowhow, condividendo e confrontando idee, buone pratiche e metodi.

In una prospettiva di apprendimento permanente è importante mi gliorare le opportunità di cooperazione e attraversare i “confini” di un paese, una sfida per studenti, insegnanti e tutte le persone coinvolte nella scuola. L’interesse delle istituzioni coinvolte, tra cui anche il Consolato Generale di Italia, è focalizzato sull’agenda 2030 dell’ONU e sull’analisi degli obiettivi 4 e 5 e 11.

Gli obiettivi chiave mirano ad affrontare un’ampia gamma di questioni legate allo sviluppo economico e sociale, tra cui povertà, fame, diritto alla salute e all’istruzione, accesso all’acqua e all’energia, lavoro, crescita eco nomica inclusiva e sostenibile, cambiamento climatico.

Ci si vuole concentrare sullo scambio e l’apprendimento di argomenti che riguardano l’arte, la cultura, le tradizioni, la storia nonché contenuti che abbracciano aree di comune interesse.

Quindi si promuovono la creatività, le nuove tecnologie, nonché l’apprendimento dell’italiano e del portoghese attraverso la collabora zione e gli scambi tra gli educatori e gli studenti.

L’inclusione e l’integrazione rappresentano il presupposto del proget to attraverso il quale si ottiene la conoscenza reciproca e lo scambio di esperienze nel campo dell’istruzione.

L’importanza del progetto, quindi, ha un valore non solo didattico ma rappresenta una tappa di un viaggio che alimenta la crescita perso nale; per un alunno comunicare con studenti di un altro Paese significa crescita personale, autonomia, fiducia nelle proprie capacità culturali e arricchimento linguistico, oltre che apertura mentale e attitudine alla tolleranza. In pratica, lo sviluppo di tutte quelle competenze che si au spicano nella formazione dei futuri cittadini.

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Altos e baixos

Eram dez e meia da manhã de uma terça feira em Porto Alegre. Olhava com inveja quem embarcava no voo da TAP para Lisboa, quando peguei o voo para Guarulhos. Queria o voo da TAP direto para Lisboa, mas o gestor do programa europeu que havia me concedido a vaga para fazer o doutorado sanduíche na Universidade do Porto só tinha convênio com a Lufthansa, portanto eu teria que viajar algumas horas a mais para chegar na cidade do Porto. Cheguei em Guarulhos uma hora depois e fui procurar minha bagagem. Tudo certo. Era só esperar por mais 7 horas e embarcar no terminal dos voos internacionais.

Depois de decorar todas as vitrines das lojinhas de aeroporto, eu finalmente entrei na fila para embarque. Despacha bagagem. Mostra documentos. Uma agente do aeroporto solicita que eu aguarde um pouco para verificar meus documentos. Um sujeito que eu achei que já conhecia me pede para acompanhá-lo até uma salinha. Verificação de rotina. Sento na salinha onde estava es crito Polícia Federal – Interpol. Achei estranho, mas tudo bem, porque achei que alguma dívida que deixei de pagar em alguma companhia telefônica ou coisa que o valha não deveria ter sido tão importante a ponto de acionar a Interpol.

43 Professor do IFRS Campus Canoas. Participou das 8ª e 9ª edições da Feira das Cidades. E-mail: edison. lima@canoas.ifrs.edu.br

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Passados cerca de quarenta minutos um agente da polícia federal, que ostentava um distintivo pendurado no pescoço por uma corrente, que então reconheci da série “aeroporto”, me explica que tem outro sujeito com o mesmo nome que o meu que é procurado pela Interpol. Ele levou um tempo até confirmar que não era eu, mas que estava tudo certo co migo. Ele verificou nos arquivos do governo e via SIGEPE teve certeza de que eu não era o bandido. Mostrou-me que no passaporte não cons tava o nome da mãe, primeira verificação de rotina para desmistificar homônimos.

Saindo dali, tive que correr pois o embarque estava finalizando, já pensando que poderia perder o voo, pois as coisas estavam meio com plicadas para meu lado. Chegando no balcão da Lufthansa, apresento minha passagem e passaporte e o atendente me dá a seguinte informa ção: temos um problema com sua passagem!

Claro! Eu “tenho” um problema. Ele “não tem” um problema. Me diz sorridente que eu havia ganhado um upgrade de classe, e viajaria na classe executiva. Fiquei finalmente feliz com a viagem, pois acredi tei que poderia ao menos esticar os pés, pois achei que as poltronas desta tal classe executiva deveriam ter mais espaços entre elas.

Embarco no avião, enorme, um Boeing 747-8. A comissária me fala, em inglês, que eu deveria subir as escadas. Nem sabia que tinham esca das em um avião. Subo e sou recebido por outro comissário, que me ofe rece espumante e solicita minha jaqueta para guardar em algum lugar. Apresenta meu assento. Creio que daria para colocar umas 6 poltronas da classe econômica no espaço que eu ocuparia nas próximas 12 horas.

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Classe executiva. Fonte: Lufthansa (www.lufthansa.com)

Cardápio para a janta. Espumante e outras bebidas a vontade. Lanches à vontade. Televisão com inúmeros canais. Poltrona com mais de uma dezena de controles que permitiam transformá-la até em cama de quase dois metros de comprimento.

Achei que dormi demais para uma viagem de avião, pois já estava amanhecendo. Sobrevoávamos Paris. Verifiquei pelo mapa da TV que mostrava a posição da aeronave no globo terrestre. Aproveitei mais al gumas mordomias e achei que agora estava tudo muito bem. Chegaria em Frankfurt, pegaria o voo para o Porto duas horas depois do desem barque e chegaria por volta de uma hora da tarde na Universidade do Porto, ponto de encontro de todos os 42 brasileiros selecionados para a edição Erasmus Mundus EBW 2016.

O pouso em solo alemão foi suave e tranquilo. Taxiamento tranquilo. Espera... preocupante. Quarenta minutos de espera e o piloto avisa que teremos que descer na pista porque o terminal de desembarque es tava com um problema.

Um dos maiores aeroportos do mundo com problemas nos finger não é nada tranquilo.

Uma fila de ônibus aguardava o desembarque de todos os 386 passa geiros e a tripulação. Todos descem para a pista, embarcam nos ônibus que andam por uns 15 minutos até chegar ao terminal de desembar que. Assim que passamos a porta de entrada do terminal nos deparamos com o caos. Acho que todos os países do mundo estavam ali represen tados. O salão era grande, mas a quantidade de pessoas era enorme. Um italiano gritava, reclamando de tudo. Soldados alemães com cães tão sérios como eles faziam uma barreira nos portões que davam acesso ao terminal de voos para dentro da Europa. Uma alemã gritava em um megafone, dando notícias em vários idiomas, que o terminal A e seus 44 postos de embarque estava interditado.

Uma hora depois, quando já não era mais possível se movimentar de tanta gente apertada no salão do aeroporto, os policiais e seus cães sumiram. Uma grande porta foi aberta, dando acesso ao desejado ter minal A. Conseguimos andar não mais que 100 metros e encontramos

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novamente os cães e os policiais, guardando outro portão enorme. De pois de 4 horas, alguns portões e o italiano já não conseguir gritar mais alto que o megafone, recebemos a notícia de que o aeroporto havia sido fechado devido a uma falha de segurança: uma mulher e sua filha con seguiram acessar a sala de embarque sem fazer check in. Meu voo que deveria sair às 11 da manhã já era. Mais de 50 voos cancelados. O caos instalado. Muitos contêineres com copos d’água mineral espalhados pe los corredores. Policiais e agentes distribuindo bolachinhas. Filas inter mináveis para entrar nas filas intermináveis para pedir informações de como proceder.

Às 6 horas da tarde consigo chegar a um balcão de atendimento da Lufthansa, companhia que deveria ter me levado 6 horas atrás até a cidade do Porto. Converso com a atendente, tão exausta como todos ali naquele aeroporto. Ela me dá duas opções: colocar meu nome em uma lista de espera para o próximo voo que sairia as 23:30, mas que eu não tinha garantias de que haveria lugar para embarcar, porque a fila de espera era extensa, ou ir para um hotel e pegar na próxima manhã um voo com assento marcado para meu destino. Peço uma sugestão com cara de quem não quer mais esperar. Ela me diz, simpática: pega estes vouchers de transfer, janta, estadia e café da manhã, e vai para o Hotel Intercity. Eu aceito sem hesitar, enquanto ela remarca minha passagem para o voo do dia seguinte. No hotel eu lembrava que havia saído de casa às 9 horas da manhã do dia anterior, e que meu destino final ainda estava a mais de 16 horas de “distância”. Na televisão imagens do aeroporto de Frankfurt fechado por ameaça a bomba. Eu estava lá no meio daquela confusão.

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Outro dia. Novas esperanças. A janta, o banho, a cama e o café da manhã fizeram bem para o ânimo, e era hora de voltar para o aeroporto. Certo de que os alemães e sua organização tinham dado conta do caos. Mas nem mesmo eles conseguiram o inevitável. O aeroporto estava abarrotado de gente. Afinal tantos voos cancelados não se resolvem da noite pro dia – literalmente. Mas consegui embarcar para o Porto com apenas duas horas de atraso.

Chegando finalmente no meu destino me dei conta da bagagem que havia despachado no Brasil. Em que lugar do mundo deveria estar ago ra. Mas sou brasileiro... sou teimoso. Fui à esteira onde deveriam estar as bagagens dos passageiros daquele avião. Surpresa: a minha mala já estava lá me esperando.

Alfândega: em Frankfurt não fiz alfândega devido ao caos do aero porto. Embarquei para Portugal sem carimbo de entrada na Europa. Vai ser cansativo explicar isto tudo para a alfândega portuguesa!

Mas não foi preciso. Também não tinha alfândega em Portugal porque eu estava num voo doméstico. Dois carimbos a menos no passapor te, e imaginando muitas preocupações e explicações a mais na imigra ção de Portugal pela falta deles.

Estava livre em território português. Mas não fazia ideia para onde deveria ir. Se fosse ontem alguém da Universidade do Porto teria me recepcionado, junto com tantos outros brasileiros.

Saindo da sala de desembarque vejo uma jovem segurando um cartaz com meu nome. Vou falar com ela para ver de que se trata. Uma italia na, bolsista da universidade, veio me recepcionar, acompanhada pelo motorista do reitor, que me leva em seu espaçoso Mercedes preto até o alojamento onde estavam acontecendo às reuniões de recepção dos brasileiros. Um português muito simpático me informa que a reunião da tarde ia demorar um bocadinho para terminar, e que eu aproveitasse e almoçasse um bacalhau à moda que ele preparou para a ocasião.

Olhando para aquele prato farto de um excelente bacalhau, tive cer teza de que minha estadia seria como a pulsação do coração: altos e baixos, para me lembrar de que isto é estar vivo.

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Finda a reunião da tarde, saem todos fazendo algazarra. Lembrei-me do recreio dos tempos do colégio. Um rapaz muito simpático vem em minha direção: – Edison, já estávamos preocupados contigo. Que bom que chegou bem!

Meu futuro grande amigo já me conhecia. Dos folhetos do intercâm bio, das notícias da minha viagem e porque eu era o único retardatá rio. Todos já estavam ali há dois dias ou mais. Rapidamente Tiago me apresenta às pessoas. Me pergunta se eu já havia ido na imigração, pois tinha 48 horas de prazo para validar o visto. Certamente não, pois havia recém-chegado em Portugal. Ele me apresenta o Sandro. Achei que já tinha visto ele no filme Auto da Compadecida – um dos cangaceiros do Lampião. Sandro também precisava ir à imigração. Não podia imaginar que estes dois se tornariam, em muito pouco tempo, meus amigos tão próximos e queridos. A distância de casa e a solidão dos nossos amores faz isto conosco: nos possibilita novos encontros.

Os dias passam, as atividades do programa de intercâmbio enchem os dias e as noites. Mas ainda faltava conhecer a cidade do Porto. Lembro da primeira vez que estive aqui, indo de Coimbra para Paris. Vim de trem até a estação São Bento. Peguei um taxi até o aeroporto. Achei a cidade feia, cheia de subidas e descidas. Não gostei. E agora iria morar por meses nesta cidade, que já não me parecia tão feia.

Os arranjos entre os colegas do intercâmbio acabaram por me levar a alugar um apartamento com o Tiago e com o Sandro perto da Casa da Música. Tiago no programa de doutorado em Engenharia e Sandro no doutorado em Artes Cênicas. Parecia bom, mas eu nem imaginava que seria tão bom.

Preocupações com a família que ficara no Brasil, com meu trabalho na Universidade do Porto, com a Tese, coisas que sobressaiam a despeito da cidade que se apresentava sorridente para quem vinha de fora.

Finalmente um dia sem atividades acadêmicas nos permitiu dar um passeio. Dentre tantos, decidimos sair caminhando em direção ao Palá cio de Cristal– nome sugestivo. O lugar é um parque com muitas coisas interessantes para se olhar. Uma feira do livro. Dali finalmente consegui

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ver o Rio d'Ouro e a ponte da Arrábida, majestosa, alta, que separa a parte de cima, mais nova, e a parte de baixo, mais antiga, de uma cidade que se perdeu nas datas de aniversário. Um muro com aparência muito antiga chama nossa atenção. Circunda os limites do Parque. A curiosidade nos leva a uma escadaria também de pedra, aparentemente tão ou mais anti ga que o muro. Ao pé desta escadaricomo uma gruta se abre: paredes de grandes pedras, pedras no alto formando uma caverna, e o chão polido por milhares de solas de calçados, por quase dois mil anos. Estávamos em uma das primeiras ruas pavimentadas da cidade, que dava acesso ao interior do muro da vila, e vinha do cais do d'Ouro. Fiquei imaginando quantas pessoas já passaram por ali. Será que Pedro Alvares Cabral? Al gum soldado Romano? Mouros? Soldados medievais indo lutar nas Cru zadas? As pedras falavam conosco, num sussurrar de mil vozes pedidas no tempo. Tocar o muro que já sentiu o passar das pessoas e do tempo nos dá uma sensação de pequenez e finitude, ao mesmo tempo que nos traz a lembrança de que somos todos da mesma tribo chamada Terra.

Vista da ponte Arrábida. Fonte: arquivo pessoal

A vista da margem do rio é linda: casarios centenários, coloridos, com roupas penduradas nas janelas – tradição da cidade. Uma igreja de pedra, certamente com quase mil anos, nos lembra de que estamos no país mais católico da Europa. Miragaia - olhe para Gaia, do outro lado do rio. Nomes evidentes para lugares evidentes: bem Portugal. Cami nhamos na margem subindo o d'Ouro. Chegamos no Cais da Ribeira. Lugar badalado, cheio de restaurantes e turistas. A Ponte Don Luiz lembra muito a arquitetura da Torre Eiffel, ambas de projetistas da mesma escola. Dalí era possível ir até Vila Nova de Gaia, atravessando o rio pelo

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tabuleiro inferior, mas tinha muito do Porto para desvelar e Gaia ficaria para outro dia.

Rua milenar. Fonte: arquivo pessoal

Tiago queria provar a “Francesinha”. Um sanduíche de entrevero de carnes, recoberto com queijo gratinado, servido dentro de um prato fundo com molho picante. Não achei grandes coisas, mas afinal ainda éramos turistas, precisávamos provar! Como o lugar mais famoso, Café Santiago, ficava perto – ou achávamos que ficava – fomos caminhando. Depois de uns 30 minutos caminhando morro a cima, exaustos, che gamos à rua do Café. Uma extensa fila nos aguardava. Lembrei-me do aeroporto de Frankfurt. Parece que o lugar era realmente famoso: todos estavam na fila para provar o sanduíche de carne e queijo. Olho para o lado e numa porta fechada estava escrito: Restaurante Escondidinho. Nome adequado. Mal dava para ver que estava ali. Chamei Tiago e Sandro e entramos no restaurante. Lindo. Pareciam aqueles restaurantes de filme de 1930. Na verdade, acho que nem em filme eu havia visto um restaurante tão bem decorado. Sentamo-nos à mesa perto da lareira. Faianças enfeitavam as paredes, juntamente com outras tantas peças de decoração antigas. Pedimos alguns pratos. Serviço impecável. Louças, talheres, garção, mètre. Poderia escrever uma página de elo gios e não conseguiria ser justo. Talvez a palavra impressionante fosse mais adequada para a sensação que senti. Saímos dali muito satisfeitos, entendendo que não só o que comemos alimenta o corpo. O lugar e o ambiente importam em muito na experiência gastronômica.

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Queríamos caminhar mais. A tarde ensolarada com seus 25 graus, início de outono, me lembrava do clima de Porto Alegre, que estava a quase 10 mil quilômetros de distância. Uma saudade triste invadia meu coração, pois todos estes metros me separavam naquele momento da minha esposa e de meu filho, que não podiam estar ali comigo. Vi umas senhoras de lenço preto na cabeça. Imediatamente lembrei-me de mi nha avó paterna, de descendência portuguesa – Marques da Silva – que nunca abandonou os hábitos de sua mãe, Maria, que provavelmente herdou-os por gerações.

Ruas estreitas levam a ruas largas, que por sua vez se bifurcam em outras tantas ruas estreitas. Um grupo de estudantes, trajando capas de Harry Potter chama a atenção, com suas músicas e performances. O traje se chama Praxe, e as principais universidades de Portugal fazem questão de manter esta tradição milenar.

Muitas coisas para ver, ouvir, sentir. Decidimos voltar para perto do Rio d'Ouro, mas sem descer o morro. Devagar chegamos à igreja de São Francisco, e logo vislumbramos a Estação São Bento. Trens indo e vindo de todos os lugares de Portugal. Caminhamos mais um pouco e chegamos no alto da Ponte Dom Luis. Fizemos a travessia pelo tabuleiro superior até Vila Nova de Gaia, onde é possível ver toda a margem do d'Ouro de ambos os lados. Impressionante! O pôr do sol, as luzes, o dourado das águas do rio causado pelo sol. Na volta resolvo eternizar algumas imagens de tudo aquilo. Uma foto do Cais da Ribeira, iluminado. Outra foto da Estação São Bento ao cair da noite:

Tantos momentos e caminhadas pediam combustível. Nós três deci dimos que um boteco seria a melhor pedida. Perto dali estava a reitoria da Universidade do Porto. E perto da reitoria, vários botecos. Sentamos

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junto às mesas na parte de fora do restaurante. Tiago pede um “fino”: um copo de cerveja servida na torneira como nossos chopes no Brasil. O garção cobra 20 cêntimos a mais do que ele achou que ia pagar. Por quê? Na rua é mais caro. Dentro do bar é mais barato! Entramos apres sadamente. Estávamos no Piolho, como é conhecido pelos locais o Café Ancora d'Ouro. Lugar muito agradável, mas ao mesmo tempo agitado - as pessoas que lá estavam todas pareciam se conhecer há muito. Pare ciam todos alunos da mesma classe – diriam os Lusitanos. Chamamos o garção que se identifica como André. Conta-nos que quando a faculda de de medicina era no prédio ao lado, os alunos viam sempre neste café estudar para as provas, comemorar as vitórias ou afogar os fracassos. Mas o resultado sempre era o mesmo: muita cerveja. E isto acontecia desde 1909, quando o café foi aberto, e pelo que ele sabia muito pouco mudou desde então. Olhando as placas nas paredes notei uma datada de 1938 que dizia “Comemoração dos 20 anos de formatura da turma de medicina...” De novo impressionante! Qualquer coisa no Brasil com mais de 100 anos é uma relíquia. Aqui é bem comum.

Pedi bolinhos de bacalhau e um fino. O André rapidamente provi denciou bolinhos recém-fritos e uma cerveja bem gelada. Talvez não fosse o melhor bolinho de bacalhau que eu já tenha comido. Certamen te não foi a melhor cerveja. Mas o conjunto da obra merece ser classificado como uma das melhores experiências de viagem que já tive. E tive certeza de que meu aniversário de 50 anos, quando minha esposa e meu filho já estariam ali comigo, seria neste boteco – com todo o carinho que se deve ao termo “boeco”.Depois de alguns finos, muitas conversas com pessoas que nunca havia visto antes, com o André, que nestas alturas já havia se tornado nosso amigo garção do Piolho, decidimos voltar para nosso apartamento.

Caminhar pela rua Cedofeita a uma da manhã é tarefa fácil e agra dável. E nunca estamos sozinhos, pois vários transeuntes se estacionam nas calcadas e arredores para conversar, ou só para ficar pensando na vida. Uma placa explica o nome da rua: Cedofeita, pois a pavimentação da rua foi concluída antes do previsto. Cedo feita. Bem Portugal!

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Aquele caminho que me levava até nossa casa provisória, com minha família substituta Tiago e Sandro, me lembrava que nunca estamos so zinhos. Sempre trazemos conosco, em nossos corações, nossos amores. E nunca estamos inteiros, pois sempre deixamos parte do nosso coração com quem amamos.

E isso é bom!

Sandro, Tiago e Edison. Fonte: arquivo pessoal

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Quando cheguei em Lisboa Me senti tal qual menino Passear, que coisa boa Nas raízes de um destino

A capital portuguesa Tem beleza e tradição Tem vista linda do Tejo Junto ao Parque das Nações

Lisboa de Portugal Nos deixa bem mais felizes Se houve a voz de Cabral É mais raiz das raízes

Lindo fado de Coimbra Toca a alma e o coração São vozes de Portugal Suspiros de uma nação

Círio de Melo45

44 Poesia inspirada em um breve passeio realizado em Portugal e publicada no livro Ler faz bem, declamar também: poesias para todos os gostos, por Círio de Melo (Casa Leiria, 2019).

45 Eletrotécnico e formado em Ciências Econômicas pela PUCRS. Nasceu e mora em Gravataí. Adora de clamar, ler bons livros, viajar. Participou da VIII Feira das Cidades, em 2018. E-mail: cirio.melo@uol.com.br

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Portugal44

Na Fortaleza de Óbidos Escalei a medieval Mergulhando no passado Aventura sem igual

No Santuário de Fátima A fé se vê e se sente É a sinfonia das almas Mar de fé e rio de gente De joelhos, caminhando Para a graça agradecer Livres lágrimas rolando No caminho a percorrer

Navegando pelo Douro Cheguei ao vinho do porto Bebida que vale ouro E a vida ganha conforto

Portugal não foi a guerra Mas é um povo capaz Que não trai a sua terra Tem amor, carinho e paz

Santiago de Compostela Aonde chegam peregrinos Almas feias ficam belas Os velhos viram meninos Confesso, não senti medo Pela Serra da Estrela Nesses quase 2000 metros Descobrindo seus segredos

Me embriaguei com a cidade De Évora e seus jardins Era só felicidade Onde a viagem teve fim.

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The map of my life

: arrivals & departures

If your life was drawn into a map47, how would your journey be? I can talk a bit about mine by dividing it into three life-changing places with their routes and connections. I was born in Halifax to Irish immigrants, I studied in Cambridge, worked in London, ran away to France and emigrated to Brazil. What the future holds... nobody knows; but for sure we will find out at the end of the road.

The first flight I ever took was from Dublin to Bradford. I think all journeys start not from when you leave home but when you start the planning. My grandfather told us that, unlike normally, we wouldn’t

46 A construction worker with NVQ Diploma by The City and Guilds of London Institute, UK. He partici pated in the IX City Fair, in 2019.E-mail: jfduignan@googlemail.com.

47 The maps added to this text have been made3 by the author and belong to his personal archives. To check the map in a full digital version, go on: https://www.google.com/maps/d/viewer?mid=1_qyHFNbZJRNg pzdqwHhJht37LcqzzfZW&ll=16.960554396048625%2C-36.95535709188131&z=3.

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cross the sea by ferry but by plane. The start of a journey is the embark ment of an adventure. My journey was just starting and, thank God, I had no idea what life had mapped out for me.

At that moment, in Ireland, I was filled with excitement and joy; for me, it was a little sad because we were leaving the first home I had ever known. The night before leaving our home in Cashel, famous for having an abbey on a little mountain where my ancestors are buried, we packed our bags, and my grandparents said that I was about to start a new stage of my life with my single mum.

Time of departure… it suddenly felt heavy on my shoulders when I was told to stroke my dog goodbye. He was a furry mongrel with white and brown spots, a beautiful chocolate colour. He was my best friend. At that time cars didn’t have seatbelts, so I kneeled on the back seat waving to the dog, he chased the car until the start of the motorway.

When we arrived at Dublin airport, we had a great lunch of stew. The atmosphere was electric with people coming and going. I was so small, so young, only six years old – the exact age of my daughter now – then my grandfather said he wasn’t going on the flight, and I should be a big boy and look after my mother.

When we left the terminal and walked onto the runway towards the plane, we could see it was a beautiful white with shiny propellers. We climbed the stairs and got into it; it was super exciting. Inside it had around 20 seats and I could see the captains. As it taxied to take off, my

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James and Mossy in Cashel, Ireland, 1990.

mother said: “Don’t be scared, this is just like the Flintstones, yabba dabba do”, and we were of into the sky. During the flight, they served juice for me and coffee for my mother. I just couldn’t sit still and banged her hot coffee and it spilt all over her white jeans. Poor mum, she cried.

After landing and after all the bad things that happened before the flight, I was hooked on the intensity of the adventure we had had. A 17-year-old man boy. My mum had just died.

The first thing I did was to travel. Now in a very different context, with so many feelings bouncing around my head. Death brings sadness, which brings change, and the best thing for change is travel.

With the Iraq war looming, t a negative effect was descending on the UK economy and construction work dried up. One day, I went to the job centre searching for a job; when I was finishing the search, there came onto the screen options for jobs worldwide with choices for spe cific countries. I was there thinking what country I could choose: well, I liked French classes as a schoolboy, so I opened ‘France’, then it gave options for construction jobs, alleluia! I was studying construction, it was a win as I was already taking ‘safety in construction’. I started scrolling down the list and then something popped out, and one of the telephone numbers was for my town, how could that be? A French job with a Cam bridge number? It was crazy, but I called them and had a short interview straight away. They arranged for me to have a full interview that evening. Everything was moving super fast; that same night I was waiting for the man to show up when a beautiful brand-new-Audi-A6-colour-turquoiseblue-green stopped in front of me. Wow, I had an interview with the boss, and he talked directly to me; he explained that the work was immensely physical, but the pay and bonuses were top. I said yes to France. This adventure was slow coming but fast in the execution. I went to a different neighborhood in Cambridge with a duffle bag and £100 in my pocket. Waiting for a car, but instead what arrived was a great big lorry. As we drove south to the ferry terminal of Portsmouth, I can remember the noise and smell of the diesel engine with full excitement. At the port, we booked our places on the ferry; suddenly, the boss man arrived with his wife, taking us to lunch. Leaving England for me started on entering

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the ferry: it was colossal, with a ramp leading to the bowls of the ship, which had multiple decks. Jesus, I was living the life.

James in Nantes, France, 2003. Source: Author’s personal archives

As an Englishman in France, I will never forget the end of the first week - pay day. Lots of money, nothing to do. That was the start of a completely new lifestyle, I was feeling like a weekend millionaire. The workers asked me what I was going to do and if I wanted to go to Barcelona to watch the football team play. In an hour and a half, I was digesting the speed of the Spanish language without understanding one word.

Over the course of 2 years, I flew to many different cities and islands in France, Spain, Holland, and back and forth to my grandparents’ home to eat full English breakfast and, as the Brazilians say (and the English don’t), matar a saudade.

So, travelling for change, well, it certainly did that. I left a skinny boy full of hope and no direction. I returned to England stronger, taller, and muscled, with hope and something completely new: I knew exactly what direction I wanted life to go; I knew how to get there and what people expected of me to be successful. Thank you, travel.

Ten years later, the biggest one, the trip that defined my life today.

After travelling so much, I realized that there is no place on the planet that is inaccessible. Just one month after getting married, I emigrated to Brazil – a country I had no idea about. I was very excited with a new chapter of my life being painted, and in one month flat I sold every pos session I had – even the knives and forks.

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At the time, you could carry two suitcases at 32kg. Jesus, they were bloody heavy! On the way to the bus station, I worked out my grand mother had terminal cancer… that was one of the saddest days of my life. I left my grandmother at Cambridge Trumpington Bus Station. Heart broken. Doors closing. She said: “you must go into your new life with your wife”. So I left her.

Heathrow airport. My wife met me to go for departures with four seri ously heavy bags. At the check in, I was in serious doubt about choosing a new adventure or securing maternal family love. It was the saddest flight I ever took. My entrance into Brazil started in the least happy way possible.

My life in Brazil has been an uphill battle with pepperings of happiness. But with rain comes rainbows: I have a beautiful amazing little girl who brings tears of joy into my heart.

Seven years now. Seven years in Tibet. Well, Brad Pitt had a life chang ing event, so have I! Seven years later, travel into the Americas has given me a family, a house, a business and even a dog, plus a second language, which is cool. The locals still call me ‘the gringo’, and sometimes I have the feeling I will always be a foreigner, and I belong not to a place, but to a family only.

Through travel, I have evolved from an international globe trotter to an immigrant. At 36, I can say life isn’t over, and I am happy in the knowledge I am a hardworking man, a provider to my family and oth ers. These things I have learnt here in the back waters of Gravataí, Rio Grande do Sul, the gaucho land of Brazil.

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James and Lina in Gramado, Brazil, 2020. Source: Author’s personal archives

Travel in the past wasn’t just an adventure but a hope: a hope of find ing a home, the one I had lost so many years ago in Ireland. Now, as we are here looking into future travel, I have the pleasure of planning, not as an individual anymore, but as a family. It is pure adventure without the negatives. We, not I. We are the globe travellers, between arrivals and departures, on the road to discovery.

Travelling still gives me the greatest feeling of freedom. Since the roots of Halifax, Yorkshire, I have travelled to 14 different countries and eaten a vast variety of food. Today, I am a legal alien living in a small town of Latin America and yearn constantly for the adventures of life.

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Nápoles/ Napoli

:

mito e metáfora, hipótese de uma possível viagem/ mito e metafora, ipotesi di un viaggio possibile

Lucia Vitiello48

Português

O conhecimento de uma paisagem, seja ela natural ou cultural, é ple namente percebido quando fazemos uma viagem. Sair do contexto inicia um processo de elaboração mais ou menos consciente que transforma as emoções em inteligência, em um pensamento que processa a experiência e a converte em uma matéria mais ou menos poética. O resultado desse processo é a configuração de uma estrutura narrativa.

A narração da viagem representa sua substância mais nutritiva, capaz de atuar de forma evocativa na mente e no coração de qualquer pessoa, além do tempo e do espaço. A história desta experiência, de forma lite rária, burocrática, científica, geográfica ou outra, permite capitalizar os elementos narrados, atribuindo-lhes uma força sugestiva. Desta forma, o território se enriquece de significado e se torna mais poderoso.

Nos locais que atravessamos inserimos, através das palavras, os nos sos pensamentos, que se corporificam nas árvores, nas costas, nas ruas ou nos vislumbres, transformando esses espaços numa criatura que par tilha a nossa alma. O ato de narrar transfigura o espaço e o tempo em matéria viva, em imaginação no sentido etimológico do termo, ou seja, 48 Professora leitora de italiano na UFRGS, funcionária do Consolato Generale di Italia em Porto Alegre e colaboradora do Programa de Extensão “Olhares sobre as cidades: experiências de viagem”. E-mail: luciavitiello1@hotmail.it

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em “imagem em ação”. E é precisamente a ação destas imagens, tornadas vivas pela nossa consideração, que nos permite dar resultados por vezes desconhecidos e inesperados ao nosso pensamento, permitindo-nos desenvolver novas ideias que nos mudam e que modificam o nosso olhar sobre o mundo, muitas vezes transformador até mesmo nosso destino.

Nenhuma jornada é neutra. Nenhuma jornada nos deixa iguais. Cada viagem é a descoberta de um destino possível e fascinante que pode nos afetar, se apenas permitirmos que ele nos fale.

Nós viajamos por muitos motivos: negócios, fuga, tédio, estudo. A vida nos oferece inúmeros pretextos nesse sentido. Mas mesmo quando não temos condições ou oportunidades para viajar, a narração, a litera tura vêm em nosso auxílio, dando-nos um impulso imaginativo capaz de nos transformar e fazer vibrar nossas vidas.

Partindo dessas premissas, tenho o prazer de sugerir um possível des tino para uma viagem. O território que vos proponho combina, de for ma quase indistinguível, elementos naturais e culturais. Estou falando de Nápoles, minha cidade natal. Um complexo emaranhado de pedras, gestos, sonhos, natureza e sangue. A paisagem física e a paisagem men tal estão inextrincavelmente entrelaçadas, criando um sistema comple xo e cheio de sugestões, em que as palavras desempenham a mesma função que o “novelo de Ariadne” no mito de Teseu como um guia para percorrer o labirinto. Nápoles foi a cidade que construiu meu olhar sobre o mundo. O prin cipal conhecimento que esta cidade me deu foi o do papel das palavras na magia dos lugares. Se o vento da narrativa não atravessa os espaços de nossa experiência, eles se tornam desertos. A história sagrou um espaço, consagra-o ao diferenciá-lo do profano, indiferenciado, privado de significado.

A área em que se encontra a cidade de Nápoles é uma baía cujo ter ritório apresenta uma intensa presença vulcânica. Um majestoso vul cão ativo, o Vesúvio, e uma grande área de crateras e lagos vulcânicos, o Campi Flegrei, cercam a cidade. O Vesúvio não é majestoso apenas porque é grande; é majestoso porque é o verdadeiro governante do ter ritório, ali exerce a sua majestade de forma indiscutível. Confere, com

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imparcialidade suprema, fertilidade, fontes de água saudável e erupções e terremotos espetaculares. Essa fusão de natureza exuberante e perigo iminente produz uma experiência preliminar de perplexidade que nos obriga a abandonar nossas certezas, experimentando imediatamente a verdade real de nossa condição de criaturas frágeis e limitadas. O poder telúrico nos redimensiona e nos devolve nossa verdadeira medida em relação às forças que atuam na Natureza. A experiência dessa consciên cia, no entanto, não se dá com brutalidade e imediatismo. A sensação que se percebe na paisagem é a de um lugar sereno, reconfortante, so lene, que não manifesta o seu perigo potencial. A cultura da cidade de Nápoles nos transmite, em seu mito original, que remonta a três mil anos atrás, esta extraordinária situação ambiental através de uma me táfora que se tornou a substância poética da cidade: o mito da sereia Partenope.

A cidade nasceu, segundo a tradição, em um local frequentado por sereias. A sereia é um ser mitológico que tem, entre as suas conotações dominantes, a de atrair marinheiros com o seu encanto incrível e can ções persuasivas mas, ao mesmo tempo, representa o risco de naufrágio e morte. Exatamente como o território vulcânico, que atrai pela sua ferti lidade e pela graça da sua paisagem, mas põe em perigo pelos seus riscos. Vida e morte, encanto e perigo. Essa dinâmica entre forças antagônicas e complementares ressoa em todos os aspectos da cultura napolitana. De natureza para cultura, forças contrastantes se confrontam e se alimentam gerando um pensamento original e único.

A sereia, guardiã da nossa ideia de cidade, confere um tipo de conhe cimento que nos assusta tremendamente, ferindo mortalmente as nossas crenças e certezas. Muitos marinheiros temiam as sereias exatamen te por isso. Até Ulysses, na Odisséia, se sente tentado a ouvi-las, mas as teme. Para isso, ele é amarrado ao mastro de seu navio e manda sua tripulação tapar os ouvidos com cera e prosseguir com a navegação para não sucumbir à tentação de mergulhar no mar e chegar àquelas costas de onde vem uma canção tão irresistível. Mas, em contrapartida, deve mos ser gratos às sereias. Ai de nós, se nos permitirmos nossas tímidas e tranquilizadoras teorias sobre o significado de nossa existência: nos

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veríamos incapazes de compreender como funciona a realidade. Beleza e perigo, conhecimento e risco são aspectos inseparáveis de todas as nossas explorações. Nápoles encarna e transmite ao mundo essa verdade inevitável por meio do mito que a representa há três milênios. O ma ravilhoso canto da sereia é um perigo, mas o silêncio das sereias, como Kafka lembra em uma de suas famosas histórias, é um desastre certo. No imaginário coletivo, as descrições de Nápoles nunca conheceram meias medidas. Passamos da exaltação hiperbólica à mais amarga difamação, do esplendor de sua nobreza à escuridão de sua miséria, da vita lidade exuberante e alegre ao medo sombrio dos perigos possíveis. Esse contraste se explica pela incapacidade, que muitos possuem, de aceitar a complexidade que tudo permeia.

Nápoles, talvez, seja a cidade que encarna a necessidade de nos liber tarmos de explicações simples e tranquilizadoras, cuidando, ao invés, de nos lembrar da necessidade de manter uma relação honesta e respeitosa com toda a extraordinária vastidão e poder do mundo em que estamos imersos. As sereias não foram imaginadas para impedir nossas viagens, mas para nos fornecer ferramentas e estímulos para entender seu signi ficado e valor. Elas continuarão a nos ensinar a natureza comum da vida e da morte, da luz e da sombra; como é importante ter uma relação cor reta com o mundo, sem preconceitos ideológicos. Viva a paisagem e os lugares que a compõem desfrutando, sem julgá-la, como faz com o pôr do sol ou com o vento. Prossiga aproveitando a oportunidade para olhar a complexidade do mundo sem medo, mas enriquecendo-o com a nossa imaginação. A mesma imaginação de que fala William Butler Yeats: “nos sonhos começam as responsabilidades”. Talvez esta seja nossa verdadeira, grande e única responsabilidade. (Italiano)

La conoscenza di un paesaggio, naturale o culturale che sia, si realizza pienamente nel momento in cui facciamo un viaggio. Lasciare il proprio contesto avvia un processo di elaborazione più o meno consapevole che trasforma le emozioni in intelligenza, in un pensiero che elabora l’espe rienza e la converte in una materia più o meno poetica. L’esito di questo processo è la configurazione di una struttura narrativa.

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La narrazione del viaggio rappresenta la sua sostanza più nutriente in grado di agire evocativamente sulla mente e sul cuore di chiunque, al di là del tempo e dello spazio. Il racconto di questa esperienza, in forma letteraria, burocratica, scientifica, geografica o altro, permette di capita lizzare gli elementi narrati caricandoli di una forza suggestiva. In questo modo il territorio si arricchisce di significato e diventa più potente.

Nei luoghi attraversati si vanno ad innestare, attraverso le parole, i nostri pensieri, che si incarnano negli alberi, nelle coste, nelle strade o negli scorci, trasformando quegli spazi in una creatura che condivi de la nostra anima. L’atto del narrare trasfigura lo spazio e il tempo in materia viva, in immaginazione nel senso etimologico del termine, cioè in “immagine in azione”. Ed è proprio l’azione di queste immagini, rese vive dalla nostra considerazione, che permette di dare esiti talvolta sco nosciuti ed imprevisti ai nostri pensieri, permettendoci di sviluppare idee nuove che ci cambiano e che modificano il nostro sguardo sul mon do trasformando, spesso, anche il nostro destino.

Nessun viaggio è neutro. Nessun viaggio ci lascia uguali. Ogni viaggio è scoperta di un destino possibile e affascinante che può riguardarci se solo gli permettiamo di parlarci.

Ci si mette in viaggio per tanti motivi: affari, fuga, noia, studio. La vita ci offre innumerevoli pretesti in questo senso. Ma anche quando non abbiamo le condizioni o le opportunità per viaggiare, ecco che la narrazione, la letteratura, ci viene in aiuto fornendoci un impulso immaginativo in grado di trasformarci e far vibrare le nostre vite. Partendo da queste premesse mi fa piacere suggerire una destina zione possibile per un viaggio. Il territorio che vi propongo unisce, in modo ormai quasi indistinguibile, elementi naturali e culturali. Sto par lando di Napoli, la mia città. Un complesso intrico di pietre, gesti, sogni, natura e sangue. Paesaggio fisico e paesaggio mentale vi si intrecciano inestricabilmente creando un sistema complesso ricco di suggestioni, in cui le parole svolgono la stessa funzione del “gomitolo di Arianna” del mito di Teseo come guida per percorrere il Labirinto.

Napoli è stata la città che ha costruito il mio sguardo sul mondo. La principale conoscenza che questa città mi ha fornito è stata quella del

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ruolo delle parole nella magia dei luoghi. Se il vento della narrazione non attraversa gli spazi del nostro vissuto, ecco che essi diventano de serto. Il racconto rende sacro uno spazio, lo consacra differenziandolo da quello profano, indifferenziato, privo di significato.

L’area in cui si situa la città di Napoli è una baia il cui territorio ha un’intensa presenza vulcanica. Un maestoso vulcano attivo, il Vesuvio, ed una vasta area di crateri e laghi vulcanici, i Campi Flegrei, circonda no la città. Il Vesuvio non è maestoso solo perché è grande; è maestoso perché è il vero sovrano del territorio, vi esercita la sua maestà in modo indiscutibile. Elargisce, con suprema imparzialità, fertilità, sorgenti d’acqua salubre ed eruzioni spettacolari e terremoti. Questa fusione di natura rigogliosa e di pericolo incombente, produce una preliminare esperienza di sconcerto che ci costringe ad abbandonare le nostre cer tezze, sperimentando subito la reale verità della nostra condizione di creature fragili e limitate. La potenza tellurica ci ridimensiona e ci resti tuisce la nostra vera misura rispetto alle forze che operano nella Natura. L’esperienza di questa consapevolezza, però, non si svolge con brutalità e immediatezza,. La sensazione che si coglie nel paesaggio è quella di un luogo sereno, rassicurante, solenne, che non manifesta il suo poten ziale pericolo. La cultura della città di Napoli ci trasmette, nel suo mito originario, risalente a tremila anni fa, questa straordinaria situazione ambientale attraverso una metafora che è diventata la sostanza poetica della città: il mito della sirena Partenope.

La città nasce, secondo la tradizione, in un luogo frequentato dalle sirene. La sirena è un essere mitologico che ha , tra le sue connotazioni prevalenti, quella di attrarre i naviganti con il suo incredibile fascino e con suadenti canti ma, contemporaneamente, rappresenta il rischio di naufragio e di morte. Esattamente come il territorio vulcanico, che at trae con la sua fertilità e la grazia del suo paesaggio, ma mette in perico lo con i suoi rischi. Vita e morte, fascino e pericolo. Questa dinamica tra forze antagoniste e complementari risuona in ogni aspetto della cultura napoletana. Dalla natura alla cultura, forze contrastanti si affrontano e si alimentano generando un pensiero originale ed unico.

La sirena, che è custode della nostra idea di città, elargisce un tipo

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di conoscenza che spaventa tremendamente, ferendo a morte le nostre convinzioni e sicurezze. Molti naviganti temevano le sirene proprio per questo. Anche Ulisse, nell’Odissea, è tentato di ascoltarle, ma le teme. Per questo si fa legare all’albero maestro della sua nave e ordina al suo equi paggio di tapparsi le orecchie con la cera e procedere nella navigazione per non soccombere alla tentazione di tuffarsi in mare e raggiungere quelle coste da cui arriva un canto così irresistibile. Ma noi dobbiamo invece essere grati alle sirene. Guai se assecondassimo le nostre timide e rassicuranti teorie sul senso della nostra esistenza: ci ritroveremmo in capaci di capire come funziona la realtà. Bellezza e pericolo, conoscenza e rischio sono aspetti inseparabili di ogni nostra esplorazione. Napoli incarna e trasmette al mondo questa ineludibile verità attraverso il mito che la rappresenta da tre millenni. Il meraviglioso canto delle sirene è un pericolo, ma il silenzio delle sirene, come ricorda Kafka in un suo celebre racconto, è un sicuro disastro. Nell’immaginario collettivo le descrizioni di Napoli non conoscono, da sempre, mezze misure. Si passa dall’esaltazione iperbolica alla deni grazione più accanita, dallo splendore della sua nobiltà all’oscurità della sua miseria, dalla vitalità esuberante e gioiosa alla cupa paura per possi bili pericoli che si corrono. Questo contrasto si spiega con l’incapacità, che molti hanno, di accettare la complessità che permea ogni cosa. Napoli, forse, è la città che incarna il bisogno di liberarsi dalle spie gazioni semplici e rassicuranti incaricandosi, invece, di ricordarci la necessità di intrattenere un rapporto onesto e rispettoso con tutta la straordinaria vastità e potenza del mondo in cui siamo immersi. Le si rene non sono state immaginate per impedire i nostri viaggi, ma per fornirci strumenti e stimoli per capirne il senso ed il valore. Esse con tinueranno ad insegnarci la natura comune di vita e morte, di luce ed ombra; quanto sia importante intrattenere con il mondo una relazione corretta e priva di ogni pregiudizio ideologico. Vivere il paesaggio e i luoghi che lo compongono godendone, senza giudicarlo, come si fa con i tramonti o con il vento. Procedere cogliendo l’opportunità di guardare la complessità del mondo senza paura, ma arricchendolo con la nostra immaginazione. La stessa immaginazione di cui parla William Butler

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Yeats: “in dreams begin responsibilities”. Forse è questa la nostra vera, grande ed unica responsabilità.

Eruzione del Vesuvio del 1944. Camillo De Vito - Eruzione del Vesuvio del 26 ottobre 1813, vista da Napoli.

Referências

BACHELARD, Gaston. La poetica dello spazio. Editore Dedalo, 1975.

KAFKA, Franz. Il silenzio delle sirene. Scritti e frammenti postumi 1917/1924. Edi tore Feltrinelli, 1994.

YEATS, William Butler. L’opera poetica. Meridiani Mondadori, 2005.

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