Um teto todo nosso: narrativas curtas

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A todos os escritos de mulheres guardados na gaveta.

“Pois acredito que se [...] tivermos quinhentas libras por ano e um espaço próprio; se cultivarmos o hábito da liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensamos; se fugirmos um pouco das salas de visitas e enxergarmos o ser humano não apenas em relação aos outros, mas em relação à realidade, ao céu, às árvores ou a qualquer coisa que possa existir em si mesma; se olharmos além do fantasma de Milton, porque nenhum ser humano deveria bloquear nossa visão; se encararmos o fato, porque é um fato, de que não há em quem se apoiar, e de que seguimos sozinhas e nossa relação é com o mundo da realidade e não só com o mundo de homens e mulheres, então a oportunidade surgirá, e a poeta morta que era a irmã de Shakespeare encarnará no corpo que tantas vezes ela sacrificou.”

(Virginia Woolf - Um teto todo seu )

Sumário Prefácio 9 Ana Júlia Poletto Ciúmes 13 Débora Porto Era uma vez 13 Taís Panapaná Mulher-Maravilha 13 Ana Júlia Poletto Raiva 13 Taís Panapaná A culpa de Eva 14 Brígida Porto A mulher que criou asas 17 Débora Porto As linhas de Evelina 18 Ana Flávia Nejaim A vaidade é um ponto de vista 20 Adna Rahmeier
Barriguda 22 Marlene Farjalla Belo Horizonte 27 Vívian Marchezini Cunha Boa tarde, querida! 33 Mariana Porto Colonizando mentes 37 Pamela Mascarenhas Conversas com o espelho 40 Janaina Couvo Duas e pouco da manhã 44 Vanessa Nascimento Em dobro 48 Lizandra Antunes Escrito por B.R 50 Maria Carolyna Henriques Goiabada com goiabada 56 Mariana Porto “Homens”, de Melina Vargas (1978) 58 Thais Jacóe Soares Lapa 60 Júnia Gaião Ler a si mesma 63 Vívian Marchezini Cunha Mulheres que se cuidam são mais felizes 65 Kelly Cristina Oliveira
Obituário em vida 68 Taís Panapaná O Garoto do Sinal 71 Maria Carolyna Henriques Onde se jogam pensamentos vencidos? 74 Rafaela Cukierkorn O retorno 78 Mirtes Santa Rosa Parada de trem 81 Claudia Vecchi-Anunciatto Sapatos off-white 85 Marlene Farjalla Sobre nascer de uma mãe emocionalmente morta 88 Malu Joyce de Amorim Macedo Summertime 92 Ana Júlia Poletto Trou Noir 95 Juciane Cavalheiro Um cavalo no meu jardim 98 Ana Júlia Poletto Voo G3-7471 99 Daiane Pereira Rodrigues Sobre as autoras 103

Prefácio

Era uma vez: ciúmes, raiva, culpa, asas, vida, vaidade, horizontes, goiabadas, Catarinas, Fátimas, Claras, Anas. E quantas mais? Somos todas e outras tantas. Essa casa habitada tem barulho, tem silêncio, tem perdas e muitas histórias. Virginia Woolf dizia que nós mulheres precisávamos de um teto todo nosso para podermos aqui, viver. E escrever. “Pela ideia existo”, Virginia anotava em seus diários, e também a voz que preenche os cômodos desta casa-corpo. Nós, mulheres, escrevemos nossos sextos (Cixous tem razão), textos em-corporados pelas palavras que circulam nossa cintura, pelas sílabas que escapam pelas mãos, pelas páginas e mais páginas que percorrem nossos cabelos, barrigas, pés e sexo(s). Porque o corpo-casa fala, grita, (re)escreve. Quando abrimos a porta dessa casa toda nossa, descobrimos seus (re)cantos: alguns escuros, outros escancarados com suas janelas e cortinas ao vento. Um teto re-des-construído à várias mãos: cada história que se conta, aumenta-se um ponto?

Talvez. Para as histórias que se cantam, em vozes polifônicas, afinadas ou não, o importante é a voz: esse contar-se e cantar-se como se. ‘Como se’ é o começo do acreditar. “Posso tomar meu rumo: fazer experiências do meu jeito com minha imaginação”, de novo Virginia nos lembra. Podemos acreditar e ser. Porque nesse teto todo nosso, pode ter silêncio, mas não silenciamento,

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porque todas as vozes importam, porque cada história conta, porque cada frase (re)cria a(s) nossa(s) realidade(s).

Somos muitas. E escrevemos. E continuaremos a escrever. Até que o teto se transforme em mundo. E possamos todas contar nossas verdades sem medo e sem pudor(es).

Somos muitas a escrever: em vários gêneros, de várias formas, com muitos sotaques, de tantos lugares, em primeira pessoa (e em tantas outras). Esse teto cresce a cada dia, abrigando e acolhendo nossos muitos livros (os escritos e os adormecidos), com respeito ao tempo e ao espaço de cada uma.

Nesse teto todo nosso, abrimos nossas gavetas, nossos armários, nossas vidas e deixamos o sol entrar. Também nossas luas. Juntas, (trans)bordamos. Como Hélène Cixous nos lembra, “jamais nós nos faltaremos”.

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Ana Júlia Poletto, escritora e descendente da irmã de Shakespeare.

Ciúmes

Débora Porto

Gostou do jeito como ela fazia amor. Foi embora por só conseguir pensar em como ela aprendeu.

Era uma vez

Taís Panapaná

Era uma vez… uma história horrível sem final feliz que você não ouvirá por não valer a pena contar

Mulher-Maravilha

Ana Júlia Poletto

Foi ela quem trouxe o carro nas costas: com as malas, os filhos, e a casa vazia.

Raiva

Taís Panapaná

Na tentativa de proteger os outros dos estilhaços, engoliu-a por inteiro e a explosão veio dentro de si. Implodiu. Talvez devesse ter dividido os pedaços com quem ateou fogo no pavio.

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A culpa de Eva

Entendia Eva desde sempre.

A amargura que imprime sua personalidade, poucos sorrisos. Não lembro de ter visto senão satisfação pouca em seus olhos. Sempre uma verdadeira lealdade com a decepção.

Vejo-me então a imitá-la, ao conhecê-la, lembro de procurar, de garimpar lágrimas, dores, rancores e tragédias, na tentativa constante de afastar afeição eterna. Queria Eva a julgar meu egoísmo, meu egocentrismo redundante e reflexivo, queria que Eva sentisse outra dor que não a sua, queria que Eva sentisse e sofresse com a minha dor!

Poderia ter o coração repleto de coragem ao envolver uma nuance de romantismo naquele embarque, dias passados em total sintonia entre sentimentos e espaço físico restrito. Como poderia Eva ser totalmente envolvida na melancolia daquele navio, bem ao fundo em seu casco sombrio, com ecoar de canções e risos!

Eva sonhadora! Eva encantadora! Eva corajosa!

Eva jaz, pulsante em seu ventre o resquício de vida, impossibilitada de nascer, de respirar. Julgada e condenada por mãos hábeis e corações petrificados, será a vitória do fim ante a dor?

Queria eu ter Eva e suas mãos estranhas, estrangeiras em meu rosto, ela então, acompanhando minhas tentativas de libertação! Eva o faz hoje! Eva ensinava por metáforas, sua sabedoria me acompanha e me acalenta.

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Seus olhos verdes, distantes, descritos e insinuados como de gato. Eva não reflete seu olhar, para não encontrar de forma alguma, alegria.

Eva não quer valsar. Julga ser merecedora somente de dores, somente assim pode alcançar o sonho de retornar ao aconchego e então receber a pura manifestação de afeto.

Palavras incompreensíveis, mas nenhum esforço faria para buscar a comunicação pura, (tanto mais aquela sentimental), que busca, apela, pede, roga e almeja por compreensão. Eva não queria esquecer um momento sequer de arrepender-se, viver e conviver com este pensamento e morrer na certeza de que não cumpriu tudo o que merecia.

É preciso mutilação, não somente a autoimposta, mas deixar-se submeter ao canibalismo ainda consciente. O mais cruel flagelo do mea-culpa, o eternizar da dor.

Como prosseguir com as mazelas desta vida, se fora condenada à revelia, e ainda o é, ao aceitar carregar o fardo, solitária? Eva quer então sentir-se mártir ou altiva ao exteriorizar seus direitos ora garantidos nas leis, mas despercebidos nas saletas marmorizadas, refletidas nos espelhos de cristais adornados?

Eva fora criada sob o julgo do paternalismo e aceitara as imposições por acreditar no destino, tendo somente a coragem que determina a vigília das mães amanhecidas nos berços berrantes de amor eterno. Ao embarcar o navio, aquele que faria sua última viagem, e que naufragaria com os sonhos e flagelos de Eva solitária (ou acompanhada e só), em sua própria e libertária transcendência.

Eva não se desnuda, nem de alma nem de carne, ela fora crer que seu amado a libertaria de toda dor, um príncipe encantado. Ele teceria uma passarela ou talvez um manto (melhor seriam se mágicos), para guardá-la, proteção total e irrestrita, e então poderia deleitar-se das habilidades deste artesão.

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Buscaria Eva somente esse fim, uma terna e quase perfeita visão da imperfeição: Eva morta com seu filho aprisionado no ventre para eternizar o quadro, Eva jaz mãe eterna!

Para esta vida, Eva fora condenada à expulsão do paraíso, seu julgamento fora eterno: a dor a acompanhá-la e sua culpa a condená-la.

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A mulher que criou asas

Acordou às cinco da manhã, como sempre fazia. Se não fizesse isso, como poderia arrumar a cama, preparar a merenda do filho, o almoço do marido, estender no varal as roupas que lavara na noite anterior e ainda se arrumar para o trabalho?

Às sete, pegou o ônibus lotado como sempre. Sem lugar para se sentar, colocou a bolsa pesada no chão entre as pernas.

Desceu do ônibus, caminhou até o trabalho. Limpou o escritório de sua patroa, serviu café para os clientes, levou o lixo para a rua, tirou pó, aspirou, passou pano, limpou os vidros.

Saiu do trabalho depois do horário, repassando a lista de tudo o que faltou fazer no dia. Os ombros não aguentavam o peso de sua sacola. Até que lhe ocorreu de fazer como no ônibus: colocala no chão entre as pernas.

Parou na calçada a duas quadras da parada. Um minuto de descanso, viu seu ônibus dobrando a esquina. Correu com passos maiores que seus pés.

De repente, sentiu seu corpo mais leve. A bolsa resbalou de seu ombro e caiu no chão. Mesmo assim, não quis parar de seguir em frente.

Seus pés foram ganhando asas. Estava voando mais rápida que o tempo. Talvez assim conseguisse dar conta de tudo que ainda precisava fazer hoje.

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As linhas de Evelina

De palavras preencho minha vida, com tudo que me alimenta e me purifica. Sou livre. Estou viva, e a esperança em mim habita”. Foi assim que Evelina se sentiu no momento inexato em que, ao ler aquele microtexto, descobriu o que estava guardado dentro dela. Passaram anos e anos para que pudesse, finalmente, experimentar o êxtase.

A mãe, advogada. O pai, economista. Evelina, filha única, parecia não ter sido feita para alguma coisa que preste. Na escola, em nada era destaque, nem nos números, nem nas letras, nem nas humanidades. A garota olhava para os professores que se colocavam à frente e, feito uma tábula rasa, ouvia tanto, mas não compreendia bulhufas.

A mãe lhe dava pancadinhas na cabeça. “De novo não entendeu a tarefa, Evelina?! Assim não dá!” “Leia, leia, garota!” O pai gritava. “Está tudo aí, escrito. É só fazer o que pede o enunciado”. Com um sorriso desengonçado, Evelina balançava a cabeça e dizia que sim, que havia entendido. E as linhas emaranhadas em sua linda cabecinha demonstravam o contrário. Não havia compreensão. Não havia compreensão alguma.

Evelina cresceu e formou-se. Sabe-se lá como. Os textos passavam por sua vida, provas, atividades, redações, livros obrigatórios, aquilo tudo era blá blá blá sem sentido. “Leia, Evelina! Assim, nem na empresa da família você vai servir pra fazer alguma coisa. Leia, filha! Apenas leia! Está tudo escrito!” Mais uma vez, o pai gritava, enquanto a mãe baixava a cabeça e respirava fundo. “Garota burra, sei lá pra quem puxou.”

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Mas, em um inesperado dia, quando tudo o que se esperava era mais incompreensão, um microconto cruzou o caminho de Evelina e as linhas de seu pensamento se endireitaram em um horizonte amplo e desconhecido:

“Então a palavra VIDA se encontrou com a verdadeira dona: MINHA VIDA. E nada mais foi como antes.”“Minha vida, é isso!” Evelina, com o coração descompassado, disse para si: MINHA VIDA. Desde então, Evelina cavuca contos, crônicas, poemas, romances, todos eles. Feito arqueóloga, escava orações, períodos, parágrafos inteiros. Alinha tudo meticulosamente, como se palavras fossem linhas que se estendem no oceano. Observa os textos nas suas mais variadas formas. Estranha-se estranhando-os. E assim preenche sua vida. “Sou livre. Estou viva, e a esperança em mim habita”.Sim, Evelina descobriu que nunca é tarde para aprender a voar.

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A vaidade é um ponto de vista

Dora está de folga. Ontem foi dia de festa na biblioteca, aniversário de 58 anos, no final da tarde todos comeram nega maluca com um café bem passado. Hoje é feriado. O silêncio da casa tomando conta de suas ideias, resolveu se dar de presente um “dia de princesa” como diziam no salão em que trabalhava.

Começou lavando os cabelos de fios grossos e pretos. Cabelo pesado que pendia liso de sua cabeça. Fez uma mistura com creme de hidratação, babosa de seu jardim e um pouco mais de óleo para pontas ressecadas. Aplicou o creme em cada mecha com atenção e agilidade. Quando terminou, se deu conta que a automaticidade não era produto cosmético para tal ritual. Pra compensar deixou o creme escorrendo 3 horas nas entrelinhas da sacolinha de mercado improvisada como touca.

Depois, deu atenção a suas mãos. Mas, primeiro, decidiu ajeitar as unhas dos pés. Lixou, empurrou a cutícula, pintou. Demorou 1 hora se equilibrando entre a dor nas costas arqueadas para alcançar os dedos e o desconforto para padecer no paraíso com pés sublimes.

Quase desistindo, decidiu fazer as mãos também. Parte do corpo central de sua narrativa. Foi fazendo unhas e ajeitando mãos que a levaram a jornada de conquistar sua casa própria. Achou estranho o movimento das juntas se esticando pra contornar a cutícula da outra mão. Percebeu seu tom de pele. Dora não era nem branca, nem negra. Era morena.

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Assoprando as unhas se flagrou encarando no espelho um rosto que era tão indiferente ao tempo quanto sua própria personalidade. Uma pessoa de terra, seu signo era Capricórnio, se identificava com as raízes das árvores e os campos de trigo que circundavam a cidade onde morava desde o dia do seu nascimento. Quando sentiu as unhas prontas e secas, abriu o chuveiro regulando a temperatura da água na manivela. Abre um pouco, muito quente. Abre muito, muito frio. Queria meio termo. Ela poderia se acostumar com isso de poder ter tempo pra perceber a temperatura da água que a cuida. Deixou morna. Memorizada na paciência tirou o creme dos cabelos. Secou com carinho o couro cabeludo. Pegou a pinça e tirou o excesso de sobrancelha.Então é assim que as madames se sentem após um “dia de princesa”. Na primeira meia hora até que se deslumbrou, nem percebeu, estava cuidando de suas plantas, sujando a pele de barro e acendendo seu cigarro.Um dia de folga, Dora não poderia se acostumar com isso. Puta tempo perdido. Gostava de ser passarinho, que reconstrói todos os dias seu ninho. Apostando na rotina a parte mais valiosa de sua vida. Se refazendo na vitória.

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Barriguda

Eu e Carmem somos amigas desde que nos conhecemos numa viagem em grupo pela Espanha. Em Lauro de Freitas, a proximidade de nossas casas, os mesmos interesses, foi estreitando nossos laços de amizade, e a confiança foi, naturalmente, acontecendo. Fazíamos muitas coisas juntas. Conversávamos sobre tudo. Mas, quando o assunto era sobre sua infância, ela ficava cheia de reservas. Sua história era muito intrigante. Curiosa, eu queria os mínimos detalhes.

– Não vou te entregar tudo de vez – ela me disse, e eu concordei. Numa oportunidade, num fim de semana, quando me convidou para acompanhá-la numa visita a Cruz das Almas, queria visitar sua família e amigos, eu aceitei. No lombo da Ignoro, apelido da velha caminhoneta da Carmem, ela ao volante e eu na garupa, partimos de Salvador para o nosso destino. Quando saímos da cidade, logo que entramos na BR 324, peguei meu pequeno gravador portátil e pedi a ela para baixar a volume da música sertaneja que tocava no rádio.

– Vamos começar a gravar sua história? – perguntei, o dedo sobre a tecla “REC” do gravador.

– Tá certo, Clara. Você não desiste mesmo! – O que você quer saber?

– Conte-me sobre sua infância. Você havia me dito que viveu até os dezesseis anos numa fazenda.

– Foi, sim. Pode ligar o gravador.

Eu e o gravador ouvíamos sua história, quando, no meio da estrada, Carmem me diz:

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– Pode desligar o gravador. Não vou te contar mais nada!

Antes de Cruz das Almas, percebi que a Ignoro havia tomado uma estrada de terra batida, a poeira a invadir nossos cabelos, e o cheiro de estrume a inundar nossas narinas. Os pneus procurando as madeiras, Ignoro atravessa um mata-burros; logo após, uma porteira lhe dá passagem. À nossa frente, encimada, uma senhora casa nos recebe. Toda vestida de branco, as janelas de azul pintadas; uma saia, a rodeá-la, toda a bainha bordada de vasos e de redes; a porta de entrada, um sorriso escancarado:

– Boas tardes, minha menina! – Há quanto tempo que não te vejo!

Seja bem-vinda!

Carmem, à minha frente, a passos apressados, a rodear a saia da casa:

– Pra onde estamos indo, Carmem? Não vamos entrar na casa?

– Tenha paciência. Antes, quero te mostrar uma coisa!

Cem metros depois, ao fundo da casa, árvores frutíferas e outras de troncos bem largos, foram se apresentando. Até que, de repente, Carmem estanca:

– Quero te apresentar a essa aqui. Ela é a minha árvore Barriguda. Fiquei muito encantada. Em seguida, estupefata, quando Carmem retira um tampo em sua barriga. De dentro do útero, uma caixinha de madeira pare em suas mãos:

– Toma, o filho é teu! Vou deixar uns dias com você. Depois me devolva.

Com a caixinha em meus braços, me emociono. E choro. Dentro dela, enlaçados de fita, vários caderninhos a lhes dar os braços. Logo os reconheci. Eram os caderninhos, com as letras do nome “material de ensino”, saltando aos olhos no amarelado branco da capa. Não se lembra se o MEC os disponibilizava, a custo bem baixo, para as escolas estaduais ou diretamente para as crianças.

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– Nossa, você ainda tem esses caderninhos? – Disse a ela, com os olhinhos saltitantes; os dedinhos na fita a desatá-la, feito uma criança.

– Não, não! Não olhe agora. Leve a caixinha com você.

Após o retorno da viagem, as letrinhas garranchadas, passei alguns dias a devorar seus conteúdos. No domingo seguinte, na praça perto de minha morada, recostada numa gorda figueira, abri meu caderno de escrita e comecei a escrever a história de Carmem. Escrevi do meu jeito:

Carmem, minha melhor amiga, morou quase toda a sua infância numa fazenda, de nome Sapucaia, no Município de Sapeaçu, no Recôncavo Baiano. Tinha oito anos de idade quando começou a escrever em seus improvisados diários. E era nos arredores da casa da fazenda, entre pés de laranja, limão, tangerina, que ela se refugiava à sombra de uma árvore, para esvaziar as angústias que a atormentavam.

Havia outras árvores com sombras familiares ao seu redor. Mas, sombras maternas, ela só encontrava na árvore Barriguda. E, era recostada em sua enorme barriga, ouvindo seus batimentos, que ela escrevia sobre sua infância. Sobre como vivia no ambiente rural, cercada dos animais da fazenda. Ficava observando-os a lamberem suas crias. E, intrigada, se perguntava:

– Por que minha mãe não me lambia?

Sentia que tinha alguma coisa errada com o jeito frio com que a mãe, Dona Lucrécia, a criava, diferente do modo caloroso que cercava seu irmão Carlito, um ano mais velho que ela. A mãe nunca batia nele. Só batia nela. Batia sempre em suas pernas. A vestia com calças compridas para que seu pai e a professora da sua escola, que adoravam crianças, não vissem as roxeadas marcas debaixo delas. Também, ameaçava trancafiá-la no seu quarto, caso contasse para eles.

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– Fiquei muito feia, barriguda! – era o que a mãe sempre respondia quando Carmem perguntava por que não havia retrato de quando estava à sua espera. Sabia que seu irmão era um sobrinho, filho de uma solteira e falecida irmã da mãe, que ela pegara para criar. Passaram-se os tempos. A mãe falecera.

Depois do enterro, sentada na cama da mãe, muito chorosa, uma chave se oferece debaixo de um dos travesseiros. Pelo formato deduziu ser do antigo dunquerque logo à sua frente. Dentro dele, um caderno lhe abre os braços.

– Deve ser de receitas. – Carmem, imagina.

Um bolo a lhe fechar a garganta, um calor a lhe queimar o rosto, Carmem, entalada, avança na leitura:

“… foi o maior desgosto da minha vida, quando Brito chegou com a criança no colo, sem me falar nada, e anunciou que ela ia passar uns tempos em nossa casa. Eu logo a reconheci, os olhinhos de jabuticaba, os fartos cabelos até a cintura, ela era um dos onze filhos de nosso amigo Joel Leôncio. Quando lhe perguntei o que estava acontecendo, ele me disse que o amigo havia lhe tomado muito dinheiro emprestado, que lhe desse mais prazo”.

O coração acelerado, Carmem continua lendo:

“Eu lhe perguntei se a menina era para pagar a dívida ele me respondeu: Pode ser que sim, pode ser que não. Se ele não me pagar eu não devolvo a menina! Quando eu disse a ele que não queria a menina, que fosse devolvê-la, ele berrou: Você é uma mulher seca. Não foi capaz de me dar filhos, então, assunto encerrado. Vamos ficar com ela”.

Carmem, sem acreditar no que estava lendo, se pergunta:

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– Será que mais alguém sabia dessa história? Será que Jeruza e seus nove irmãos sabiam?

Resolveu ir para a casa de Jeruza. Era perto, foi andando.

– O que houve, minha filha? – Por que está chorando? – a mãe de sangue, Dona Rosalinda, à porta de sua casa.

– Mainha…

Não disseram mais nada. Apenas, mãe e filha se abraçaram. Desde os cinco anos de idade, as duas famílias amigas e vizinhas, que Carmem via sua mãe de sangue sempre “Barriguda”. Sua árvore já havia parido dez filhos. Onze com ela. Carmem tinha dois anos de idade quando, recém parida, o parto complicado, ela concordou com seu marido Joel deixar que Carmem passasse uns dias na casa da fazenda do Coronel Britivaldo. A mãe, que não sabia da dívida, concordou, desde que a devolvesse, logo que se levantasse da cama. A avó paterna, Dona Leonor, que acompanhava a nora no seu resguardo, mancomunada com o filho devedor:

– Leva essa aqui. A mãe dela tem muitos filhos. Um não vai lhe fazer falta.

– E a dívida fica paga!

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Belo Horizonte

Sávio havia se mudado para o centro de Curitiba no início daquele ano. Fazia planos sobre como aproveitaria o tempo economizado no deslocamento. Antes eram duas horas de ônibus, diariamente, no trajeto de casa para o trabalho e de volta para casa, na periferia. Assistiria aos filmes de que gostava; cozinharia com calma se engajando enfim naquele projeto antigo de cuidar da própria saúde; retomaria a leitura, que no ônibus lhe causava enjoo. Poderia se encontrar com amigos e, quem sabe, se abrir novamente para um relacionamento. Seria bom compartilhar a vida com outra pessoa.

O apartamento era pequeno. Não, pequeno era o anterior, com dois quartos, suíte e uma varandinha. Esse era minúsculo. Uma quitinete no décimo segundo andar, apenas meia-parede separando a cozinha e o quarto-sala. Um tanque meia-boca e um espaço para a velha máquina de lavar. Tudo teria que ser compacto, por isso tinha vendido seus móveis antigos, o que nem era ruim, já que traziam lembranças demais do ex-casamento. Sávio agora tinha uma cama, a máquina, um fogão simples, uma fritadeira que também fazia as vezes de forno, uma geladeira de 280 litros, uma arara para pendurar os casacos que a cidade fria impunha. Era pouco, mas sentia que enfim seria feliz ali.

Mês de março. Sávio começava a se habituar à nova vida quando tudo foi fechado. O trabalho agora seria remoto. Os cinemas e teatros fechados. Os bares, também. As pessoas confinadas. Nada era seguro, as informações eram desencontradas. As notícias do exterior,

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mostradas repetidamente nos canais de jornalismo, alimentavam um medo que nem sabia que sentia antes. Logo ele, que tantas vezes cogitou morrer, agora tremia diante da possibilidade de engrossar as estatísticas do vírus.

Sávio foi, aos poucos, criando uma rotina em seus dias iguais, fechado em sua caixinha de 20m2. Acordar. Tomar uma ducha para espantar do corpo o resto de sono. Ligar a tv, sintonizar no canal de notícias. Preparar o café premium na cafeteira italiana, e encher dele a caneca que trouxe da visita ao irmão no Canadá, anos antes. Partir o pão que ele mesmo fizera na véspera, essa nova habilidade que o tédio oportunizou. Passar uma camada generosa de manteiga e ter assim algum prazer. Acessar as redes sociais e ler notícias e comentários sobre o caos mundial, e quem sabe alguma repercussão sobre o reality show, um bem-vindo universo paralelo.

Depois do café da manhã, ligar o computador e passar o resto do dia emendando reuniões que poderiam ser e-mails – longas e desnecessárias – mas que eram também um jeito de interagir com seres humanos, e não letras ou números. Almoço de fast food entregue por aplicativo e colocado no elevador pelo porteiro, sem contato, muitas vezes comido rapidamente em frente à tela para não perder o prazo combinado com o cliente.

Às cinco da tarde dar uma chegada na janela para pegar o único momento em que o sol batia na quitinete e vê-lo se pondo atrás da igreja de torres que buscam alcançar os céus. Era uma vista bonita, o virologista da internet disse que vitamina D é bom para aumentar a imunidade, e seu psicoterapeuta acrescentou que é bom para a produção de neurotransmissores envolvidos no bem-estar. A altura lhe dava um pouco de vertigem, mas se manter afastado do vírus e da depressão valia o preço. Às dezenove horas, desligar o computador e abrir a primeira lata de cerveja para enfim relaxar. Toda noite o plano era preparar um jantar em seguida, mas Sávio era sempre tragado

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pelo ciclo se preocupar – abrir mais uma cerveja, e comer ficava para o dia seguinte.

Dia que demorava para chegar. Todos os pensamentos que Sávio conseguia evitar ao longo do dia, com trabalho e depois cerveja, encontravam vazão no silêncio das madrugadas. Traziam consigo os medos antigos, dores das quais ele tentava se esconder com seu jeito bonachão e conhecedor dos assuntos mais atuais em música, cinema, tecnologia, política e culinária. Sávio perdeu a conta de quantas noites passou em claro, ora alimentando seus fantasmas, ora tentando desesperadamente afugentá-los daquela pequena quitinete.

E se eu pegar essa doença? Devo fazer parte do grupo de risco, não vou ao médico há anos, nem sei como estão minha glicose, pressão arterial, triglicérides. Se eu morrer, quanto tempo será que demora até alguém descobrir? Talvez ninguém nem se dê conta de que eu morri. Não, talvez o entregador da distribuidora de bebidas perceba pela falta de pedidos. Eu nem tive um filho. Talvez isso seja sinal de sorte. Não vou deixar ninguém órfão. Não devia ter terminado meu casamento. Teria alguém pra compartilhar esse caos hoje em dia. Devia ter sido mais tolerante, ter tentado um pouco mais. Que estúpido. Se estivesse casado ainda, isso tudo estaria mais insuportável. Além de pandemia, discussões e aquele abismo entre a gente. Melhor sozinho. Queria viajar, tudo parece tão perigoso, não há segurança em lugar nenhum. Quanto vai demorar pra eu poder ver meu irmão outra vez? Acho que nunca mais vou amar ninguém. Talvez o mundo acabe antes disso. Certamente ninguém mais vai me amar. Eu, que não consigo manter nada, nenhuma relação. Não consegui manter meu pai em casa. Não consegui fazer minha mãe feliz. Como alguém me amaria? Não há nada de interessante em mim. Sou uma completa falha, um erro no sistema, um design que deu errado. Sou uma farsa, ele pensava insistentemente.

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De vez em quando ligava o som e enchia seu pequeno espaço de música. O som distorcido do Radiohead nas noites mais melancólicas, a psicodelia dos Beatles quando tinha saudade dos amigos, a guitarra de Dick Dale quando se dispunha a sentir alguma paz. A surf music do guitarrista, “o maior de todos”, como costumava dizer, sempre o transportava para sua adolescência numa pequena cidade litorânea em Santa Catarina, quando passava horas diante do mar, assistindo à dança dos surfistas nas ondas. Nunca aprendeu a surfar – temia a força do oceano – mas toda aquela imensidão o fazia sentir-se enfim parte de algo muito grandioso. Ele, que sempre fora uma criança e um adolescente deslocado, se perguntando o que afinal veio fazer neste mundo, ali, diante do mar e ouvindo Dick Dale no walkman, sabia que a vida era maior e que ele fazia parte dela. Uma música do guitarrista lhe gerava sobremaneira esse senso de conexão: se chamava Belo Horizonte, que era uma cidade sem mar, e da qual Sávio conhecia muito pouco. Essa sensação era um mistério para Sávio, que ele apenas deixava existir sem buscar solucionar.

Há alguns meses Sávio encomendara num site gringo uma coletânea de vinis de Dick Dale e um toca-discos. Era coisa grande, não sabia onde colocaria aquilo ali no seu cubículo. Mas quando pensava na experiência de ouvir as músicas que amava na qualidade que só o vinil proporcionaria, sentia seu peito se expandir. Um lugar no mundo de novo, mesmo que por alguns minutos. Mas no exterior estava tudo travado, nada saía dos correios de lá por conta da pandemia.

Tudo que tinha era o que já existia mesmo: seus poucos móveis, seus gadgets, seu trabalho, a torrente de pensamentos na madrugada, a cerveja. Tinha também seu medo, cada vez maior, e sua esperança de dias melhores, minguada a cada notícia de mais mil mortos no dia.

Ao longo dos dias e noites confinado, Sávio olhava para a janela da quitinete e sentia seu coração se acelerar, as pernas bambearem, a boca ficar seca. Não era um apaixonamento, embora parecesse. Mas

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era, definitivamente, uma atração. O medo, que sempre o mantivera distante de lugares altos, agora era muito pequeno frente à possibilidade de sair do inferno que era estar preso consigo mesmo dentro daquelas quatro paredes. Arriscado lá fora, insuportável ali dentroespecialmente dentro de sua cabeça.

Naquele dia os jornais noticiaram duzentas mil mortes. Era mais do que o total da população da vila praiana em que havia nascido. Imaginava toda a sua cidade dizimada e o chefe do executivo com suas falas debochadas, desdenhando a dor de quem estava enlutado, gozando com o sucesso do seu plano de morte. Sávio sentia nojo e se via impotente. Assim como se via impotente diante de sua solidão, diante de suas lembranças, diante do futuro miserável que enxergava quando pensava nas escolhas que havia feito até então. Previa mais uma noite de pesadelo, sem pregar os olhos por um minuto sequer. Não suportaria mais aquilo.

Era cinco da tarde. O dia estava chuvoso, cinza. Sentia sua desesperança movendo suas pernas em direção à janela. Não havia sol. Mas haveria alívio. Quem sabe aquele sonho que se repetiu tantas vezes ao longo de sua vida poderia enfim se realizar. O vento levando sua angústia embora, as gotas de chuva apostando corrida com o corpo em queda livre e o chão, esperado chão, quebrando sua dor e seus ossos em pedaços, explodindo seus órgãos internos e todos os seus fracassos.

Sávio abriu a janela, decidido. Enxugou os olhos, respirou fundo. Um passo à frente - seria o último. Parou ao ouvir o toque do interfone. “Saco”, falou baixinho, como se fosse ser ouvido por alguém. “Boa tarde, seu Sávio. Tem uma encomenda aqui pro senhor que precisa ser assinada. O senhor pode descer? Não entendo nada que tá escrito aqui na nota”, disse o zelador ao interfone.

Entre contrariado e intrigado, Sávio colocou sua máscara PFF2, higienizou suas mãos com álcool em gel e chamou o elevador, tor-

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cendo para não encontrar nenhum vizinho no corredor. Torcida dispensável, pois nesses meses todos poderia contar nos dedos de uma mão os encontros em corredor ou elevador. Desceu. Ao ver a caixa da encomenda não conseguiu conter as lágrimas. Era seu toca-discos e a coletânea de vinis de Dick Dale. Sua fonte de paz na adolescência, seu refúgio da angústia, sua certeza de que fazia parte de algo maior. Sávio sentiu acender dentro de si a esperança que havia perdido há meses. Abraçou a caixa como se abraça um velho amigo, e, sorrindo entre lágrimas, passou o resto da noite na quitinete ouvindo música e cogitando um futuro melhor. Quem sabe, na Belo Horizonte que inspirara Dick Dale naquela música especial.

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Boa tarde, querida!

A senhora que mora na frente da minha casa varre a varanda diariamente, e no mesmo horário. Parece uma atividade sagrada para ela. Mesmo que o vento traga a poeira para o mesmo lugar ou que as folhas de outono continuem caindo, minha vizinha continua varrendo. O barulho da vassoura raspando o piso me lembra o de uma lixa, e me desconcentra completamente, porque mesmo sua casa sendo do outro lado da rua, o som reverbera até o meu quarto no exato momento em que minha aula da faculdade inicia no computador. Soube que perdeu seu marido há mais de um ano, nessa mesma residência. Ele já estava na casa dos 80 e ela tinha 73. Viviam juntos desde os 14 anos dela. Foi o que ouvi de uma vizinha no dia em que ele faleceu. Não consigo nem imaginar como deve ser doloroso estar sozinha depois de uma vida inteira compartilhada com alguém.

As muitas informações que não possuo sobre ela começam a rodar na minha mente e, em um ato súbito, desligo o aparelho, calço meus sapatos e pego o bolo de laranja que havia preparado para o café da tarde. Quero entender os sentimentos dessa mulher solitária. Quero saber quais outros hábitos ela tem. Quero acompanhá-la em um chá. Atravesso a rua com a travessa em mãos e a encontro ainda segurando a vassoura, sorrindo em minha direção como se esperasse minha visita. Logo, aperta o botão do controle e o portão se abre me convidando para entrar.

– Boa tarde, querida! Quer um chá? – diz.

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E como se soubesse o que meus pensamentos anseiam, adentra a porta principal e eu a sigo, com um sentimento de conforto preenchendo meu peito. Nunca havia trocado uma palavra com essa mulher, mas minha alma já a conhecia. – Há tanto tempo que não recebo visitas, querida. Fico feliz que tenha finalmente vindo.

– Finalmente? A senhora me aguardava? – pergunto assustada.

– Estou sempre aguardando algo, querida. Nada mais me surpreende.

E fez–se então o silêncio.

Sento-me à mesa de madeira rústica que fica na cozinha, detectando cada detalhe. Suas mãos, murchas pelo tempo, seguram a chaleira sob a água corrente da torneira. Os cabelos grisalhos, presos de forma frouxa por uma presilha de plástico verde-água. Veste um vestido florido e sandálias confortáveis. Se parece com a minha avó.

– Meus pais sempre moraram nessa mesma casa e eu a observava pela minha janela. – confesso, mesmo parecendo que ela já sabia dessa informação.

– E eu sempre lhe observei de volta, querida. Vi você crescendo e se transformando na moça que é hoje. Mas de longe, sempre de longe.

– Nos conhecemos há tanto tempo e ainda não sei seu nome. –digo pegando a xícara de chá quente que me entrega.

– Minha identidade poucos sabem, querida. Fui esquecida pelo tempo. Meu nome se perdeu quando a voz de quem eu amava se calou.

Ela parece melancólica olhando na direção de algo que não está ali, uma memória.

– Seu marido? – pergunto, tentando confirmar minha própria teoria.

Percebo seu rosto enrijecendo e ela se levanta abruptamente.

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– Aquele homem nunca foi meu amor, querida. Na verdade, você me lembra muito de quem doei meu coração. Ela tinha os cabelos longos e cacheados como os seus. Posso tocá-los?

Concordo e ela se aproxima separando os fios em mechas com seus dedos frágeis. Noto uma lágrima escapar de seus olhos perdidos.

– Por que a senhora varre a varanda todos os dias no mesmo horário? – questiono tentando conseguir alguma informação concreta.

– Na rotina eu não me perco, querida. Não posso deixar o tempo esvair mais partes de mim. Estou tentando sobreviver enquanto ainda consigo.

Afastando–se de mim, encontra em uma gaveta da sala de estar algo que, pela sua expressão, é valioso demais. Vejo em seus dedos uma fotografia muito antiga.

– Esta sou eu. – esclarece me entregando sua relíquia. Na foto em preto e branco, vejo uma jovem sentada embaixo de uma árvore robusta, provavelmente em um parque, descalça. A grama e os raios de sol tocando sua pele clara. Seu sorriso era evidente, pois estava fazendo algo que lhe agradava. Estava escrevendo.

Viro a fotografia e encontro escritos à mão os seguintes dizeres:

“Clara, você é muito mais bonita quando escreve.

08/06/1975”

Eu escrevi todo o nosso romance, querida. Meu e de Joana. Durou quase cinquenta anos toda a nossa história, mas ela já se foi e nunca lerá a dedicatória que fiz para ela. Sabe, hoje eu tenho quase 75 anos, mas posso dizer com tranquilidade que só vivi de verdade os anos em que tive Joana ao meu lado.

– E onde a senhora guarda essa história?

– No peito, querida.

– E a tal dedicatória?

– Foi impressa pela minha voz no dia em que o homem com quem me casei morreu. Contei a ele sobre meu amor secreto e que queria

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deixá-lo para viver ao lado dela. Já era tarde, querida, mas foi necessário para diminuir essa angústia causada pelo anseio do não vivido. Espero que me entenda.

– E a senhora nunca quis publicar essa história? É melancolicamente bonita. É poética. – meus olhos marejados a observam com fome de mais informações.

– Eu não. Mas você irá. – Clara pega uma caixa no alto de uma prateleira no corredor. – Aqui estão as cartas, as fotos e os cadernos onde eu costumava escrever. Transforme isso tudo no que você preferir, querida. Apenas afaste de mim as lembranças tão doídas.

– Por que eu? – indago perplexa.

– Porque você me lembra Joana, querida. Ao entregar-te a nossa história, sinto que estou finalmente dando o meu coração por completo ao meu verdadeiro amor.

E foi nesse momento que entendi o propósito da minha vida. Prometi a ela criar um universo em que o amor das duas fosse possível.

Na semana seguinte, não pude mais ouvir o som da vassoura no piso. A casa estava à venda.

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Colonizando mentes

Minha mãe falava “responda isso” e “diga aquilo” a qualquer contato adulto para a criança que era eu. Não lembro de esperar minha própria expressão. Um dia não respondi mais, nem o “obrigada” nem o “tchau, até mais” do roteiro ensinado por ela.

Aí, na altura dos meus 40, vem um homem me “guiar”. Era um sábado, 15 de dezembro de 18, Copacabana, eu caminhava em direção ao Leme e avistei. Ele também me viu, acenou. Fui para a outra calçada, e ele foi junto, como se fosse um convite. Ficamos frente a frente. Abriu um sorriso, revirei os olhos. Perguntou como eu estava, não deu tempo para resposta. Insistiu que eu precisava saber tal coisa, passar por não sei onde. Disse que eu era, na visão dele, apesar da minha idade, muito inocente. A boa notícia: eu tinha potencial. Eu teria que começar lendo cinco livros espiritualistas e, como um auxílio na jornada que ele estava me indicando, eu poderia passar por uma terapia holística oferecida por ele, e deveria ir sozinha. Eu estava em uma onda mais espiritualizada, e ele sabia. Também estava há anos passando por terapias holísticas, e ele sabia. Convivemos em um ambiente de trabalho até um pouco antes daquele encontro. Falo demais, e ele tudo ouvia.

Quando eu ia falar “valeu, falou” e me retirar, tive meu primeiro insight metafísico, arregalei os olhos e declarei:

— Você está salvando minha vida. Eu estava sem perspectiva. Tenho uma dívida, pela sua generosidade de me indicar um caminho.

— É natural, tem muito ainda a aprender. Eu sou um iniciado em muitos saberes que apenas pessoas muito avançadas na busca espiri-

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tual têm acesso. Eu sei bem o que digo e tenho autorização para dizer o que digo. Consigo ver claramente onde você pode chegar.

Anotei um endereço em um pedaço de lenço com o ranço do meu nariz, com a caneta que também estava na minha bolsa de pano.

— Eu quero e preciso te dar um presente, como gesto de gratidão pela sua atenção comigo, e já sei o que posso te dar. Por favor, vá até este endereço e diga ao Carlos que eu te enviei para pegar a escultura. Não levo até você pois estou indo buscar minha mala para uma viagem ao Panamá. De lá, vou providenciar essas leituras e, assim que eu voltar, marcamos a terapia. Mas vá mesmo e assim me fará outro favor, pois o Carlos está ficando sem espaço para guardar essa escultura pra mim.

No caminho para o “Panamá”, vulgo minha casa no Estácio, a 11 km dali, liguei para o Carlos. Ele estava morando há alguns meses em outra cidade, Itaboraí, a 58 km de distância de Copacabana. Também por isso, duvidei que o André fosse seguir a jornada até a prometida escultura. Mas, dois dias depois, lá estava ele.

O nome do homem de Copacabana, a propósito, é André, tem seus cinquenta e tantos anos, um cabelo fino distribuído de forma desarmônica pela cabeça, exala feridas de um poder não realizado e prefiro parar por aqui.

— André, é um prazer te conhecer — disse o Carlos com aquela voz mansa, lenta, dando um abraço nele. O Carlos tem movimentos pausados e costuma usar roupas esvoaçantes e coloridas. Tatuagens aqui e ali, pulseiras, brincos e cordões, o cabelo curtinho que ele mesmo corta.

— Muito prazer, Carlos, eu estou aqui para buscar uma escultura que a Ane quer me presentear.

— Claro, claro, entre, por favor, fique à vontade, tá bem? Eu vou buscar água pra você. Aceita uma frutinha, uma siriguela, uma castanha?

— Aceito a água, por favor.

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Carlos é artista. Quem chega na casa dele corre o risco de ficar envolvido em ensaios e estudos de performance que duram horas, às vezes dias, depende do tempo que você tem.

Já o André é uma pessoa que gosta de informar a qualquer momento que tem um QI acima da média. Parece mentira, mas há seres humanos assim por aí. Aproveito para aconselhar que, com pessoas assim, todo cuidado é pouco.

Como eu tinha pedido, Carlos aproveitou a confiança de André no próprio suposto alto QI para ir envolvendo ele em um “novo e revolucionário” estudo artístico. Homem de posses, André trabalhava quando queria e tinha saído do lugar onde eu ainda trabalho por estar entediado de não fazer diferença no local.

André ficou cinco dias na casa de Carlos, feliz de fazer parte. Teve sua revelação: tinha nascido para ser artista, ia abrir um ateliê e contribuir para a arte brasileira. Carlos, então, teve sua deixa, agradeceu por toda a contribuição de André e pediu gentilmente que se retirasse de sua casa. Sobre a escultura, não sei o que se deu na conversa, talvez André tenha esquecido e Carlos não tocou no assunto já que não tinha escultura ali.

Estava no sofá com minha pipoca, o celular notificou. Era uma mensagem do André, “infelizmente”, não ia poder mais me oferecer sua “terapia de cura”, estava completamente envolvido em outros projetos.

Não me entenda mal, eu não saio por aí colonizando mentes. Foi uma epifania e agora o André parece mais feliz. Boa sorte pra ele.

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Conversas com o espelho

Helena acorda e, ao olhar seu reflexo no espelho, chega a uma triste conclusão: são trinta anos vivendo um dia de cada vez... E sem chegar a lugar algum.

Atualmente, a solidão bate à sua porta com força, algo que ela vem trabalhando há anos na terapia, tentando controlar o avanço da depressão. E é assustador não ter o controle de seus sentimentos, não conseguir respirar fundo diante de situações simples do cotidiano. Em seu estado depressivo, sempre demora uma eternidade para que ela decida o que fazer da sua vida.

Perdeu os pais aos 17 anos, devido a um acidente de ônibus, na cidadezinha onde vivia. Este foi o momento mais marcante de sua vida. Foi a primeira vez que ela se sentiu sozinha no mundo. Faltavam poucos meses para que ela se tornasse maior de idade, e antes de construir seu caminho, ela precisou morar um tempo com uma prima, até esse momento chegar.

Aos 19 anos, ela já era uma mulher independente. Apesar de estar finalizando o ensino médio numa escola noturna, ela precisou se adequar à nova vida: trabalhar pelo dia e estudar à noite. Sempre tinha em sua mente as palavras de sua mãe, que sempre dizia: “Nena, só através dos estudos que você consegue mudar a sua vida, construir sonhos. Não pare de estudar, por mais que surjam pedras no caminho, contorne-as e siga em frente!”. Com essas palavras, ela nunca desistiu, e foi assim que conseguiu entrar para o curso técnico

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de desenhista, um sonho que ela rabiscava nos seus cadernos desde criança.

Através desse curso, ela foi contratada por uma editora, e passou a fazer parte de um grupo de profissionais que auxiliava na criação das ilustrações. Foi nesse trabalho que ela conheceu sua grande amiga, Zaira, uma revisora que também morava sozinha na capital. Assim, as duas aos poucos foram construindo um laço de amizade forte, que as tornava quase irmãs. Como Helena costumava dizer, eram “irmãs de alma”.

Sempre que podiam, as duas tiravam férias juntas e decidiam fazer uma viagem, conhecer lugares, pessoas. Neste momento, a vida das duas está de cabeça para baixo, pois uma está vivendo o auge da sua depressão e a outra recebeu um diagnóstico de um problema de saúde, que ela guardou a sete chaves, dizendo para si mesma que não se permitiria se abalar tanto. Iria se tratar, mas, antes, sairia em uma viagem com sua grande amiga, pois não saberia se teriam outra oportunidade em pouco tempo, já que seu tratamento seria longo e desgastante.

Procurou Helena, que estava em casa num sábado à noite, comendo pipoca e curtindo suas dores internas e fez a proposta: vamos viajar!

A amiga logo olhou-a com ar de assustada e disse que não dava, porque não estavam de férias, mas, Zaira já havia falado com sua chefe, que entendeu a situação e concordou e fazer um replanejamento das férias das duas, permitindo que elas pudessem viajar por 15 dias. Assim, Helena levantou-se do sofá e abraçou a amiga, com lágrimas nos olhos de alegria, porque era tudo o que ela precisava neste momento em que a depressão estava balançando sua vida Ficou questionando a amiga o porquê dessa decisão repentina. Zaira desconversou, mudando logo de assunto e mostrando as sugestões de viagens para as duas.

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Logo Helena deixou seus pensamentos depressivos para trás e entrou na empolgação de Zaira, saindo para arrumar suas malas, enquanto a amiga também ia para seu apartamento arrumar as suas. Neste tempo, Helena refletiu sobre a sua situação, sua tristeza que muitas vezes fazia com que ela deixasse de viver e sentir as coisas boas da vida. Sabia que tudo dependia dela, mas ter uma amiga como Zaira, que consegue animá-la, incentivá-la a sair deste buraco que a depressão a colocava, era uma grande benção. E por essa amiga ela faria tudo, inclusive, respirar fundo e mandar a depressão embora por um tempo.

As duas decidiram viajar para conhecer a cidade histórica de Ouro Preto, já que estavam em julho e aquela cidade tinha um importante festival cultural neste período.

Saíram dois dias depois, indo para Belo Horizonte e de lá, pegando um ônibus para a cidade histórica. Chegaram num final de tarde, um friozinho gostoso e um clima festivo. Escolheram uma hospedagem no centro, perto de onde tudo acontece. Foi uma semana de muito conhecimento, visita aos museus, exposições, além de shows e muita alegria estampada no rosto das duas. Precisavam daquela viagem!

Antes de retornarem para casa, ainda ficaram um final de semana conhecendo a capital mineira e aproveitando as delícias da sua culinária.

Uma semana se passou, e estavam as duas desmontando as bagagens. No dia seguinte retornaria ao trabalho, renovada depois dessa viagem. Porém, não sabia que Zaira não retornaria. Ela deixou para contar a Helena o seu diagnóstico preocupante de saúde no dia seguinte, num almoço em que ela explicou a necessidade do afastamento do trabalho e como seria sua vida pelos próximos meses.

Helena ficou surpresa, mas já desconfiava de algo, porém, não esperava que se concretizasse. Abraçou a amiga e tornou-se sua companheira diária, dando força ao longo das suas idas e vindas ao

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hospital. Mudou-se para próximo da amiga e, sempre que podia, acompanhava Zaira no tratamento de saúde. Um dia, ela logo que acordou, olhou-se no espelho e fez a mesma reflexão de meses atrás: trinta anos, bem vividos, apesar dos altos e baixos... Estava viva, tinha seu trabalho e uma amiga maravilhosa que estava vivendo um momento difícil, e que encarava tudo com tranquilidade. Por que ela, não ser grata? Essa foi a pergunta que fez, mas já sabia a resposta.

Passou a sentir gratidão pela vida, independentemente de como ela esteja.

De poder ajudar uma amiga em um momento difícil. Em trabalhar, em respirar, criar seus desenhos e ver o nascer e o pôr do sol sempre que possível.

“Gratidão pela vida!” Era isso que ela dizia para si mesma ao se olhar no espelho, todos os dias, ao acordar.

A depressão? Estava sempre ali, à espreita, mas ela fazia o possível para não dar espaço. Aprendera a lidar com ela.

E sua amiga Zaira?

Já fazia planos para uma nova viagem, daqui a um ano, quando estivesse recuperada.

Porque vai passar.

Tudo passa.

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Um

Duas e pouco da manhã

— Que horas é o dentista da Manu amanhã mesmo?

— Logo depois do almoço.

— Vamos ter que almoçar lá perto pra não correr o risco de pegar trânsito e atrasar. Não esquece de levar a escova de dentes. Imagina se a menina abre a boca com os dentes todos sujos? O que o dentista vai pensar de você? Vai achar que é uma mãe de merda.

— Mas você é uma mãe de merda. Quantas vezes a Manu já não foi dormir sem escovar os dentes? Leva o fio dental também.

— Vou levar. Ela deve estar cheia de cárie. Nossa, que mãe de merda.

— É, devia ter pensado nisso nos dias que ficou com preguiça de discutir quando ela fez birra pra escovar os dentes. Agora assume as consequências.

— Duas e quarenta e sete da manhã. Vai dormir que o dia vai ser cheio.

— Ah, só mais uma coisa. Não se esquece de comprar o shampoo anti-caspa do Marco Aurélio. A última vez que ele ficou sem, o ombro do terno ficou todo branco, mostrando puro desleixo. O que você acha que os funcionários dele acharam? Que você é uma esposa de merda.

— Aff, que vida insuportável.

— Duas e quarenta e oito da manhã. Não começa com esse tipo de pensamento, senão não dorme mais hoje. Foca na respiração.

— Inspira.

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— Mas só uma suposição. Se você pudesse estar em outro lugar. Qualquer lugar. Onde estaria?

— Exatamente onde estou. Cuidando da minha família que é onde uma mulher direita deve estar.

— Não. Sério. Finge que a família não existe. Onde estaria?

— Ah, se a família não existisse eu me juntava à trupe de palhaços que vimos lá no centro distribuindo panfletos do espetáculo hoje mais cedo.

— Sabia!

— Sempre sonhei em estudar palhaçaria. Mas claro que ninguém sabe disso. Imagina se o Marco Aurélio descobre que meu sonho é ser palhaça. Me larga na hora.

— E isso seria tão ruim assim? Você não é feliz nesse casamento mesmo. Nunca foi realmente apaixonada pelo Marco Aurelio.

— Tenho que agradecer por ter um homem de bem ao meu lado. Um bom pai e um marido que me respeita. Já viu a quantidade de homem que não presta por aí? Pelo menos com ele tenho a segurança de uma família.

— Se esforçando para ser quem não é? Para pertencer a um mundo que você não quer pertencer?

— Duas e quarenta e nove da manhã. Respira e vai dormir.

— Inspira.

— Expira.

— Isso. Mais uma vez.

— Inspira.

— Expira.

— Então já aceitou que vai morrer sem nunca ter beijado uma mulher?

— Aff. Hoje tá difícil, hein?

— Pede logo o divórcio e vai viver sua vida sem culpa. Sua filha precisa do exemplo de uma mãe feliz. O que adianta estar presente se

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está sempre de mau humor? Sem querer estar aqui? Pelo menos vai lá. Vai assistir à trupe. Você sabe que quer ver a palhaça Pipoca de novo. É bem no horário do ballet da Manu. Deixa ela lá e vai. Ninguém precisa saber.

— Essa cidade é um ovo. Acha mesmo que os amiguinhos da Manu não vão estar lá? Acho que ela é a única criança que não gosta de circo.

— Se alguém perguntar por ela, diz que ela não gosta, mas que você adora. Então foi sozinha. Simples.

— Pára de falar que é simples.

— Desculpa.

— Agora vai dormir.

— Inspira.

— Expira.

— A palhaça Pipoca deve ser linda por baixo da maquiagem. A voz dela é linda.

— Aff. Vai dormir.

— Não consigo tirar ela da cabeça. Que loucura. Preciso ver aquela mulher de novo.

— Imagina que loucura uma mãe de família séria como você, se apaixonar por uma palhaça? Se alguém descobre... Já tô até vendo você sendo excluída do grupo de WhatsApp das mães.

— Foda-se o que vão dizer! Quantas vezes você já sentiu o coração palpitar do jeito que sentiu quando tocou a mão da Pipoca na hora que ela lhe entregou o panfleto?

— Nenhuma.

— E vai passar a vida toda se perguntando como seria sua vida se tivesse tido coragem de seguir seu coração?

— Você é uma mãe de família. Se dê ao respeito.

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— Vou só assistir ao espetáculo de longe. Nem que seja pra ver a Pipoca uma última vez. Ou as próximas 3 que vou estar livre. Posso deixar a Manu no ballet e ir na sessão das cinco da tarde.

— Ela nem vai lembrar de você. Deve ter entregue panfletos para centenas de pessoas.

— Mas eu senti que ela também sentiu algo diferente.

— Então vai descobrir o que foi.

— Duas e cinquenta da manhã.

— Inspira.

— Expira.

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Um

Em dobro

Os dois homens estavam impacientes. Um mantinha as mãos grudadas no vidro, o rosto apoiado entre elas, os olhos tão atentos quanto uma águia que mira a presa; já o outro, este contava no pulso os segundos até o desfecho daquela história, perambulando pelos cantos sem dar descanso às próprias pernas.

José Maria era aflito. “Adiante, mulher!”, dizia ele, fitando aperreado o relógio no braço. João Paulo era mais contido, concentrado. “Vai… vai, guria...”, era só o que ele murmurava. José Maria ia de um lado para o outro. “E essa bexiga de hora que não passa... nego, é barril!”, reclamava ele. João Paulo quase não respirava e, quando o fazia, era capaz de embaçar todo o vidro com o bafo que lhe saía da boca; nessa situação, se mal conseguia fazer o essencial, quem diria ficar tagarelando! Ele preferia apenas ignorar a incessante agitação de seu companheiro de espera, mesmo sem poder negar que internamente se encontrava no mesmíssimo estado do outro.

José Maria, servidor público, já à beira da crise dos trinta e cinco, ele não parava quieto um segundo sequer e ainda não havia sido capaz de decifrar a aparente plenitude de espírito de seu colega; é que era bicho arretado o tal baiano mulato. Já João Paulo, gaúcho pálido, professor universitário, falido e bem pra lá dos quarenta, esse exercia a paciência com o sujeito ao lado, já que não era capaz de demonstrar tão bem sua própria inquietação quanto aquele que lhe acompanhava.

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Tão diferentes, mas tão iguais naquele momento; presos a São Paulo pelo mesmo angustiante sufoco. Se tivessem conhecimento de sua real situação, não duvido nada que tivessem trocado um abraço amigo com direito a tapinhas no ombro. Foi então que aconteceu: finalmente os dois ouviram o choro! Maria Flor respirava fundo depois de tanto berrar e olhava para eles com expectativa e falta de fôlego. O médico tomou o menino no colo e foi mostrar à mãe, que de ansiedade recusou o privilégio e mandou que a criança fosse logo apresentada ao pai. Os olhos da dupla foram direto para os braços do doutor: já não podiam mais esperar para desvendar o maldito mistério. E qual não foi a surpresa! Aqui jaz o que se sucedeu: o doutor com o menino nos braços, Maria Flor com a adrenalina no teto, e dois pares de olhos atentos ao lado de lá do vidro. Logo o baiano ficou pálido. O gaúcho enrubesceu. Maria Flor não respirou. O doutor não entendeu. José Maria desmaiou primeiro. João Paulo caiu logo depois. O moleque era chinesinho. Desmaiou por último Maria Flor.

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Escrito por B.R

Dormir havia se tornado um fardo para Beatrice e, naquela noite, não seria diferente. Se mexeu rebeldemente pela cama, como quem quisesse inconscientemente expulsar aquelas lembranças, as piores de sua breve vida, até hoje. Ela tinha apenas vinte e sete, jovem demais para se sentir cansada da vida, mas velha demais para tentar recomeçar. Era o que eles diziam.

– Uma mulher divorciada é uma mulher perdida! – a voz dura de seu pai a cortou como navalha, ela olhou para o canto da sala e viu sua mãe, com a mão na boca e os olhos arregalados, encarando o chão. No fundo, ela entendia o sentimento de Beatrice e admirava sua coragem, a coragem que ela não havia tido há quase trinta anos atrás, no primeiro grito, no primeiro levantar de mãos ou na primeira traição.

Porém, nem mesmo o dente quebrado e os lábios inchados de Beatrice pareciam justificar o fato de que sim, ela iria se divorciar, mesmo que fosse deserdada de sua família. Ela achou que seu pai queria apenas a assustar com a ameaça de virar-lhe as costas, porém, na semana seguinte, quando chegou com suas malas e encontrou o cadeado dos portões gigantescos trancados, entendeu a mensagem de sua família.

Vendeu todas as suas joias com o maior prazer, nunca as achou bonitas e usá-las era símbolo de submissão, sentimento esse que a corroeu por seis longos meses, durante seu casamento com o herdeiro do senhor que mais tinha terras da região. Isso não trouxe brilho

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aos seus olhos, mas sim aos de seu pai, que fazia questão de exibir a todos o jornal que citava o casamento de sua filha com um homem de posses. Ao menos, fazia questão de mostrar até que o escândalo fosse exposto para todos da vila.

Os olhares para Beatrice eram cruéis e mesquinhos. Enquanto ela atravessava a rua principal da pequena cidade, podia ouvir risos e comentários baixinhos. Sabia que continuar ali seria um ato de masoquismo, então, juntou todo o rancor que sentia em seu coração com o pavor que nutria de todos que viviam ali e, agora somente com uma mala e com a pasta onde guardava seus escritos, cuidadosamente, como se lhes fossem a coisa mais valiosa de sua vida, caminhou até um dos cocheiros do lugar, lhe ofereceu um bom dinheiro e pediu para que a levasse até cidade.

Fez questão de, ao chegar, procurar a pensão mais próxima da sede do único jornal da região. Estava decidida a não depender mais de ninguém, precisava usar o único dom que deus a havia dado para se manter: a escrita. Beatrice só se lembrava de sua vida a partir do momento em que havia aprendido a escrever e, desde então, milhares de folhas e tinteiros foram gastos. Nunca havia recebido apoio de ninguém, porém, conforme foi crescendo e entendo sobre os desprazeres de ser uma mulher, decidiu que aquela seria sua principal arma.

Ela acordou, finalmente. Estava suada por inteiro, a camisola se grudou em seu corpo e os lençóis estavam úmidos. Após um banho longo, escolheu o melhor vestido que lhe havia restado, prendeu os cabelos em um coque, colocou um chapéu clochê amarronzado e respirou fundo. Estava pronta, o grande dia havia chegado!

Beatrice, há cerca de duas semanas, começara a se corresponder com o homem mais influente do jornal da cidade e hoje seria o dia no qual eles iriam se conhecer pessoalmente e finalmente ela poderia mostrar o que havia escrito sobre a política do país. Repassou o discurso que havia criado e pegou sua pasta. Eles se encontrariam

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em um bar que ficava próximo ao jornal. Ela caminhou pelas ruas enquanto repetia mentalmente: “Não sorria, Beatrice, seu dente está quebrado”.

O ambiente era tipicamente masculino, mas isso não a amedrontou, nem mesmo os olhares quando o sino da porta havia anunciado sua chegada, deixando o lugar mais silencioso. Ela foi até o balcão, onde haviam combinado de conversar, observando o único senhor sentado lá. Ele usava um chapéu, tomava cerveja e fumava um charuto. Sua barba branca denunciava sua idade, ele parecia ser mais velho do que ela havia imaginado.

– Senhor Oliver? – ela disse após limpar a garganta, ele se virou e ao bater os olhos na mulher baixa, magra e com aparência frágil, fez uma expressão confusa. Beatrice estendeu sua mão.

– Me chamo Beatrice Ricci, agradeço por me receber. – ele demorou para cumprimentá-la, estendeu sua mão devagar e, arregalou os olhos após perceber de quem se tratava.

– A senhora é B.R? – perguntou. Ela assentiu com a cabeça.

– Prefiro assinar com minhas iniciais, apenas. – Ignorou o olhar de desdém do velho e abriu sua pasta, entregando-lhe as matérias. –Poderia dar uma olhada? Acho que seria muito bom para seu jornal, visto que seus jornalistas têm criticado duramente o governo atual. – ela respirou fundo. Oliver a fitou de cima a baixo e, com o pouco de educação que lhe restava, pegou uma folha qualquer e começou a ler.

Ele, de fato, havia se impressionado com a forma como Beatrice se expressava. Apesar de ter achado um material à frente do tempo atual e escrito de maneira brilhante, não pôde deixar de conter as negativas com a cabeça e os risos debochados que lhe escapavam. Após ler, ele tirou os óculos e deu uma risada forçada.

– A senhora escreveu essa matéria? – Oliver perguntou. Beatrice apenas assentiu. – Desculpe-me, mas não é viável que uma mulher

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escreva notícias políticas e ainda tenha a audácia de emitir sua opinião. Seu marido sabe que escreves com tamanha agressividade?

– Não sou mais casada! – ela disse entre os dentes, sentindo uma bola formar-se em sua garganta. Engoliu seco, fazendo força para não chorar.

– Nesse caso, minha querida – ele começou arrumando os papéis com os escritos de Beatrice e os guardando. – Não é de bom tom que haja uma mulher emitindo opiniões políticas em nosso jornal e isso envolve diversas questões. Desde a credibilidade de sua autoria, que pode ser duvidosa, até mesmo pela influência negativa que pode exercer nas poucas leitoras que temos por aqui. – Beatrice estava abismada, ela pegou sua pasta, que agora estava nas mãos de Oliver, com rapidez.

– Estes escritos são meus! – ela disse, indignada. Ele levantou as mãos, num gesto de dúvida.

– Não é que eu não acredite em sua palavra, mas entendes que pode nos descredibilizar, não entendes? – ele então colocou a mão em seu ombro – Sabe, você deve ter a idade de minha filha e, como pai, te aconselho a voltar para casa. – imediatamente Beatrice lembrou de seu pai, de sua rejeição e falta de apoio. Ela não respondeu, apenas se retirou rapidamente do local.

Quando chegou no seu quarto, já chorando, jogou a pasta na cama e se sentou no chão. Prometeu a si mesma que jamais sairia dali e, por alguns minutos, havia se conformado que sua vida de fato havia terminado.

Por sorte, Beatrice era uma mulher volátil e, não demorou muito para que encarasse os papéis e o tinteiro na mesa em frente à janela. Ela se levantou e foi em sua direção, passou os dedos no papel amarelado, sem nada escrito, como quem a estivesse convidando.

E, então, ela decidiu que usaria seu talento como arma contra aqueles que pisaram nela. Ela começou a escrever.

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Por três dias, Beatrice escreveu em dezenas de folhas. Escreveu sobre a falta de protagonismo feminino, sobre a importância de as mulheres estudarem, de não se submeterem a casamentos arranjados e a maridos abusivos. Quando terminou, intitulou as orientações como:

“O Manual da Senhora Livre”.

Ela o admirou por alguns segundos, orgulhosa e cheia de esperança. Sabia que não poderia guardá-lo somente para si, como tantos outros escritos e, por isso, decidiu escrevê-lo de maneira compacta, como um guia ou mesmo manual de instruções. Naquela noite, então, o levou até o único impressor da cidade que, mesmo relutante ao ler o conteúdo, imprimiu centenas de cópias.

Beatrice esperou a madrugada cair e o silêncio pairar pela pequena cidade para que colocasse um exemplar por debaixo de cada porta, de todas as casas que conseguiu. Quando voltou para seu quarto, não resistiu ao cansaço e dormiu pesadamente. Não sabia exatamente quantas horas haviam se passado, mas, a claridade e os barulhos da rua haviam a despertado.

Os murmurinhos eram intensos, a rua estava cheia. Beatrice coçou os olhos e, ainda sonolenta e sem conseguir pensar em nada, foi até a janela. De lá, percebeu diversas mulheres juntas, conversando e cochichando umas com as outras enquanto seguravam seu manual. Seu coração acelerou, não imaginava o impacto que seu escrito estava causando.

Os homens, alguns segurando-o também, falavam alto e se mostravam indignados. Se perguntavam quem diabos havia escrito tais absurdos, que aquilo iria desmiolar suas esposas e filhas. Beatrice sentiu seu coração acelerado e não pôde deixar de conter o sorriso, agora, ela sabia exatamente o que deveria fazer dali em diante.

Arrumou sua mala e decidiu que era hora de partir em direção a vila vizinha, iria distribuir o manual para todas, conforme fosse possível. Colocou sua pasta debaixo do braço e, como sempre, guardou

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ali seus bens mais valiosos, agora com algo que poderia ser chamado de rebeldia ou, como ela preferia, revolução.

Mais tarde, quando a cidade estava mais calma, caminhou em direção até a sua saída. Quando se deu conta, estava passando em frente à sede do jornal e, parado na porta, com um charuto na boca e com seu manual em mãos, estava Oliver. Ele mantinha uma expressão incrédula em seu rosto e isso foi o estopim para que, propositalmente, Beatrice pisasse firme e fizesse com que ele notasse sua presença, conseguindo com sucesso.

Ele arregalou os olhos, enquanto Beatrice somente acenou, com um sorriso provocativo em seu rosto. Finalmente, ele havia entendido tudo. Correu os olhos até o fim do documento e encontrou “Escrito por B.R”, que mesmo pequenas, agora era o que mais chamava atenção do velho homem, engruvinhado de preconceitos, ignorância e agora vergonha.

Ela sabia que, de alguma maneira, seu papel havia sido cumprido.

Beatrice seguiu espalhando seu manual, na esperança de que aquele escrito, para ela tão óbvio, não fosse mais necessário no futuro.

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Goiabada com goiabada

Julieta era a menina dos olhos do tamanho do mundo e dos cabelos cor de cobre que, de tão longos que lembro serem na época, se arrastavam no chão. Julieta aceitou ser minha amiga logo no primeiro dia de aula, talvez por conta da minha estranheza que a chamava a atenção. Dizia que meu nariz pontudo e minha cara redonda não combinariam em outros rostos se não no meu, acredito que isso concentrava certa beleza exótica na menina barrigudinha que eu costumava ser.

No recreio, Julieta reunia diversos amigos em roda e contava histórias que criava em seus sonhos. Como perfeita seguidora daquela única amiga que o bom universo me provera, encontrava-me todas as vezes à sua direita, ouvindo cada sílaba que saía dos seus finos lábios, os quais frequentemente estavam sujos de algum doce que engolira.

Eu também queria contar histórias e ser ouvida como minha colega Julieta, mas o dom da fala sem vergonha não me foi dado e quando queria ser ouvida, as palavras se quebravam em sons gagos e meu rosto se pintava na cor de olhos de menina apaixonada. Os mesmos olhos que, sem propriamente saber, eu olhava para Julieta. Mas eu nunca fui nenhum Romeu, apenas mais uma Maria alguma coisa que queria contar histórias como a melhor amiga de infância.

Os anos se passaram e a “boniteza” de Julieta só aumentou gradativamente, enquanto a minha esquisitice manteve-se a mesma, nem mais nem menos, apenas amadureceu comigo. Nossas conversas já não se encaixavam e, enquanto ela, minha inspiração, dizia que histó-

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rias eram para crianças e não para meninas-mulheres do oitavo ano, minha fome por compartilhar minhas criações ainda estava presente, assim como a de provar um doce de goiabada com goiabada. Assim, comecei a escrever escondido em um caderninho pautado que ganhei de brinde em alguma loja do centro. Não permitia a leitura por ninguém, porque tudo o que eu mais queria, era ter Julieta sentada à minha direita, lendo minhas palavras no intervalo antes da aula de biologia, enquanto seus olhos do tamanho do mundo se colorissem de vermelho cor do amor.

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“Homens”, de Melina Vargas (1978)

Todo mundo sabe que a auto-estima do espécime masculino humano poderia ser estudada pelos jornais de Psicologia mundo afora. Por isso, não fiquei surpresa, com meus quase 30 anos, quando aquele senhor, que bem poderia ser meu avô, achou que seus avanços sexuais seriam aceitos. O que, sim, me surpreendeu foi o descaramento e a patifaria do que escreveu por aí depois sobre mim.

Estive certa vez em agradável noite de leitura de poesia em Venice Beach, onde pude ouvir escritores novos e outros já publicados. Ao final, enquanto fumava um cigarro do lado de fora esperando uma amiga, aproximou-se de mim um senhor idoso pedindo o isqueiro emprestado. Reconheci o senhor, um autor publicado, mas dei de ombros: os livros dele nunca me agradaram, e duvido que agradem a qualquer mulher.

Não entendi bem o porquê, convidou-me a tomar algo em seu apartamento, o que recusei. Saindo a amiga, fomos pra minha casa e não pensei mais no episódio até ouvir de amigos que andava o senhor dizendo por aí que tinha me acompanhado naquela noite e que tínhamos feito toda variedade de sordidez nos dias que se seguiram. Disse o senhor que estivemos juntos por iniciativa minha, que lhe tinha telefonado. Ademais, contou que fumamos isso e bebemos aquilo e que, depois, tirei a roupa e fizemos sexo. Que um homem diga que dormiu com uma mulher que o rejeitou não é novidade.

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A surpresa veio meses depois, quando mostraram-me um trecho de um livro recente seu aludindo ao ideado encontro.

Sei que se tratava de mim porque realmente moro em um prédio defronte ao deque, o que me leva a crer que o senhor mencionado seguiu a mim e à amiga naquela noite. Deu-me, no entanto, o nome de Mercedes, o que creio tenha a ver mais com a memória, na qual já não se deve confiar, que com um suposto desejo de ocultar meu prenome verdadeiro.

Imagino que seja difícil engolir que uma mulher possa dizer não a um homem, ainda mais se ela é escritora aspirante e ele um autor renomado. O curioso foi a maneira como o homem se valeu do escritor para fantasiar o encontro. Primeiro, focou na descrição da minha aparência, como se me resumisse a isso e me fizesse o favor de tolerar-me apesar do sorriso falso e da conversa chata. Tão chata, parece, que o impediu de performar sexualmente, o que, em seguida, ele imaginou resolver com um delírio asqueroso e abjeto de poder, dominação e posse.

Podem nos tratar por objetos, podem dizer-nos “cadela”, podem entreter toda sorte de devaneio sexual execrável. Nada disso os faz mais que o pouco que são. No caso do senhor por quem tive a audácia de não me interessar, é (como ele disse) a morte: não passa de um velho safado que tenta usar delírios megalomaníacos pra compensar um pênis murcho.

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Lapa

Olha que eu não queria nada disso, até bem pouco tempo era apenas uma senhora casada cheia de bons motivos pra terminar a vida tomando o ansiolítico num café em Paris. Mas a vida invariavelmente me deu olé e já vai tarde a tarde em que decidi que não ia ser tudo igual para sempre. Pois bem, um simples telefonema pra dizer “Como vai, tudo bem? Já está no Rio de Janeiro?” e vem o convite como uma pedrada: “Vamos pro samba comigo?” Acabou, já nem sabia mais o que dizer e, a custo de muita criatividade, terminei a conversa com um: “boa sorte, querido, talvez nos vejamos lá”. Passei o final de semana tendo aula de samba e no domingo à noite a coreografia estava pronta diante da filhota que, pouco mais nova que o moço, disse: “nossa, mãe, ficou demais”. Munida de bagagem minúscula, montada em torno de uma calça mais larga, com certa transparência sutil, e cinco opções de blusa, além do indefectível Conga vermelho, entrei no vôo da Gol com destino ao Rio. Passaram-se quase oito horas, que pareceram oito meses, até que a mensagem surgisse no IPhone. Minha primeira parada na noite seria o Carioca da Gema, seguida do Democráticos, antigo clube de gafieira na Lapa, onde o atualíssimo Moacyr Luz daria uma canja. E só Deus sabe onde eu iria estacionar a alma e o corpo. Com a mensagem, a Devassa inteira se alvoroçou, o chope quase borbulhava na taça e a galera do vamos nessa comemorou: “isso é que é vida, num dia samba, no outro rock´n´roll”. Um banho longo, massagem em torno dos olhos – dizem que a felicidade faz desaparecer as linhas de expressão – e a escolha

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pela descolada combinação da calça larga com a blusa de alcinha. E o Conga. Quando entrei no bar, tive a impressão de que todo mundo me olhou. Fiquei me perguntando se exagerei na roupa, no perfume ou no cabelo, porque nasci nas montanhas e o improviso do Rio é algo muito difícil de assimilar. Acho que vi primeiro a lata de cerveja, mas atrás dela vinha o menino, agora mais magro e barbado, balançando seu olhar de mais do que “oi, querida”. Olha, se alguém disser que uma coisa dessas aos 48 anos não causa um tsunami no coração de uma mulher, eu juro: ou é ruim da cabeça ou doente do pé. Com a sensação de ter subido na onda gigante, fui caminhando até o clube, lugar que há um ano me causaria medo e repulsa. Mas lá estávamos, conversando despreocupadamente, e tudo parecia brilhar. Confesso que as aulas de samba pouco adiantaram e o aprendizado de francês não deu nem para o tira-gosto (aliás, horrível, pois se resumiu a um monte de batatas fritas que seguramente se alojaram na lateral das minhas coxas). “Por favor, vamos falar em português, porque não consigo te ouvir com esse barulho”. Além de três idas ao banheiro e um monte de confissões primárias – do tipo “queimo fumo, sabia?” – a noite ia de vento em popa quando pintou a chance de dançar. Maldisse o sábado e o domingo desperdiçados com cinco ou seis passos que ali não me serviram de absolutamente nada. Enquanto eu ia pra cá, ele ia pra lá. Mas, se no samba as coisas não se consumavam, a mão dele na minha cintura se fez sentir pra lá de concreta. E foi ali, no escurinho do salão, que a gente se beijou. Uma, duas, cinco, sei lá quantas vezes. Não sei até agora como apareci sentada, com as pernas entre as dele e as mãos sem lugar. Só me lembro do arrepio cantado na nuca: “você cheira bem demais”. Alguém deveria dizer que depois das várias dobras e linhas que o corpo adquire após os quarenta, os sussurros vão se tornando difíceis de acreditar, mas ainda melhores de acontecer do que quando a gente tinha vinte anos. Guardadas as proporções, eu me sentia a Sininho voando nas nuvens

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quando veio a pergunta: “vamos embora?”. Pronto, era o pedido de senha e eu não sabia a resposta. Meu Deus, o que o tempo faz com a gente? De madura caí do galho e fiquei em silêncio tempo bastante pra me afogar dez vezes. “Vamos”, foi a resposta, soprada como um náufrago voltando à superfície. Já na rua, ele encontrou uma amiga cem mil anos mais nova, que me olhou com cara de “nossa, parece sua tia” e desconversou o olhar com um sorriso simpático. Entrei no táxi correndo, quase fugindo da turba que de repente me pareceu hostil como um bando saído do Crepúsculo. E aí veio a bomba: “quer que eu vá pro seu apartamento?”. Olha, sou daquelas que louva a objetividade, mas pelamordedeus, a ordem direta pode ter seus objetos indiretos e substantivos... Respondi um “claro, querido” e o motorista se mandou pra Ipanema. O coração batia desenfreado e me custou várias respirações profundas aprendidas com o Napô na época das meditações budistas. Abri a porta, entramos depressa e o sofá me pareceu o lugar mais seguro. A primeira abordagem, entretanto, foi quase uma colisão entre um Fusca e um ônibus da Cometa. Claro que ele não tinha nada de Fusquinha, e eu, sinceramente, não sabia o tamanho da paz no olho do furacão.

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Ler a si mesma

Catarina pegou seus diários antigos na velha caixa de papelão que trouxera da casa dos pais quando se casou com Gustavo. O casamento já nem existia mais, mas em todo esse tempo ela não havia mexido ali. Não sabia bem o que procurava naqueles cadernos e agendas que a acompanhavam desde o início da adolescência. Apenas tinha a certeza de que, qualquer que fosse a pergunta, a resposta estaria ali, nos registros de sua constituição como pessoa, como mulher.

Passou pelas páginas já amareladas, decoradas com figurinhas, adesivos, fotografias de atores de tv e cinema retiradas de revistas e jornais, cópias de desenhos feitos à mão, clipes coloridos, trechos de música e poemas. O conteúdo escrito por ela ia crescendo à medida que ela mesma ia avançando na adolescência e juventude. Os amores iam deixando de ser platônicos, começavam os namoros (que não foram muitos).

Por meio de seus escritos, geralmente feitos em momentos de sentimentos difíceis, situações complicadas para uma jovem garota, pôde ver um tanto de seus padrões. Apaixonada (demais), entregue (demais), moldável (demais). Isso nem era tanta novidade assim, depois de anos de terapia. Mas Catarina pôde ver o fio de sua história amorosa se desenrolando e tecendo um amadurecimento que lhe deu orgulho.

Sim, orgulho, mesmo neste momento de sua vida em que se vê mais uma vez devastada pelo fim de um relacionamento amoroso, desta vez com Felipe.

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Catarina viu naquelas tantas páginas que hoje, aos quarenta e poucos, mantém sua capacidade de se apaixonar e se entregar, mas já não é tão moldável a ponto de se perder de si mesma como fez em quase todos os relacionamentos anteriores. Hoje se conhece mais, se sente mais segura para defender suas ideias e diferenciar o que vai incorporar e o que não vai, dentre o universo que a outra pessoa lhe oferece. Catarina hoje consegue ter e ser seu próprio universo, e pôde constatar isso com a leitura de seus diários.

Ler a si mesma foi como dar um abraço, necessário e curativo, em cada uma daquelas Catarinas: a de 13, a de 23, a de 33 e a de hoje.

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Mulheres que se cuidam são mais felizes

Fátima escreve para uma revista feminina, assim como eu. Somos colegas de trabalho da Revista Mulheres Notáveis. Nesta segunda-feira, em plena pandemia e véspera de Finados, estamos trabalhando no escritório localizado numa das avenidas mais movimentadas de São Paulo. Além de nós duas, que sempre chegamos às oito em ponto, lá pelas dez, chega o nosso subchefe com a brilhante pauta do dia, segundo conta: “Mulheres que se cuidam são mais felizes”.

Enquanto desenvolvo o texto, meus sentidos são interrompidos por uma fragrância masculina... Eis que olho discretamente para o lado, e o vejo debruçado em cima da mesa de Fátima. Realmente eu não entendo como ele consegue fazer isso parecer tão natural. Os comentários feitos na repartição, quando ela não está por perto, me incomodam ainda mais que uma intimidade forçada. É quando ele a chama carinhosamente de “safadinha”.

Preciso me concentrar: “Mulheres que se cuidam são mais felizes”. Difícil, sabendo que deixei a bebê com febre na creche. Mesmo medicada é ainda muito novinha para se afastar da mãe o dia todo. Após sair daqui preciso buscá-la, depois passar no mercado para comprar algumas coisas para preparar o jantar. Estou exausta porque está chovendo e a casa ficou quase toda alagada. Ontem passei horas durante a madrugada colocando baldes e puxando a água da chuva. Nem pensar em chegar atrasada no serviço. Meu dente dói, lembro que

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preciso ir ao dentista. Mas quando? Devo lembrar também que ontem foi o último dia para fazer a mamografia, esperei 3 meses para marcarem a consulta, e na hora exata não pude ir.

Enquanto isso, meu subchefe está programando as suas férias, provavelmente Caribe, Itália ou quem sabe Londres ou Espanha dessa vez. Alguns sub chefes parecem ter férias permanentes. Ele é um homem bonito, bem formado, tem pós-graduação e até curso no exterior, mas não tem habilidade nenhuma para ocupar um cargo de liderança. A sua voz ao telefone e a maneira de gesticular lembrou-me de uma grande apresentação teatral. A entonação de voz, mais alta e mais grave, e aquele sorriso sarcástico preenchem toda a repartição, ele anda de um lado para o outro e solta um grito às vezes.

Não sei se Fátima já conseguiu escrever com todo barulho que ele faz ao telefone. É praticamente impossível concentrar-me no texto. Todas as vezes que começo a escrever: “Mulheres que se cuidam são mais felizes”, olho para Fátima e percebo que ela não tem maiores ambições na vida, e, ainda que tivesse, levaria anos luz para conseguir comprar o seu primeiro lote, veja lá a casa própria. Está sempre cabisbaixa, passa-me a impressão de estar sofrendo algum tipo de depressão, ou assédio psicológico. Com certeza, toda a humilhação que ela passa nesse lugar nada tem a ver com o que preciso escrever. Esse título me lembra mais uma vez que não tenho dinheiro suficiente para pagar uma academia de ginástica. Se eu quiser cuidar da saúde, a opção é vir a pé para o trabalho, saindo de casa duas horas antes do expediente.

Mais uma vez, sou interrompida por ele falando ao celular. Deveria estar fechando o negócio de um novo apartamento, ou uma TV de 80 polegadas. E ainda lhe sou muito grata, por ele não embolar o meu texto e me jogar na face como faz sempre com a Fátima, exigindo que escreva de novo. Por mais que eu e Fátima nos esforcemos para terminar com louvor o texto “Mulheres que se cuidam são mais felizes”,

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é certo que ele irá reeditar várias vezes, só para ter a certeza de que é melhor do que a gente.

Tenho sede, esqueci minha garrafinha de água hoje. Somente na sala dele tem água. Fora isso, alguns gritos que temos que suportar às vezes.

–Mulheres que se cuidam são mais felizes? Já terminou? Qual mulher não gostaria de se cuidar? Claro que mulheres que se cuidam são mais felizes. As que têm tempo, dinheiro e oportunidade para se cuidar vivem mais e têm melhor qualidade de vida. Faltam apenas poucos minutos para entregar o texto, ele dá uma ordem:

– Uma das duas, pega um pano de chão e ajuda a enxugar essa sala que está bastante molhada. Olho para a sala e para o corredor, tudo está encharcado por causa da chuva. Lembro da minha casa alugada que deve estar muito pior. Fátima pega o pano de chão e começa a limpar. Ele olha para mim com desaprovação por eu ainda estar sentada, e com a boca seca. E olha para ela e canta - lerê, lerê... Fátima torce o pano e vê uma faquinha que fica bem em cima do frigobar, nervosa. Ele continua cantando. Olho para o relógio, o tempo está acabando e amanhã é dia de Finados. De repente, Fátima levanta rispidamente o rodo, interrompendo aquela gozação e ameaça dar uma cabada bem no braço dele, e sai correndo da sala, sem entregar o texto. Ele solta a última:

– Essa mulher é completamente louca! Mulheres que se cuidam são mais felizes.

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Obituário em vida

Hoje, 19/02/2022, eu, Carla Joana Feitosa Nascimento, faleci.

Tenho certeza de que fui uma pessoa controversa, questionadora, de opiniões fortes, daquelas pessoas intensas a quem muito se ama ou muito se odeia.

Por tempos reneguei minha intensidade e tentei viver de uma forma mais padrão, mas o desejo de transformação veio instalado em minha alma - se para enfrentar todas as dificuldades que viriam ou se foi gerado por causa destas dificuldades, não sei. Me aventuraria em dizer que foi pelos dois.

Tive muito medo, muito medo mesmo.

De novo, não sei dizer se tanto temor surgiu antes ou depois de muitos dos acontecimentos e reviravoltas de minha vida, mas, como dizem, segui vivendo profundamente ainda que com meus temores (lidando com eles).

Muitas vezes agi na força da raiva que pulsava dentro de mim, agressões aos outros e principalmente a mim mesma, ao meu corpo, mente e espírito. Não foi fácil aprender a me amar, ainda hoje, breves momentos antes de minha passagem, o amor próprio seguia sendo uma questão de escolha, de permanecer firme olhando e aceitando minha luz. Enquanto outros buscam reconhecer a sombra, eu tive que me forçar a deixar minha luz brilhar.

Como escorpiana nata me encontrei na jornada do autoconhecimento e sempre tive clareza sobre minhas sombras. O dedo crítico

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apontado para os outros, era um mero mindinho, contra os outros nove que sempre apontei pra mim mesma.

Eu amei e amei e lutei até aprender a amar a vida, a mim mesma e aos outros, incansavelmente focada em evoluir. Acreditei piamente que vim nessa vida pra sair dela melhor e, se é certo que ainda havia muito o que aprender, também está claro que vou melhor do que entrei e muito!

Construí minha família, me tornei mãe como sempre sonhei e tudo isso com meu melhor amigo, a pessoa que mais me conheceu neste mundo, meu amor companheiro, Bernardo.

Ao lado dele me vi digna de amor mesmo com meus maiores defeitos. Pude amá-lo e ver como meu amor regou seus sonhos e também lhe ensinou a se ver com outros olhos, como ele me ensinou.

Olhos de amor, um amor tão grande e profundo que gerou outros dois amores. Uma sintonia tão forte que me trouxe mais certezas de que a vida é generosa.

Agradeço aos meus amores, à minha primogênita amada que escancarou meu ser, me ensinou sobre a beleza da vida e me inundou com seu viver artístico. Meu caçula eu agradeço por encher minha vida de coragem, com seu jeito meigo e impetuoso, se jogando na vida, literalmente.

Digo meus, por serem meus amores e também por escolherem a mim mesmo sendo livres para escolher qualquer outra pessoa. Acredito mesmo que meus filhos me escolheram e quando duvido de mim mesma, lembro que os mereci. Eu mereci ser feliz e fui.

Carreguei tristezas e dores até meu túmulo, mas não permiti que me carregassem pela vida, a qual eu vivi plenamente, intensamente, profundamente e orgulhosamente.

Levo comigo os que amei e me amaram. Levo comigo aprendizados e sabedorias extraídas das demais relações, afinal, sempre fui

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boa nisso, em aprender, em querer saber sempre mais, curiosa dos ensinamentos da vida e dos livros.

Nem tudo foram flores, mas com coragem transformei minha existência. Tive coragem de ir atrás do emprego que queria e de largá-lo quando não me apetecia mais. Questionei as regras implícitas e explícitas da vida obstinadamente e busquei minha liberdade da própria caverna que por vezes eu mesma me prendi.

Deixo aqui minha história de vida como uma doação espontânea, de coração, quem sabe minhas dores (e também conquistas e alegrias) possam inspirar alguém. Mostrar que sempre é tempo de mudar e de buscar fazer diferença e deixar uma contribuição para que o mundo mude.

Sempre acreditei no poder das transformações individuais e na contribuição delas para uma mudança global. Vou embora fazendo minha parte e feliz com o que construir, certa de que o amor agora me leva até os meus, que me precederam na passagem, e me mantém conectada aos que ficam por mais tempo cumprindo sua missão.

Estou viva, vivíssima, mais viva que nunca. A consciência da morte apenas me faz viver com mais consciência, vontade e verdade aos meus desejos.

Com afeto, Carla.

Fecho essa carta que escrevi de próprio punho. Respiro fundo, pois ainda há ar em meus pulmões. Fazer o obituário em vida nos ajuda a diminuir o medo da morte e, ver a vida em perspectiva, nos ajuda a buscar melhor nossos maiores desejos, disse a professora na aula de hoje que foi sobre luto.

Ela não disse expressamente sobre a necessidade do obituário ser sobre nossa própria história e a minha não seria tão bonita. Meu nome é Fernanda, tenho 16 anos e estou aqui obrigada, após ter falhado até mesmo em tirar minha própria vida.

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O Garoto do Sinal

Quando o sinal abriu, o garotinho saiu correndo e acabou deixando algumas balas caírem no chão. Observou, debaixo da única sombra ali por perto (o toldo de um botequim), os carros as esmagarem. Primeiro a de morango, depois a de uva e por último a de maçã-verde.

Dois senhores estavam sentados naquele botequim tomando uma cerveja gelada, observaram o movimento e notaram o garotinho, sentado próximo ao meio fio e atento ao sinal.

– Olhe ali – um deles apontou em direção ao garoto – Os pais desse garoto tiveram uma ótima atitude, colocando a criança para trabalhar desde cedinho. – completou, o outro concordou.

– Sem falar que não fica por aí pedindo esmola igual tantos vagabundos por aí. – ele disse, dando um último gole no copo agora vazio. Ergueu a mão na intenção de chamar a atenção do garçom. Um homem jovem, parecia ter uns dezoito ou dezenove. Prontamente, ele foi em direção aos senhores. – Traz mais uma, garoto.

– Tem muito “mimimi” em relação a isso, na minha época era normal criança trabalhar. Eu, com uns 14 anos, já estava firme no açougue do meu tio. – o garçom não pôde deixar de notar as palavras duras do senhor.

Quando o sinal fechou, o garotinho prontamente correu em direção ao primeiro carro e, seguidamente, colocou saquinhos de bala no retrovisor. O chão, como uma chapa quente, queimava seus pés e isso fez com que ele desse pulinhos. Um dos senhores riu, sem graça.

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– O bom é que para criança tudo vira diversão, não é mesmo? – ele disse. Os três ficaram parados, observando a criança pulando de um lado para o outro, como em uma corrida incessante, desesperado, como se cada balinha perdida valesse milhões. Daquela vez, apenas uma mulher havia lhe entregue algumas moedas.

– Não acho que ele esteja se divertindo. – o garçom se atreveu a falar, sem tirar os olhos do garoto, que agora corria para a sombra mais uma vez.

– Não parece que há nada de errado com ele. – um deles respondeu.

– Acho que existem outras maneiras de ensinar algo a uma criança. – o garçom disse, com um olhar pensativo.

– Esses moleques só aprendem apanhando! – o senhor mais impaciente revirou os olhos e gesticulou – Meu neto esses dias mesmo na minha casa fez uma manhã só! Não queria comer o prato todo de comida, tirei-lhe o videogame e meti nele umas boas palmadas, eu apanhei, o pai dele apanhou e ele para aprender a ser gente vai apanhar também. – sua voz era grosseira, como se estivesse novamente vivenciando a situação;

– Diz aí, qual seria a melhor maneira? – o outro senhor se dirigiu ao garçom, que apenas deu os ombros, ainda incomodado com a rispidez do que acabara de ouvir.

– Eu só acho estranho, em plena terça de manhã, uma criança estar em qualquer lugar que não seja a escola. – ele respondeu com o tom de voz baixo, enquanto tentava se manter firme.

– Mas isso é problema dele e da família dele. E outra! Como saber se ele não é desses moleques que não gostam de estudar? Está cheio por aí. – o senhor, ainda impaciente com o relato anterior, disse.

Não acho que isso seja uma questão de escolha. – decidido a interromper a conversa, o garçom recolheu a garrafa vazia e se virou em direção à cozinha.

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–Como você sabe? – o senhor perguntou de maneira debochada, fazendo com que o garçom parasse e, por alguns segundos, fechasse os olhos. Ele respirou fundo e se virou, encarando mais uma vez o garotinho saltante por entre os carros.

–Porque eu já fui o garoto do sinal. – ele respondeu e, finalmente, conseguiu se livrar da conversa.

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Onde se jogam pensamentos vencidos?

NOTA – passado, presente e futuro são tempos que se confundem, uma vez que a linearidade aqui segue a linearidade de uma história sem linha, sem fio condutor e muito mais construída nos processos mentais de uma pessoa, do que nas ações físicas e concretas dessa mesma.

“Deve ter um lugar em nossa mente que funciona como um limbo, um buraco negro dos esquecimentos... Onde se pode jogar todos aqueles pensamentos que sabemos que já venceram, mas que a data está apagada da embalagem.”

Assim ela acorda. Assim ela passa o dia e dessa mesma forma que vai dormir. Não me levem a mal, é claro que há outras coisas que conseguem chegar a lugares de prioridade e ocupar essa linda mente conturbada e confusa. Mas é esse o pensamento que fica, constantemente, no fundo da cabeça. Como aquele cenário único de uma peça de teatro barata.

Tenho outra verdade chata para compartilhar... Na realidade, a personagem de pensamento conturbado é minha irmã. Pois é, cá estou contando uma história que nem é minha, mas é como se fosse.

Foram, ou melhor, são mais de 3 anos que o loop daquele primeiro parágrafo atormenta a todas nós. Sim, tem outras mulheres envolvidas nessa história, mas me atentarei apenas àquela que origina os

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pensamentos. Enfim, 3 anos e um tanto de enormes e inúmeras tentativas de esquecer, deixar a história e o passado irem embora.

Para ser tão grudento assim, tinha que ser amor, não é mesmo? Foi, amor, a tomou e a revirou.

O começo da história é aquela lindeza de sempre, é feliz e melosa.

O problema foi o depois. Ele que decidiu que a torturaria mentalmente, ela que se prendeu na ideia de que tinha que ser essa figura ideal para a figura ideal que ela mesma havia criado em sua cabeça (só que ele era só mais um homem). Ele que era mais velho. Ela que era nova no país. Ele que era tudo aquilo que ela pensava que queria. Ela que se mostrava ser tudo aquilo que ele buscava. Ele se dizia feminista. Ela via ele ser um grande abusador perante ela, sua parceira. Ele precisava de espaço e tempo. Ela só queria estar junto.

O meio da história foi um belo de um emaranhado. Do tipo que nem mais dá para saber se esse amor continua sendo romance ou se se tornou só um tipo estranho de dependência. Ela fugiu. Por cansar de não saber, por cansar de chorar, fugiu. Atravessou um Oceano, teve que se afundar nas profundezas de vários sofás para conseguir voltar e sentar e se divertir ao som de uma série boba.

Às vezes determinação de nada adianta. Porque ela volta e tudo volta. Tudo se confunde, tudo se emaranha. Ela teme estar sozinha. Ela teme perder aquele que mostrou um mundo ao qual ela pensou que poderia pertencer. Ela teme se perder nesse mundo do qual até agora não conseguiu pertencer. Os temores e angústias são tantos que quem passa a ditar as regras do jogo dela é seu medo, sua transmutação em bola de medo.

O chão vira um tapete de ovos. Onde ninguém pode pisar com muita força.Qualquer peso a mais e todos os ovos se quebram.

Estamos chegando ao final.

O medo é passageiro. É disso que ela se convence. Descruza o Oceano antes atravessado, se afasta o máximo que pode. E como o

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medo é passageiro, assim também seria ela. Passageira. O problema é que, ao se enquadrar como passageira, foi isso que se tornou de sua própria vida. Passageira e não motorista. E em trem que não tem condutor, qualquer um pode guiar. E ele guiou. E ela deixou. Mais uma vez.

O medo de passageiro nada tem. Ele ficou, se transformou, mas ficou. Agora era com essa dupla imbatível, ele e o medo de maquinistas da vida dela. E assim mais um medo nasce e entra para a família. Afinal de contas, ela só queria se encontrar. E o medo de isso nunca acontecer? De nunca pertencer, de nunca entender as paixões verdadeiras, de deixar escapar, perder a oportunidade... Esses medos ela sabe que não são passageiros. Esses, ela sabe que cultiva e que eles brotam no solo que for. Ser alguém que ela mesma admire.

Ele vai embora. E ela sofre.

Ela sofre mais que tudo. Porque agora seu trem estava parado, e não tinha ninguém que o conduzisse. Eu disse que estava chegando no final. Pois bem, ela larga o trem e de bicicleta segue para longe. Leva consigo os medos que a encarnaram nele, que a deslocaram dela mesma e até os medos que a fizeram seguir. Esse não é o final.

Desse momento em diante, voltamos ao primeiro parágrafo. “Deve ter um lugar em nossa mente que funciona como um limbo, um buraco negro dos esquecimentos... Onde se pode jogar todos aqueles pensamentos que sabemos que já venceram, mas que a data está apagada da embalagem.” A necessidade de tê-lo por perto, da impressão dessa necessidade, de querer que ele a tenha em pensamento, a ilusão de que ela quem falhou, ela que não conseguiu sustentar a personagem que se prometeu ser. Era tudo isso que deveria ter caído no limbo da mente. Mas não caiu.

De um parágrafo para o outro um ano se passa. E o limbo ainda não apareceu.

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Ela, aos poucos, foi realocando os sentimentos, deixando uns vazios no vazio mesmo e outros preenchidos de outras coisas. Até as águas que a inundavam por dentro se acalmaram.

Até ontem.

É fácil esquecer o medo e o sofrimento quando se está longe. Preencher com outras realidades. Mas ontem, depois de, novamente, cruzar (ou descruzar) o Oceano, ela se lembrou. E o medo voltou.

Só o medo pode voltar. Ela não. Ela segue sem voltas. E por isso o medo. Cair nas condições dele beira o perigo. Beira o possível. Ela enfrentou muitos medos, crateras muito maiores para chegar nesse aqui e agora. E ainda assim esse é o medo que gela o estômago. Ela não pode voltar. Mas ela precisa retornar.

“Quando vou te ver?”

4 palavras, péssima escolha.

Cada medo que se supera, deve ser um medo que se enfrenta. Ela soube olhar de frente, bater no peito e seguir, na boca do medo, na cabeça do incerto. Ela soube fazer do medo, apenas algo que ela ainda não conhecia. Mas dessa vez ela conhece, ela conhece toda a situação, conhece ele, conhece tudo. Mas já não se conhece nesse enredo de ele com ela. Vê-lo, senti-lo é abrir portas para uma viagem ao seu próprio passado. Mas vê-lo e senti-lo é a forma de finalmente criar o tal limbo.

Amanhã ela vai vê-lo.

Mas para uma coisa o exercício serviu, já que medo da morte nunca tive. Achei a vida de Carla inspiradora, quem sabe um dia esse obituário vira mesmo o meu.

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O retorno

Ela sabia que aquele momento era mais do que a gota d’água. Foi o momento de ruptura. O constrangimento que sentiu foi tão grande que a fez ficar sem fala, não por ter sido mandada calar a boca mas por perceber que não tinha mais volta. Seu filho que se encontrava no banco traseiro do carro calou e foi olhar os carros que passavam na rua. A vida continuava e ela estava calada. Conseguiu respirar fundo e apenas decidiu continuar calada. A dor do fim era grande e ela escolheu ficar calada. Sua boca não emitiu som mas sua mente não calou. Ela ficou acesa, a mil por hora, pensava no que ia fazer no próximo dia, como seria conversar com seus pais sobre a separação e com os amigos que sempre estavam torcendo para que a crise do casal terminasse. O que ela queria que acabasse não era a crise e sim a apatia que tinha se abatido nela a tantos dias ou talvez anos. Ela sentia saudade de seu riso, de sua esperança, de sonhar, de resolver os problemas com companhia. Tudo tinha sumido. Quando sumiu? Ela buscou programar sua vida perfeita e se adequar a tudo e hoje percebe que esse foi seu erro. Os compromissos maternais eram tantos que ela se afogava sempre. Um dia desses ela começou a ler alguns livros que achava na espera da sala dos pais enquanto aguardava o filho terminar as aulas de natação. Esse momento duas vezes na semana era uma dos mais aguardados. Conseguia sentir a história de amor dos livros. Só escolhia e comprava romances que tivesse final feliz e poucos dramas. De drama e dificuldade bastava a vida amorosa dela. Em que momento eles se distanciaram ela não sabia precisar. Sua terapeuta

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diz que ela deve tentar lembrar. Que ela precisa ser sincera consigo e com o marido. Que ficar se questionando sobre o quando para racionalizar pode estar bloqueando a busca pela resolução do que deve fazer frente aos desafios de seu casamento. Mas o que fazer? Ela quer continuar dentro desses livros que tem final feliz. Quer morar neles. A realidade que vive assusta e faz inclusive ela ter vontade de fumar, beber e fugir da realidade. Ela já imagina seus pais lhe dizendo que o casamento é indissolúvel e a pior pergunta será feita depois do sermão da moral e bons costumes. Como eu pretendo me sustentar? Se eu sei o valor do quilo da carne ou do azeite de oliva e blueberry que eu tanto amo usar na minha dieta eterna. No mundo em que vivo, nenhuma grama a mais é permitida nos corpos femininos. Que vontade de gritar e xingar, mas eu continuo calada, os carros continuam passando por nosso carro, olho para o velocímetro e marca 80 km/ hora mas parece que estou em câmera lenta. Quero sair desse slow motion que se tornou a minha vida. Quando estava na adolescência eu acreditava em felizes para sempre. Tinha boas referências de casamento. Meus pais, tios dos dois lados da família e amigos próximos que sempre falavam sobre a importância de se casar. Eu gostava de estudar mas sempre me vi casando e tendo filhos. Queria ter tido três mas hoje agradece a todos os santos, orixás, encantados, espíritos de luz e a quem mais tenha que agradecer por só ter tido um. Ela acredita que seu anjo da guarda deve ter inspirado a sempre ter um pé atrás pra engravidar do segundo. Já pensou agora eu ter que pagar três terapias no mês? Se eu não sei nem quanto custa a carne imagina negociar um pacote com a clínica para que todos fossem atendidos. Ela para de se torturar e abre o sorriso. A familia unida e perfeita chega ao destino. Aniversário do filho de um amigo da época de faculdade do seu marido. Eles são sócios em alguns negócios. Nadja a esposa do sócio chega para nos recepcionar, vejo nela o mesmo sorriso que trago em meu rosto. Artificial e sem vida. O sorriso que mais vejo

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atualmente. Nós sorrimos ao cumprimentá-la. Seu marido sorri também e ela retribui. Decido abrir um lindo sorriso pro meu marido. Respondo pra meu filho que ele pode já ir brincar com os amigos, mas que tome cuidado e lembre de ser educado. Ela tem certeza que na cabeça de seu marido aquele momento no carro foi apenas mais um desentendimento, mas na dela foi o momento mais importante daqueles últimos 15 anos. A voz dela retornou mesmo que ainda não tenha emitido nenhum som.

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Parada de trem

O balanço do trem era sempre o mesmo, ritmado e enfadonho. Entretanto, Ângela o vivenciava de maneira diferente: ora era tranquilo e silencioso em meio às vozes e ruídos da correia e do cansaço do fim do dia, às vezes era angustiante e repleto de significados sinistros.

As portas fechadas do vagão, os cheiros de suor e dos hálitos, por vezes alcoólicos, lhe remetiam ao desespero do confinamento, da impotência e do medo sem fim. Alguns dias a angústia era tamanha, que era necessário saltar e seguir o resto do caminho a pé, como se pudesse se libertar de sua própria mente como se desvencilhava das pessoas à sua frente e saltava do trem, se libertando das portas que fechavam e ficavam para trás junto com toda angústia. Segurava o asco e focava em chegar cedo em casa. Cheirava suas vestes em busca do próprio cheiro e aguentava firme. Não desistir era uma forma de estar mais cedo em casa, de ver seus filhos, de cuidar das horas de vida que tinha longe do trabalho.

A vida de Ângela era feita de rotinas. Rotinas seguras que lhe traziam conforto. O único aconchego que reconhecia como verdadeiro na vida.

Saía cedo para trabalhar, os filhos já iam sozinhos para a escola, que era a duas quadras de distância da casa simples que moravam. Alugada é claro, mas sua, pouco espaço, poucos e simples móveis, mas era um teto e um lugar para o qual queria voltar. Pegava os filhos na casa de uma vizinha, uma mulher aposentada que alimentava e olhava crianças das mulheres sem rede de apoio.

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“Sem rede de apoio” é um jeito sutil de descrever a vida de Ângela, não sabia da mãe, nunca conheceu o pai. E, o recordar do padrasto lhe interrompia o trajeto de volta, fazia deixar as portas para trás e caminhar. Era o cheiro, sempre o cheiro.

Rotina e mais rotina, via os filhos irem para a escola a duas quadras de casa, seguia na direção oposta, pegava o trem que balançava ritmada por duas estações, Paula entrava no mesmo vagão, e falava sem parar. Já havia pensado em mudar de lugar no trem. Mas, mudar a rotina era algo que lutava para não fazer.

Paula era jovem, bem humorada, falava e falava. Contava sobre todos os detalhes de seu dia. Era uma menina que gostava de Ângela por essa ser uma boa ouvinte, mal sabia ela que Ângela não era uma boa ouvinte. Ela simplesmente ouvia para não falar, concordava com a cabeça. Na maioria das vezes não prestava atenção nas palavras, via a boca de Paula se mexer, notava que cada dia Paula estava com uma cor de batom diferente, as unhas, por vezes lascadas, eram sempre coloridas.

Paula já tivera os cabelos loiros e bem escuros, muito lisos ou presos com desdém. As suas roupas eram baratas, mas combinadas com uma certa graça juvenil que Ângela não conseguia lembrar se um dia tinha possuído. Paula tinha 26 e Ângela 28. Paula era solteira e vibrante, Ângela fora abandonada pelo companheiro, tinha os filhos para cuidar e só queria passar a vida sem ser percebida. Ser percebida era perigoso em seu mundo, parecia-lhe sinônimo de dor, vergonha e abandono.

Paula subia depois e descia antes. Então Ângela, nesses espaços entre o chegar e o partir de Paula, voltava para o seu silêncio interior no barulho do dia que começava. Até chegar ao seu local de destino.

A estação do trem não era longe da loja em que conseguira arrumar trabalho. Nos dias de sol chegava com calor, nos de chuva molhada e com frio. Vestia seu uniforme e ia para o fundo da loja orga-

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nizar o estoque. Alinhava as caixas, colocava etiquetas, substituía os produtos que acabavam. Sentia o cheiro das caixas arrumadas, das fitas adesivas, das etiquetas. Conferia listas e ao meio dia parava para almoçar. Almoçava sozinha. Às vezes olhava o céu. Terminava de almoçar, voltava para as caixas em suas prateleiras e etiquetas. Ia ao banheiro, lavava as mãos, olhava as unhas curtas e sem esmalte, se trocava e saía para caminhar até chegar na estação.

Sentava, balançava ritmada, tentava não prestar atenção aos cheiros... Duas estações depois, Paula entrava, cheia de novidades das pessoas que conhecera. Das histórias das amigas de serviço dos crushes de todas. “Que palavra era aquela mesmo? Ah…”, pensava ela, e continuava a balançar a cabeça e a sorrir para as histórias da companheira de trajeto.

Às vezes Paula falava tanto e tão rápido que Ângela se sentia tonta, mas ela preferia a tontura causada pela conversa inconsequente do que se atentar para os cheiros do fim da tarde. O suor dos trabalhadores misturado aos hálitos em meio às conversas indistintas, faziam seu rosto franzir de repulsa. Balançar a cabeça afastava os pensamentos, sorria para Paula e fazia alguma pergunta tola, só para a menina retomar a conversa e Ângela poder respirar o ar que surgia da felicidade inconsequente das histórias que lhe eram contadas.

Paula levantava num sobressalto e dizia “vou descer. Amanhã conto o resto”. Jogava um beijo no ar e saía saltitante levemente. Paula era leve. Deixou de estudar aos 17, não concluiu o ensino médio porque não quis. Era bonita, trabalhava em boutique, vendia bem e sabia ser agradável com as clientes. Tinha bom gosto e certa lábia, convencia qualquer uma que queria ficar bonita que “aquela blusa” ou “aquele vestido” fariam com que fosse a mulher mais linda do país. Ângela pensou no dia que Paula lhe contou porque saíra da escola:

“Sou boa de cálculo e sei falar bem. Quero ser vendedora! Quem sabe um dia até empresária. Nesse país, sorte era melhor que estudo.”

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Paula era otimista. Teria sua própria boutique. Ângela sorriu sem perceber, no fundo gostava da menina. Ela não tivera a oportunidade de estudar, começou a trabalhar cedo para ajudar a avó. A avó morreu, continuou trabalhando, o tempo passou. Se apaixonou, continuou trabalhando, teve seus dois filhos, foi abandonada, continuou trabalhando e o tempo sempre passando. Tinha a rotina com tristeza, a rotina com trabalho e às vezes a rotina reconfortante.

Lembrava da mãe. Quando a mãe de Ângela soube o que lhe havia acontecido, perdeu a razão, ficou uma semana sem falar. Não deu consolo à filha, não a abraçou. Depois fez as malas de Ângela e a mandou morar com a avó.

No fim daquele ano, Ângela recebeu uma carta, onde a mãe dizia que não teria dinheiro para visitá-la no Natal. Nunca mais apareceu. Ângela pensava que a mãe havia morrido de culpa por deixar aquele homem entrar na vida delas e, rasgar os sonhos que nem começavam a brotar em seu corpo de menina. O corpo que, mesmo sem curvas, atentou e corrompeu, o corpo que, sem malícia, foi profano. Outras vezes, Ângela pensava que a mãe fora fazer a justiça que a lei lhe negara. Que fora atrás daquele homem até as bordas do inferno, e que o tinha empurrado dentro das labaredas profundas que ardiam para sempre. E, como a borda do inferno deveria ser muito longe, sua mãe ainda não voltara.

Sabia que seus pensamentos e justificativas eram infantis, talvez porque ela verdadeiramente tivesse morrido aos doze. Ou simplesmente perdido a própria alma. E a casca do corpo seguiu a vida. A casca do corpo até achou que podia ser feliz, mas não foi. A casca que via nas vidas inocentes dos filhos o motivo para seguir com a rotina. Sorriu novamente lembrando dos rostinhos deles e respirou fundo, soltou os ombros e tentou relaxar e afastar os pensamentos.

De repente, o cheiro ficou insuportável, em meio à repugnância, percebeu por sorte que chegara a hora de descer.

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Sapatos off-white

– Clara, por favor, pegue meus sapatos. Devem estar aí num saquinho de pano que eu deixei em cima da minha cama.

– Carmem, já vasculhei a cama e todo o quarto e só encontrei essa sacola com sapatos vermelhos.

– Como assim, amiga, esses não são os meus sapatos. Os meus são na cor off-white. Eu mesma os peguei no sapateiro.

Carmem é amiga de Clara desde que conhecera seu noivo. Eles foram colegas na faculdade e seguiram trabalhando numa mesma empresa de engenharia. Clara estava sempre mudando de namorado. Dizia um dia ter se apaixonado mas fora um amor não correspondido. Estavam todos sempre juntos nos encontros entre amigos.

Convidada a ser uma das madrinhas da noiva, se oferecera para ajudá-la a se arrumar em sua casa. Depois de penteada e maquiada, ela a vestiu a amiga com seu lindo e longo vestido.

– Tem certeza, Carmem, você conferiu quando recebeu a sacola?

– Não. Não sei. Não me lembro. Estou muito nervosa. Não sei de mais nada. A minha cabeça estava muito cheia com todos os preparativos. Eu havia te dito que meu carro estaria na revisão. Devia ter me levado, como prometido. Você que se diz ser tão minha amiga, não devia ter me dado um bolo.

– Eu não pude mesmo, amiga. Eu tive um contratempo. Me perdoe.

Dois dias antes, depois que Carmem pegou seu vestido no ateliê da costureira, tomou outro Uber e foi até o sapateiro que ficou de forrar

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o sapato branco que ela havia comprado. Depois de visitar muitas lojas, não encontrou um que ela gostasse e que fosse na cor off-white para combinar com seu vestido. Estava muito apressada, pediu ao motorista que a esperasse. Iria entrar e sair rapidamente do sapateiro. Não demorou cinco minutos, Carmem já estava de volta com uma pequena sacola nos braços.

– Ai, meu Deus, minha maquiagem está derretendo. – Carmem, o vestido se arrastando pelo quarto, com o controle do aparelho de ar condicionado nas mãos coloca a temperatura no mínimo.

– Clara, tenho certeza de que o trouxe. Ontem mesmo o entreguei ao fotógrafo junto com o vestido. Ai, meu Deus! E agora? Estou atrasada. Já deveria estar saindo de casa.

– Tem certeza de que o fotógrafo te devolveu?

– Clara, pare. Você está me deixando mais nervosa.

– Desculpe, amiga. Eu só estou querendo ajudá-la. Quer usar esse meu? É novo, é bege e calçamos o mesmo número. E o vermelho combina direitinho com meu vestido estampado. – Clara, que ainda estava calçada com suas havaianas, pega seus sapatos que havia trazido numa pequena sacola.

– Os meus eram bem mais baixos. Você sabe que eu não posso usar sapatos com salto muito alto e finos, por causa dos parafusos que eu tenho no meu pé direito.

– Não tem outro jeito, amiga. Não calce esses agora não. Vá com um outro seu. Vou estar te esperando com os meus sapatos na porta da igreja e te ajudo a calçá-los.

Carmem havia se organizado com bastante antecedência para seu compromisso. Há mais de um ano, ela, pessoalmente, vinha cuidando de tudo nos mínimos detalhes. Não tinha como algo dar errado.

Na igreja, depois de uma hora e meia de atraso, o pai conduz a noiva até o altar. Enquanto desfilam pelo tapete de espelho, um dos saltos dos sapatos que Carmem está usando se descola do solado. O

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pé de Carmem, o direito, que bruscamente se vira para o lado, sofre uma grave contorção e é levada ao chão. No tapete de espelho sofre um pequeno corte num dos cotovelos e joelhos. Depois da cerimônia na igreja, o pé bastante inchado, o joelho sangrando, Carmem é atendida numa emergência e precisa ser operada do pé.

Na casa de festas que Carmem alugara, com a banda de rock que ela contratara, o caro buffet que encomendara junto com o bolo de três andares, a decoração com lindos arranjos de flores: nada disso Carmem pôde desfrutar no seu tão planejado casamento. A lua de mel, onde os noivos viajariam no dia seguinte para as Maldivas, foi adiada.

Um mês depois, numa visita à casa de Clara para devolver o sapato emprestado, Carmem aproveita quando Clara vai ao sanitário do seu quarto e vasculha seu guarda roupa. Numa sapateira, bem ao fundo, dentro de um saquinho de pano, ela encontra o que procurava. O que está dentro dele, confirma uma terrível imagem obscura que Carmem não enxergava por trás da Clara. Imagem que seu amigo e sapateiro de confiança a ajudou a enxergar. Bastante entendido de cola, depois que colou o salto do sapato da sua amiga, recomendou a Carmem que se descolasse dela.

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Sobre nascer de uma mãe emocionalmente morta

Ana tinha 15 anos quando a conheci. Estava sendo internada pelo pai por não estar bem. Nos últimos dias, andava muito irritada, não dormia e brigava com todos ao redor. Começou a ouvir vozes e a sentir muito medo de ficar em seu quarto, pois tinha a impressão de ver uma pessoa morta lhe olhando. Graças a tudo isso, começou a ter vontade de morrer. Para a sua proteção, a melhor opção foi a internação, até que se recuperasse.

Nos primeiros dias, não aceitava falar comigo, que era sua psiquiatra, ou com qualquer outra pessoa do hospital. Conforme fui conhecendo um pouco de sua história de vida, pude compreender um pouco o que estava além, e na base, dos problemas químicos e emocionais de sua mente.

Ana nascera de uma mãe emocionalmente morta. Por volta da metade da gestação, rompeu-se um aneurisma cerebral na mãe, deixando-a em estado vegetativo. Seu corpo ainda funcionava, mas sua mente se apagou e sua alma, provavelmente, ficou inacessível. O corpo da mãe alimentou Ana de oxigênio e nutrientes, através da placenta, durante o resto da gravidez.

Infelizmente, isso não é suficiente para bebês humanos. Se ainda na barriga começamos a ouvir a voz da nossa mãe, sentir os sabores do que ela come através do líquido amniótico, sonhar e poder sentir que se é desejado e esperado, será que um bebê que nasceu de uma

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mãe que estava viva apenas fisicamente, realmente estaria sendo nutrido?

Através do corte de um bisturi gelado, nas várias camadas que a envolveram durante aqueles 9 meses, lhe mantendo ligada à mãe, Ana foi arrancada de seu corpo, e assim perdeu para sempre o contato mais intenso que pôde ter com a mãe. Mas sua orfandade não pôde ser verdadeiramente vivida. E, consequentemente, não era possível ser confortada, não pôde se dar ao direito de encontrar uma “mãe postiça”, de aceitar o afeto de uma madrasta ou de outro cuidador que ocupasse o papel da mãe.

O corpo da mãe seguia “vivo”, em estado vegetativo, por mais 18 anos.

Ela cresceu visitando a mãe, que dormia em seu vazio emocional por todos aqueles anos. Podia tocar sua pele, mas não podia contar com seu calor e seu toque para lhe acalmar e ajudar a lidar com os desconfortos. Não teve a mãe para ajudá-la no desenvolvimento da própria regulação emocional.

Podia olhar o rosto da mãe, mas nunca pôde ser vista verdadeiramente. Nunca teve a oportunidade de ter a troca de olhares que acontece durante a amamentação, e que propicia a base para os vínculos afetivos seguros ao longo da vida. Não teve o olhar da mãe cheio de afeto e orgulho quando começou a caminhar e a poder se afastar para explorar o mundo.

Quando começou a falar, podia dizer “mamãe” mas nunca ouviu sua voz. Nunca a ouviu chamar seu nome, cantar, sorrir, ler uma história ou mesmo lhe dizer algo que a fizesse chorar. Não pôde ter a mãe como espelho e dicionário de suas emoções para ajudá-la a entender as sensações estranhas que foram surgindo ao longo da infância. Na adolescência, começou a não querer visitá-la. Talvez por nunca ouvir palavras de conforto ou receber um abraço para lidar com as angústias que vão surgindo ao longo da vida.

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Durante os dias em que esteve internada, conversamos sobre os vários medicamentos que já havia tomado e nunca funcionavam, e principalmente sobre sua irritação e raiva. Seguia irresoluta quanto a falar sobre a mãe. Se eu tentava, ficava mais irritada e mudava de assunto. Dizia que não tinha o que dizer e não sabia o que sentir. Eu fiz o que restava, respeitei.

Seguimos juntas nos anos seguintes, nos vendo a cada mês. Seguia triste, irritada, brigando com a vida.

Próximo ao seu aniversário de 18 anos, o corpo da mãe finalmente partiu. Ana pôde viver um luto real pela morte materna. Talvez tenha sido o segundo e último momento de vivência emocional real com a mãe, desde que sua alma partira prematuramente.

Esse encerramento permitiu que Ana começasse a melhorar aos poucos. Começou a parecer mais viva , respondendo melhor ao tratamento medicamentoso e à psicoterapia. Começou a melhorar na escola, a fazer planos em relação à faculdade e a se relacionar com amigos e romances.

Não, ela não se curou. Não se tratava só de um luto que não podia ser elaborado. Se tratava da ausência de tudo que ela precisava ter vivido com a mãe, na gestação, no primeiro ano de vida, na infância, na adolescência. Se tratava de não poder ter tido um modelo para seguir como figura feminina, como mulher, como mãe. Se tratava de nunca ter tido a oportunidade de ser filha de verdade. O Luto, que não pôde ser elaborado devido à presença do corpo “vivo” da mãe, a impediu de poder vivenciar essas experiências com outros cuidadores. Ana ainda tem muitos desafios pela frente, principalmente se quiser ser mãe. Precisará seguir lidando com as lacunas emocionais que foram deixadas pela ausência materna em sua vida.

Precisará enfrentar suas próprias sombras para poder permitir que outro ser tenha a própria luz.

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Trilhar um caminho gradual, muitas vezes assustador e longo, de reconstrução do próprio eu e do direito de existir na maneira mais inteira possível.

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A persiana não subia nem descia: parada ali, a meio caminho. A luz do dia não entrava completamente, à noite não era possível ver a lua. As luzes dos prédios vizinhos faziam desenhos na parede mofada.

Lua era o seu nome. Janis Joplin embalou provavelmente seus primeiros meses de vida, lá, naquela infinita infância que ela habitara. Agora, hoje, era uma lua nova: escura, sem sonhos, sem voz.

As cortinas, um dia vermelhas, hoje eram de um marrom sanguinolento, desbotadas do tempo, empoeiradas de séculos: assim parecia. Não tinha amigos, não tinha vontades, não tinha ânimo. Acordava para pagar as contas e quem sabe, um dia comprar uma caixa inteira de Nembutal para pôr fim aquela impaciência de vida.

Queria pular pela janela e simplesmente acabar. Ela, a Lua, saltou da janela do quinto andar “nada fácil de entender. Dorme agora…”, Renato Russo nem sabia, mas essa música era dela.

Hoje. Talvez seja hoje. Nessa merda de quitinete, tomar um a um, e esperar. Como será? Dói? E se não funcionar? Ainda gastar dinheiro para pagar hospital e voltar. Voltar para cá. Para essa merda de quitinete. Esse instagram de pessoas felizes: de merda. Sim, é esse o cheiro que sinto. Merda. Deve ser o encanamento do banheiro de novo. Ou sou eu: já fedendo antes mesmo de apodrecer.

Burritos! Uma última tele-entrega. Morrer sem fome. Ela, que nunca teve fome de nada. Pix: 40 minutos. Os últimos quarenta minutos da vida, burritos, e fim. E esse verão que não chega? Onde foi parar

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 93 Summertime

a outra meia, a única de algodão? Só um pé. Engraçado: os vizinhos chamam porque o cheiro podre já se espalha pelo corredor. A polícia chega: morta. Em estado de decomposição. E um único pé vestido de meia. A meia sem par. A persiana à meio caminho. Ela pela metade. O papel-alumínio do burrito amassado na mão engordurada. Nunca seria inteira.

À meia luz: ela lembra. Era ele? Ele, que deveria ser pai? Ele, se esgueirando pelo quarto? Nojo. Nojo. Nojo. Ela sempre tinha nojo ao sentar na frente do prato.  De qualquer prato. Foi na terapia que veio: um cheiro de sovaco, um cheiro salgado de homem, um cheiro tão perto e tão longe de pai. Aquilo não era pai. Aquilo não era nada. Ela não lembra de nada. Ela sente. Ela sente algo como. Se. Se ela não estivesse ali? Talvez. Mas não. Era a  mãe que não estava. E nem poderia estar. Ela nunca esteve. Ela já havia ido, ao som da Janis J. A lua ficou no céu. Só.

Burritos: tinha lido em algum lugar que o nome era porque um burro pode ser carregado com quase tudo. Também eles, os burritos: guacamole, pico de gallo, chilli beans, muita pimenta, sour cream, muita pimenta. Ela adorava aquela trouxinha enrolada cheia de coisas picantes. Alguns tinham carne, mas ela sempre pedia o vegetariano: cogumelos, chilli beans, e muita pimenta!

Mordeu. A guacamole escorreu pelo canto da boca, a pimenta ardeu na garganta, e ela lembrou. Lembrou de quase tudo. E continuou mordendo, bocadas cada vez mais  gigantes, engolindo quase inteiras as mordidas. A pimenta ardia e ardia, os feijões saltavam da tortilha para o chão, ela, toda ela, ardia. Era raiva e não fome o que sentia.

Estraçalhava a presa. Não. Não iria pular da janela, nem tomar a caixa inteira de comprimidos. Limpou a boca engordurada no dorso da mão, testou o isqueiro, pegou o litro de álcool, e saiu pela porta. Deixou aberta, escancarada. Não voltaria para aquela janela pela metade. Chamou um uber: e ao entrar no carro ouviu. “Child, the living’s

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easy”, na voz da Janis Joplin, Summertime. Não, não tinha sido nada fácil. Ela sabia o endereço. Ele continuava morando no mesmo beco da infância dela.

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Um teto todo nosso: narrattivas curtas

Trou Noir

A manhã prometia ser igual a tantas outras. Anita estava nos preparativos da festa de 15 anos de sua única filha, Helena. A fila do supermercado estava mais lenta do que o habitual. Aproveitou para conferir item por item de sua lista mental, sabia exatamente o que era necessário para uma festa para 40 pessoas. Como era costume, na véspera da festa oficial, ocorriam festas menores, com o propósito de discutir detalhes, como roupa, coreografias, enfim, motivos para reunir com os mais próximos. Este seria o segundo encontro, o primeiro tinha sido em uma fazenda de um dos amigos. Nesta noite, a festa seria toda organizada por Anita. 15 melhores amigas, 15 melhores amigos, dinda, ela, Heitor, Helena, e mais 3 casais, pais mais próximos e amigos de longa data, antes mesmo do nascimento dos filhos. Tocou nos ovos que estavam no carrinho, poderiam quebrar com o peso dos pepinos, mudou-os de posição. Neste momento, seus olhos começaram a se fixar na bunda da moça que estava à sua frente, as mãos do homem que a acompanhava adentrando discretamente pela parte de trás de sua calça. A outra mão deslizava pelo pescoço, que deixava a mostra uma tatuagem, parecia um sol, não conseguia identificar. Seus olhos oscilavam de uma mão para outra, fortes e vivas.

Pagou, desconcertada, as suas compras, troca as senhas. Chamou o seu carro. Sentiu uma náusea gostosa. Tirou as compras. Quebrou metade dos ovos. Bateu o braço no elevador. Tropeçou ao entrar na porta. Tirou as roupas. Tomou banho.

Um teto todo nosso: narrativas curtas

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Olhou-se no espelho. Há quanto tempo não se olhava no espelho? Talvez quando estava à espera de Helena. Como contemplava a sua barriga! Talvez aí já não era mais para si que olhava.

Toca-se como nunca fizera. Talvez N.W. tenha a tocado assim antes de conhecer Heitor. Sentiu-se exausta, enxarcada, feliz, confusa, infeliz.

Nina estava cuidando de tudo para o jantar. Que bom que tinha resolvido chamá-la. Helena chegou, já vieram algumas amigas também. Heitor chegou. Colocou um tênis, uma roupa para uma caminhada e saiu. Estava sufocando. Caminhou. Correu. Caminhou. As mãos do homem em meu corpo. Não conseguia esquecer das mãos daquele homem. Outros corpos correndo ao seu lado, suados, distantes, pensativos, sorridentes.

Sentou. Pediu e tomou uma água. Um homem e uma mulher se aproximaram, talvez fossem recém-casados, pediram uma água e um guaraná. Logo o homem verborragiu:

– O que adianta você caminhar todo dia e continuar a beber refrigerante? Cuide suas celulites!

– Vá à merda, Carlos, ela rebatou. – Há tantos homens neste mundo que têm outras preocupações mais importantes em um relacionamento.

Seguiu o caminho de casa. Seu cadarço desatou. Atei. Ao seu lado, três homens, meia idade, arrumados, bonitos. Escutou um deles falar que havia marcado um encontro com uma garota que tinha conhecido em um aplicativo, por isso sugeriu ao grupo irem ao pub trou noir. Toparam na hora.

Trou noir, o nome ficou ressoando até a entrada de casa. Tomou banho. Ficou pronta em 15 minutos. Cabelo curto. Tinha a vantagem de secar rápido. Só as gorduras que tinham se acumulado em seu corpo não ajudavam muito na hora de se vestir, mas hoje ficou com a primeira roupa que experimentou.

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Convidados à mesa. Jantar servido. Todos sorridentes e aparentemente felizes. Encheu a sua taça. Heitor estranhou. Finalmente ele a notou. – Anita, você beberá vinho? Acho que só vi você bebendo em nosso casamento! – Um bom motivo, Helena completará 15 anos daqui a dois meses, deve ser essa a razão, respondeu.

Festa terminou relativamente cedo. 23:30 já estavam com seus respectivos pijamas. Heitor, como sempre, deitou e adormeceu. Anita havia se acostumado com os hábitos de Heitor. Entrava no quarto, tomava banho, colocava o pijama e dormia. Ela, por sua vez, intensificava suas leituras. Dois dias da semana, quintas e sextas-feiras, Heitor dormia na cidade vizinha, havia obras para supervisionar na filial. Retornava no sábado, próximo ao meio-dia.

Trou noir! Trou noir! Começou a seguir o pub e tudo o que encontrava no Instagram que remetia ao nome. Era assim que se sentia, um buraco negro! Não conseguiria, depois daquelas mãos, escapar de se encontrar neste espaço-tempo que só dependia dela.

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Um

Um cavalo no meu jardim

Eu, que nunca acreditei em príncipes em cavalos brancos, ao abrir a janela me deparo com ele: lindo, que de branco só tinha a mancha entre os olhos grandes. De onde teria vindo? Como aqui chegou? Olhou-me, bufou, e procurou verdilências para saciar sua boca nervosa.

Observei: pêlo marrom, grande, bem cuidado, com o porte que só os cavalos têm (príncipe algum se equipara!), quase selvagem, não fosse…Não fosse eu? Talvez. Talvez a minha rua. Talvez assim, ele ali, eu aqui, no meu jardim. Abri o portão e fui me aproximando, devagar. Porque se aproximar do selvagem dá um frio na nuca, uma fraqueza nas pernas.

Explico: minha rua é um beco sem saída, e o cavalo estava ali, observando os cães da vizinhança, pastando míseras margaridas que cresciam entre os paralelepípedos. Quando ele me viu perto, relinchou, notei a minha pequenez. Ele tão mais livre, mesmo assim, em pleno concreto. Ele, sem saber de nós. Ele, apesar de nós. Confesso: tive medo. Tive medo da sua altura, das suas patas, da sua altivez, da sua beleza. Tive medo, antes e acima de tudo, que essa força e essa liberdade nunca mais estivessem assim, tão perto, ao alcance da mão.

E então ele se foi, com seu dono, que corria pela rua (tão perdido quanto eu) em busca do seu cavalo. Ele, o cavalo, olhava-nos com seus olhos de rio profundo e céu claro. Ouso arriscar o seu pensamento: o que fazem esses seres aqui, numa rua sem saída?

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Voo G3-7471

Será lindo volver después de tantos años. Abrazar a los nuestros con impaciente júbilo. Encontrar todo tan cambiado. Y descubrir, de pronto, que no nos hemos ido. Juan

As lágrimas que prometeu não deixar cair acariciavam sua face ansiosa. Dois mil e trezentos guaranis e uma passagem de volta. Na linha 30 em direção ao aeroporto talvez não soubesse por que estava regressando, para quem, para onde... Trabalhar amanhã, talvez a única coisa que o liga àquela cidade. Toda uma vida dedicada ao trabalho e agora levava essa mala com as roupas que ele mesmo teria que lavar. Mas é só mais um trabalho. Trabalho...Aprendeu cedo o sentido da palavra. Nove irmãos, quintal de terra vermelha e galinhas. No chão de madeira a butuca do cigarro do pai pisada com os pequenos pés de engraxate, que não tinham sapatos para lustrar. Queria ir longe, estudar na escola onde a mãe ensinava, ir para a capital, prestar serviço militar. Agora iria longe, lá no alto, voando para essa capital já sem sentido. Uma vida mudada pelo nascimento de uma filha, duas... três? Uma vida sacrificada, duas, três. Nunca faltou nada. Faltou tudo. Aquele abraço (de despedida) guardado durante mais de vinte anos. Agora a filha entendia, ele não. Como entender que seja merecedor de tanta humilhação? Como entender a solidão? A traição? Perdeu a chave da escola no meio do mato aquela vez. Perdeu o voo de ida, a vida. A encontrou há mais de 1000km naquela gargalhada estridente do me-

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nino de dentinho quebrado. E agora ele ia, ansioso para não voltar a perder o voo e não para voltar para aquele inferno. Inverno.

Caminha sozinho pelo longo estacionamento do aeroporto, o vento na cara, na careca... O que vai encontrar ao desembarcar? Como será a vista lá de cima? De sina. A mesma vida de um outro homem, o mesmo homem de uma outra vida... ¿Cambio señor? Não, obrigado. O cambio valia a pena, e a volta será que realmente valia? Señor, estamos teniendo una promoción... nãã... NO!, eu não entendo muito bem. E essa situação será que ele entendia? Mais um gole de café, o décimo, o vigésimo do dia. Perdeu o RG, sempre perdia. Mas e agora, teria identidade? Esse homem sensível que ela não soube ver, que uma filha não soube ver, e a outra tampouco. E o neto será que vê? Sorri.

Migraciones, documentos, carimbos, permisos... Sentado na sala de espera olhava as lojas que vendem lembranças. O menino falou “vovô” minutos antes de ele partir; a filha saiu do hospital com a roupinha que ele escolheu, mas depois não quis dançar com ele na festa de formatura. A outra era mais companheira, para limpar o terreno, para jogar futebol. E agora estava lá, sem responder nem dar notícias. Anunciaram o voo e ele estava ansioso para ver o céu lá de cima, para encontrar alguém que o respeitasse e o cuidasse, alguém com quem ter esse aconchego que teve na casa da filha: dias de paz em contato com o guarani do vendedor do ônibus, com o portunhol da nova família, com o sorriso daquele menino que era mais que um neto: um recomeço. O voo. Era como ver uma maquete projetada sobre uma grande mesa, como ver um rio de nuvens estando em cima de uma ponte: uma superfície plana, mas fluida. Via manchas. Uma nova percepção do espaço, dele mesmo. Viu o verde das paisagens, as manchas marrons de terra ou de água, o desenho do relevo, os quadradinhos-casas encaixados minuciosamente pela mão do homem. Viu muito e viu pouco, o tempo frio e nublado não deixava ver. Ia

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para um frio ainda mais intenso. Pensamentos. Lembranças que não podia comprar. Nem vender. Preocupação. Solidão.

Lá de cima, pôde ver que em Assunção já não estava frio, havia um lugar cálido com aconchego e sopas quentes. Lá perdeu e encontrou a identidade, encontrou o apoio, o perdão. O avião pousou suave no aeroporto Afonso Pena. Ele já não sentia frio.

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Sobre as autoras

Um teto todo nosso: narrativas curtas

Adna Rahmeier

tem 33 anos e mora em Foz do Iguaçu, descobriu a escrita na escola com 8 anos. Sempre escreveu. Publicou poemas em uma revista de cultura local e fez vários varais de poesia. No momento está terminando de organizar um primeiro livreto de poesia feminista e escrevendo seu primeiro romance.

Ana Flávia Nejaim é

professora de redação e de Língua Portuguesa do Ensino Médio. Bacharel e Licenciada pela Universidade de São Paulo e Mestre pela Universidade Mackenzie, dedica-se há mais de quinze anos à compreensão do texto, nas suas mais diferentes facetas. Quando tinha quinze anos, descobriu nos livros Viagem e Vaga-música, de Cecília Meireles, as maravilhas da Literatura. Desde então, tem colecionado as mais deliciosas leituras, compartilhadas com amizades queridas e com seus adoráveis alunos. Em 2022, concluiu a escrita de seu primeiro romance, Penélope no mundo dos guarda-chuvas perdidos. Atualmente, você pode encontrála no Instagram, em ana.nejaim, e também no Tiktok, em anaflavianejaim.

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Ana Júlia Poletto

é escritora e apaixonada por máquinas de escrever: chá, gatos no jardim e do amor que amadurece no tempo. Lê pedras, mares e noites. Respira amanheceres e se alimenta de cheiros. Habita fronteiras, gosta das inverdades do vinho e gostaria de ser chuva. Ouve jazz e silêncio e tempestades. Quer um dia atravessar o(s) deserto(s), e escrever livros na areia: ao som das cordas de um cello. Site: www.poemasenozmoscada.com.br

Brígida Porto

nasceu em Porto Alegre (RS). É empresária do ramo automotivo. Escreve para encontrar e honrar seu pertencer feminino, familiar e ancestral.

Claudia Vecchi Anunciatto

nasceu no ABC-Paulista. É mestra e doutora em Ciências pela USP. Adora a sensação de pensar sobre algo novo. Começou a cogitar a possibilidade de escrever contos e outros textos depois do tratamento do câncer de mama, por perceber que o escrever está ligado ao viver feminino.

106 Um teto todo nosso: narrativas curtas

Daiane Pereira Rodrigues

nasceu em Curitiba (PR), é professora de português e espanhol em Colombo, há 15km da capital paranaense. Escreve desde a adolescência e já publicou alguns livros infanto-juvenis, além da biografia da escritora paraguaia Josefina Plá, com a qual obteve o prêmio da fundação María Paula de Ruíz Martínez na Espanha. Sua relação com o Paraguai se dá a partir do intercâmbio feito durante a graduação em Letras em 2008, quando passou a morar no país, vivendo um total de doze anos. Seus textos trazem um pouco da experiência de contato com a língua espanhola e o guarani. É mãe de Miguel Ángel, um menino brasiguaio, e atualmente cursa o doutorado em Letras na Universidade Federal do Paraná.

Débora Porto

é mestra (UFRGS) e doutora (PUCRS) em Letras, com pesquisa sobre a escrita de mulheres.É editora-chefe da Editora Polifonia e da Escritoras Brasileiras. Desde 2012, trabalha com oficinas e cursos sobre escrita criativa e criação literária. É autora do livro “As dores do parto e outros poemas”, organizadora de vários outros e diretora da Escola de Escritoras.

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Janaína Couvo

nasceu no Rio de Janeiro e reside em Aracaju-SE há 30 anos. É Professora de História, Museóloga e escritora, Mestre em Cultura e Sociedade e Doutoranda em Museologia. Desenvolve pesquisas sobre a cultura e as religiões afro-brasileiras, o patrimônio cultural e a história da alimentação. Atualmente dedica uma parte de seu tempo à escrita de contos, crônicas, romances e histórias que possam encantar seus leitores e leitoras, e contribua para mostrar, através destas histórias, a força feminina diante de realidades difíceis. Publicou no final de 2020 seu primeiro livro de contos em formato digital: “Caminhos de Espinhos e Rosas- Narrativas Femininas”.

Juciane Cavalheiro

nasceu em Sobradinho (RS). É docente no curso de Letras, na Universidade do Estado do Amazonas. Mestre em Linguística Aplicada (UNISINOS) e Doutora em Linguística (UFPB). Desde seu Pós-Doutorado em Literatura (UnB) vem se dedicando a pesquisar a fortuna crítica de Milton Hatoum.

Autora de Literatura e Enunciação (2010). Voltou a escrever ficção, inicialmente contos, a partir do curso de Escola de Escritoras.

108 Um teto todo nosso: narrativas curtas

Júnia Gaião

é jornalista, escritora e ex-professora de redação e roteiro na PUC Minas, com doutorado em Literatura pela mesma universidade. Tem dois livros publicados: Dora Ventania (poemas), lançado em 2004 pela Mazza Editora; e O rinoceronte e a bailarina (novela), lançado em 2014 como publicação independente. Participou de várias coletivas de escrita e tem sido convidada para integrar as mesas do Fórum das Letras, evento de literatura realizado na cidade de Ouro Preto, onde mora. Júnia nasceu em Belo Horizonte e trabalha como redatora e planejadora na agência Coletivo É.

Kelly Cristina Oliveira

nasceu em Belo Horizonte - MG. Autora do livro: A Monalisa do Sertão em Estado de Choque/ lançamento: 2022. Graduada em Comunicação Social, especialista em Marketing e Docência do Ensino Superior com Ênfase em Gestão Acadêmica. Gosta de poesia, contos e ficção e escreve desde criança. Publicou poemas no Arautos da Literatura Brasileira.

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Lizandra Antunes

é da geração de 1998 e tem a cidade de Guarulhos/SP como o lar de seu coração. Professora por formação, escritora por vocação e paixão, usa as palavras para expressar os universos que habitam dentro de si desde que se entende por gente. Formada em Letras desde 2019, escreve poesias do mesmo jeito que fala: rápida, sincera e profundamente. Sua grande alegria é saber que seu texto tem impressão digital. Atualmente suas produções estão publicadas no instagram @essenciaemverso e sua nada ambiciosa meta para 2023 é concluir um livro infantil, um livro de poesias, [pelo menos] um livro de contos e finalmente tirar seu romance da fase de planejamento. Ah! E, é claro, além de tudo isso, ainda chegar ao final do ano linda, bela e recém-casada com o amor de sua vida (provavelmente a parte mais emocionante de todas).

Malu Joyce De Amorim Macedo

é médica psiquiatra, especialista em psiquiatria da infância e adolescência e em psicoterapia de orientação analítica.

110 Um teto todo nosso: narrativas curtas

Maria Carolyna Henriques

nasceu no Rio de Janeiro, mas já morou em muitos lugares ao redor do Brasil. É graduada em enfermagem e hoje trabalha com curadoria e escrita de conteúdos voltados à saúde. Além disso, é apaixonada por ficção e poesia. Atualmente, está construindo seu primeiro romance. Seu objetivo na Jornada da Escritora é aprender, neste teto seguro, a olhar com carinho suas produções e respeitar seu tempo

Mariana Porto

nasceu em Gravataí (RS). É graduanda (PUCRS) em Letras –Língua Portuguesa e estagiária na Escola de Escritoras. Escreve poemas e contos com enfoque especial na vivência lésbica, em uma tentativa de trazer ao mundo tudo aquilo que um dia teve a necessidade de ler.

Marlene Farjalla

nasceu em Itapetinga(BA). Formada em Administração de Empresas, com larga experiência na área de RH. Escreve poesia, contos e prosas. Seu objetivo com a Jornada da Escritora é aprender as técnicas necessárias para aperfeiçoamento de sua escrita. E, posteriormente, escrever um romance.

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Mirtes Santa

Rosa é Publicitária formada pela UCSal com Especialização em Comunicação e Gerenciamento de Marcas pela FACOM – UFBA. Escreve crônicas e opiniões sobre diversos assuntos. Apaixonada por romances e um bom debate sobre questões sociais e democráticas. Escreve semanalmente no portal de cultura SoteroPreta em Salvador. Atualmente está refletindo sobre sua escrita e os diálogos com suas vivências diárias.

Pamela

Mascarenhas

nasceu na Saúde, região portuária do Rio de Janeiro (RJ), em 28 de agosto de 1988, e crescida em São Gonçalo (RJ), Pamela Mascarenhas é jornalista, mestra em mídia e cotidiano e mãe de uma menina. Já escreveu sobre economia, política, música e viagens para jornais e, agora, na Escola de Escritoras, está aprendendo a linguagem da literatura. Atualmente mora no Rio de Janeiro (RJ).

Rafaela Cukierkorn

nasceu em São Paulo, mas hoje vive em Israel. É artista, escritora, dançarina e viajante. Se formou em Artes Visuais - Licenciatura pela Faap em 2017 e desde então vive em viagens e explorações. Se equilibra entre uma vida nômade e aterrada. Rabisca de poesias à prosas, às vezes chegando aos contos.

112 Um teto todo nosso: narrativas curtas

Taís Panapaná

trouxe para seu nome a metaformose que vive em si. Nascida com a mudança vinda de dentro, desde então vive um transfomar constante de tudo que sente, vive e é. Ela que já escreveu peças jurídicas e teses acadêmicas, foi sacudida pela maternidade e descobriu em ser mãe o seu melhor papel; e foi assim que trocou as palavras duras e estruturadas pela escrita que vem do âmago do seu ser, que liberta o turbilhão de sentimentos que lhe habitam e que cada hora sai de um jeito, conforme as suas inúmeras transformações. Seu livro na gaveta é o mais incrível, pois é sua vida vivida com muitos capítulos, dores, curas e reviravoltas, que um dia ainda vai compartilhar por inteiro, mas que por enquanto coloca pedaços em seu instagram @tais.panapana.

Thaís Jacóe Soares

nasceu em Campinas (SP) e mora em São Paulo. Atualmente, divide seu tempo entre a programação e a escrita de conto e romance.

Um teto todo nosso: narrattivas curtas 113

Vívian Marchezini Cunha

nasceu em Belo Horizonte (MG). É mestra (UFPA) em Psicologia, psicoterapeuta e mãe do Francisco. Escreve poesia e crônica, e está se descobrindo contista. Nas redes sociais pode ser encontrada com o @ vivimarchezini_psicoterapeuta .

Vanessa Nascimento

nasceu na Capital de São Paulo, porém a vontade de caminhar com o cachorro na praia ao amanhecer a levou à Florianópolis, onde vive hoje com sua esposa e seu cão, Kenay. Apesar do pouco incentivo à leitura durante a infância e juventude, sempre foi apaixonada por mundos de faz de conta, e inventar histórias. Formou-se em Pedagogia e, dentro das salas de aula, mergulhava em livros e histórias junto dos mini seres que formava. Nasceu então, uma escritora. Hoje, após um longo passeio na praia, e trinta minutinhos de meditação, Vanessa senta em frente ao computador e revisa seu primeiro romance juvenil: “Todas as vidas de Tati”, que conta a história de uma menina de 14 anos que descobre que a felicidade está muito além dos tantos “likes” que recebe de seus milhares de seguidores.

114 Um teto
todo nosso: narrativas curtas

Texto revisado segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Projeto Gá co Débora Porto

Capa e diagramação Mariana Porto

Revisão Débora Porto e Mariana Porto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Elaborada pela Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166

T347

Um teto todo nosso: narra�vas curtas / Organizadoras Débora Porto, Mariana Porto. – Porto Alegre: Polifonia, 2023.

104 p.; 15 X 21 cm

ISBN 978-65-999573-1-4

1. Conto. 2. Coletânea. 3. Literatura brasileira. I. Porto, Débora (Organizadora). II. Porto, Mariana (Organizadora). III. Título.

CDD 869.93

Índice para catálogo sistemático

I. Conto : Literatura brasileira

Todos os direitos reservados às autoras

www.editorapolifonia.com.br

As opiniões expressas nesta obra são de responsabilidade exclusiva das autoras.

116 Um teto todo nosso: narrativas curtas

“Era uma vez: ciúmes, raiva, culpa, asas, vida, vaidade, horizontes, goiabadas, Catarinas, Fátimas, Claras, Anas. E quantas mais? Somos todas e outras tantas. Essa casa habitada tem barulho, tem silêncio, tem perdas e muitas histórias. Virginia Woolf dizia que nós mulheres precisávamos de um teto todo nosso para podermos aqui, viver. E escrever. “Pela ideia existo”, Virginia anotava em seus diários, e também a voz que preenche os cômodos desta casa-corpo. Nós, mulheres, escrevemos nossos sextos (Cixous tem razão), textos em-corporados pelas palavras que circulam nossa cintura, pelas sílabas que escapam pelas mãos, pelas páginas e mais páginas que percorrem nossos cabelos, barrigas, pés e sexo(s). Porque o corpo-casa fala, grita, (re)escreve. [...] Somos muitas. E escrevemos. E continuaremos a escrever. Até que o teto se transforme em mundo.”

Ana Júlia Poletto

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Articles inside

Vívian Marchezini Cunha

1min
pages 114-116

Taís Panapaná

0
page 113

Maria Carolyna Henriques

1min
pages 111-112

Lizandra Antunes

0
page 110

Janaína Couvo

0
page 108

Daiane Pereira Rodrigues

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page 107

Ana Júlia Poletto

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page 106

Adna Rahmeier

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page 105

Voo G3-7471

2min
pages 100-103

Um cavalo no meu jardim

1min
page 99

Trou Noir

2min
pages 96-98

Sobre nascer de uma mãe emocionalmente morta

6min
pages 89-95

Sapatos off-white

3min
pages 86-88

Parada de trem

5min
pages 82-85

O retorno

3min
pages 79-81

Onde se jogam pensamentos vencidos?

4min
pages 75-78

O Garoto do Sinal

2min
pages 72-74

Obituário em vida

3min
pages 69-71

Mulheres que se cuidam são mais felizes

3min
pages 66-68

Ler a si mesma

1min
pages 64-65

Lapa

3min
pages 61-63

“Homens”, de Melina Vargas (1978)

2min
pages 59-60

Goiabada com goiabada

1min
pages 57-58

Escrito por B.R

7min
pages 51-56

Em dobro

1min
pages 49-50

Duas e pouco da manhã

3min
pages 45-48

Conversas com o espelho

4min
pages 41-44

Colonizando mentes

3min
pages 38-40

Boa tarde, querida!

4min
pages 34-37

Belo Horizonte

7min
pages 28-33

Barriguda

5min
pages 23-27

A vaidade é um ponto de vista

1min
pages 21-22

As linhas de Evelina

1min
pages 19-20

A mulher que criou asas

0
page 18

A culpa de Eva

2min
pages 15-17

Ciúmes

0
page 14

Prefácio

1min
pages 10-13
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