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Polônia: imaginário, encontros e ressignificações Jaqueline Russczyk

Polônia: imaginário, encontros e ressignificações

Jaqueline Russczyk39

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Sou quem sou. Inconcebível acaso como todos os acasos.

Fossem outros os meus antepassados e de outro ninho eu voaria ou de sob outro tronco coberta de escamas eu rastejaria. (SZYMBORSKA, 2011, p. 100)

A viagem à Polônia começa a ser imaginada desde muito cedo em minha vida, caracterizando o itinerário percorrido de modo diferenciado em relação a outras viagens planejadas e realizadas. Foi o desejo de conhecer o país dos meus ancestrais que orientou o percurso. A experiência vivida trouxe encontros, descobertas e ressignificações, pois o familiar se tornou exótico e no peculiar fui encontrando familiaridades, a partir das possíveis aproximações culturais com a minha própria trajetória de vida.

39 Professora de Sociologia do IFRS Campus Canoas. Participou da V, VI e VII edições da Feira das Cidades. E-mail: jaqueline.russczyk@canoas.ifrs.edu.br 116 Que falta faz uma viagem

Para minha surpresa a almejada viagem ocorreu repentinamente quando recebi o convite da Universidade Marie Sklodowska-Curie, Departamento de Estudos Portugueses (Uniwersytet Marii Curie-Sklodowskiej, Zaklad Studiow Portugalistycznych), de Lublin, para proferir uma palestra sobre a pesquisa desenvolvida na Tese de Doutorado sobre o modo de vida da juventude rural e a educação, especialmente o ensino de sociologia como dispositivo para o desenvolvimento humano. Chegando lá fui convidada para ministrar outra palestra junto a Escola Superior de Negócios e Administração de Lublin (Wyższa Szkoła Przedsiębiorczości i Administracji w Lublinie), com uma exposição sobre desenvolvimento, juventude rural e modos de vida no Brasil.

Não houve muito tempo para organizar a viagem e ela ocorreu no período de meados de dezembro de 2014 a meados de janeiro de 2015. A cidade de chegada e de boa parte da minha permanência na Polônia foi a capital, Varsóvia (Warszawa), localizada no centro-leste do país. Em Varsóvia fiquei hospedada no alojamento da Universidade de Varsóvia. Em seguida, me desloquei a Lublin (Lubelskie), leste polonês, me hospedando no alojamento feminino da Universidade Marie Sklodowska-Curie. Terminados os compromissos profissionais, as cidades de Zakopane (Zakopane) e Cracóvia (Kraków), ambas ao sul do país, foram visitadas.

Ponte sobre o Rio Vístula (Wisła) - Varsóvia. Acesso para Lublin, Zakopane e Cracóvia. Fonte: arquivo pessoal Inúmeros foram os percursos, as visitas e os deslocamentos realizados. A Polônia é um país pequeno e recortado por linhas férreas ligando as suas várias regiões de mar, montanhas, campos e lagos, bem como com seus castelos, palácios, museus, parques, universidades, etc.. Terra

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marcada pelo folclore e pelas contribuições de expoentes como Nicolau Copérnico, Frédéric Chopin, Marie Sklodowska-Curie, Bronislaw Malinowski, Władysław Strzemiński, Karol Wojtyla, Wislawa Szymborska, Zygmunt Bauman, Andrzej Wajda, Olga Tokarczuk, entre outros. Diante de tantos elementos naturais e culturais, nesse relato de experiência apenas alguns aspectos da viagem realizada serão trazidos, seja pela familiaridade, seja pela peculiaridade evidenciada.

Palácio Wilanów – Varsóvia.

Palácio Lazienkowski – Varsóvia. Parque Lazienki – Varsóvia. Fonte: arquivo pessoal

Do familiar ao exótico

Minhas recordações remetem aos meus avós conversando em polonês, cantando canções polonesas nas rodas de brincadeiras e até mesmo durante a lida diária do trabalho agrícola, passado vinculado à vida camponesa. Meus ancestrais compunham um grupo de poloneses e de descendentes de polonês fixados em um local hoje chamado de “Linha Bom Jardim”, zona rural do município de Guarani das Missões, no Rio Grande do Sul.

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Devido à ancestralidade polonesa e a convivência com imigrantes poloneses conheci um pouco da Polônia por meio da história oral repassada de geração em geração, assim como pelos relatos de familiares que viveram e/ou que ainda vivem na Polônia. Dessa forma, o habitus incorporado pela socialização foi emergindo e sendo ressignificado in loco, em 2014/2015. Os relatos das guerras e ocupações territoriais, a língua, a culinária, a música, a dança, a religiosidade, parte da arquitetura em madeira e das vestimentas típicas me conduziram ao reconhecido em cada momento vivido na Polônia.

No entanto, mesmo reconhecendo familiaridade com a culinária polonesa, o estranhamento foi inevitável devido à língua e a diversidade encontrada. Tal peculiaridade foi vivenciada já no período natalino, isso porque a viagem ocorreu no fim do ano de 2014, temporada caracterizada por rituais como a ceia da vigília de Natal, que se inicia logo ao fim da tarde. As ruas e os demais ambientes foram tomados pela koledy, que são canções de natal como, por exemplo, a “Bóg Sie Rodzi”, de Francis Karpinski, de 1792. Além disso, nessa ocasião de confraternizações costuma-se servir doze tradicionais pratos.

A culinária polonesa inclui carnes de todos os tipos (porco; peixes – em especial a carpa; aves – como o pato; etc.). A sopa é tradicional (acompanhada ou não de pães caseiros também vendidos nas feiras ao ar livre), destaca-se a sopa de beterraba. Outro prato tradicional é o chucrute e os pierogi (cozido, assado ou frito). Pelo fato de o país ser expressivo produtor de maçã, são muitas as tortas e doces que utilizam essa fruta, juntamente com as framboesas e as amoras, incluídas também no conhecido bolinho por nós chamado de “sonho” e que também pode ser recheado com algumas flores. As bebidas mais comuns são os chás e a vodca.

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Krémowka – “doce do Papa”. Banca de pães - feira no Rynek – Cracóvia Fonte: arquivo pessoal

Vista da cidade de Cracóvia – Rio Vístula. Castelo Wawel – Cracóvia. Fonte: arquivo pessoal

Como tive a oportunidade de confraternizar com os poloneses pude ouvir muitas histórias e adentrar na cultura polonesa. Os relatos sobre a época do comunismo e os conflitos presentes no país eram frequentes, inclusive tive acesso a bilhetes utilizados como “moedas” para comprar ou trocar bens de uso pessoal e de consumo, relatos que lembravam o período vivido como uma época de invasões, escassez e limitações.

Bilhete para aquisição de produtos – memória da Polônia comunista.

Palácio da Cultura e Ciência, símbolo da Varsóvia comunista. Fonte: arquivo pessoal

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Ao fazer turismo, nem sempre estabelecemos aproximações como a oportunidade que tive em conviver com os poloneses, inclusive passando dias em suas residências, pois como possuo familiar residindo no país obtive acessos e convites que nem sempre ocorrem ou, por vezes, demoram tempo para ocorrer porque dizem respeito aos hábitos, a cultura e a convivência entre as pessoas. Observei e presenciei o estranhamento com o envolvimento masculino no cuidado e educação das crianças, assim como presenciei o estranhamento alheio quando estabeleci aproximação ao brincar e/ou observar as crianças no meu entorno. Outro exercício de alteridade, já descrito aqui, foi em relação à inclusão de determinadas flores como alimento, junto a isso devido ao fenótipo das mulheres polonesas, ou seja, em geral são mulheres altas, me direcionei a encontrar roupas para uso próprio no setor juvenil. O hábito da leitura como algo comum à população foi identificado nos espaços públicos e privados em que circulei. Também, na época, me chamou a atenção a permissão de acesso dos animais domésticos ao trem, aos ônibus, aos cafés, enfim, aos vários ambientes de uso comum. Além disso, não esperava encontrar e me causou surpresa tamanha adesão pelo uso do carro como transporte, isso porque o transporte público é de qualidade, abundante e acessível, bem como por já ter viajado para outros países da Europa esperava encontrar a preferência de uso dos bondes, trens, metrô, ônibus e bicicleta.

Os momentos passados em coletividade foram de descontração, conversas e de trocas culturais. Quando mencionei meu interesse em conhecer um campo de concentração não encontrei consenso entre os poloneses sobre a indicação em ir ou não ao local. Muitos poloneses relataram o mal-estar ao se deparar com a história marcada pelas atrocidades do período nazista, outros mencionaram a importância da permanência dos campos de concentração na atualidade como um lugar de memória para o não esquecimento, ou seja, lembrar para não repetir os horrores do passado. Diante dos posicionamentos controversos, decidi ir ao campo de concentração de Majdanek, em Lublin.

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Foto 11: Memorial do campo de concentração Majdanek – Lublin. Fonte: arquivo pessoal

Do exótico ao familiar

O familiar, pouco a pouco, foi tornando-se exótico ao mergulhar nas peculiaridades daquilo que já presenciara de outras maneiras, isto é, por meio de filmes, documentários e livros. Os gostos e aromas foram identificados, mas também ressignificados. Do mesmo modo, a paisagem comum das feiras, dos artesanatos e da arquitetura me aproximou das características preservadas pelos imigrantes poloneses no sul do Brasil. Em especial, me identifiquei com a cidade de Zakopane, a capital do inverno e dos esportes de inverno, na base das Montanhas Tatra. Essa cidade é caracterizada pelas construções em madeira: casas, igrejas, estações e, distintivamente, o seu cemitério (Cemitério Nacional Peksowy Brzyzek, construído por volta de 1850) com túmulos em meio às árvores, obra do artista Stanislaw Witkiewicz, sepultado no local, e que, juntamente com as lembranças deixadas junto aos túmulos por aqueles que ali passam, fazem do local uma verdadeira manifestação e exposição artística.

Estação de trem – Zakopane. Zakopane. Fonte: arquivo pessoal 122 Que falta faz uma viagem

Wielka Krokiew Ski Jump- Zakopane e Montanhas Tatra – Zakopane. Fonte: arquivo pessoal

A neve e o vento gelados se contrapunham ao aquecimento fornecido pelo calor humano recebido, aos poucos o estranho foi sendo assimilado e adaptado. Foram muitas as visitas aos museus, castelos, parques, cemitérios, óperas, restaurantes, igrejas, feiras, cafés, etc. Entres esses deslocamentos encantou-me encontrar nas avenidas centrais de Varsóvia bancos em que você podia sentar-se, acionar um dispositivo e ouvir as músicas de Chopin. Também me impressionou a recorrente presença de grupos de crianças polonesas nos museus visitados, observando e conhecendo tudo atentamente. De forma especial me emocionei muito ao ir pela primeira vez à Ópera, no Teatr Wielki, local de sociabilidades múltiplas, gostei tanto que retornei e após acompanhar Lohengrin de Wagner foi à vez de Nabuco, de Verdi.

Por gostar de cinema não poderia deixar de fora a visita ao museu do cartaz (Muzeum Plakatu) situado na capital polonesa. A Polônia também é reconhecida pela escola na produção gráfica e designers que refletem aspectos políticos, sociais, culturais, econômicos e identitários do país ao longo da sua história. São milhares de cartazes e propagandas de filmes e demais produções culturais e artísticas. Nesse encontro visualizei algumas produções de Andrzej Wajda, como os cartazes sobre o filme polonês Katyn, que trata do massacre ocorrido em 1940. Pelos pôsteres conheci a produção sobre Janusz Korczak, médico, pedagogo e escritor polonês, fundador de um orfanato e passando anos de sua existência com as crianças, inclusive, no Gueto de Varsóvia (de forma terrível findou a sua vida no campo de extermínio nazista de Treblinka).

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Museu do Cartaz (Muzeum Plakatu) – Varsóvia. Fonte: arquivo pessoal

Desse modo, pelos espaços transitados, partilhados e convividos, o exótico foi se tornando familiar, conhecido e vivenciado. Fui produzindo da heterogeneidade e da diversidade encontrada em um povo e em um país, meus sentidos e interpretações ao que via, sentia e ouvia.

Do retorno ao encontro com o self

As transformações interiores foram sendo processadas no encontro com a música, com a arte, com a arquitetura, com a culinária, com a literatura por meio dos livros lidos durante a viagem e que contribuíram na imersão aos lugares recém-conhecidos. Foram vivências e experiências partilhadas ao longo de um mês de deslocamentos pela Polônia. Fui sendo agraciada com presentes e lembranças recebidos pelos amigos que fui fazendo nessa viagem. Entre broches, íman e souvenir ganhei o livro: “História de Literatura Polonesa”, livro de Henryk Siewierski. Ainda sobre livros, um em especial me marcou muito pelo contexto: o desconhecido frio de um exterior nevando e os dilemas da fé, dos conflitos humanos em meio à peste. O livro “Uma missa para a cidade de Arras”, de Andrzej Szczypiorski, causou em mim uma sensação de força, poder, contradições e de resistência de um povo tão rico culturalmente e afetado por tantos horrores humanos. Momento que marcava também transformações particulares em minha vida, que foram se encontrando e se acomodando com

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a introspecção gerada pela leitura e que afloraram reflexões sobre a condição humana:

A cada um chega a hora da revolta. O importante é o homem escolher a hora certa. Se eu tivesse saído de Arras no tempo da loucura, salvaria apenas o bom senso, que, aliás, nunca me faltou. Saindo depois de tudo isso, salvei uma migalha de fé. Não é muito, mas dá para viver mais um pouco neste melhor dos mundos (SZCZYPIORSKI, 2001, p.154).

E assim a viagem findou. E, por hora, findo também as socializações a respeito do vivido na Polônia que habita em mim e na Polônia que foi por mim habitada.

Referências

Zakopane. Fonte: arquivo pessoal

SZCZYPIORSKI, Andrzej. Uma missa para a cidade de Arras. Editora Estação Liberdade, 2001. SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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