Círculo de Bakhtin: alteridade, diálogo e dialética

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Coleção Estudos Bakhtinianos

Círculo

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Bakhtin

alteridade, diálogo e dialética

Cristiano Paschoal Débora Porto Daniela Cardoso Giselle Fetter Glória di Fanti

Luciane Martins Maíra Gomes Márcia Voges Norberto Catuci Thomas Rocha (Orgs.)

Editora Polifonia


Cristiano Paschoal

Luciane Martins

Daniela Cardoso

Maíra Gomes

Débora Porto

Márcia Voges

Giselle Fetter

Norberto Catuci

Glória Di Fanti

Thomas Rocha

(Organizadores)

Círculo

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alteridade, diálogo e dialética

Editora Polifonia Porto Alegre, 2020.


Todos os direitos desta edição reservados às autoras e aos autores.

Edição e diagramação Débora Luciene Porto Boenavides Revisão Daniela Cardoso, Débora Luciene Porto Boenavides, Giselle Liana Fetter, Maíra da Silva Gomes, Márcia Cristina Neves Voges, Maria da Glória Corrêa di Fanti, Thomas Rocha e autores. Texto revisado segundo o Novo Acordo da Língua Portuguesa, ABNT NBR 10520/2002 e ABNT NBR 6023/2018. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C578 Círculo de Bakhtin: alteridade, diálogo e dialética [livro eletrônico] / organizado por Cristiano Paschoal... [et al.] - Dados eletrônicos. - Porto Alegre: Polifonia, 2020. 399 p. ; 15X23cm. - ISBN: 978-65-87420-04-2 - Modo de acesso: Adobe Reader 1. Linguística I. Paschoal, Cristiano, org. CDD 410 Bibliotecária Alexandra Naymayer Corso - CRB10/1099

O conteúdo e as opiniões expressos nos capítulos são de responsabilidade exclusiva dos(as) autores(as).


Conselho Editorial

Adail Sobral (FURG) Andrea Ad Reginatto (UFSM) Cláudio Delanoy (PUCRS) Cristhiane Ferreguett (UNEB-Teixeira de Freitas) Daniela Cardoso (UPF) Ernani Cesar de Freitas (Feevale-UPF) Flavia Fialho Cronemberger (UNEB-Salvador) Juciane dos Santos Cavalheiro (UEA) Kelli Machado da Rosa (FURG) Luciane de Paula (UNESP-Assis/Araraquara) Tamiris Machado Gonçalves (UFFS) Vanessa Fonseca Barbosa (USP) Vera Lucia Pires (UFPB)


SUMÁRIO

NOTAS SOBRE A ALTERIDADE EM BAKHTIN........................................7 Maria da Glória Corrêa di Fanti

A DIALÉTICA NEGATIVA NO ESTUDO DA ALTERIDADE E DA TEORIA DO ATO................................................................................................29 Daniela Cardoso

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DISCURSIVA EM UMA NOTA DE REPÚDIO: UM OLHAR BAKHTINIANO..........................................47 Thomas Rocha

A GÊNESE DO CÓDIGO LINGUÍSTICO FEMINISTA BRASILEIRO NO JORNAL A CLASSE OPERÁRIA (RIO DE JANEIRO, 19251930).....................................................................................................................74 Débora Luciene Porto Boenavides

A POLÊMICA NAS ILUSTRAÇÕES DE CAROL ROSSETTI: VOZES EM (DIS)CURSO................................................................................................92 Kelli Machado da Rosa

A IMAGEM DA MULHER NA CONSTRUÇÃO DO DISCURSO INTOLERANTE NAS REDES SOCIAIS...................................................116 Luciane Alves Branco Martins


TENSÕES DISCURSIVAS ENTRE O GOVERNO FEDERAL E A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR........................................................141 Norberto Niclotti Catuci

A MORTE DE UM JOVEM NEGRO E DE UM JOVEM BRANCO: AS AVALIAÇÕES IDEOLÓGICAS NA MORTE DE EX-PRESIDIÁRIOS...156 Camila Franz Marquez, Nessana de Oliveira Pereira

O NAZIFASCISMO CORPORIFICADO: DIALOGICIDADES ENTRE BRASIL E ALEMANHA.................................................................................175 Cristiano Sandim Paschoal

RELAÇÕES AXIOLÓGICAS DA VISÃO DOMINANTE DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: ANÁLISE DOS DISCURSOS DE LINGUISTAS BRASILEIROS.......................................................................206 Giselle Liana Fetter

“A MULHER, O ÍNDIO, O NEGRO”: SIGNOS ESTEREOTIPADOS EM UM DISCURSO CÔMICO-PRECONCEITUOSO...................................237 Graziella Steigleder Gomes

A ÊNFASE AXIOLÓGICA DA CAMISETA DA SELEÇÃO BRASILEIRA: UMA TENSÃO CONSTITUÍDA POR REFRAÇÕES............................264 Luciana Saratt


A RELAÇÃO ALTERITÁRIA ENTRE DOCENTE E ALUNOS: UM ASPECTO DE INVISIBILIDADE DA ATIVIDADE DE TRABALHO........................................................................................................286 Maíra da Silva Gomes

COWORKING: UMA ABORDAGEM FUNDAMENTADA NOS GÊNEROS DO DISCURSO.............................................................................306 Gislene Feiten Haubrich

ASPECTOS VALORATIVOS NA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: IDEOLOGIA E TRABALHO...........................................................................327 Márcia Cristina Neves Voges

O RELATO PESSOAL PELO VIÉS DIALÓGICO...................................355 Marta Maria da Silva Moreira

OS GÊNEROS DO DISCURSO NOS ESCRITOS DO CÍRCULO DE BAKHTIN: EM BUSCA DE UM CONCEITO..........................................374 Verônica Franciele Seidel


NOTAS SOBRE A ALTERIDADE EM BAKHTIN

Maria da Glória Corrêa di Fanti1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

Ser significa ser para o outro e, através dele, para si. BAKHTIN

A questão da alteridade perpassa diferentes obras do Círculo de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev, mas é nos escritos assinados por Bakhtin que a noção de alteridade parece ganhar maior corpo2. Esta reflexão, ciente da abrangência do conceito, volta-se para uma breve discussão introdutória sobre a alteridade, entendendo-a como base de outros importantes conceitos, como dialogismo e dialética, que, no conjunto, subsidiam a proposta desta publicação.

1 Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e professora-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Líder do Grupo GenTe Tessitura: Vozes em (Dis)curso (CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Projeto nº. 307894/2017-7).

https://orcid.org/0000-0002-5399-5377

E-mail: gloria.difanti@pucrs.br 2 O Círculo de Bakhtin é formado por um grupo de intelectuais de diferentes formações, cujos principais integrantes da área da linguagem são Mikhail Bakhtin, Valentin Volóchinov e Pável Medviédev, que se reuniam, na Rússia, para debater suas ideias, principalmente entre 1919 e 1929 (FARACO, 2009). Círculo

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Em Pour une philosophie de l’acte, Bakhtine (2003) discute a relação indissociável entre o eu e o outro, considerando que cada um ocupa um lugar único, um centro de valor concreto, responsivo e responsável, o que institui uma alteridade constitutiva produtora de sentidos em determinadas condições sócio-históricas3. Esses centros de valores, a partir dos quais se instaura a arquitetônica do mundo real do ato singular, se dispõem em relações tensas, porque um não coincide com o outro, ou ainda, cada um vê a si próprio e ao outro de uma perspectiva única, sempre renovada: “eu-para-mim, outro-para-mim e eu-para-o-outro”4. Todos os valores e as disposições espaço-temporais se organizam em torno do eu e do outro nas suas complexas inter-relações. Ao considerar que o ser não tem álibi, o pensador russo atribui a ele a inteira responsabilidade por seus atos. Esse “não-álibi no ser”5, que marca a sua singularidade e insubstituibilidade, instaura um eu em relação comprometida com a sua existência e com a do outro: um “coenvolvimento concreto, relação não indiferente com a vida do próprio vizinho, do próprio contemporâneo, com o passado e o futuro de pessoas reais” (PONZIO, 2010, p. 26). O ato humano, nesse contexto, pressupõe uma atividade participativa, axiológica e dialógica do sujeito. Como se lê em Hacia una filosofía del acto ético: “Só um ato ético responsável é capaz de superar o hipotético, porque um ato responsável representa a realização de 3 Além da versão em francês, Pour une philosophie de l’acte (BAKHTINE, 2003), consultamos a versão em espanhol, Hacia una filosofía del acto ético. De los borradores y otros escritos (BAJTIN, 1997a), ambas traduzidas do russo. Também consultamos a versão em português traduzida do italiano: Para uma filosofia do ato responsável (BAKHTIN, 2010). A obra, escrita entre 1920 e 1924, somente veio a público em 1986. Eram manuscritos marcados pelo tempo e pela falta de preservação dos originais, o que dificultou a recuperação de parte da obra. 4 No original: “moi-pour-moi, l’autre-pour-moi et moi-pour l’autre” (BAKHTINE, 2003, p. 85) 5 No original (grifos do autor): “non-alibi dans l’être” (BAKHTINE, 2003, p. 68). As citações utilizadas no texto manterão os grifos (itálico, negrito...) do original. 8

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uma decisão, de um modo já irreversível, irremediável e irrecuperável [...]” (BAJTIN, 1997a, p. 37).6 Tais especificidades remetem às reflexões de Ponzio relativas ao termo edinstvennji, considerado termo-chave da obra de Bakhtin, que significa "singular, único, irrepetível, excepcional, incomparável”. Sua importância está na “singularidade, aberta a uma relação de alteridade consigo própria e com os outros, uma singularidade em ligação com a vida do universo inteiro, que inclui em sua finitude o sentido de infinito [...] (PONZIO, 2010, p. 14). A singularidade, desse modo, constitui-se pela dinamicidade constante, o que é próprio do ato ético responsável e responsivo. Nesse movimento, Bakhtine (2003, p. 18), ao interrogar a não comunicabilidade entre o mundo da cultura (abstração) e o mundo da vida, recupera o ato da experiência vivida de cada um, em associação a um Jano bifronte que olha, simultaneamente, em direções opostas: de um lado, para a unidade objetiva de um domínio cultural e, de outro, para a singularidade não reproduzível da vida experienciada. Com isso, Bakhtine (2003, p. 17) questiona visões excludentes, dicotômicas, do que deveria ser visto em relação constitutiva, e propõe que se entenda o ato em sua totalidade viva e concreta: “só este ato no seu todo é autenticamente real, participa do ser-evento”.7 O ato, desse modo, deve encontrar um plano único, a unidade de uma responsabilidade bilateral, para refratar nas duas direções: em seu sentido e em seu ser. É somente por essa via que pode ser superada a perniciosa separação e não interpenetração da cultura e da vida (BAKHTINE, 2003, p. 18-19). Apenas no evento único do ser, um ato singular, que essa unidade pode se constituir de 6 No original: “Sólo un acto ético responsable es capaz de superar lo hipotético, porque un acto responsable representa la realización de una decisión, de un modo ya irreversible, irremediable e irrecuperable [...]”. 7 No original: “Seul cet acte dans son tout est authentiquement réel, participe à l’être-événement [...]” (BAKHTINE, 2003, p. 17). Círculo

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modo a emergir características de âmbito geral e de âmbito particular. Nessa dinâmica, as diferenças insurgem dialeticamente, sem exclusão, num permanente movimento de tensão e confronto, como mundo da cultura e mundo da vida, teoria e prática etc8. O ato “não deve se opor à teoria e ao pensamento, mas incluí-los como componentes necessários, integralmente responsáveis” (BAKHTINE, 2003, p. 87)9. Essa concepção de ato, observada na linguagem, põe em destaque o enunciado concreto, um ato enunciativo, singular, que, não dispensando o reiterável da língua, constitui-se de modo irrepetível em uma dada situação. O enunciado, desse modo, forma-se na relação entre o eu e o outro, numa concorrência de discursos, vozes em circulação, que, num jogo de tons emotivo-volitivos, dá vida à palavra e revela um sujeito relacional e inacabado. O tom emotivo-volitivo, como explica Bakhtin (2010, p. 92), “penetra em tudo que é realmente vivido [...] e reflete a irrepetibilidade individual do momento dado do evento”, sinalizando “as raízes da responsabilidade ativa”. Logo, o tom emotivo-volitivo é um momento imprescindível do ato, que, não permitindo o isolamento do pensamento, integra-o no evento único do ser. Para Bajtin (1997a, p. 9), “qualquer pensamento meu, com seu conteúdo, é meu ato ético [POSTUPOK] individual e responsável, é um dos atos éticos dos quais se compõe minha vida única”10, singular, que se concebe como um atuar ético permanente. A vida, 8 Já, em Arte e responsabilidade, publicação de 1919, Bakhtin (2003d, p. XXXIV) propõe a unidade da responsabilidade como superação da ruptura entre a arte e a vida: “arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade”. 9 No original: “[...] ne doit pas s’opposer lui-même à la théorie et à la pensée, mais les inclure en lui en tant que composantes nécessaires, intégralement responsables” (BAKHTINE, 2003, p. 87). 10 No original: “Cualquier pensamiento mío, con su contenido, es mi acto ético [POSTUPOK] individual y responsable, es uno de los actos éticos de los cuales se compone mi vida única [...]”. 10

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desse modo, em sua totalidade, pode ser entendida como um tipo de ato ético complexo constituído por atos éticos: “eu ajo com toda minha vida, e cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento do meu viver-agir” (BAKHTIN, 2010, p. 44; BAJTIN, 1997a)11. O pensamento, por conseguinte, como ato ético, forma um todo integral – pois inclui o geral e a historicidade concreta individual (tempo, espaço, condições etc.) – que é valorado como ato responsivo e responsável. Por isso, o eu (sempre na interação com o outro), que é responsável pelo ato do seu pensar, não pode encontrar a si mesmo em um juízo de validade universal, uma vez que o juízo teoricamente válido é impenetrável pela atividade individual e responsável. Essa reflexão pode ser ilustrada pelo próprio Bakhtin (2010, p. 49) quando critica o mundo da tecnologia (no início da década de 1920!) que se volta à imanência e não se preocupa em compreender a finalidade cultural do seu desenvolvimento, o que acaba “contribuindo para piorar notavelmente as coisas em vez de melhorá-las”. Tal perspectiva, ao não considerar o outro em seu ato concreto, apresenta-se como um “mundo autônomo teórico, abstrato, alheio por princípio à historicidade viva singular” (p. 50). Essa abstração, designada como “aterrorizante”, pode irromper, repentinamente, na unidade singular da vida como uma força sinistra e devastadora. Tais apontamentos suscitam, por conseguinte, a discussão sobre a importância do pensamento participativo, que, de acordo com Bajtin (1997a, p. 15), deve considerar o ser como historicamente real e singular, que é maior e tem mais peso que o ser da ciência teórica: “essa diferença no peso, evidente para a percepção de uma consciência viva, não pode ser definida em categorias teóricas”12. 11 Na versão do espanhol (BAJTIN, 1997a, p. 9), a parte final faz menção a “momento da minha vida como agir ético”. 12 No original: “[...] esta diferencia en el peso, evidente para la percepción de una conciencia viviente, no pude ser definida en categorías teóricas.” Círculo

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Tal constatação remete à herança do racionalismo, que, ao sobrepor a verdade universal [istina] à verdade particular [pravda], exige que compreendamos o ato singular e ativo como aquele que pressupõe um conteúdo geral, mas em sua realização efetiva. A verdade de um acontecimento não é uma verdade de conteúdo idêntico igual a si mesma [istina], mas a posição única e pensada de cada participante [pravda], a verdade de seu dever ser concreto e real (BAJTIN, 1997a, p. 53)13.

Na concretização do ato, emerge o tom emotivo-volitivo como uma reação ativa responsável em um contexto de uma vida real, em que a cultura se integra ao contexto geral e singular da vida do ser participante, no acontecimento único, irrepetível, que o abarca14. A linguagem, historicamente, como observa Bakhtin (2010, p. 84-85), desenvolveu-se em função do pensamento participativo e do ato, apesar de posteriormente servir ao pensamento abstrato. A plenitude da palavra se dá na relação entre a significação (a palavra-conceito) e o tom emotivo-volitivo (a entonação da palavra), configurando a palavra plena e única. Nessa relação, embora o ato irrepetível e singular seja exprimível verbalmente, uma completa adequação está fora do alcance, ainda que essa adequação seja sempre buscada. Da mesma forma, um evento pode ser descrito de modo participante, todavia, na sua complexidade, “nenhum objeto, nem uma só relação se dá aqui como simplesmente dado, como simplesmente, totalmente, presente; é sempre dado junto com alguma coisa a ser feita, a ser alcançada [...]”, o que mostra a sua dinamicidade, o inacabamento constitutivo e o permanente 13 No original: “La verdad de un acontecimiento no es una verdad de contenido idénticamente igual a sí misma, sino la posición única y razonada de cada partícipe, la verdad de su deber ser concreto y real”. 14 Sobre Para uma filosofia do ato, ver Sobral (2019), que propõe um roteiro comentado de leitura. 12

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devir. Há, portanto, uma impossibilidade de descrição integral do ato, pois, ao se falar sobre um objeto, de um lugar único, entra-se em uma relação comprometida, não indiferente, em que a palavra, impregnada de entonação, revela a atitude avaliativa do sujeito sobre o objeto, que, na unidade do evento, manifesta a tensão com outros sujeitos, discursos e sentidos. Como observa Faraco (2009, p. 49), “o real nunca nos é dado de forma direta, crua, em si [...]”, pois “o mundo só adquire sentido para nós, seres humanos, quando semioticizado”, sendo que os signos pressupõem uma dimensão axiológica, indicando que “nossa relação com o mundo é sempre atravessada por valores” e refrações. Do mesmo modo, de acordo com Bakhtin (2015, p. 48-49), em O discurso no romance, “todo discurso concreto (enunciado) encontra o objeto para o qual se volta sempre, por assim dizer, já difamado, contestado, avaliado, envolvido [...]”, revelando a entrada em um “meio dialogicamente agitado e tenso de discursos, avaliações e acentos alheios”: “entrelaça-se em suas complexas relações mútuas, funde-se com uns, afasta-se de outros, cruza-se com terceiros”. Por isso, o enunciado [...] não pode deixar de tocar milhares de linhas dialógicas vivas envoltas pela consciência socioideológica no entorno de um dado objeto da enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social (BAKHTIN, 2015, p. 48-49).

O discurso surge, assim, a partir da interação dinâmica e tensa com a palavra do outro. Nessa esteira, na relação entre o ato da verbalização e o ato a ser verbalizado, por exemplo, entram em embate centros de valores, portanto diferentes pontos de vista, diferentes tons emotivo-volitivos, diferentes referências espaço-temporais (cronotopos), diferentes projetos enunciativos, o que mostra a alteridade constitutiva, a impossibilidade de coincidência. O objeto das ciências humanas, afirma Bakhtin (2003e, p. 395), em Metodologia das ciências humanas, “é o ser expressivo Círculo

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e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado”15. A singularidade do ser e do ato ético responsável e responsivo, em suas múltiplas inter-relações, põe em relevo o princípio da alteridade que está no “coração da especificidade humana”, para usar as palavras de Amorim (2007, p. 22-23). Para a autora, o discurso humano assim como os sentidos, nessa perspectiva, estão sempre se alterando em relação ao outro, o que confirma o ponto de vista bakhtiniano de que não há coincidência entre sujeitos, discursos e sentidos. A radicalidade da singularidade humana circunscreve-se no discurso e nos sentidos, uma vez que, por mais repetida que seja uma estrutura linguística, o discurso e o sentido serão outros, pois não estão na materialidade repetível, mas sim no evento do ato enunciativo. Nessa perspectiva, a relação de alteridade pressupõe tensão entre diferenças, que não se fundem, mas se multiplicam ao infinito, fazendo brotar a tensão entre o repetível e irrepetível, o mesmo e o outro, a estabilidade e a variabilidade. Faraco (2011, p. 24) observa que a obra de Bakhtin, em especial Para uma filosofia do ato responsável, apresenta as bases de uma “complexa filosofia da alteridade” e que as reflexões sobre o “princípio criativo fundamental” vão além de uma abordagem estritamente estética, abrangendo reflexões sobre a vida que “fundamentam sua filosofia geral: a singularidade de cada um, a alteridade, a interação”. Tais observações remetem às posições axiológicas únicas de cada participante da arquitetônica concreta, cujo ato responsável, constituído na relação com o outro, se orienta pela singularidade e irrepetibilidade de cada lugar ocupado (BAKHTIN, 2010). A alteridade acentua a relação da diferença, da não coincidência, do irrepetível, considerando a centralidade ativa, participante, 15 Discutimos com detalhes, em Di Fanti (2012), a questão da verbalização do ato, a sua importância e a impossibilidade de repetição e de coincidência. 14

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cujo não-álibi no ser é singularizado pelo tom emotivo-volitivo sempre em relação ao outro concreto: “o eu como ser no mundo sem álibi, como responsabilidade é tal em relação ao outro”. Para Ponzio (2016, p. 265-266), por conseguinte, a “arquitetônica da responsabilidade” deve ser compreendida como “arquitetônica da alteridade”, uma vez que “o eu revela-se na sua unicidade, na individualidade, e na sua alteridade, como outro, porque essa sua alteridade objetivamente realiza-se na relação com o outro”. A relação eu e outro mostra um ser singular, em processo, inacabado: Eu amo o outro, mas não posso amar a mim mesmo, o outro me ama, mas não ama a si mesmo; cada um tem razão no seu próprio lugar, e tem razão não subjetivamente mas responsavelmente. Do meu lugar único, somente eu-para-mim-mesmo sou eu, enquanto todos os outros são outros para mim (no sentido emotivo-volitivo do termo) (BAKHTIN, 2010, p. 104).

O ato, por consequência, é condicionado pelo lugar único ocupado: “o meu ato (e o sentimento como ato) se orienta justamente sobre o que é condicionado pela unicidade e irrepetibilidade do meu lugar” (p. 104).16 Assim, sob o enfoque da relação eu e outro como centros axiológicos diferentes, interdependentes, que ocupam lugares únicos, resultantes da sua ímpar experiência, Bakhtin (2010, p. 62) discorre sobre dois momentos inseparáveis da contemplação, a empatia e a exotopia. Nesse processo, cada um tem excedente de visão único, condicionado pela singularidade do lugar ocupado, que permite que se veja no outro o que ele próprio não consegue ver. A empatia consiste na aproximação ao outro de modo a reconhecê-lo e/ou colocar-se, mesmo que provisoriamente no seu lugar, já a exotopia diz respeito ao distanciamento 16 Bajtin (1997b, p. 140), observando a não coincidência entre pontos de vista e a sua impossibilidade de fusão, refere-se a um “eterno litígio no processo da autopercepção do ‘eu’ e do ‘outro’”. Círculo

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necessário para a produção do conhecimento. Nesse movimento, não há empatia pura, pois seria “a coincidência com o outro”, a perda do lugar único na singularidade do ser, impossível para essa perspectiva que considera todo ser insubstituível. A exotopia é o momento em que se constrói conhecimento sobre o outro a partir do que foi visto junto dele em articulação ao que se vê a distância, a partir de uma posição axiológica única. Há, pois, um excedente de visão singular que é afetado pela relação com o outro: Quando contemplo no todo um [indivíduo] situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, e sua expressão –, o mundo atrás dele toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele (BAKHTIN, 2003a, p. 21).

Essa reflexão, desenvolvida em O autor e a personagem na atividade estética (BAKHTIN, 2003a, p. 21), reitera a posição ativa, a singularidade e insubstituibilidade de cada um: “Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos”.17 É um ativismo exclusivo em relação ao outro, que de um lugar único, passando pela empatia e pela exotopia, faz emergir um excedente de visão, de conhecimento, de vontade e de sentimento que “complete o horizonte do outro indivíduo contemplado sem perder a [sua] originalidade” (BAKHTIN, 2003a, p. 23). O caso ilustrado por Bakhtin no que tange à relação eu e outro, em que o outro é um indivíduo sofrendo, ajuda na compreensão da 17 O autor e a personagem na atividade estética, escrito entre 1922-1924 (BAKHTIN, 2003a), integra a obra póstuma Estética da criação verbal (1979). 16

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reflexão em pauta. O primeiro momento da atividade estética (e aqui consideramos em sentido amplo para a vida) é a compenetração, em que o eu deve vivenciar o que o outro vivencia, aproximando-se do horizonte vital concreto desse indivíduo, ainda que falte uma série de elementos que não são acessíveis de outro lugar. O sofredor, por sua vez, [...] não vivencia a plenitude da sua expressividade externa, ele só vivencia parcialmente [...] ele não vê a tensão sofrida dos seus músculos, toda a pose plasticamente acabada do seu corpo, a expressão de sofrimento do seu rosto, não vê o céu azul contra o qual se destaca para mim sua sofrida imagem externa (BAKHTIN, 2003a, p. 24).

Ainda que o sofredor se olhe no espelho, por exemplo, não disporá de um enfoque volitivo-emocional de um contemplador, um olhar exotópico, sobre os elementos observados no espelho. Ele, por um lado, necessita do contemplador, desse movimento de aproximação. O contemplador, por outro, deve retornar a si mesmo, ao seu lugar fora do sofredor, uma vez que apenas do exterior “o material de compenetração pode ser assimilado em termos éticos, cognitivos, ou estéticos”. Se o contemplador (eu) ficasse junto do outro (sofredor) e não retornasse ao seu lugar, ocorreria o que Bakhtin (2003a, p. 24) designa como “fenômeno patológico do vivenciamento do sofrimento alheio como [seu] próprio sofrimento”. A compenetração, portanto, no caso em foco, diz respeito à vivência dos sofrimentos do outro como dele, por isso a reação ao outro “não é um grito de dor e sim uma palavra de consolo e um ato de ajuda”. Logo, para se ter uma compenetração eficaz que gere conhecimento ético e estético, faz-se necessário “relacionar ao outro o vivenciado”. A atividade estética propriamente, para Bakhtin (2003a, p. 25), começa quando o eu retorna para si mesmo e para seu lugar, fora da pessoa que sofre, quando enforma e dá acabamento ao material Círculo

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da compenetração. Esse processo ocorre pelo preenchimento do sofrimento de um dado indivíduo por elementos transgredientes à consciência sofredora, que lhe dão acabamento (postura corporal, tons emotivo-emocionais etc.). Os valores que concluem a imagem do outro são extraídos do excedente de visão. Em De los borradores, Bajtin (1997b, p. 145) discute também o caráter do excedente de visão e da não coincidência de pontos de vista.18 Nesse sentido, trata da exotopia como a condição de excedente, como “exotopia conclusiva”, já que “um todo completo não pode ser visto do seu interior, mas apenas do seu exterior”19. Essa totalidade, nas diferentes relações empreendidas, pressupõe o inacabamento constitutivo: [...] para viver preciso ser inacabado, aberto para mim – ao menos em todos os momentos essenciais –, preciso ainda me antepor axiologicamente a mim mesmo, não coincidir com a minha existência presente (BAKHTIN, 2003a, p. 11).

Na própria autobiografia, por exemplo, “o autor deve colocar-se à margem de si; vivenciar a si mesmo não no plano em que efetivamente vivenciamos a nossa vida; só sob essa condição ele pode completar a si mesmo”. Desse modo, “deve tornar-se outro em relação a si mesmo, olhar para si mesmo com os olhos do outro”. No que se refere à vida, reflete Bakhtin (2003a, p. 13), “avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do outro procuramos compreender e levar em conta os momentos transgredientes à nossa própria consciência”. Os elementos transgredientes, conforme Todorov (1981, p. 146), referem-se a “elementos da consciência que são exteriores a ela, mas, no entanto, indispensáveis para seu acabamento, para a sua 18 De los borradores (BAKHTIN, 1997b) é composto por textos escritos entre 1940 e 1960, que só vieram a público em 1992 na Rússia. 19 No original: “Un todo concluido no puede ser visto desde el interior, sino tan sólo desde el exterior”. 18

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constituição na totalidade”.20 Nessa perspectiva, é assinalada a importância do papel do outro na realização da consciência individual, em sua constituição dialógica, já que é o outro que desencadeia a percepção de si, que se realiza apenas parcialmente pelo próprio indivíduo.21 Todorov (1981, p. 145), em Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique, ao referir-se ao ensaio O autor e a personagem na atividade estética, publicação que recém teria tido acesso (antes da publicação dos manuscritos de Para uma filosofia do ato22), ressalta a centralidade do conceito de alteridade na estética teórica e na “filosofia moral”. O último capítulo da sua obra, intitulado “Antropologie philosophique”, é organizado em torno de ideias sobre a alteridade (em relação ao psiquismo, à criação artística e à interpretação), consideradas por Todorov como a chave do conjunto do pensamento bakhtiniano. A expressão “esboço de antropologia filosófica”, utilizada por Bakhtin em Apontamentos de 1970-1971 (2003b, p. 382-383), embora seja seguida de reflexões não desenvolvidas, uma vez que compõem manuscritos não finalizados para publicação, introduz uma série de anotações que assinalam um diálogo claro com a questão da alteridade já levantada nos textos do início da década de 1920, como Pour une philosophie de l’acte (BAKHTINE, 2003) e O autor e a personagem na atividade estética (BAKHTIN, 2003a): Minha imagem de mim mesmo. Qual é a índole de mim mesmo, do meu eu em seu todo? Em que ele 20 No original: “[...] des éléments de la conscience qui lui sot extérieurs mais néanmoins indispensables à son parachèvement, à sa constitution en totalité”. A palavra “transgrediente”, conforme Todorov (1981, p. 146), foi tomada emprestada por Bakhtin da estética alemã, como um sentido complementar a “ingrediente”. 21 Para Bakhtin (2003c), a consciência tem natureza dialógica, própria da vida humana. 22 Para uma filosofia do ato veio a público em 1986, portanto, depois da publicação de Todorov (1981). Círculo

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se distingue essencialmente da minha concepção do outro? A imagem do eu ou o conceito, ou o vivenciamento, a sensação etc. [...] O que compreendo por eu quando falo e vivencio: “eu vivo”, “eu morro” etc. (“eu sou”, “eu não existirei”, “eu não existi”). Eu-para-mim e eu-para-o-outro, o outro-para-mim. O que em mim é dado imediatamente e o que é dado apenas através do outro [...] A mim não são dadas as minhas fronteiras temporais e espaciais, mas o outro me é dado integralmente. Eu vivo em um mundo espacial, neste sempre se encontra o outro. As diferenças de espaço e tempo do eu e do outro [...].

Tais considerações, que problematizam a relação eu e outro, bastante caras à teoria bakhtiniana, são desenvolvidas em outras partes de Apontamentos (BAKHTIN, 2003b, p. 373-374), salientando a necessidade do olhar axiológico do outro, do tom emotivo-volitivo do outro. Isso se observa, por exemplo, pelo próprio fato de se tomar consciência de si mesmo através do outro: Tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros (da minha mãe etc.), com sua entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional. A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo [...].

O reconhecimento da necessidade do outro também aparece em El hombre ante el espejo, texto de 1943, publicado em De los borradores (BAJTIN, 1997b, p. 147): “Eu não vejo o mundo com meus próprios olhos e do meu interior, mas me vejo com os olhos do mundo; estou possuído pelo outro”.23 Tal abordagem sinaliza duas questões importantes: uma delas é que o indivíduo “nunca coincide consigo mesmo” (BAKHTIN, 1997, p. 59); a outra questão 23 No original: “Yo no miro al mundo a mis proprios ojos y desde mi interior, sino que yo me miro a mí mismo con los ojos del mundo; estoy poseído por el otro”. 20

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diz respeito à importância imperativa de um ponto de vista extrínseco, um tom emotivo-volitivo externo. De acordo com Bakhtin (2003c, p. 341, 355), em Reformulação do livro sobre Dostoiévski, “eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro”, sendo que os “atos mais importantes, que constituem a autoconsciência, são determinados pela relação com outra consciência (com o tu)”.24 Importa, nesse processo, a fronteira, o limiar, entre o eu e o outro. Essa reflexão implica o eu-para-mim, o eu-para-o-outro e o outro-para-mim, em que o eu não se funde com o outro, mas mantém “posição própria na distância e no excedente de visão e compreensão a este relacionado”. Essas reflexões pressupõem a alteridade e o dialogismo como constitutivos das relações humanas. Para Bakhtin (2003c, p. 348), “a vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar etc.”. Nesse diálogo, o sujeito “participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos”. A linguagem, desse modo, em suas manifestações verbais e não verbais, é dialógica, heterogênea, e “entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal”. Há um “diálogo inconclusível”, que não permite o fechamento do pensamento e da vida. A palavra, sob esse enfoque, tem natureza dialógica, nasce do diálogo e com ele se nutre. Por isso, podemos falar da natureza dialógica da linguagem, do discurso. Nada é isolado. A palavra responde a outras palavras e quer ser ouvida, respondida e reapreciada. Volóchinov (2017, p. 219-220), em Marxismo e filosofia da linguagem, nessa perspectiva, observa que o discurso “participa de uma espécie de discussão ideológica em grande escala: responde, 24 Em Reformulação do livro sobre Dostoiévski (1961-1962), Bakhtin (2003c) se dedica a aperfeiçoar o livro de 1929 para uma nova edição: Problemas da poética de Dostoivéski, publicada em 1963. Círculo

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refuta ou confirma algo, antecipa as respostas e críticas possíveis, busca apoio [...]”. Todo enunciado é apenas um momento, um elo, na cadeia de comunicação discursiva, que é ininterrupta. Esse elo integra a interação discursiva concreta e a situação extraverbal, que são partes necessárias de sua constituição e de seu sentido. A compreensão do discurso como “a língua em sua integridade concreta e viva”, um fenômeno complexo e multifacetado, que é por natureza dialógico, leva Bakhtin (1997, p. 181), em Problemas da poética de Dostoiévski, a propor a metalinguística, ou translinguística (no dizer de Todorov, 1981, p. 42), como o estudo dos “aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da linguística [do sistema]”. A translinguística, embora não ignore a linguística, devendo com ela “completar-se mutuamente”, mas não fundir-se, tem como objeto as relações dialógicas, que “são irredutíveis às relações lógicas [...] que por si mesmas carecem de momento dialógico” (BAKHTIN, 1997, p. 183). As relações dialógicas, de acordo com Bakhtin (1997, p. 184-185), “são possíveis não apenas entre enunciações integrais (relativamente), mas o enfoque dialógico é possível a qualquer parte significante do enunciado, inclusive a uma palavra isolada”. Isso acontece quando a palavra é entendida como enunciado, tem autor, acento valorativo e reverbera a voz do outro. A translinguística, ao estudar as relações dialógicas, volta-se para o exame do “discurso bivocal, que surge inevitavelmente sob as condições da comunicação dialógica, ou seja, nas condições da vida autêntica da palavra”. Em todo fenômeno expresso por “matéria sígnica”, há relação dialógica. Há também alteridade e ideologia, pois, como entende Volóchinov (2017, p. 94), o “material sígnico” é oriundo de um território interindividual de sujeitos socialmente organizados: “o caráter sígnico é um traço comum a todos os fenômenos ideológicos” (p. 94). Todo signo, desse modo, é ideológico, ele não só 22

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reflete mas também refrata a existência, o que significa que há um cruzamento de ênfases multidirecionadas, um cruzamento de acentos, que o transforma em palco de luta de classes. A matéria sígnica, portanto, é também dialética. O signo ideológico possui uma dialética interna que o torna vivo e mutável, capaz “de viver, de movimentar-se e de desenvolver-se” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 113-114). Como observamos nas reflexões sobre o ato ético responsável, o signo ideológico também é associado ao Jano bifronte, devido ao fato de ter duas faces: “qualquer xingamento vivo pode se tornar um elogio, qualquer verdade viva deve inevitavelmente soar para muitos como uma grande mentira”. É na linguagem que o caráter sígnico se expressa em sua plenitude. Na relação eu e outro, a palavra constitui-se como “o fenômeno ideológico par excellence”, impregnada de acentos valorativos, oriundos das interações sociais, em que o locutor se posiciona em relação ao interlocutor a partir de um projeto enunciativo. Como signo ideológico, enunciado concreto, discurso, a palavra pronunciada por um único indivíduo “é um produto da interação viva das forças sociais”, reverberando a interpenetração dialética do psiquismo (discurso interior) e da ideologia na singularidade heterogênea do ato enunciativo. Logo, toda palavra “é um pequeno palco em que as ênfases sociais multidirecionadas se confrontam e entram em embate” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 98, 140). O meio ideológico, pondera Medviédev (2012, p. 57, 183), em O método formal nos estudos literários, “é sempre dado no seu vir a ser dialético vivo”, cujas contradições não cessam de reaparecer. O enunciado concreto, nessa perspectiva, “é um ato social” e, ao mesmo tempo, “é uma parte da realidade social”, em que interage reagindo a algo e voltando-se para uma resposta no evento comunicativo. As avaliações sociais que perpassam o enunciado “penetram-se mutuamente e estão ligadas de forma dialética”, por isso a Círculo

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necessidade de conhecer a “atmosfera axiológica e sua orientação avaliativa no meio ideológico”, também compreender o contexto da sua contemporaneidade, o sentido construído, o conteúdo do ato, a realidade histórica do ato. Para tanto, seguindo Medviédev (2012, p. 185), devemos observar a entonação expressiva, que “dá cor a cada palavra do enunciado”, ao sentido, à integridade individual, articulando a materialidade verbal à situação concreta e à singularidade histórica. O enunciado, a partir do conjunto da reflexão, compreendido como ato ético responsável e responsivo, é inesgotável. Nele podemos observar, dentre outras características, aspectos da alteridade, do dialogismo e da dialética. A compreensão desse ato implica uma participação responsável, em que o contemplador, na atividade de compreensão, compreenda seu dever em relação ao objeto, a atitude ou posição a ser tomada em relação a ele (BAKHTIN, 2010). Essa posição responsiva ativa pode ser associada à discussão empreendida por Bakhtin (2017, p. 19), em “A ciência da literatura hoje”: “um sentido só revela as suas profundezas encontrando e contatando o outro, o sentido do outro: entre eles começa uma espécie de diálogo que supera o fechamento e a unilateralidade desses sentidos, dessas culturas”. Nesse processo, continua o filósofo russo: [...] colocamos para a cultura do outro novas questões que ela mesma não se colocava; nela procuramos resposta a essas questões, e a cultura do outro nos responde, revelando-nos seus novos aspectos, novas profundezas do sentido.

Com esse espírito, o Grupo GenTe – Tessitura: Vozes em (Dis) curso – vem tecendo as discussões com seus pesquisadores. Na relação eu e outro, em busca dos sentidos, questionamentos e interrogações vão sendo cunhados para a construção do conhecimento. Sob esse enfoque, a partir dos encontros de pesquisa realizados em 2019 e das leituras efetuadas, o Grupo GenTe propôs 24

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a organização de um encontro maior, uma jornada de estudos para debater pesquisas em desenvolvimento ou concluídas. O Seminário Círculo de Bakhtin: alteridade, diálogo e dialética, que dá título a essa coletânea, foi realizado, em novembro de 2019, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e contou com um número expressivo de pesquisadores da PUCRS e de outras instituições de ensino e pesquisa25. A heterogeneidade das investigações apresentadas e postas em discussão proporcionou o desejado encontro de culturas e o levantamento de questões, próprias e do outro, de que fala Bakhtin (2017, p. 19): “Sem levantar nossas questões não podemos compreender nada do outro, do alheio, ou do modo criativo”. As diferentes culturas precisam se encontrar. É, na tensão do encontro de culturas, “que não se fundem nem se confundem”, que “cada uma mantém a sua unidade e a sua integridade aberta”, mas que “se enriquecem mutuamente”. Com o foco no levantamento de questões e no encontro dialógico de culturas, de modo a abrir para novas perguntas e buscar novas respostas, os textos publicados neste livro respondem a um ou mais eixos centrais do debate – alteridade, dialogismo e dialética – em articulação com seus objetos de reflexão26. Propondo uma 25 Como o título desta obra indica, as reflexões desenvolvidas giram em torno das ideias do Círculo de Bakhtin. Nesse sentido, é importante destacar que Bakhtin (1895-1975), por ter vivido mais do que Volóchinov (1895-1936) e Medviédev (1891-1938), pôde dar continuidade às suas reflexões, bastante convergentes com as ideias do grupo, o que permite que se considere como do Círculo de Bakhtin o conjunto das produções, para além dos encontros entre 1919 e 1929, independentemente, portanto, da data de escrita e de publicação (BARBOSA; DI FANTI, 2020). Destaca-se também que o Seminário Círculo de Bakhtin: alteridade, diálogo e dialética, realizado em 2019, reverencia os 90 anos de duas importantes obras do Círculo: Marxismo e filosofia da linguagem, de Volóchinov, e Problemas da criação de Dostoiévski (que dá origem a Problemas da poética de Dostoiévski, de 1963), de Bakhtin. 26 Para Bakhtin (2003e, p. 401), “o texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo”. Círculo

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reflexão teórica, Daniela Cardoso busca uma aproximação entre Adorno e Bakhtin para tratar do enunciado concreto a partir de um ponto de vista marxista. Thomas Rocha, por sua vez, pondera sobre a construção da identidade discursiva em nota de repúdio. O tema linguagem e trabalho é focalizado em diferentes dimensões: Maíra da Silva Gomes reflete sobre a invisibilidade do trabalho docente; Gislene Feiten Haubrich discute sobre o coworking a partir da noção de gêneros do discurso e Márcia Cristina Neves Voges desenvolve uma reflexão acerca das valorações que circulam nas mídias sobre o ensino a distância. No que diz respeito a pesquisas sobre a mulher, Débora Luciene Porto Boenavides dedica-se a estudar a gênese do código linguístico feminista brasileiro na mídia impressa; Kelli da Rosa Ribeiro questiona de que forma padrões de beleza imputados à mulher são polemizados em ilustrações artísticas e Luciane Alves Branco Martins analisa a construção discursiva da imagem da mulher em discursos intolerantes nas redes sociais. A discriminação racial é discutida por Camila Franz Marquez e Nessana de Oliveira Pereira. Graziella Steigleder Gomes, por sua vez, problematiza o discurso cômico-preconceituoso. O embate dialógico entre as posições do governo brasileiro e a Base Nacional Comum Curricular é posto em discussão por Norberto Niclotti Catuci. Cristiano Sandim Paschoal investiga traços sobre o nazifascismo no Brasil atual. Luciana Saratt, por seu turno, analisa refrações da camiseta da seleção brasileira. Giselle Liana Fetter desenvolve estudo sobre a visão dominante da divulgação científica. O relato pessoal é objeto de pesquisa de Marta Maria da Silva Moreira, e o conceito de gêneros do discurso é investigado por Verônica Franciele Seidel. Este conjunto de reflexões, recuperando a ideia do encontro dialógico de culturas, põe em destaque o acontecimento da interação com a palavra do outro e, consequentemente, o enriquecimento das pesquisas e das reflexões abertas para o debate. Com isso, instaura o “diálogo inconcluso”, a “expressão verbal da autêntica 26

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vida do [sujeito]”, que, como entende Bakhtin (2003c, p. 348, 31), é marcada pela interdependência entre o eu e o outro. Nesse processo relacional, “ser significa conviver”. Mais ainda, “ser significa ser para o outro e, através dele, para si”, retomando a epígrafe que abre esta reflexão e que é muito cara aos organizadores desta publicação, cujos temas são tão pujantes e necessários.

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A DIALÉTICA NEGATIVA NO ESTUDO DA ALTERIDADE E DA TEORIA DO ATO

Daniela Cardoso1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

PALAVRAS INICIAIS A realidade tem se mostrado complexa do ponto de vista ideológico. Estamos envoltos em crises de valores, rupturas de parâmetros e enfrentamentos ideológicos exacerbados. Esse contexto é bastante instigante e rico para os estudos linguísticos que tomem como verdadeiros os pressupostos apontados pelos autores do Círculo de Bakhtin acerca da constituição do objeto da ciência linguística: a linguagem. Assumir a abordagem proposta pelo Círculo implica ter como pressuposto uma dada compreensão acerca do conhecimento em si, o que, de modo bem específico, vai incorrer uma dada abordagem da realidade na qual esteja inserido como participante ativo o sujeito cognoscente. Envolve, ainda, reconhecer que, na linguagem, no enunciado e nos gêneros discursivos, estão expressas as transformações sociais mais profundas, o 1 Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014). Pesquisadora do grupo Tessitura: Vozes em (Dis)curso (PUCRS/CNPq). Atualmente, está em estágio pós-doutoral com o projeto: A dialética negativa no estudo da alteridade e da teoria do ato, sob supervisão da professora Maria da Glória Corrêa di Fanti (PUCRS). https://orcid.org/0000-0001-9661-7408. E-mail: danicardoso.revisao@gmail. com. Círculo

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que delega à Linguística uma tarefa peculiar no momento atual. Todos os dias, estamos expostos a práticas discursivas raivosas que perpassam as esferas do cotidiano e chegam à superestrutura legitimadas como signos ideológicos, o que representa um acirramento entre propostas antagônicas para a vida em sociedade. Por esses motivos, consideramos que pensar criticamente a globalização capitalista tornou-se um mote não mais restrito ao campo político, como outrora se convencionou, mas que permeia, legitimamente, a esfera científica. Estudar a linguagem, na atualidade, nos conduz a um esforço conceitual, sobretudo, no que diz respeito a interpretar a sua subjetividade e seu papel na relação sujeito e realidade, em sentido ético. Se, como sociedade, enfrentamos uma crise da subjetividade, essa é, também, uma crise de referenciais teóricos. O que propomos nessa reflexão inicial, neste texto, é buscar nos pressupostos filosóficos uma contribuição para compreendermos a linguagem em sua instância de ato concreto profundamente vinculado aos aspectos de transformação social. Argumentamos que um cotejamento entre os pressupostos, sobretudo, da obra Para uma Filosofia do Ato de Bakhtin (1920-24) e os pensamentos de Theodor W. Adorno (1903-1969) pode nos dar melhores condições para estabelecer novos sentidos para os estudos do enunciado concreto que considerem o ponto de vista marxista de abordagem. A proposta epistemológica da dialética negativa, apresentada por Adorno, oferece nortes a abordagens que reconheçam a concretude e o empírico como mais relevantes em relação à possibilidade conceitual. Assim, propomos realizar uma reflexão em torno do conceito de alteridade e a concepção de ato, desenvolvidos pelo Círculo de Bakhtin, e a proposta da dialética negativa, forma metodológica de abordagem do conhecimento, elaborada por Adorno, visando a aprofundar os fundamentos da linguagem de base dialógica, elucidando aspectos filosóficos envolvidos na proposta de abordagem da língua.

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Nesse sentido, organizamos o texto em três tópicos: no primeiro, recuperamos os apontamentos dos autores do Círculo de Bakhtin, sobretudo, no que diz respeito à alteridade; no segundo, apostamos nas elaborações de Adorno na construção de uma concepção materialista da subjetividade, ou da relação do objeto concreto e o sujeito (linguagem-sujeito); no terceiro, apresentamos algumas interseções entre os autores que podem apontar direções para análises linguísticas no contexto contemporâneo, permeado de reflexos e refrações. Destacamos, no entanto, que se trata de uma reflexão ainda bastante inicial e que este texto está voltado ao objetivo de apresentar a reflexão para que sejam possíveis a análise e a discussão que venham a suscitar uma elaboração mais avançada.

A LINGUAGEM COMO ATO ÉTICO A concepção de linguagem dos autores do Círculo de Bakhtin traz imbricada a ideia de uma ação orientada axiologicamente e que emerge sempre de seres humanos que compreendem e avaliam acontecimentos em sua realidade concreta. A referência ao evento ocorre no que Bakhtin denominou de ato ético, em que o sujeito realiza sua interpretação e participação, já que não há evento dado em si. É assim que a concepção do Círculo se insere em uma abordagem discursiva da linguagem, concebida como prática social e intersubjetiva. Pressupõem-se a existência de sujeitos em relação e a concretização de vozes que implicam para a linguagem o seu caráter dialógico. As relações dialógicas são de valores, de experiências, de acontecimentos, os quais, por sua vez, situam-se sempre em um dado tempo e espaço: o cronotopo. Nessa concepção, não há limites para o dialogismo, sendo que um cronotopo determinante pode abarcar outros menores. Um princípio fundador para este texto é

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que, para os pensadores do Círculo, a alteridade é constitutiva do eu, o que faz toda a diferença na compreensão desse fenômeno. O próprio ser do homem (tanto interno quanto externo) é convívio mais profundo. Ser significa ser para o outro e, través dele, para si. O homem não tem um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro (BAKHTIN, 2011, p. 340, grifo do autor).

No âmbito do pensamento bakhtiniano, a alteridade é pensada como uma relação atuante e constitutiva do sujeito na e pela linguagem, o que implica aceitarmos a ideia de que não há uma individualidade, ao menos do modo como se compreenderia em abordagem positivista. Nessa compreensão, cada ser constitui-se como sujeito a partir da consciência do outro, de modo que é a própria alteridade que constitui a identidade. Assim, as relações dialógica, axiológica e alteritária expressam o determinante social e o caráter ideológico da linguagem. Na linguagem, portanto, no ato individual e único, revela-se o social presumido que dá origem ao discurso. A relação entre os seres estabelece a formação da consciência que, por sua vez, é externalizada pela linguagem e passa a conformar, de alguma forma, outros discursos. A linguagem é forjada na relação recíproca entre alteridade, dialogismo e ideologia. Essa relação constitui a própria unidade concreta da linguagem – o enunciado, que se configura na forma de gêneros do discurso. O enunciado, ato concreto de linguagem, é resultado dessa complexa relação entre sujeitos, ideologicamente determinados, inseridos em um contínuo discursivo e em práxis social. Nessa perspectiva, a abordagem do Círculo esclarece, na noção de gênero discursivo, a constituição da linguagem como uma relação, intrínseca e imanente, entre o que, do ponto de vista positivista, se consideraria estruturalmente linguístico e extralinguístico. 32

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O gênero reflete e refrata o ser em sua consciência, que é sempre coletiva, social, portanto, igualmente ideológica, indissociável do dialogismo, constituidor do próprio enunciado. Não é possível conceber uma definição de gênero discursivo isolado, pois isso romperia com o princípio dialético em que o todo e as partes se autodeterminam em relação de influência recíproca, ou seja, o todo determina as partes e as partes determinam o todo e também as demais partes de um fenômeno. Ao abordarmos a questão dos gêneros discursivos, pretendemos contribuir para esclarecer como se constitui o sentido de enunciados concretos. Nessa perspectiva, são justamente os enunciados singulares, aqueles que não se prestam a revelar no material linguístico quase nada de seu sentido, os que constituem a manifestação mais clara de que o verbal e o extraverbal encontram-se amalgamados na unidade semântica desses enunciados, considerando-se, portanto, essa unidade como o resultado único de dada enunciação. A concepção de práxis como determinante último da existência humana coloca a linguagem em lugar privilegiado na formação do ser, como um ser ético no mundo. É por meio da linguagem e nela mesma que o ser se constitui e é, igual e simultaneamente, nela que a realidade é refletida e refratada pelos sujeitos envolvidos na práxis. Nesse ponto, cabe atentarmos para os conceitos de refletir e refratar, geralmente foco de grandes dúvidas na abordagem. Entendemos que tais conceitos se aproximam, significativamente, do que Lukács (1979), como representante do pensamento marxista, chamou de reflexo. Esse autor denomina reflexo uma realidade abstrata qual seja capaz de transferir à consciência dos sujeitos as relações sociais, mas que não pode ser compreendida como sendo as próprias relações, pois relações sociais e abstrações de consciência pertencem a esferas diferentes. O enunciado é, portanto, uma realidade da própria consciência construída com base em um recorte axiológico do sujeito, tornando-se, por isso, sempre inacabado. Círculo

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Envolvida em subjetividade, avessa à neutralidade, a linguagem reflete e refrata a realidade. A enunciação constitui expressão exterior do psiquismo individual e não só adquire significado em um contexto social, como é determinada por esse contexto – representado teoricamente pela noção de cronotopo –, e mantém a especificidade empírica de se realizar em interação específica. Conclui-se que as enunciações são sempre dialógicas, pressupõem um ou vários interlocutores, presentes no contexto social imediato ou não. Para os autores do Círculo de Bakhtin, o social não se opõe ao individual, mas ao natural. O caráter humano da linguagem a torna socialmente localizada e temporalmente determinada, constituída, exclusivamente, na práxis. A reflexão epistemológica traçada por Bakhtin, de forma especial, em Para uma filosofia do ato (PFA), assevera que o conhecimento verdadeiro somente se torna pleno se, além de verdadeiro, ele for válido. Para ser válido, o conhecimento deve estar inserido no contexto. Somente a inclusão do sujeito concreto e histórico, que é o criador do pensamento, torna o conhecimento de qualquer pensamento completo, de modo que antes disso só pode ser considerado parcial. No interior do sistema, cada componente dessa unidade é logicamente necessário, mas o próprio sistema no seu todo somente é possível relativamente; somente em correlação comigo – que penso ativamente – e enquanto ato do meu pensamento responsável que um tal sistema participa da arquitetônica real do mundo vivido como um dos seus constituintes; somente assim ele se enraíza na sua singularidade real, válida no plano do valor (2003, p. 20-21).

Trazer os sujeitos reais para “assinar” os enunciados aponta para a alteridade presente em cada ato de fala. Um pensamento que não se insere na arquitetônica real do mundo vivido, por meio do sujeito responsivo, é uma abstração sem sentido ou singularidade. Cada enunciado é construído, assim, em relação objetiva, na 34

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realidade concreta em que se insere, e subjetiva, dos sujeitos que enunciam e que recebem a enunciação e a constituição alteritária do enunciado. Bakhtin (2003) aprofunda a definição de ato, buscando explicações em uma questão que se revela existencial: por que devo pensar? A resposta é elaborada no plano do dever, demonstrando que o autor tinha preocupações éticas, as quais discutiu com tal texto. O ato de pensar justifica-se justamente pela necessidade de ocupar um dado lugar, uma dada posição no contexto de existência humana. É necessário reconhecer um conhecimento como meu, dentro da lógica da minha existência singular, o que me leva a assinar tal pensamento. O que pode dar sentido ao pensamento é a articulação entre o ser e a cultura, somente produzida no ato, ou seja, na assinatura do pensamento. Bakhtin (2003, p. 58) define o ato de pensar como uma “atitude imperativa da consciência”, algo de que o ser humano pouco pode se abster, tornando-se a própria humanização do ser. O texto em questão, Para uma filosofia do ato, foi revelado pelo próprio Bakhtin em 1970, tempos em que esse já se acreditava a salvo dos exageros de Stalin. Segundo Michael Holquist, Katerina Clark e Caryl Emerson (1998), essa obra deve ter sido redigida entre os anos de 1920 e 1924, permanecendo como manuscrito inacabado e sem título até sua publicação na Rússia, em 1986. O texto faz parte de um conjunto de manuscritos que Bakhtin havia guardado em um esconderijo em Saransk, após o retorno do exílio no Cazaquistão. É importante compreender a contextualização desse trabalho, para o próprio entendimento do texto. O período entre 1920 e 1924 foi de grande efervescência política na Rússia, após a revolução socialista. A escritura do texto deixa transparecer o vigor intelectual do jovem Bakhtin em contraste com sua fragilidade física, uma debilidade óssea que prejudicou sua grafia. Círculo

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Em momentos de maior sofrimento, o autor ditou à sua esposa suas ideias, excertos que parecem mais legíveis. Dado o péssimo estado em que os manuscritos foram encontrados, as palavras que não puderam ser decifradas foram sinalizadas no texto: algumas por <i>, quando não puderam ser decifradas, e outras por <?>, quando se arriscou uma leitura hipotética. A importância de PFA deve-se ao fato de ser considerada a base filosófica para todas as demais obras da teoria bakhtiniana. Mas além das dificuldades de leitura já mencionadas, há uma complexidade interpretativa, atribuída à necessidade de o leitor reconhecer os diferentes diálogos estabelecidos com complexos pensamentos filosóficos. Sobral (2009), nessa direção, apresenta um esboço detalhado do percurso filosófico traçado por Bakhtin em PFA, discutindo com quem o autor pretendia concordar ou discordar. Há um papel de destaque dado à filosofia alemã, particularmente à de Kant, leitura realizada por Bakhtin desde muito cedo e que foi objeto de seus cursos. Bakhtin (2003) propõe como questão a elucidação da dimensão ética de um pensamento teórico. Para tanto, aborda duas verdades: a istina e a pravda. O pensador propõe o termo russo istina para designar a verdade de um conteúdo teórico, mas afirma que isso não garante a essa teoria a dimensão ética. A ética de um pensamento somente pode surgir no ato de pensar que implica um sujeito, único. Assim, no campo da abstração, a teoria obriga-se apenas a ser verdadeira em seu conteúdo. Uma dada teoria, que seja verdadeira, é pensada por alguém único e singular e vira, por isso, ética. Somente nesse ponto é que a teoria verdadeira se completa em pravda. Se não houver o ato de pensar de um sujeito, o conhecimento é parcial e abstrato. É pelo ato concreto, ético e responsável que o mundo da cultura e o mundo da vida se tocam mutuamente. Nesse sentido, o ato de criar é um dado posicionamento em relação à própria criação, acresce valor, tendo o criador como responsável por esse ato. 36

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O ato, para Bakhtin, é assim um ato de criação, em que se concretiza o pensamento teórica e culturalmente. A característica essencial de ato é constituir-se de assinatura, de posicionar-se, portanto, de alteridade, pois o sujeito pensa e assume seu pensamento perante o outro. O ato é uma atitude ética em que o sujeito se arrisca, sendo convocado a pensar; é determinado, não pode ser fortuito, pois do lugar onde o sujeito está só poderia pensar o pensamento mesmo que apresenta; é a única forma de superação da divisão entre a cultura e a vida, nele se condensam teoria e prática, como na práxis. Em sua responsabilidade, o ato coloca diante de si sua própria verdade [pravda] como algo-a-ser-alcançado – uma verdade que une os momentos subjetivo e psicológico, exatamente como une o momento do que é universal (válido universalmente) e o momento do que é individual (real) (BAKHTIN, 2003, p. 47).

Bakhtin traz a ideia de não álibi no ser, mostrando que não há, para os seres humanos, nenhuma justificativa para desreponsabilizá-los de seus atos. A responsabilidade advém da própria existência singular de cada indivíduo; se existe, não pode se eximir de tal responsabilidade. O imperativo do não álibi determina que não há no ser a justificativa para não agir como sujeito em sua singularidade e subjetividade. Além disso, a posição no mundo, a própria existência em tempo e espaço confere responsabilidade ao sujeito; o ser acontecimento que se realiza como sujeito não torna possível uma abstenção do ato. O sujeito que não assume essa responsabilidade abstém-se de sentido. Esse reconhecimento da unicidade da minha participação no Ser é a fundação real e efetiva da minha vida e minha ação realizada. Minha ação ativa afirma implícita sua própria singularidade e insubstituibilidade dentro do todo do Ser, e nesse sentido ela é colocada, de dentro de si, em imediata proximidade com as fronteiras desse todo e orientada dentro dele como um todo. Isso não é simplesmente uma afirmaCírculo

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ção de mim mesmo ou simplesmente uma afirmação do Ser real, mas uma não fundida mas individida afirmação de mim mesmo no Ser: eu participo no Ser como seu único ator. [...] eu sou real e insubstituível, e portanto devo realizar minha unicidade. É em relação à toda a unidade real que meu único dever surge do meu lugar único no Ser. Eu, o um e o único eu, não posso em nenhum momento ser indiferente a (parar de participar de) minha vida inescapavelmente, obrigatoriamente única vida; eu preciso ter meu dever (BAKHTIN, 2003, p. 59).

A impossibilidade da indiferença garante a permanente renovação do ser, que se altera e se constitui pelo outro, como pressupõe a alteridade. Dessa forma, a alteridade é parte constituidora do sentido do ser no mundo, de tal forma que o sentido não pode ser compreendido como expressão de singularidade, mas como produto do pensamento-ato. Assim, o sentido só pode se formar na relação com o outro. Reafirma-se que é na articulação entre sujeito e cultura, no pensamento-ato, que se torna possível o sentido do ser, enquanto participante da cultura, da história, da realidade. É assim que o sentido do ser se dá na participação consciente e responsável na cultura (BAKHTIN, 2003). Esse seria um dos caminhos pelos quais a linguagem se manifesta como elo entre a infraestrutura e suas representações na superestrutura. O problema da relação recíproca entre infraestrutura e a superestrutura, problema dos mais complexos [...] pode justamente ser esclarecido, em larga escala, pelo estudo do material verbal. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/2010, p. 42). 38

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É na palavra que, primeiro, podem ser observadas as mudanças em percurso na sociedade. Disso decorre que o esclarecimento das relações entre a infraestrutura e a superestrutura está intimamente ligado à compreensão e ao estudo da linguagem: A explicitação de uma relação entre a infraestrutura em um fenômeno isolado qualquer, destacado de seu contexto ideológico completo e único, não apresenta nenhum valor cognitivo. Antes de mais nada, é impossível estabelecer o sentido de uma dada transformação ideológica no contexto da ideologia correspondente, considerando que toda a esfera ideológica se apresenta como um conjunto único e indivisível cujos elementos, sem exceção, reagem a uma transformação da infraestrutura (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1929/2010, p. 40).

Essa característica da linguagem de ser palco de debate ideológico, visto que se carrega de sentido, implica aceitarmos o caráter de unidade e a luta de contrários, presente na linguagem, em uma relação não dicotômica, mas de unidade com influência recíproca e simultânea. Essa é uma sugestão da associação da análise proposta pelo Círculo a uma concepção dialética da linguagem, posto que a lei dos contrários constitui base epistemológica da dialética materialista. A relação dialética entre o objetivo, o ato de fala, o enunciado e o subjetivo, caráter interpretativo do ser humano que logo se fará concreto, constitui uma relação dialógica imbricada de ideologia. Na obra Marxismo e filosofia da linguagem, há a objetivação da concepção dialética ao tratar “marxismo” como signo ideológico. Tal signo não se mostra unívoco, estável, mas está sempre carregado de aspectos valorativos, tornando-se ele mesmo uma arena de conflitos, o que na teoria de Bakhtin/Volochinov se denomina como “índices de valor contraditórios” (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1929/2010, p. 47).

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Ao pensarmos no conceito de dialogismo, tão reivindicado pelos leitores do Círculo, a própria tentativa de monologizar o signo marxismo torna-se contraditória, o que em princípio pode ser indício de uma interpretação unilateral do próprio signo. Qualquer signo ideológico tem sempre duas abordagens, que só podem ser percebidas na luta de classes. Mas aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser. A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo monovalente. Na realidade todo o signo ideológico tem, como Jano, duas faces. Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/2010, p. 48).

É nos momentos de crise social que se pode observar de forma mais aparente as oposições internas em cada signo ideológico. Isso ocorre porque a efervescência social de momentos de crise exige novas interpretações de realidades que se alteram com rapidez, em busca de soluções para situações nas quais o ser sujeito social não pode permanecer.

ADORNO Desde a discussão em torno da Dialética do Esclarecimento, obra que preconiza a elaboração da Dialética Negativa, os estudos de Adorno encaram desafios advindo do formato tradicional do saber. Por isso, o autor se dedica a elucidar a dialética fetichizada, idealizada, demonstrando sua insuficiência perante a essência da dialética imanente e inesgotável. Nesse sentido, seus apontamentos 40

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tornam-se significativos para investigações que se voltem a esclarecer o caráter dialético de um objeto em constituição alteritária (sujeito-objeto). Dialética negativa busca eliminar a possibilidade de identidade entre sujeito e objeto. Embora a dialética de Adorno esteja sempre presa à relação sujeito-objeto, não pretende superar a relação de tensão entre as partes em unidade unificadora. Adorno critica duramente a ideia de que o conceito possa ser suficiente para representar o empírico. Para ele, nessa proposta de reduzir o empírico ao conceito, adaptam-se os objetos aos conceitos postos, o que sugere que o discurso do conhecimento não é por si capaz de abstrair a complexidade empírica do objeto. Tal observação pode ser relacionada ao estudo investigativo da linguagem, visto que o caráter complexo desse objeto é reconhecido em todos os estudos que o envolvem. A abordagem de Adorno se torna producente ao trazer esclarecimentos à relação que parece não caber no objeto linguagem, ultrapassando e trazendo a relação constituinte do próprio sujeito para o objeto. Nesse sentido, a dialética negativa, proposta por Adorno (2009), pode esclarecer a constituição da linguagem, haja visto que essa se opõe ao subjetivismo e à dialética Hegeliana, tal como pretendia a dialética marxista expressa em Bakhtin. Adorno toma por ponto de partida autores com Lukács e Hokheimer, associando-se ao postulado de que a consciência/pensamento deve ser sempre ancorada na realidade concreta. O autor critica os pressupostos idealistas, porque entende que esses trazem a reificação que afasta o sujeito do conhecimento do objeto, uma vez que busca pela homogeneização das coisas, dos objetos, sem representar a alteridade ou o dialogismo com o sujeito. Assim, sua crítica a respeito do domínio do sujeito sobre o objeto, busca trazer para a constituição do objeto a relação dialética entre objeto e sujeito. Adorno está longe de propor um objetivismo em sua crítica ao subjetivismo. A primazia do objeto significa, na dialética negativa, que o sujeito Círculo

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assume caráter de objeto, uma vez que o sujeito só pode ser reconhecido em consciência e a própria consciência constitui objeto. Para a dialética de Adorno, o objeto pode ser conceituado pelo sujeito, contudo, esse objeto existe em si independentemente do sujeito. Com isso, o autor argumenta que o subjetivismo está no próprio objeto, devendo ser considerado como um elemento indispensável à abstração. O objeto é mais do que a pura facticidade; o fato de essa facticidade não poder ser eliminada impede ao mesmo tempo que nos satisfaçamos com seu conceito abstrato e com seu decote, os dados sensoriais protocolados. A ideia de um objeto concreto é própria à crítica de uma categorização subjetiva extrínseca e de seu correlato, a ficção de algo fático desprovido de determinações (ADORNO, 2009, p. 161).

Assim, objetos não são sujeitos, mas carregam a subjetividade como sua constituidora. A proposta da filosofia tradicional se volta a compreender a totalidade do real pela elaboração de um sistema que seja capaz de abordar a integralidade do real, de modo que, nisso, o sujeito é privilegiado em relação ao objeto. Para a dialética negativa, o objeto não pode ser apreendido em sua totalidade pelo sujeito, sendo aquilo que “escapa” ao sujeito o que vai caracterizar o objeto em sua singularidade. As relações de dominação social ideológicas estão permeadas por ditos que se presumem universais, que encontram na linguagem sua expressão, de modo que essa é também elemento envolvido na subordinação do sujeito. Adorno (2009, p. 28) assevera: “A unidade de coletividade e dominação mostra-se antes de tudo na universalidade que o mau conteúdo necessariamente assume na linguagem, tanto metafísica, quanto científica”. Nesse aspecto, torna-se interessante pensarmos acerca do caráter limitador de um conceito que seja assumido a priori, como se pode ler a seguir. 42

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O conceito em si hipostasia, antes de todo conteúdo, a sua própria forma em face dos conteúdos. Com isso, porém, se hipostasia mesmo o princípio de identidade: a existência de um estado de coisas em si, enquanto algo fixo, constante, que é simplesmente postulado por uma certa prática de pensamento. O pensamento identificador objetiva por meio da identidade lógica do conceito. A dialética visa, segundo seu lado subjetivo, a pensar de tal modo que a forma do pensamento não mais torne seus objetos coisa inalteráveis que permanecem iguais a si mesmas; a experiência desmente que eles o sejam (ADORNO, 2009, p. 134).

Assim, a proposta para compreender o dado em sua dimensão empírica partiria de uma abordagem que seja capaz de dar conta das relações sociais espaço-temporais abstratas, concebida como desdobramentos de um sentido social, histórico, ou seja, no que se possa reconhecer presença do sujeito. A concepção de linguagem, em Dialética negativa, é muito mais que um sistema de signos: “A dialética revela, ao contrário, toda imagem como uma forma de escrita. Ela ensina a ler em seus traços a confissão de sua falsidade, confissão essa que a priva de seu poder e o transfere para a verdade” (ADORNO, 2009, p. 30).

APONTAMENTOS A proposta de Bakhtin em Para uma filosofia do ato parece trazer apontamentos no sentido de identificar o sujeito no objeto – linguagem/enunciado concreto, ou melhor, no sentido de reconhecer a subjetividade implícita no objeto. O Círculo de Bakhtin é responsável por uma concepção dialética de linguagem, concebendo o enunciado concreto como resultado da relação recíproca entre alteridade, dialogismo, ideologia, reunificados nos gêneros do discurso. A proposta a ser pensada em cotejamento com o modelo de abordagem do conhecimento de Adorno é entender o comportamento Círculo

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da linguagem, compreendida muito além de um mero sistema de signos para funções do conhecimento, uma vez que a própria linguagem se abre na intenção de que o conceito em si expresse o visado. Essa é uma relação importante a ser pensada se, como Adorno, compreendermos que, apesar de a linguagem não definir conceitos, é ela que conquista, para esses, certa objetividade, no ato de colocar-lhes em relação com o objeto. Adorno argumenta que apesar de o sujeito oferecer certa configuração do objeto, o verdadeiro processo de conhecimento (do objeto) somente se concretiza no interior de uma experiência para a qual o autor propõe o status de critério para “enformação”. Assim, o processo de conhecimento é instaurado em uma realidade concreta em que o sujeito observa o objeto de um ponto de vista no qual se entrega sem restrições, de modo que esse objeto não pode ficar reduzido a uma mera determinação formal e subjetiva. Não haveria, portanto, definições capazes de dar conta de refletir a objetividade, tomando por base o conceito previamente definido; o conhecimento verdadeiro e dialético abarca todos os níveis históricos e aquilo que se coloca sobre o objeto em cada experiência. Esses argumentos revelam uma proximidade do que a linguagem expressa, na concepção bakhtiniana, já que essa traz consigo as relações concretas do enunciado em seus aspectos alteritário, ideológico, dialógico. Mais do que isso, propomos pensar se os aspectos formais e estruturais da língua estariam inseridos no que Adorno chama de enformar. Podemos, com base na premissa de que o conhecimento é produzido a partir da experiência não reduzida que o sujeito empreende em relação ao objeto, afirmar que há nisso uma implicação social: a sociedade condiciona a experiência e, por isso, crítica do conhecimento e crítica social estão imbricadas. Todas as necessidades do sujeito cognoscente são fruto do desenvolvimento da espécie humana em sociedade. Esses sujeitos 44

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dependem do meio, do espaço, do tempo e das formas de pensamento vigentes na sociedade. A sociedade como um todo encontra sua sedimentação nos conteúdos validados como verdadeiros por seus membros. O sujeito é, portanto, produto da sociedade pelo processo de individuação que ocorre na divisão biológica e social do trabalho que tem por objetivo garantir sua própria sobrevivência. É nesse sentido que ambos os autores aqui abordados dão conta da necessidade de uma concepção dialética da linguagem que abarque uma compreensão essencial das coisas, dos fatos e dos conceitos, apresentando “uma visualização da formação extraconceitual, histórica, materialista e também pulsional dos conceitos” (ADORNO, 2009, p. 141). Conhecer algo em si, e não arbitrariamente reportá-lo ao sistema de referência, é reconhecer a conexão entre o momento particular e outros momentos, por isso, torna-se um conhecimento imbricado de historicidade e permeado pelo sujeito e sua ideologia intrínseca, o que, de algum modo, precisa estar expresso na linguagem que se torna o meio de concretização do conhecimento. Abordar o papel da linguagem como mediadora do conhecimento entre o sujeito e o objeto, vistos como amalgamados no próprio objeto cognoscível, é o desafio de uma abordagem empírica que nos leve a compreender a subjetividade da linguagem.

REFERÊNCIAS ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ADORNO, T. W. Dialética negativa. Tradução de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Zahar, 2009.

BAKHTIN, M. (1920/1924). Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco. [S. I.: s. n.], 2003. 108 p. Disponível em: http://lutasocialista.com.br/livros/V%C1RIOS/BAKHTIN,%20M.%20Para%20uma%20 filosofia%20do%20ato.pdf. Acesso em: 8 nov. 2019. Círculo

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BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV, V. N.) (1929). Marxismo e filosofia a linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

HOLQUIST, M.; CLARK, K.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin. Tradução de Jacob Guisburg. São Paulo: Perspectiva, 1998.

LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: a falsa e verdadeira ontologia de Hegel. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.

SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009.

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CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DISCURSIVA EM UMA NOTA DE REPÚDIO: UM OLHAR BAKHTINIANO

Thomas Rocha1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

INTRODUÇÃO Neste trabalho, a noção que orienta nossas reflexões é a identidade na linguagem humana. Consideramos a identidade como um processo contínuo e inacabado de construção que se manifesta na enunciação e no discurso de sujeitos social e historicamente constituídos. Trabalhamos a noção de identidade indissociavelmente ligada à noção de alteridade. A dissociação desses termos (identidade/alteridade) rompe com a sua relação permanente e simultânea. O indivíduo humano é irredutível, consciente e pleno de subjetividade. Ao mesmo tempo, o outro é uma necessidade constitutiva. Dependemos do outro para existir, nascemos umbilicalmente ligados ao outro. Nessa perspectiva, identidade e alteridade são categorias ou representações reflexivas que servem para indagar e para compreender a realidade da linguagem em uso. 1 Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (2016). Doutorando em Letras (área de concentração: Linguística) no Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGL/PUCRS), com bolsa parcial da CAPES. Integrante dos grupos de pesquisa Discursos em Diálogo e Tessitura: Vozes em (Dis)curso. https://orcid.org/0000-0001-9746-954X. E-mail: thomas.rocha@edu.pucrs.br. Círculo

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Identidade e alteridade são instrumentos conceituais de investigação que nos permitem compreender a linguagem humana em sua complexidade constitutivamente dialógica. Dada a abrangência que o conceito de identidade pode alcançar, fazemos aqui um recorte, procurando abordá-lo a partir de um enfoque linguístico-discursivo. Ou seja, estamos interessados em aspectos presentes no discurso que possam nos dar indícios de um processo de (re)construção e (re)conhecimento identitário. Outrossim, quando falamos em discurso, estamos falando do discurso do linguista em um tempo-espaço contextualmente determinado. Fundamentando-se no dialogismo do Círculo de Bakhtin, analisamos o discurso do linguista com base em manifestações que desvelam, de modo implícito ou explícito, o discurso alheio, o discurso de um outro que se contrapõe ao posicionamento do linguista. Como discurso do linguista, entendemos o discurso produzido por um cientista da linguagem, por alguém que se (re)conhece e é (re)conhecido como linguista, que assume esse papel em determinadas instâncias e circunstâncias discursivas. O discurso do linguista, já “atravessado” por outro(s) discurso(s), constitui-se, também, a partir do outro a quem ele se dirige. Essa relação constitutiva da identidade discursiva do linguista é o foco da investigação. Daí a necessidade de, previamente à análise, esboçar minimamente o que entendemos por identidade e como esse conceito se relaciona e dialoga com os estudos enunciativos ligados ao Círculo de Bakhtin. Detemos nossa análise em um discurso específico, materializado em uma Nota de Repúdio publicada em 2011, contrapondo-se à cobertura tendenciosa da imprensa a respeito do livro didático Por uma vida melhor, distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ministério da Educação (MEC) e direcionado à educação de jovens e adultos. Descrevemos aspectos linguísticos e discursivos que revelam marcas da identidade 48

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do enunciador, no caso, do linguista. Neste trabalho, o linguista é visto como o profissional de um campo de atuação específico, que se contrapõe, numa perspectiva dialética e dialógica, a outros profissionais de áreas afins, como o gramático e o filólogo, por exemplo. No horizonte do nosso percurso, estão questões relacionadas ao ofício do linguista e ao papel que ele desempenha na sociedade: o que faz um linguista? O que se espera do trabalho de um linguista? Tais questionamentos implicam pensar o linguista na condição de cientista da linguagem, que assume responsabilidades comuns à prática de todo cientista/pesquisador (da Ciência, em geral) mas, ao mesmo tempo, tem que lidar com responsabilidades específicas (da Linguística, em especial). Nesse cenário, foi preciso considerar o campo de atuação do linguista, dentro de parâmetros institucionais (regimentos, instruções normativas, códigos de ética) que prescrevem “práticas” a serem observadas e que caracterizam, ao menos parcialmente, o pertencimento à comunidade acadêmica (escola, universidade, centro de pesquisa). Foi preciso, ainda, atentar para o espaço social no qual seu discurso é significativo, ou seja, onde tem legitimidade para dizer o que diz, por ser uma autoridade no assunto. E, sobretudo, ter em mente o papel das entidades representativas dos linguistas, instituições como a Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN), por exemplo, cujo discurso pode apontar para noções/ relações de pertencimento, de engajamento político (materializado em editoriais, notas de repúdio). Delimitamos, por fim, o contexto histórico no qual se encontram as enunciações sob análise. As esferas da atividade humana nas quais o discurso do linguista adquire contornos de autoridade, as interações discursivas das quais os linguistas participam ativamente, os temas polêmicos estudados pelos linguistas, os espaços em que suas posições são contestadas, desqualificadas e até invalidadas são aspectos que se constituem historicamente e não podem Círculo

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ser desconsiderados em uma análise orientada pelo dialogismo do Círculo.

AS IDEIAS DO CÍRCULO Especialmente nas décadas de 1920 e 1930, um grupo de pensadores russos reuniu-se para debater importantes questões relacionadas ao estudo da linguagem e da estética. Dentre os participantes, o mais célebre foi o filósofo Mikhail Bakhtin (1895 – 1975). Em razão disso, o grupo ficou conhecido como Círculo de Bakhtin. Além de Bakhtin, merecem menção pela relevância de seus trabalhos Valentin Volóchinov (1895 – 1936) e Pável Medvedev (1892 – 1938). Uma das principais contribuições do Círculo ao pensamento linguístico contemporâneo é sua crítica a duas grandes concepções de língua e de linguagem que dominavam os estudos linguísticos do período: o subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato. De acordo com Volóchinov (2017), o subjetivismo individualista postula que a língua é uma atividade mental de criação, regida por leis individuais e psicológicas. Nessa vertente de pensamento, a estilística sobrepõe-se à gramática. Por sua vez, o objetivismo abstrato concebe a língua como um sistema fechado de formas linguísticas submetido a uma “lei puramente imanente e específica, irredutível a qualquer lei ideológica” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 157). Essa segunda tendência caracteriza-se por uma ruptura insuperável entre a história e o sistema da língua (sincronia). Opondo-se a essas duas concepções, em confluência com a dialética marxista, Volóchinov (2017) concebe a língua como uma atividade social, indissoluvelmente ligada às condições de comunicação e às estruturas sociais. Nessa proposta, a linguagem é compreendida como “a realidade material específica da criação ideológica” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 84), ou seja, todo signo é ideológico, refletindo e refratando “outra realidade que se 50

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encontra fora de seus limites” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 91). Por ser ideológico, o signo só pode surgir no processo da comunicação social entre indivíduos coletivamente organizados. A palavra é o signo ideológico por excelência, ela pode assumir qualquer função ideológica e está presente em todo ato de compreensão: “a compreensão de um signo ocorre na relação deste com outros signos já conhecidos; em outras palavras, a compreensão responde ao signo e o faz também com signos” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95). Trata-se, portanto, de uma cadeia de compreensão única e ininterrupta, ligando um signo a outro no processo de interação social. Daí que a palavra-chave da teoria linguística desenvolvida pelo Círculo é diálogo. O dialogismo é o princípio constitutivo e característica essencial da linguagem. O dialogismo é o espaço de interação entre eu e o outro, é a condição de sentido do discurso. A orientação dialógica do discurso é, evidentemente, um fenômeno próprio de qualquer discurso. É a diretriz natural de qualquer discurso vivo. Em todas as suas vias no sentido do objeto, em todas as orientações, o discurso depara com a palavra do outro e não pode deixar de entrar numa interação viva e tensa com ele (BAKHTIN, 2015, p. 51).

Nessa perspectiva, todo enunciado é dialógico, constituindo-se a partir de outro enunciado e em resposta a ele. Portanto, em todo enunciado entrecruzam-se ao menos duas vozes, dois pontos de vista. Sendo um fenômeno ideológico, o enunciado é ao mesmo tempo parte da realidade material, produto da história humana e, por isso, não apenas reflete, mas inevitavelmente refrata todos os fatos da vida social. Nas palavras de Fiorin (2017, p. 28), “os enunciados são sempre o espaço de luta entre vozes sociais”, são “o lugar da contradição”. Para realizar-se, cada enunciado pressupõe a existência de um falante e de um ouvinte, de modo que todos os enunciados são Círculo

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sempre orientados para o outro. Nessa configuração constitutivamente marcada pelo outro, pela alteridade, todo enunciado conforma-se de uma parte verbal expressa linguisticamente e de uma parte extra verbal subentendida (a situação e o auditório) e assume uma estrutura típica específica chamada de gênero discursivo. Os gêneros do discurso representam as múltiplas formas de uso da linguagem nos diversos campos da atividade humana. A heterogeneidade dos gêneros do discurso (orais e escritos) reflete “as condições específicas e as finalidades de cada campo” da comunicação humana (BAKHTIN, 2016, p. 11). Em sua composição, os gêneros apresentam três elementos intrinsecamente ligados: o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional. Esses elementos se manifestam simultaneamente em cada enunciado. Resumidamente, é possível relacionar o conteúdo temático com “um domínio de sentido de que se ocupa o gênero” (FIORIN, 2017, p. 69). Na esfera jurídica, por exemplo, uma decisão judicial corresponde ao conteúdo temático das sentenças. O estilo, por sua vez, diz respeito à seleção, realizada pelo locutor, “dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua” (BAKHTIN, 2016, p. 12). Nessa relação de interlocução, a construção composicional configura-se como o modo de estruturar e organizar o enunciado. Mobilizando esses recursos, o falante constrói um projeto enunciativo que instaura a alternância dos sujeitos do discurso num “embate entre entoação avaliativa (a inflexão que o locutor busca imprimir ao que diz) e resposta ativa (a recepção, necessariamente valorativa, do interlocutor ao dito)” (SOBRAL, 2011, p. 37). Nesse processo de interação discursiva, no qual o enunciado é orientado para o interlocutor, “a palavra é o território comum entre o falante e o interlocutor” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 205). A palavra é, essencialmente, um ato bilateral, sendo “determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se dirige” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 205, grifos do autor). Ao enunciar, o falante enuncia-se, ou seja, dá forma a si mesmo a 52

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partir da perspectiva do outro e da coletividade a qual pertence. Para o Círculo de Bakhtin, portanto, observamos o deslocamento de perspectiva do eu para o outro, da identidade (entendida como identidade fechada e monológica, sem abertura para o outro que a constitui) para a alteridade.

O HOMEM AO ESPELHO: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE Dos meus olhos olham os olhos alheios (BAKHTIN, 2019).

Na obra que dá título a esta seção, Bakhtin (2019, p. 51) observa que, na “inter-relação consigo mesmo” inevitavelmente transparecem a falsidade e a mentira. Mirar-se é olhar a si com “olhos do mundo”, “com olhos alheios” (BAKHTIN, 2019, p. 51). Ao mesmo tempo, é impossível “perceber a si mesmo por inteiro fora de si, inteiramente no mundo exterior” (BAKHTIN, 2019, p. 54). Publicado em 2019, o livro O homem ao espelho: apontamentos dos anos 1940 reúne três textos de Bakhtin que abordam a questão da alteridade como condição necessária para a construção da própria identidade. Embora autoconscientes, dependemos do outro para construir nossa própria imagem. Construímos nossa imagem no outro e para o outro. E essa construção se dá por meio da linguagem, que é o “ponto de contato das consciências” (BAKHTIN, 2019, p. 56). É por meio da linguagem que nos constituímos, ou melhor, é por meio do diálogo que construímos nossa identidade. O diálogo é a representação da interação verbal. Ele é a relação entre dois seres que se constitui na e pela linguagem. Somos linguagem. Trata-se de uma relação ontologicamente constitutiva. Por isso, estamos “condenados” à linguagem e é a linguagem que nos conecta ao outro. É o outro que nos constitui enquanto ser, porque só podemos

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nos (re)conhecer como algo existente a partir do (re)conhecimento do outro. O outro é o “espelho” de nossa existência/essência. Nas palavras de Zimerman (1999, p. 185), “o espelho é tão antigo como a história da humanidade”, ou seja, o fenômeno da reflexão acompanha o ser humano desde seus primeiros passos. Diversas áreas do conhecimento humano desenvolveram estudos sobre o espelho e suas representações no imaginário popular: a literatura, a mitologia, a religião, a filosofia, a ciência e, especialmente, a psicanálise. A funcionalidade especular – o reflexo – confunde-se com a função do olhar. O ato de mirar-se e reconhecer a própria face refletida na água sempre foi instigante e acompanha narrativas míticas, histórias bíblicas, contos folclóricos e crendices populares. Foi a perdição de Narciso e a salvação de Perseu. Há inúmeras histórias que evocam o poder mágico do espelho. Pesquisadores dedicados ao desenvolvimento da criança demonstram a importância do espelho físico e da função especular desde a mais tenra idade. Isso encontra respaldo em textos de importantes autores como Winnicott, Kohut, M. Mahler, entre outros. O rosto da mãe representa o primeiro espelho, posto que o bebê não reconhece que existe separado da mãe. Ele vê a mãe como uma extensão de seu corpo até atingir o chamado “estágio do espelho” (LACAN, 1998), a partir do qual começa a conquista da imagem própria. Referindo-se ao trabalho de Winnicott, intitulado O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento da criança (1975), Zimerman (1999, p. 188) afirma que “o primeiro espelho da criatura humana é o rosto da mãe, sobretudo, o seu olhar. Ao olhar-se no espelho do rosto materno, o bebê vê-se a si mesmo. ‘Quando olho, sou visto, logo existo’”. Ao descrever o ato de criação literária na relação autor-herói, Bakhtin (1997) volta-se para o estudo da relação inter-humana. Dessa análise, destacamos a passagem: “A criança começa a ver-se, pela primeira vez, pelos olhos da mãe, é no seu tom que ela começa também a falar de si 54

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mesma, como que se acariciando na primeira palavra pela qual expressa a si mesma” (BAKHTIN, 1997, p. 68). Segundo Zimerman (1999), há uma concordância geral quanto à importância do espelhamento filho-mãe na formação da identidade da criança. Nesse processo, o olhar da mãe exerce um papel estruturante, por meio do qual a criança compreende que existe, que é um ente, uma “entidade”: A etimologia de identidade (idem + entidade) comprova que ela consiste em uma entidade que se mantém basicamente a mesma (idem), apesar das variações temporais, espaciais e sociais. [...]. Pode-se dizer que a imagem necessita do espelho para construir-se [...] O senso de identidade está intimamente relacionado com as avaliações que tanto nós como os demais fazemos de nós mesmos diante do espelho do juízo crítico, onde colhemos o que somos e o que não somos (ZIMERMAN, 1999, p. 190).

Isso demonstra que a identidade é uma construção eminentemente relacional. A identidade depende, para existir, de algo fora dela, de outra identidade. “A identidade é, assim, marcada pela diferença” (WOODWARD, 2014, p. 9). De acordo com Berlatto (2009, p. 141-142), a identidade resulta “das diversas interações entre o indivíduo e o seu ambiente social, próximo ou distante”. Por isso, o processo de formação da identidade é condicionado por processos sociais que, por sua vez, são determinados pelas estruturas sociais. Trata-se, portanto, de um fenômeno que se constitui dialeticamente entre um indivíduo e a sociedade. A construção da identidade “realiza-se no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e, por isso mesmo, orientam suas representações e suas escolhas” (BERLATTO, 2009, p. 142). Por tratar-se de um processo multidimensional e dinâmico, a identidade está sujeita a variações, reformulações e manipulações. A identidade está, assim, em constante movimento. Construída na relação com a sociedade, a identidade individual Círculo

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é também identidade social. Segundo Berlatto (2009, p. 151), “a identidade social é construída em oposição a outras e também a partir das expectativas estabelecidas pelos grupos sociais”. A partir desses apontamentos, é possível orientar-se por uma noção de identidade discursiva intrinsecamente ligada aos preceitos teóricos que fundamentam a concepção dialógica da linguagem. De acordo com Fiorin (2017, p. 20), “há três eixos básicos do pensamento bakhtiniano: unicidade do ser e do evento, relação eu/outro, dimensão axiológica”. Nessa perspectiva, voltamos nosso olhar para os fenômenos linguístico-discursivos associados aos modos de apropriação/assimilação do discurso alheio, à singularidade autoral e à orientação valorativa, entre outros elementos presentes no projeto enunciativo analisado, procurando descrever como esses fenômenos refletem e refratam o processo de construção de uma identidade discursiva do linguista. Na próxima seção, destacamos alguns aspectos importantes para compreender o processo de construção da imagem do linguista no outro e para o outro.

VOZES EM DISSONÂNCIA Considerando que todo processo de identificação é também diferenciação, as fronteiras sociais e simbólicas que se estabelecem entre os grupos marcam os limites entre “nós” e “eles”. Esse aspecto é extremamente relevante para a reflexão que empreendemos em torno da identidade do linguista que, como qualquer outra, é algo construído social e historicamente, e não dado a nós como definido de uma vez por todas. O surgimento e consolidação da Linguística com o status de ciência da linguagem inaugura concomitantemente o nascimento do linguista como cientista. De acordo com Rajagopalan (2003, p. 75), o discurso do linguista, “reivindicando para si o título de cientista, precisa ser compreendido como um exercício de construção 56

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de uma identidade. E nessa empreitada foi necessário identificar um Outro”. Esse outro (ou outros) em oposição ao qual o linguista se autodefine é a figura do gramático tradicional/filólogo. Na história dos estudos linguísticos, os filólogos foram os primeiros a surgir (por volta do século III a.C.). Em seguida, surgem os gramáticos (por volta do século II a.C.) e, recentemente, os linguistas (no fim do século XVIII). Em síntese, as diferenças entre o linguista e os outros especialistas são as seguintes: (a) o linguista se interessa por todo e qualquer fenômeno linguístico (o filólogo só se interessa por uma parte das manifestações linguísticas, ou seja, pelos textos escritos canônicos; e o gramático só se interessa pela língua padrão); (b) enquanto o filólogo e o gramático dirigem seu foco de atenção para a língua escrita, o linguista dá prioridade aos fenômenos da língua falada. Isso porque a fala é a modalidade de expressão universal: todas as línguas têm uma face oral, apenas algumas têm também uma face escrita. Apesar dessa primazia, o linguista, na medida em que se interessa por todo e qualquer fenômeno linguístico, se volta também para a língua escrita (a chamada linguística textual, por exemplo, tem trazido muitas contribuições para uma compreensão mais refinada da escrita). Nesse caso, o linguista não se limita à escrita de prestígio, mas estuda toda e qualquer manifestação escrita; (c) por fim, enquanto o gramático é essencialmente normativo, o linguista não o é. Em termos simples, o linguista diz como a língua é; o gramático diz como certos comportamentos linguísticos devem ser (FARACO, 2017, p. 3, grifos do autor).

O discurso do linguista, em um campo do saber institucionalmente regrado e controlado pela comunidade de linguistas, consolida-se, como qualquer outro, em meio a contingências sociais, políticas e históricas específicas. E é justamente “no confronto com o ‘outro’ que o linguista se vê obrigado a reafirmar sua identidade” (RAJAGOPALAN, 2003, p. 76). Círculo

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Além da “disputa” interna com outros estudiosos, o linguista enfrenta outros desafios fora dos limites da academia e do debate científico. Referimo-nos ao discurso do leigo, do senso-comum, que ecoa na Internet, na grande mídia tradicional e, não raro, na voz de representantes da política partidária. Observemos os seguintes enunciados proferidos por linguistas: De vez em quando, alguém diz que linguistas “aceitam” tudo (isto é, que acham certa qualquer construção) (POSSENTI, 2011, p. 1, grifo nosso). Alguns gramáticos (e, por consequência, pessoas da mídia e mesmo professores) têm dito que os linguistas são contra a língua padrão e seu ensino porque, segundo esses detratores, para os linguistas “tudo vale (FARACO, 2017, p. 3, grifo nosso). (...) a voz do linguista, que invoca a neutralidade da ciência na observação crua dos fatos, se for convocada, costuma levantar vagas de incompreensão, e mesmo de indignação, pelo seu aparente relativismo (LAGARES DIEZ, 2018, p. 1, grifo nosso).

Os enunciados anteriores revelam que há uma visão equivocada sobre a atuação do linguista ou, ao menos, que as manifestações dos linguistas diante de determinados temas não são compreendidas plenamente e, muitas vezes, são rejeitadas. Segundo Lagares Diez (2018, p. 1), trata-se de um “desentendimento” antigo entre linguistas e não linguistas em relação à língua. Afinal, a língua é um objeto que, por motivos diversos, suscita o debate e o interesse de todos, especialistas ou não. O desentendimento entre linguistas e leigos pode se manifestar de muitas maneiras: das mais triviais, quando o linguista é reputado como alguém que fala muitas línguas, às mais complexas, quando o linguista é convocado a se manifestar sobre novos usos ou fenômenos de variação linguística e sua fala diverge da expectativa prescritivista da maioria das pessoas. Esta última é justamente a concepção que transparece dos enunciados em epígrafe, ou seja, a 58

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noção de que o linguista “relativiza” tudo, considera correta qualquer construção linguística (como se ao linguista coubesse esse papel) e, por isso, “ataca” a (dita) língua padrão. Antes de tudo, os enunciados apontam para uma compreensão equivocada sobre a própria natureza da língua. Os enunciados, ainda, revelam que os linguistas têm consciência desse desentendimento e procuram esclarecer as pessoas sobre o seu ofício. De fato, o linguista se vê, frequentemente, impelido a explicar seu posicionamento, a descrever sua atuação, a fazer conhecer seu papel na sociedade. Diante desse cenário, na próxima seção, analisamos o discurso do linguista na busca por indícios que revelem uma identidade discursiva.

NOTA DE REPÚDIO: VOZ E IDENTIDADE Em 20 de maio de 2011, foi publicada uma nota de repúdio no site da ABRALIN, de autoria de Maria José Foltran, linguista que presidia a Associação na época. A nota também foi veiculada em outros meios de comunicação na Internet. Ela foi divulgada posteriormente às manifestações de linguistas como Sírio Possenti, Carlos Alberto Faraco e Marcos Bagno, com as quais faz coro. Para facilitar a análise, dividimos o texto em dez partes, representando os movimentos argumentativos projetados pela autora. Ao mesmo tempo, destacamos o emprego de algumas palavras e expressões que consideramos relevantes para compreender a orientação valorativa potencialmente pretendida pelo projeto discursivo.

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Língua e ignorância

Quadro 1 - Nota da ABRALIN

1. Nas duas últimas semanas, o Brasil acompanhou uma discussão a respeito do livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Diante de posicionamentos virulentos externados na mídia, alguns até histéricos, a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA – ABRALIN – vê a necessidade de vir a público manifestar-se a respeito, no sentido de endossar o posicionamento dos linguistas, pouco ouvidos até o momento. 2. Curiosamente é de se estranhar esse procedimento, uma vez que seria de se esperar que estes fossem os primeiros a serem consultados em virtude da sua expertise. Para além disso, ainda, foram muito mal interpretados e mal lidos. 3. O fato que, inicialmente, chama a atenção foi que os críticos não tiveram sequer o cuidado de analisar o livro em questão mais atentamente. As críticas se pautaram sempre nas cinco ou seis linhas largamente citadas. Vale notar que o livro acata orientações dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) em relação à concepção de língua/linguagem, orientações que já estão em andamento há mais de uma década. Além disso, não somente este, mas outros livros didáticos englobam a discussão da variação linguística com o intuito de ressaltar o papel e a importância da norma culta no mundo letrado. 4. Portanto, em nenhum momento houve ou há a defesa de que a norma culta não deva ser ensinada. Ao contrário, entende-se que esse é o papel da escola, garantir o domínio da norma culta para o acesso efetivo aos bens culturais, ou seja, garantir o pleno exercício da cidadania. Esta é a única razão que justifica a existência de uma disciplina que ensine língua portuguesa a falantes nativos de português. 5. A linguística se constituiu como ciência há mais de um século. Como qualquer outra ciência, não trabalha com a dicotomia certo/errado. Independentemente da inegável repercussão política que isso possa ter, esse é o posicionamento científico. Esse trabalho investigativo permitiu aos linguistas elaborar outras constatações que constituem hoje material essencial para a descrição e explicação de qualquer língua humana. 6. Uma dessas constatações é o fato de que as línguas mudam no tempo, independentemente do nível de letramento de seus falantes, do avanço econômico e tecnológico de seu povo, do poder mais ou menos repressivo das Instituições. As línguas mudam. Isso não significa que ficam melhores ou piores. Elas simplesmente mudam. Formas linguísticas podem perder ou ganhar prestígio, podem desaparecer, novas formas podem ser criadas. Isso sempre foi assim. Podemos ressaltar que muitos dos usos hoje tão cultuados pelos puristas originaram-se do modo de falar 60

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de uma forma alegadamente inferior do Latim: exemplificando, as formas “noscum” e “voscum”, estigmatizadas por volta do século III, por fazerem parte do chamado “latim vulgar”, originaram respectivamente as formas “conosco” e “convosco”. 7. Outra constatação que merece destaque é o fato de que as línguas variam num mesmo tempo, ou seja, qualquer língua (qualquer uma!) apresenta variedades que são deflagradas por fatores já bastante estudados, como as diferenças geográficas, sociais, etárias, dentre muitas outras. Por manter um posicionamento científico, a linguística não faz juízos de valor acerca dessas variedades, simplesmente as descreve. No entanto, os linguistas, pela sua experiência como cidadãos, sabem e divulgam isso amplamente, já desde o final da década de sessenta do século passado, que essas variedades podem ter maior ou menor prestígio. O prestígio das formas linguísticas está sempre relacionado ao prestígio que têm seus falantes nos diferentes estratos sociais. Por esse motivo, sabe-se que o desconhecimento da norma de prestígio, ou norma culta, pode limitar a ascensão social. Essa constatação fundamenta o posicionamento da linguística sobre o ensino da língua materna. 8. Independentemente da questão didático-pedagógica, a linguística demonstra que não há nenhum caos linguístico (há sempre regras reguladoras desses usos), que nenhuma língua já foi ou pode ser “corrompida” ou “assassinada”, que nenhuma língua fica ameaçada quando faz empréstimos etc. Independentemente da variedade que usa, qualquer falante fala segundo regras gramaticais estritas (a ampliação da noção de gramática também foi uma conquista científica). Os falantes do português brasileiro podem fazer o plural de “o livro” de duas maneiras: uma formal: os livros; outra informal: os livro. Mas certamente nunca se ouviu ninguém dizer “o livros”. Assim também, de modo bastante generalizado, não se pronuncia mais o “r” final de verbos no infinitivo, mas não se deixa de pronunciar (não de forma generalizada, pelo menos) o “r” final de substantivos. Qualquer falante, culto ou não, pode dizer (e diz) “vou comprá” para “comprar”, mas apenas algumas variedades diriam ‘dô’ para ‘dor’. 9. Estas últimas são estigmatizadas socialmente, porque remetem a falantes de baixa extração social ou de pouca escolaridade. No entanto, a variação da supressão do final do infinitivo é bastante corriqueira e não marcada socialmente. Demonstrase, assim, que falamos obedecendo a regras. A escola precisa estar atenta a esse fato, porque precisa ensinar que, apesar de falarmos “vou comprá” precisamos escrever “vou comprar”. E a linguística ao descrever esses fenômenos ajuda a entender melhor o funcionamento das línguas o que deve repercutir no processo de ensino. Por outro lado, entendemos que o ensino de língua materna não tem sido bemsucedido, mas isso não se deve às questões apontadas. Esse é um tópico que demandaria uma outra discussão muito mais profunda, que não cabe aqui. 10. Por fim, é importante esclarecer que o uso de formas linguísticas de menor Círculo

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prestígio não é indício de ignorância ou de qualquer outro atributo que queiramos impingir aos que falam desse ou daquele modo. A ignorância não está ligada às formas de falar ou ao nível de letramento. Aliás, pudemos comprovar isso por meio desse debate que se instaurou em relação ao ensino de língua e à variedade linguística. Maria José Foltran Presidente da ABRALIN/Gestão UFPR 2009-2011

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Associação Brasileira de Linguística (2011).

A perspectiva dialógica do discurso preconiza que os gêneros estão submetidos a normas e conformações específicas, mais ou menos estáveis, que os distinguem entre si. No caso, o gênero nota de repúdio apresenta marcas que permitem caracterizá-lo frente a outros gêneros mais ou menos semelhantes. A nota de repúdio expressa claramente a rejeição de um determinado discurso. Ela torna pública essa contraposição e, ao mesmo tempo, presta esclarecimentos com a intenção de justificá-la. Esse movimento já é esperado pelo leitor familiarizado com esse tipo de gênero. A nota de repúdio é sempre uma resposta pontual a algum ato, situado em um tempo e espaço determinados. Atualmente, podemos testemunhar a veiculação, sobretudo, nas redes sociais da Internet, de uma série de notas das mais diversas instituições, repudiando consecutivas medidas adotadas pelo governo brasileiro: notas de repúdio contra o congelamento do salário de servidores públicos, contra o aumento da carga tributária, contra o corte de bolsas de pesquisa dos programas de pós-graduação das universidades brasileiras, contra o pronunciamento de ministros ou mesmo do Presidente da República, entre tantas outras. Também é possível encontrar notas de repúdio contra atos e posicionamentos racistas, misóginos, homofóbicos ou xenofóbicos, por exemplo. A nota de repúdio é a materialização de um ato eminentemente político, que articula palavras de maneira contundente, que não 62

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se exime e que pode, muitas vezes, assumir caraterísticas de um discurso panfletário. Ainda no que se refere às especificidades da nota de repúdio enquanto gênero e considerando os objetivos de sua produção, a divulgação é aspecto fundamental a ser mencionado. A definição dos meios e locais para a disseminação do texto deve ser uma das etapas do projeto enunciativo. É importante que o posicionamento defendido alcance o maior público possível. Essa estratégia depende dos recursos à disposição, mas a divulgação comumente acontece no site da instituição, podendo ser replicada em sites de instituições parceiras, sites de jornais e revistas e, atualmente, em plataformas sociais como o Facebook e o Instagram. Há outro aspecto a ser ponderado em relação à sua forma genérica: a autoria. A nota de repúdio parece admitir duas grandes possibilidades de formatação autoral ou de assinatura. É possível encontrar notas subscritas nominalmente pelo autor (ou autores). Nesse caso, trata-se, frequentemente, do representante oficial da instituição: o presidente, a diretora etc. Por outro lado, também encontramos notas sem menção nominal à autoria, constando apenas o nome/sigla da instituição ou o cargo dos dirigentes sem, no entanto, nominá-los expressamente. Também é comum a divulgação de notas assinadas em conjunto por duas ou mais instituições. A nota da ABRALIN, aqui examinada, é assinada pela linguista Maria José Foltran. A autora é Doutora em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP), tem dois pós-doutorados e atua como professora associada na Universidade Federal do Paraná (UFPR) desde 1992. É profissional reconhecida nacionalmente, tendo publicado livros, capítulos de livros e inúmeros artigos em importantes periódicos, entre outras produções. No entanto, a autora assinou como representante dos linguistas associados, amplificando, dessa forma, a voz que (se) enuncia.

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Analisamos essa questão autoral comparando-a à enunciação de um coral, de um conjunto de vozes em uníssono. Como buscamos indícios da construção de uma identidade social e discursiva do linguista, consideramos a Associação como a autora da nota. Adotamos essa posição em razão de a nota expressar o objetivo de manifestar o posicionamento da ABRALIN e, ao fazê-lo, apresentar o pensamento dos linguistas. Para exemplificar os discursos aos quais a nota se contrapõe, apresentamos duas manchetes divulgadas em sites de revistas com tradição na imprensa nacional: Quadro 2 – Manchete 1 O assassinato da língua portuguesa

Livro distribuído pelo MEC que tolera erros gramaticais como “os livro” e “nós pega” causa estragos no aprendizado de meio milhão de brasileiros e atrapalha o desenvolvimento do País

(Por Amauri Segalla e Bruna Cavalcanti – 20 maio 2011) Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Segalla e Cavalcanti (2011). Quadro 3 – Manchete 2 As lições do livro que desensina

‘Por Uma Vida Melhor’ é exemplo de doutrina difundida há décadas na educação brasileira, segundo a qual a norma culta é um fardo ao qual devemos nos curvar por imposição social, e não pelos benefícios que ela propicia

(Por Nathália Goulart – 20 maio 2011) Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Goulart (2011).

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O título da nota [língua e ignorância] antecipa o embate que permeia todo o texto: a contraposição do discurso do cientista (especialista) frente ao discurso raso e irrefletido de parte significativa de jornalistas, colunistas e blogueiros que ganhou espaço na mídia brasileira, sobretudo, na Internet. Segundo Brait e Melo (2005, p. 69), “o título é, sem dúvida, um enunciado que se coloca como a porta de entrada para um outro enunciado, do qual faz parte e cujo sentido integra”. Portanto, a carga valorativa e ideológica que o título deixa entrever ajuda a situar o leitor em relação ao choque de vozes que se configura na totalidade do enunciado. Evidentemente, a compreensão do título só se completa a partir da leitura desse “outro enunciado” que ele anuncia. Na sequência da análise, selecionamos alguns fragmentos do enunciado que nos permitem (re)construir o diálogo que se instaura entre linguistas e não linguistas e, nesse processo, refletir sobre a identidade discursiva do linguista. Vejamos: Nas duas últimas semanas, o Brasil acompanhou uma discussão a respeito do livro didático Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Diante de posicionamentos virulentos externados na mídia, alguns até histéricos, a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA – ABRALIN – vê a necessidade de vir a público manifestar-se a respeito, no sentido de endossar o posicionamento dos linguistas, pouco ouvidos até o momento (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA, 2011).

Ao situar o leitor em relação ao fato sobre o qual se manifesta [discussão a respeito do livro didático], a autora introduz o referente Brasil que, muito mais do que registrar o lugar, aponta para o alcance e para a dimensão que o caso tomou, repercutindo na mídia de todo o país. Na sequência do trecho selecionado, a locutora contrapõe-se a posicionamentos por ela qualificados como “virulentos” e “histéricos”. O tom de indignação que essas Círculo

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palavras carregam expressa a avaliação emocional da autora em relação ao tema abordado. O adjetivo virulento está relacionado à noção de virulência que, em Medicina, caracteriza o grau do poder patogênico de um vírus. O vírus, por sua vez, é um micro-organismo infeccioso que, para sobreviver, parasita células vivas. A palavra vírus também está relacionada, na Informática, ao programa instalado no computador, sem o conhecimento do usuário, que, ao ser ativado, pode comprometer e destruir arquivos e programas. Considerando a maneira como essa palavra é empregada no enunciado em análise, podemos associá-la ao entendimento de que a imprensa está agindo tal qual um vírus, parasitando ideologicamente o pensamento dos leitores que, mesmo involuntariamente, acabam por reproduzir um discurso equivocado, intolerante e preconceituoso. Trata-se de um comportamento potencialmente destrutivo. Ao mesmo tempo, a imprensa age de modo histérico (como se paralisada e cega), ao reproduzir determinados discursos por mera (auto)sugestão, sem aprofundamento, sem ouvir o contraditório e, no caso em questão, sem ouvir os linguistas. A descrição desse comportamento vai sendo pontualmente construída ao longo do texto. Ao qualificar como virulento e histérico o discurso ao qual se contrapõe, o linguista assume para si um discurso que é construtivo, solidamente fundamentado em pesquisas científicas, resultado de observações criteriosas e de profunda reflexão. Assume para si o discurso do cientista, daquele que fala com propriedade (a identidade do especialista). Ainda em relação ao primeiro segmento, a autora menciona o objetivo de endossar o posicionamento dos linguistas. O verbo endossar significa declarar apoio, avalizar. Avalizar é abonar, afiançar. Afiançar, por sua vez, é declarar bom ou verdadeiro, confirmar e aprovar, apresentar como digno de confiança, assinar 66

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em baixo. É uma expressão que converge com a ideia de representação formal de um determinado grupo social. Nesse sentido, a locutora apoia formalmente o posicionamento dos linguistas. É um posicionamento que já está dado, que já é conhecido e reconhecido por, pelo menos, uma parte dos prováveis interlocutores, mas que será explicitado e reforçado na sequência da argumentação. Como já mencionamos, a nota de repúdio caracteriza-se por veicular um discurso que reafirma o posicionamento político de um determinado grupo, categoria profissional etc. O termo posicionamento remete ao lugar de onde o linguista fala, ao seu ponto de vista. A posição é sempre relativa, relacional, depende de outro, estabelece-se em relação ao outro. Curiosamente é de se estranhar esse procedimento, uma vez que seria de se esperar que estes fossem os primeiros a serem consultados em virtude da sua expertise. Para além disso, ainda, foram muito mal interpretados e mal lidos (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA, 2011).

Esse excerto é introduzido por um advérbio modalizador (Curiosamente) que expressa a reação de surpresa em relação à atitude da imprensa que, habitualmente (quando convém?), convida especialistas para tratar de determinados temas. Aliado à surpresa, a locutora ressalta o estranhamento frente ao procedimento adotado, que “ignora” a voz daqueles que deveriam ser os primeiros a serem ouvidos (os linguistas), em razão de sua expertise. Os linguistas são especialistas que ainda foram mal interpretados e mal lidos, reforçando a ideia de atitudes precipitadas e irrefletidas (a ignorância, no título). O fato que, inicialmente, chama a atenção foi que os críticos não tiveram sequer o cuidado de analisar o livro em questão mais atentamente. As críticas se pautaram sempre nas cinco ou seis linhas largamente citadas (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA, 2011). Círculo

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Esse trecho corrobora a ideia de um comportamento imprudente e apressado, sobretudo, com o emprego do advérbio sequer, que intercalando a expressão “não tiveram o cuidado”, intensifica o sentido de displicência relacionado ao comportamento dos críticos. O linguista Sírio Possenti, em artigo publicado no Estadão Online, em 22 de maio de 2011, também menciona o fato de que muitas críticas e “análises” foram publicadas na imprensa nacional com base em cinco ou seis linhas: O jornalismo nativo teve uma semana infeliz. Ilustres colunistas e afamados comentaristas bateram duro em um livro, com base na leitura de uma das páginas de um dos capítulos. Houve casos em que nem entrevistado nem entrevistador conheciam o teor da página, mas apenas uma nota que estava circulando (meninos, eu ouvi). Nem por isso se abstiveram de “analisar”. Só um exemplo, um conselho e uma advertência foram considerados. E dos retalhos se fez uma leitura enviesada. Se fossem submetidos ao PISA, a classificação do país seria pior do que a que tem sido (POSSENTI, 2011, p. 1).

Ao demonstrar que a análise requer um olhar mais atento, a locutora apresenta uma sequência de comentários que refletem a voz do especialista, do cientista. Grande parte do texto é dedicada ao posicionamento frente ao aspecto linguístico levantado pelo livro: [...] em nenhum momento houve ou há a defesa de que a norma culta não deva ser ensinada. Ao contrário, entende-se que esse é o papel da escola, garantir o domínio da norma culta para o acesso efetivo aos bens culturais, ou seja, garantir o pleno exercício da cidadania (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA, 2011).

Nesse enunciado, destacamos o uso da locução adverbial ao contrário que, relacionada ao fenômeno linguístico da negação, atua como um marcador de reformulação, conectando dois 68

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segmentos. A expressão “ao contrário” assume, no caso em estudo, um caráter fórico, retomando um argumento (em nenhum momento houve ou há a defesa de que a norma culta não deva ser ensinada) e permitindo que a locutora o apresente sob outra roupagem, especificando melhor o conteúdo que se quer veicular. Aqui transparece a voz que externa seu entendimento sobre a responsabilidade da escola de garantir o ensino da variedade de prestígio, em oposição às ideias que ganham voz na imprensa. Esse processo de reformulação nos permite demonstrar como a entonação se orienta em duas direções: “para o ouvinte, como cúmplice ou testemunha, e para o objeto do enunciado, como um terceiro participante vivo, [...]. Essa orientação social dupla determina e atribui sentido a todos os aspectos da entonação” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 127, grifo do autor). Com essa estratégia, a linguista enfatiza que o ensino da norma culta é a “única razão que justifica a existência de uma disciplina que ensine língua portuguesa a falantes nativos de português”. Mais uma vez, é possível identificar o linguista como aquele que se posiciona cientificamente e que, por isso mesmo, não faz juízos de valor acerca dessas variedades, simplesmente as descreve. O linguista, ao descrever os fenômenos linguísticos, desconsidera a dicotomia certo/errado, e essa atitude o coloca em rota de colisão com o discurso conservador, que prega a unidade da língua (forças centrípetas) em detrimento da heteroglossia, da mudança, da variação (forças centrífugas). Embora se posicione sob o véu da neutralidade científica, o linguista não pode se abster de enunciar (ou anunciar) o que a investigação científica desvela: o preconceito linguístico. No decorrer do texto, é possível identificar diversas vozes, das mais variadas correntes teóricas que, diante da complexidade da linguagem e do olhar reducionista e preconceituoso dos detratores, enunciam-se em uníssono num processo de (re)conhecimento identitário. Na voz da locutora, entra em cena o discurso Círculo

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multifacetado da linguística e de suas diversas áreas, voltadas para aspectos diversos do funcionamento linguístico, aliando em um discurso comum as contribuições de campos heterogêneos: estudos formais, históricos, etimologia, letras clássicas, variação linguística, estruturalismo, estudos do discurso. A locutora incorpora diferentes vozes conferindo-lhes uma unidade de sentido. Por fim, é importante esclarecer que o uso de formas linguísticas de menor prestígio não é indício de ignorância ou de qualquer outro atributo que queiramos impingir aos que falam desse ou daquele modo. A ignorância não está ligada às formas de falar ou ao nível de letramento. Aliás, pudemos comprovar isso por meio desse debate que se instaurou em relação ao ensino de língua e à variedade linguística (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA, 2011).

Nesse último segmento, consolida-se a oposição antecipada pelo título [língua e ignorância] entre aqueles que olham para a língua com lentes translúcidas (o linguista) e aqueles que a olham com lentes obscurecidas, que deixam entrever apenas um fragmento do objeto (reducionismo). Aqui, a voz do linguista rejeita a ideia de que o uso de determinadas formas linguísticas sejam um sinal de ignorância e, num tom irônico, relaciona a ignorância ao discurso midiático que descontextualizou um pequeno trecho do livro didático e não poupou o uso de palavras ofensivas, numa forte campanha pela desmoralização da autora do livro, do MEC, do governo federal e pela desqualificação do trabalho e da autoridade dos linguistas.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES O papel do linguista na sociedade brasileira não está ainda claramente definido. No debate público sobre questões de língua, há um embate entre vozes muito dissonantes. Nesse cenário, as posições assumidas pelo linguista nem sempre são aceitas e, muitas 70

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vezes, são desqualificadas. O discurso da mídia e do senso comum também é atravessado por uma heterogeneidade de discursos alheios, muitos dos quais carregam consigo preconceitos e intolerância. É preciso, portanto, compreender como essas manifestações de crítica, oposição, ataque e invalidação acabam por orientar o discurso do linguista, permeando sua fala e obrigando-o, muitas vezes, a reivindicar para si a autoridade em relação ao modo científico de dizer a realidade linguística nacional. Em contrapartida, o fazer científico deve ser constantemente questionado. O linguista deve estar atento, portanto, ao seu próprio discurso. Afinal, é por meio dele que o linguista expressa seu entendimento e suas observações práticas sobre a língua e a linguagem. Ao trabalhar com a palavra do linguista, interessa-nos, sobretudo, refletir sobre os contornos discursivos que se projetam em um processo contínuo de construção e afirmação da identidade.

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​A GÊNESE DO CÓDIGO LINGUÍSTICO FEMINISTA BRASILEIRO NO JORNAL A CLASSE OPERÁRIA (RIO DE JANEIRO, 1925-1930)

Débora Luciene Porto Boenavides1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS O período posterior à Proclamação da República (em 1889) foi marcado por grandes mudanças econômicas e sociais no Brasil. Se a abolição da escravatura e o início do processo de industrialização no final do século XIX vieram acompanhados por novas relações de trabalho2, o processo de imigração para a substituição de mão de obra escravizada para a assalariada e para as políticas de “embranquecimento” (CHALHOUB, 2006, p. 95) da população veio acompanhado dos ideais anarquistas e socialistas trazidos pelos imigrantes (GIANNOTTI, 2007, p. 62-76), juntamente com as suas línguas europeias (CARBONI et al., 2017, p. 11). 1 Doutoranda em Linguística – Análise do Discurso pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (bolsista CNPq). Mestra em Estudos da Linguagem – Sociolinguística pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (bolsista CAPES). Membro do grupo de pesquisa Tessitura: Vozes em (Dis)curso. http://orcid. org/0000-0002-4389-8784. E-mail: professoradeboraporto@gmail.com 2 Cabe destacar que a abolição da escravatura não ocorreu de forma simples, sem revoltas por parte da população escravizada e, também, que ela acarretou outras mudanças sociais e econômicas, que não serão abordadas neste capítulo. 74

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Desta forma, se o Brasil da época teve mudanças significativas em sua infraestrutura (processos de produção e relações de trabalho), certamente estas mudanças impactaram em sua superestrutura (linguagem, discursos, ideologias). Estas mudanças socioeconômicas foram, assim, cruciais para a transformação da ideologias no país, principalmente porque parte da população, antes rural, passou a migrar para os centros urbanos criados na época, aumentando o número de esferas discursivas em que as ideias poderiam circular (CHALHOUB, 2006, p. 98). Além da urbanização intensiva e da migração interna causada por esta, o período chamado “República Velha”, compreendido entre o final do século XIX até o início do governo Getúlio Vargas, em 1930, foi marcado pela “maciça presença dos meios de comunicação social” e pela expansão da rede escolar de ensino fundamental e, consequentemente, pela diminuição dos índices de analfabetismo, principalmente nas áreas urbanas do país (FARACO, 2016, p. 151). A força de trabalho feminina constituiu um importante elemento neste processo de substituição de mão de obra escravizada para assalariada, sendo expressivo o número de mulheres que trabalhava nas fábricas brasileiras nas primeiras décadas da industrialização. Saffioti (1981, p. 21-22) assinala que, no Brasil, “em 1872, quase a totalidade dos trabalhadores do setor industrial eram mulheres” e que, em 1920, “as mulheres contribuíam com 65,1% dos contingentes humanos empregados na indústria têxtil e com 69,7% da mão-de-obra do setor de confecções”. No Brasil, apesar de as mulheres das camadas sociais diretamente ocupadas na produção de bens e serviços nunca terem sido alheias ao trabalho (SAFFIOTI, 1979, p. 32), somente com o advento da imprensa operária começamos a ter notícia das lutas das mulheres trabalhadoras. Fonte importante para o conhecimento disso são os textos por elas escritos na imprensa operária da época.

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Entre os principais periódicos da imprensa operária, destacava-se o jornal A Classe Operária, um dos mais importantes periódicos de organizações partidárias de esquerda da história brasileira – e também o mais antigo ainda em circulação (BIBLIOTECA NACIONAL). A Classe Operária, fundado em 1º de maio de 1925, no Rio de Janeiro (RJ), como órgão do comitê central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), teve sua primeira edição em 30 de maio de 1925. Seus fundadores foram Astrogildo Pereira e Octavio Brandão Rego, contando com a colaboração de José Lago Morales e Laura Brandão, importantes militantes comunistas na época. É importante ressaltar que Laura Brandão atuava como uma espécie de editora do jornal (embora não recebesse os créditos deste trabalho), uma vez que escolhia pautas e era quem transcrevia os textos dos trabalhadores e das trabalhadoras, recebidos pelo jornal através de cartas (BRANDÃO, 1978, p. 303). Seu primeiro editor oficial foi A. Brazil de Mattos. No entanto, não-oficialmente, o editor do jornal era Octavio Brandão. A temática principal do jornal A Classe Operária era a defesa da classe trabalhadora (entre seus temas centrais estavam a divulgação das condições de vida e de trabalho do proletariado brasileiros e a disseminação do marxismo segundo a visão do Partido Comunista), sendo seus textos, em seus primeiros momentos, repletos de reivindicações, com destaque para a seção de cartas, redigidas principalmente por trabalhadoras e por trabalhadores. Guiado por ideais socialistas e comunistas, o jornal contou com ao menos 97 edições entre 1925 e 1930. Em suas primeiras edições, o jornal era um semanário de quatro páginas, em formato standard, impresso em off-set, com tiragem de cinco mil exemplares. Os números seguintes tiveram o dobro da tiragem (BRANDÃO, 1986, p. 310). O programa do jornal estava em seu subtítulo “Jornal de trabalhadores, feito por trabalhadores, para trabalhadores”. Segundo 76

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Octavio Brandão (1986), fundador de A Classe Operária, a inspiração para a elaboração do jornal foi o plano de um jornal político para a Rússia, escrito por Lênin em Que fazer? Da obra, surgiu o objetivo de que o jornal fosse, em sua maior parte, redigido por trabalhadores e trabalhadoras. Isto posto, o objetivo é apresentar as reflexões iniciais de uma tese em desenvolvimento junto ao Programa ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). O tema de estudo é a gênese do código linguístico feminista brasileiro nos escritos das mulheres trabalhadoras no jornal A Classe Operária (1925-1930). Este tema foi escolhido porque, em minha pesquisa de mestra3 do , um dos aspectos que me chamou a atenção foi que a maioria dos textos escritos por mulheres encontrados no jornal citado eram redigidos no feminino e no plural. Assim, operárias expunham suas condições de trabalho, costureiras reivindicavam seus direitos, trabalhadoras dos moinhos reclamavam dos abusos do mestre geral de serviço, charuteiras anunciavam sua greve. Tal característica gramatical dos textos assinados por mulheres pode apontar que as trabalhadoras que faziam suas reivindicações em A Classe Operária possuíam consciência de gênero e de classe (i.e., o entendimento de sua situação de classe, bem como de ações capazes de mudar sua situação), bem como a consciência do sexismo na linguagem. Baseio-me, primeiramente, nas teorias que afirmam que a transformação dos processos de produção socialmente organizados para além da esfera domiciliar nos leva a uma forma mais elevada de família e de relações entre ambos os sexos (MARX, 2014, p. 39) e que a linguagem se desenvolve junto com o processo de trabalho (ENGELS apud REED, 2008, p. 33). Também embasam este trabalho os conceitos que relacionam a ideologia de classe à estilística 3 Defendida em 2018 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Círculo

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da enunciação, elaborados pela teoria dialógica do discurso (TD) e os conceitos de ethos e cena discursiva, utilizados pela análise do discurso de base enunciativa. Entendendo a palavra como “o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam” (BAKHTIN, 2010b, p. 42, grifo do autor), podemos inferir que uma ruptura ou uma mudança nas relações entre os sexos e nas formas familiares acaba, de alguma forma, sendo refletida/ refratada pela linguagem. Com isso em vista, a tese em desenvolvimento4 tem como proposta averiguar o surgimento da gênese de um código linguístico feminista no jornal A Classe Operária no fim da República Velha. Temos como hipótese principal que os escritos das mulheres trabalhadoras no jornal citado possuem uma estilística própria do código linguístico feminista brasileiro, uma vez que salta aos olhos, através de sua cenografia (estilística) a ideologia de classe neles presente. Além disso, por não termos encontrado textos anteriores a estes defendendo ou utilizando a valorização das formas femininas e coletivas na linguagem, acreditamos que são nestes textos que desponta o código linguístico feminista brasileiro, que atualmente defende o uso de uma linguagem não-sexista nas mais variadas esferas discursivas. Neste capítulo, procuraremos apresentar brevemente alguns aspectos da pesquisa empreendida, no estado em que se encontra. Assim, discorremos sobre a perspectiva sócio-histórica e filosófica, sobre os pressupostos teóricos, os procedimentos metodológicos e por fim analisaremos e discutiremos alguns pontos importantes de nosso trabalho.

4 Destacamos que estes objetivos não serão desenvolvidos neste capítulo, que se trata de um relato da pesquisa que vem sendo realizada ao longo do doutorado da autora. 78

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PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA E FILOSÓFICA De acordo com Engels, a primeira opressão de classes foi a opressão do sexo feminino pelo masculino (ENGELS, 2012, p. 87). Assim, em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, o autor defende que, com o advento das sociedades monogâmicas, submetidas ao modelo de família tradicional imposto pela sociedade patriarcal, as mulheres tiveram sua individualidade, sua sexualidade e sua liberdade limitadas pelos homens. Pelo fato de a dominação dos homens sobre as mulheres trabalhadoras divergir de sua dominação sobre as mulheres das classes dominantes, o movimento feminista da chamada Primeira Onda (ou seja, que iniciou no final do século XIX, indo até a conquista do voto feminino, em 1934) tornou-se um movimento sectário, limitado à elite local (ALVES, 2019, p. 60-61). Ademais, “a necessidade do capitalismo de explorar e procurar incessantemente uma força de trabalho mais barata (...) criou a situação da mulher” (ZETKIN, 2014, p. 153). A partir disso, passaram a divergir também as formas como são explorados homens trabalhadores e mulheres trabalhadoras. Por serem dominadas e exploradas de formas diversas às das mulheres das classes dominantes e às dos homens de sua classe, as mulheres trabalhadoras protagonizaram lutas diversas às destes. Todavia, as lutas protagonizadas por mulheres no Brasil do início do século XX das quais mais temos notícia, no que diz respeito às questões trabalhistas, normalmente, restringem-se à conquista de espaço no mercado, não abrangendo a busca por melhores condições de trabalho para o gênero feminino. A despeito disso, por meio dos dados dos recenseamentos dos anos de 1872, 1890, 1910 e 1920 (o censo de 1900 não continha dados relacionados aos trabalhadores da época), sabe-se que grande parte da força de trabalho nas indústrias da época era composta por mulheres. Se já estavam no mercado de trabalho, estas mulheres Círculo

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não precisariam reivindicar espaço. Suas demandas já deviam ser outras, diferentes das que tinham as mulheres das classes dominantes, que buscavam obter espaços de atuação pública, incluindo atividades prestigiadas de trabalho, até então exercidas exclusivamente pelos homens. De acordo com Rago, As operárias, tão vitimadas pelas péssimas condições de trabalho, pelos baixos salários, pela quantidade de filhos que deveriam criar, tão presas à condição biológica, eram consideradas até mesmo pelas feministas como incapazes de produzir alguma forma de manifestação cultural (RAGO, 2012, p. 591).

Por este motivo, em seus periódicos, as feministas liberais “se diziam responsáveis pelo futuro das trabalhadoras pobres, mas pouco falavam a respeito do modo que pretendiam encaminhar, na prática, essa filantropia” (RAGO, 2012, p. 591). O presente trabalho apresenta-se como uma possibilidade de apresentar representações diversas às de que as operárias do Brasil do início do século XX eram “mocinhas muito frágeis”, incapazes de reclamarem elas mesmas por seus direitos (RAGO, 2012, p. 600). Também nos propomos a mostrar que as principais lutas ditas feministas no Brasil tiveram como protagonistas apenas mulheres das classes dominantes. Cabe ressaltar ainda a importância de se trazer para o estudo a voz das mulheres trabalhadoras, que foram (e ainda são) amplamente abafadas por outras vozes que lhes deveriam ser solidárias: das mulheres das classes dominantes e dos homens trabalhadores.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS Considerando que nosso objeto de estudo é o discurso das mulheres trabalhadoras no jornal A Classe Operária (Rio de Janeiro, 1925-1930), nosso aporte teórico deve, conforme a concepção desse projeto, sempre colocar em primeiro plano as 80

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necessidades de entendimento apresentadas pelo próprio objeto. E é nesse sentido que se compreende aqui o valor dos construtos teóricos dos quais se lançará mão para o empreendimento da pesquisa. Em primeiro lugar, entendemos o discurso como o conjunto de todos os enunciados que produzimos (BAKHTIN, 2016, p. 54). O discurso das mulheres trabalhadoras no jornal A Classe Operária é, portanto, constituído pelo conjunto de textos por elas escritos e assinados. A partir disso, vinculamos nossas categorias de análise à teoria dialógica do discurso (TD) e à análise do discurso de base enunciativa (a qual passaremos a chamar apenas de AD), que têm no enunciado a unidade da comunicação discursiva. Isto porque, para a TD, o objeto de análise do linguista deve ser a língua como parte das práticas sociais, as quais devem servir para explicar como o sentido é construído pelos interlocutores nas relações sociais de poder e como o sentido constrói tais relações. Por esse motivo, de acordo com a TD, o enunciado é dado imediato a ser analisado pelo linguista. Nossa análise, portanto, dar-se-á de forma dialética, opondo o discurso das mulheres trabalhadoras ao dos homens de sua classe no mesmo jornal e ao discurso das mulheres pertencentes à elite. Nossa análise também será dialógica, visto que o enunciado é uma unidade real (BAKHTIN, 2010a, p. 275), que tem na base de sua produção e de sua compreensão a responsividade dos interlocutores, grosso modo, enunciar é esperar uma resposta; compreender é, de alguma forma, responder. A responsividade é, portanto, um traço essencial e constitutivo do enunciado: de seu endereçamento a alguém dependem sua composição e seu estilo (BAKHTIN, 2010a, p. 300). Assim, compreender um enunciado não é somente referir-se a uma gramática e a um dicionário, é mobilizar saberes muito diversos, fazer hipóteses, raciocinar, construindo um contexto que não é um dado preestabelecido e estável” (MAINGUENEAU, 2013, p. 22). Círculo

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Isso posto, defendemos que os enunciados necessitam ser analisados em relação com os elementos sociais, históricos, que formam o contexto da interação, visto que estes incidem sobre a ação autoral (SOBRAL, 2009, p. 61). Além disso, acreditamos que o “contexto não é necessariamente o ambiente físico, o momento e o lugar da enunciação” (MAINGUENEAU, 2013, p. 28). É importante destacar que os enunciados/discursos possuem um conteúdo, uma forma e um material com que o autor trabalha (SOBRAL, 2009, p. 68). São estas relações que fazem com que a ideologia de classe (o pertencimento a uma classe, que incide no papel social desempenhado pelo enunciador) organize a estrutura estilística da enunciação, tanto exteriormente, com o tema da enunciação, quanto interiormente, através da entonação, da escolha e da disposição das palavras, “de qualquer construção verbal que se realiza não só com o conteúdo, mas expressa com a própria forma a relação existente do falante com o mundo e os homens, a relação com aquela situação específica e aquele auditório específico” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 190, grifos do autor). Assim, certamente, a ideologia de classe das mulheres trabalhadoras, isto é, o papel social que desempenhavam ao produzir os textos para o jornal A Classe Operária, juntamente com a sua relação com seus interlocutores (sendo eles outras trabalhadoras, os trabalhadores, os sindicatos ou os seus patrões) organizou a estilística de sua enunciação. Também para a AD o enunciador não é um sujeito livre, que faz escolhas individuais para atingir o seu auditório, e sim um sujeito sócio-histórico, com papéis sociais definidos em determinadas esferas discursivas. Assim, é possível dizer que tanto a AD quanto a TD, ao apontar uma hierarquia discursiva, aliam-se a uma filosofia marxista da linguagem, em que os elementos da vida material são incontornáveis para se pensar as práticas linguísticas. Os textos escritos por mulheres que pretendemos analisar não podem ser, portanto, analisados sem que se entenda que sua

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estilística depende de sua ideologia de classe (isto é, do papel social que exercem enquanto enunciam). Por depender dessa posição sócio-histórica do enunciador, o conteúdo dos enunciados é “expresso por meio da matéria verbal, em termos das relações entre o autor, o tópico e o ouvinte” (SOBRAL, 2009, p. 68). Assim, “a própria seleção de palavras já envolve uma orientação na direção do ouvinte e do herói [objeto da enunciação] por parte do autor” (p. 63 e 64), sendo a expressão do enunciado muitas vezes determinada não apenas pelo seu conteúdo semântico-objetal, mas também pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema, os quais respondemos, com os quais polemizamos; através deles se determina também o destaque dado a determinados elementos, as repetições e a escolha de expressões mais duras (ou, ao contrário, mais brandas); determina-se também o tom (BAKHTIN, 2010a, p. 297).

Visto que o conteúdo semântico objetal de seus enunciados era a sua própria situação, ao enunciarem “nós, operárias”, as mulheres que escreviam os textos que analisaremos não só mostravam que possuíam consciência de gênero e de classe, isto é, que possuíam unidade em sua teoria e em sua práxis, que tinham conhecimento de que a necessidade econômica de sua luta emancipadora se transformaria dialeticamente em liberdade (LUKÁCS, 2003), mas também colocavam seus interlocutores como o “outro”, como na já citada defesa de Simone de Beauvoir (2009, p. 19). A análise do discurso de base enunciativa também traz, em sua noção de ethos, que a imagem discursiva do enunciador é “construída por meio de diferentes elementos (linguísticos, éticos, estéticos etc.) inseridos em uma conjuntura sócio-histórica, os quais necessitam da “incorporação” do interlocutor para apreendê-lo em um conjunto difuso de representações sociais” (DI FANTI, 2009, p. 151). Desta forma, a AD defende que Círculo

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pode-se propor que qualquer texto escrito, mesmo se ele o nega, tem uma vocalidade específica que permite relacioná-la a uma caracterização do corpo do enunciador (e não, bem entendido, ao corpo do locutor extra-discursivo), a um fiador que, por meio de seu tom, atesta o que é dito (o termo “tom” tem a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral) (MAINGUENEAU, 2006, p. 61).

Se o signo é a arena onde se desenvolvem os conflitos ideológicos, onde se enfrentam os “tons” sociais contraditórios e a palavra, o signo ideológico que reflete de modo mais fino todas as transformações sociais, por menores que sejam (BAKHTIN, 2010b, p. 42), toda a ideologia é necessariamente verbalizada e está a serviço de uma luta (YAGUELLO, 1978, p. 69, tradução nossa5). É por este motivo que os embates “entre grupo dominante e grupo dominado manifestam-se por tensões no uso da língua. Os diversos grupos em conflito na sociedade puxam a língua para si, assim como se puxa o cobertor para si” (YAGUELLO, 1978, p. 70, tradução nossa). Todavia, Em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo familiar, de amigos e conhecidos, de colegas, em que o homem cresce e vive, sempre existem enunciados investidos de autoridade que dão o tom, como obras de arte, ciência, jornalismo político, nas quais as pessoas se baseiam, as quais elas citam, imitam, seguem (BAKHTIN, 2010a, p. 294).

Por este motivo é que palavras com forte conteúdo ideológico podem ser conotadas diferentemente, ou até mesmo de modo diametralmente oposto, em função do enunciador. Palavras que são utilizadas no feminino e que se referem a mulheres, portanto, na linguagem, podem ter carga semântica positiva ou negativa, dependendo de quem as utiliza ou de quem as interpreta. 5 As traduções aqui utilizadas foram realizadas por Florence Carboni, minha orientadora de mestrado, a quem muito agradeço. 84

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A ideologia, de fato, constitui um instrumento de modelagem dentro dos sistemas de comunicação e de representação simbólica do homem” (YAGUELLO, 1978, p. 70, tradução nossa). O código linguístico feminista6, isto é, o uso da linguagem com estratégias de valorização do gênero feminino, vem sendo instrumento de uma retórica e de uma teorização sobre a questão feminina (YAGUELLO, 1978, p. 72, tradução nossa). Mesmo que, acreditamos, apenas recentemente existam estudos diretamente relacionados a ele, como já dito, iniciados após o pensamento embrionário esboçado em 1949 por Simone de Beauvoir e o advento da sociolinguística nos anos 1960, desde que surgiram as ideologias feministas (falo no plural, porque acredito que ela nunca tenha sido única), estas devem ter sido refletidas e refratadas pela linguagem das mulheres. Para finalizar, cabe lembrar que, na época da qual trataremos (a República Velha), tínhamos no Brasil a chamada Primeira Onda do feminismo, que, acompanhando as tendências mundiais, teve no movimento sufragista sua principal luta. Assim, na maioria das vezes, mulheres trabalhadoras não se diziam adeptas ao feminismo, uma vez que era um movimento bastante elitista e sectário (HAHNER, 1981). No entanto, defendemos que o fato de lutarem pelos seus direitos enquanto mulheres faz das trabalhadoras (que produziam os enunciados que analisaremos) feministas, e, portanto, faz de suas estratégias linguísticas para valorizarem-se, estratégias linguísticas feministas.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Como já foi dito, a pesquisa terá como corpus os registros escritos deixados pelas mulheres trabalhadoras no jornal A Classe 6 Termo utilizado por Marina Yaguello em Les mots et les femmes, do qual nos apropriamos para a nossa análise, por não encontrarmos até o momento outro mais adequado. Círculo

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Operária, dos anos 1925 aos anos 1930. As edições a serem analisadas já foram lidas e catalogadas7 em sua totalidade durante minha pesquisa de mestrado. No entanto, como minha pesquisa centrava-se na esfera discursiva “imprensa operária” enquanto novo campo de atuação linguística das mulheres trabalhadoras, por se tratar de uma pesquisa sociolinguística, os escritos femininos no periódico citado foram analisados em sua relação com a presença/ ausência de textos escritos por mulheres em outros jornais operários. Assim, não foram analisados os discursos produzidos por mulheres no jornal citado. Desta forma, devido ao vasto número de textos encontrados, a seleção dos textos a serem analisados também está prevista como parte constitutivas do trabalho a ser realizado, visto que o contato empírico com os textos pesquisados é basilar para a pesquisa na área dos estudos discursivos que possuem como corpus gêneros escritos. Posteriormente à seleção dos textos, analisaremos o discurso das trabalhadoras que os escrevem. É importante ressaltar que, por se tratar de uma análise calcada em um dado lugar e um dado momento, o estudo da história será de grande importância para o trabalho, constituindo-se como fonte para a verificação da mudança social na referida época. Os pontos a serem analisados, tanto do campo linguístico, quanto do campo social, foram citados dentre os objetivos do trabalho que vem sendo realizado, todavia, tem-se como hipótese que, a partir da construção do corpus e do método a serem utilizados, será possível deslumbrar outros aspectos importantes para a pesquisa.

7 Os microfilmes dos jornais estão disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (www.memoria.bn.br) e no Arquivo Edgard Leuenroth, da Biblioteca da Unicamp (https://www.ael.ifch.unicamp.br/acervo). No entanto, realizei a catalogação das edições publicadas durante a República Velha e dos textos femininos e de temática feminina. 86

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ANÁLISE E DISCUSSÃO Em A Classe Operária a questão da mulher recebe um importante destaque. Logo na primeira edição, de 1925 (A CLASSE OPERÁRIA, 1925), são encontrados, distribuídos entre suas 4 páginas, 6 textos sobre a exploração específica que sofria a mulher trabalhadora. Um dos maiores textos assinados da edição foi assinado no coletivo e no feminino: “As operarias charuteiras de S. Felix”. No texto, as operárias expõem sua situação e reivindicam melhor condições: [...] Levamos ao conhecimento do proletariado industrial e agrícola os horrores que soffremos. Somos tratadas como seres inferiores. [...] Os que, nas grandes cidades, nas casas elegantes, fumam os charutos finos do S. Félix, mal sabem a exploração innominavel a que somos submetidas. Nossas aspirações são as seguintes: (A) Economicas: 1ª- Salario fixo de $5 diarios, por 250 charutos a pau ou 100 charutos a mão; [...] 6ª- Licença de 15 dias para as companheiras no parto e pagamento integral. (B) Hygienicas: 7ª- Agua pura e copos; 8ª- Bancos especiais para as companheiras gravidas. (C) Politicas: 9ª- Direito de livre associação; 10ª- Não sermos despedidas quando commemorarmos o primeiro de maio. (As operarias charuteiras de S. Felix, A CLASSE OPERÀRIA, 1925)

Como mostro no artigo “Nem no convento, nem no cabaré, na imprensa operária”, em comparação feita entre textos de autoria coletiva feminina e de autoria coletiva masculina no jornal, Círculo

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é possível verificar a presença de um estilo mais argumentativo nos recortes de autoria feminina e de um estilo mais expositivo no recorte de autoria masculina. Até mesmo em textos com a mesma função, de reivindicar, são utilizados estilos diferentes para atingir o objeto pretendido. Desta forma, enquanto as operárias [...] expunham suas aspirações, explicando seus motivos, os operários [...] relatavam que haviam paralisado seu serviço e só retornariam se o acordo feito entre eles e o seu patrão fosse cumprido. Ainda, enquanto nos textos assinados por mulheres é utilizada a primeira pessoa do plural, o texto que trata dos homens nem mesmo é assinado, sendo utilizada a terceira pessoa do plural, de modo impessoal. Podemos atribuir o modo impessoal e a autoria não marcada à valorização do masculino na linguagem, uma vez que uma das características do Português Brasileiro é ter como “gênero neutro” o gênero masculino (“o homem”) (BOENAVIDES, 2017, p. 310).

No Brasil, não temos notícias de reivindicações da valorização do feminino na linguagem antes do advento dos estudos declaradamente sociolinguísticos, que iniciaram após os anos 19601970 (embora, na Inglaterra, a temática já tivesse sido abordada na década de 1920, pelo Grupo de Bloomsbury, que teve, entre suas participantes, Virgínia Woolf). No entanto, o debate da problemática do uso do masculino genérico é possível de ser encontrada já na primeira gramática da língua portuguesa, escrita por Fernão de Oliveira em 1536 que assinalava: ““Marido e mulher ambos são bons homens”, enfim, posto que muitas desproporções ou dissemelhanças se cometem na nossa língua...” (OLIVEIRA, 1975, Cap. XLIX). Nos dias atuais, vemos sendo desenvolvidos diversos manuais sobre o uso não sexista da linguagem, os quais acabam contribuindo para que sejam vistas e alteradas as condições materiais que fazem com que as mulheres sejam dominadas pelos homens, também na/ através da linguagem. No entanto, não encontramos ainda trabalhos que mostrem como se desenvolveu a ideia de 88

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que a valorização do feminino na linguagem ocorreu. Também não temos ainda trabalhos que analisem o discurso das mulheres trabalhadoras na imprensa operária brasileira antes do início dos estudos sociolinguísticos no Brasil. Pretendemos, com nossa pesquisa, aprofundar esta análise.

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BOENAVIDES, D. L. P. A escrita da mulher trabalhadora na imprensa operária brasileira da República Velha: a luta contra o enclausuramento e o preconceito linguístico. 2018. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-graduação em Letras, Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018. BRANDÃO, O. Combates e Batalhas. São Paulo: Alfa-Omega, 1978. 1 v.

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A POLÊMICA NAS ILUSTRAÇÕES DE CAROL ROSSETTI: VOZES EM (DIS)CURSO

Kelli Machado da Rosa1 Universidade Federal do Rio Grande (FURG)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS O corpo feminino nunca teve tantos olhares controversos como na contemporaneidade. Esse corpo, investido de valores em tensão, imprime sentidos culturais pressupostos em certas noções construídas sobre a feminilidade que são constantemente reforçadas em diferentes discursos. Tais noções são introjetadas pelas mulheres que criam a percepção muitas vezes distorcidas de si próprias. Nesse espectro de formações de imagens, há, nos discursos midiáticos, um terreno fértil para difusão e propagação de valores que se arquitetam em variadas facetas imagéticas. Assim, a corporeidade feminina constitui, na coletividade, uma conduta resultante de coerções sociais e históricas em que os meios de comunicação de massa têm sido importante vetor de construção dos padrões de beleza e de exclusão social (FISCHLER, 1995). Como dispositivo de poder, a mídia estabelece uma comunicação voltada aos padrões de mercado, atualizando constantemente 1 Doutora em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande (PPG-Letras – FURG) https://orcid.org/0000-0002-6664-4912 E-mail: klro.rib@gmail.com 92

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as práticas coercitivas que atuam sobre essa construção corpórea feminina “ideal”. A mídia, por meio de variados discursos, associa o belo a um padrão corporal bastante restrito e ressalta que qualquer sacrifício para atingir esse padrão é válido e legitimado. A fim de problematizar essas questões, neste artigo, analiso duas ilustrações da artista brasileira Carol Rossetti, sob a perspectiva dialógica, buscando compreender o funcionamento da linguagem verbo-visual que constrói polêmica em direção aos padrões de beleza feminina. Parto da seguinte questão norteadora: de que forma padrões de beleza imputados à mulher são polemizados nas ilustrações, considerando vozes sociais em tensão sobre a forma corporal em relação à moda e à saúde? Respaldo a reflexão na teoria dialógica, desenvolvida por Mikhail Bakhtin e o Círculo, focalizando os conceitos de signo ideológico, vozes e polêmica aberta e velada. Descortino, nas análises, a tensão entre vozes de perpetuação e vozes que descentralizam padrões, considerando a importância da temática na contemporaneidade. Nessa perspectiva, a presença de discursos, na esfera midiática, que tornam fulcral a polêmica em relação às imagens cristalizadas, contribui para o rompimento e para a desestabilização desses padrões, ressignificando, assim, valores sociais acerca do corpo feminino. Além disso, a encenação dessa problemática, em um discurso artístico de grande difusão nas redes sociais como as ilustrações de Rossetti, possibilita a visibilidade para o que muitas vezes acaba invisível na sociedade. Em A palavra na vida e na poesia, Volochinov/Bakhtin (1926/2011, p. 88, grifo dos autores) explicam que o discurso da arte é imanentemente social, sendo entrecruzado por inúmeros fatores sociais. Segundo os autores, “na literatura são importantes acima de tudo os valores subentendidos”. Destacam ainda que “uma obra artística é um potente condensador de valorações sociais não expressadas: cada palavra está impregnada por elas” (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 1926/2011, p. Círculo

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167, grifo dos autores). Amplio, nesse sentido, tais valores subentendidos para a arte em geral que é feita a partir das entrelinhas sociais, dos sentidos construídos nos desvãos. Ao propor novos “retratos”, Rossetti, no todo da obra, problematiza e encena diferentes questões sociais urgentes nos desvãos dos signos, ou seja, ela trabalha com imagens refletidas e refratadas da pluralidade que envolve o “ser mulher” na sociedade. Procuro, desse modo, trazer para a superfície de análise as diversas vozes sociais de segregação, em diferentes âmbitos, focalizando os seguintes pontos: forma corporal, moda e saúde. As vozes, em cena, são postas no quadro dialógico da ilustração, a fim de serem polemizadas e ressignificadas através da arte que apresenta grande circulação na mídia. O discurso artístico, nesse contexto, permite a mobilização e a confluência de vozes transgressoras que buscam a quebra de ideias cristalizadas ao longo da história. Isso acontece, pois é no e pelo enunciado que se materializam as mais tensas relações de estratificação de vozes sociais.

A NOÇÃO DE POLÊMICA EM BAKHTIN: TÓPICOS CENTRAIS E DESDOBRAMENTOS Não há como abordar a categoria de polêmica, no escopo da teoria bakhtiniana, sem considerar a noção de signo ideológico desenvolvido em Marxismo e filosofia da linguagem (MFL). A epistemologia da tensão aproxima esses conceitos e se desdobra em vários pontos que pretendo abordar neste artigo. Destaco, no entanto, dois pontos essenciais dessa aproximação: o embate entre vozes conflitantes e o tratamento dessas vozes no acabamento do enunciado. Esses dois pontos sintetizam a complexidade dos conceitos em jogo, mas, para percorrermos o caminho dessa síntese, é preciso observar as curvas dialógicas da estrada. Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin/Volochinov teorizam sobre as propriedades do signo ideológico e da palavra em 94

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uso, considerando a natureza social da linguagem e considerando-se também a singularidade e individualidade do processo enunciativo. Uma das primeiras discussões de Bakhtin/Volochinov (1929/2010) é o vínculo imediato entre os signos e a ideologia. Os autores alertam que “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo”, isto é, “tudo que é ideológico é um signo”. Nesse sentido, entendo que o signo, no viés bakhtiniano, tem seu significado ligado à cultura e à história de uma sociedade, de modo que “sem signos não existe ideologia” (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1929/2010, p. 31). O signo ideológico é envolto de relações contextuais e marcado historicamente, isto é, seu sentido não depende somente das consciências do eu e do outro, mas do complexo jogo de reflexos e refrações que se estabelecem no processo de interação. As diferentes vozes e valorações sociais se cruzam na enunciação viva e concreta, mudando o direcionamento de significados reiteráveis, mais genéricos do discurso, fazendo brilhar (refratar) novos sentidos. O processo de refletir e refratar é intrínseco ao discurso vivo e real, pois só há particularidades de um sentido (refração), se houver um processo de significação compartilhado socialmente (reflexão). É no contexto da interação verbal que reflexo e refração se articulam e produzem sentidos, sempre novos e atualizados. Em O método formal nos estudos literários, Medviédev levanta algumas questões em torno dos produtos da criação ideológica, ou seja, os signos ideológicos. De acordo com Medviédev (1928/2012), [...] todos os produtos da criação ideológica – obras de arte, trabalhos científicos, símbolos e cerimônias religiosas etc. – são objetos materiais e parte da realidade que circundam o homem. É verdade que se trata de objetos de tipo especial, aos quais são inerentes significado, sentido e valor interno. Mas todos esses significados e valores são somente dados em objetos Círculo

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e ações materiais. Eles não podem ser realizados fora de algum material elaborado (MEDVIÉDEV, 1928/2012, p. 48).

Entendo, nesse sentido, que não pode haver um sentido prévio na forma material, o sentido tem seu reflexo e refração mediados pela forma e essa forma só refrata algum sentido pelo fato de estar em uso social compartilhado. Além disso, é importante pontuar que, certamente, os signos ideológicos não se referem apenas às palavras, estendendo-se também aos produtos da criação ideológica como obras de arte, cerimônias e símbolos religiosos. Embora Bakhtin/Volochinov (1929/2010, p. 36) assinalem que a palavra viria “em primeiro plano no estudo das ideologias” e que na palavra melhor se revelam “as formas ideológicas gerais da comunicação semiótica”, os autores explicam que “todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo etc.” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/2010, p. 33). Uma pintura, por exemplo, pode ser analisada sob a égide de signo. Pensemos na pintura de uma mulher em um quadro: é um signo ideológico materializado na superfície do quadro, nas cores das tintas, nos traços pintados, mas o que o torna ideológico é aquilo que extrapola essa materialidade, ou seja, é aquilo que representa socialmente a pintura, aquilo que se quer destacar da mulher, a valoração atribuída aos traços humanos, às curvas, às roupas. Ademais, a mulher pode estar sorrindo, chorando, seu rosto pode apresentar um tom sisudo, entusiasmado, indiferente e esses tons precisam estar conectados a outros tons sociais a respeito da mulher. Assim, compreendo que o componente axiológico circunscrito à linguagem permite que o tensionamento de já-ditos insurja nos enunciados como polêmicas veladas ou abertas. Segundo Ribeiro (2015), ao apropriar-se do discurso alheio, o sujeito discursivo orienta-se axiologicamente no espectro de diferentes valores 96

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sociais. Desse processo de tensão, emergem posições avaliativas sobre o outro e sobre o discurso do outro. Em Questões de literatura e de estética, Bakhtin (1975/2010a) elabora uma discussão importante sobre a bivocalidade, visto que desenvolve reflexões de forma dinâmica acerca do conceito, ampliando a noção de atravessamento da palavra do outro no discurso, para além da dimensão literária, romanesca, mostrando que na linguagem, em diferentes interações verbais, há esse atravessamento, essa diversidade de vozes em constante tensionamento. As concepções teóricas do Círculo tinham não só o objetivo de elaborar discussões literárias, como nesse texto que Bakhtin traz o gênero romanesco para ilustrar as relações constantemente dialógicas na construção dos personagens, do narrador, do espaço, mas também é preocupação do autor mostrar que, no interior da vida da língua, tais relações estão presentes mais ou menos aparentes, dependendo do gênero discursivo e do estilo e do tema semântico-axiológico do enunciado. Desse modo, uma palavra ou um discurso bivocal é uma palavra que se introduz no romance, refratando as diversas intenções e posições do autor frente à realidade. Bakhtin (1975/2010a, p. 127) explica que a palavra bivocal “serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao mesmo tempo duas intenções diferentes”, ou seja, no caso do romance, por exemplo, é a intenção do autor refrangida na intenção da personagem. A palavra, nesse contexto, é retirada ainda “quente” da participação sócio-histórica, atravessada por inúmeras entonações, avaliações e se submete ao estilo e a uma “unidade dinâmica” da obra. No entanto, tal processo não é privilégio apenas do gênero romanesco. Todo o discurso, em nossas práticas cotidianas, nasce da palavra retirada dos já-ditos, ou seja, palavras entrecruzadas de valores ideológicos, acentos alheios, avaliações sociais das esferas discursivas da comunicação (RIBEIRO, 2018, p. 70).

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Nessa direção, o discurso bivocal é essencialmente um discurso voltado para o discurso do outro e pode ter três tipos ou tendências de orientações. A primeira orientação apontada por Bakhtin (1963/2010b, p. 228) é o “discurso bivocal de orientação única”, em que há um efeito de fusão de vozes, pois o discurso que se apropria da voz alheia tem a mesma orientação semântica (valorativa) da voz transmitida. O diálogo e as fronteiras com o discurso alheio tendem a ficar mais diluídas, criando o efeito de uma só voz, de uma só orientação axiológica. A segunda orientação é denominada de “discurso bivocal de orientação vária”, em que o diálogo entre as vozes pode aparecer mais perceptível no discurso. No caso da segunda orientação, compreendemos que é “vária”, pois a orientação do discurso que transmite está em direção oposta semanticamente ao discurso alheio, como é na paródia, por exemplo. É preciso ressaltar que, na segunda orientação, a dialogicidade interna aparece reverberada no discurso, permitindo que se estabeleça ainda o diálogo com outras vozes sociais sobre o mesmo objeto do dizer (BAKHTIN, 1963/2010b, p. 228). As transmissões de orientação vária podem ser caracterizadas também como variações da polêmica aberta no discurso. Para Bakhtin (1963/2010b, p. 224), “a polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro”. Em muitos casos, a voz alheia refutada é posta em polêmica e se transforma no próprio objeto do discurso. Diferentes tons podem marcar a oposição das vozes no discurso, ou seja, a palavra alheia pode ser introduzida com acentos e expressões de indignação, zombaria, ironia, dúvida e os modos de transmissão dessa polêmica podem variar em estilo. Por fim, a terceira orientação é o “tipo ativo (discurso refletido do outro)”, sendo um encontro de vozes bastante complexo, pois, no discurso bivocal do tipo ativo, o que aparece não é o outro e nem a sua voz, mas apenas o diálogo velado com a voz do outro. A orientação é em direção ao diálogo tenso com o outro que 98

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aparentemente não está presente no discurso, ou seja, é como se a voz do outro estivesse ali, mas ela aparece refrangida na polêmica instaurada, podendo aparecerem ou não as fronteiras. A voz alheia aparece escamoteada, velada, refletida no discurso que transmite. O autor cita, como exemplo dessa orientação, a polêmica interna velada, a autobiografia, confissão, diálogo velado, réplica de diálogo etc. (BAKHTIN, 1963/2010b, p. 229). A bivocalidade de tipo ativo aparece em diferentes tons de uma polêmica mais velada no discurso. Segundo Bakhtin (1963/2010b), na polêmica velada, as vozes se chocam de maneira conflituosa, mas diferentemente da polêmica aberta, o choque entre as vozes acontece de forma indireta, escamoteada no próprio discurso objetal do autor. A polêmica velada fica impressa no discurso bivocal também por meio dos elementos não verbais que compõem o contexto da interação, tais como imagens, gestos corporais, expressões faciais, entonação da voz etc. As polêmicas, em síntese, estão no plano axiológico do conhecimento compartilhado entre os sujeitos do discurso e só são perceptíveis na dimensão dialógica da interação. Os três tipos de orientação do discurso bivocal podem aparecer de forma dinâmica em uma transmissão, isto é, os três tipos não se excluem e não ocorrem de forma estanque. Essa relação dinâmica é possível, porque, em todos os três tipos, percebemos que há um encontro dessas vozes, um choque, uma empatia, e isso ocorre de maneira bastante complexa na linguagem, em variadas arquiteturas discursivas. Em cada modo de orientar-se em relação à palavra alheia e reelaborá-la em seu discurso, o locutor entra em empatia com essa palavra e encontra nela a diversidade de vozes e já-ditos sociais. Na próxima seção, é possível compreender o contexto de rupturas que envolve o corpo feminino na sociedade, considerando o espectro de valores sociais que se entrecruzam na construção do corpo como signo ideológico que reflete e refrata a tensão vivida ao longo da história. Círculo

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CORPO FEMININO COMO ARENA DE VOZES SOCIAIS: RUPTURAS Abro esta seção, analisando a profundidade de uma célebre citação de Simone de Beauvoir que sintetiza a situação feminina no corpo social, considerando diferentes dimensões do ser humano envolvido. Segundo a pensadora, [...] ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade. É o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro (BEAUVOIR, 2016, p. 11).

O verbo tornar, nesse contexto, revela a complexidade e a dinamicidade do processo de formação das consciências femininas ao longo da história, mostrando o caráter mutável e transitório das relações de gênero na sociedade. Assim, o gênero é encarado como uma maneira de existir do corpo e as relações corporais acontecem sempre situadas num campo de possibilidades culturais recebidas e reinterpretadas a todo o instante. Saffioti (1992) destaca que o corpo de uma mulher é essencial para definir sua situação no mundo, mas é insuficiente para defini-la como mulher. A definição da sua feminilidade só se processa através da atividade da mulher nos diversos setores da sociedade. Isso significa dizer que o gênero se constrói e se expressa no engendramento das diferentes relações sociais (SAFFIOTI, 1992, p. 189). De acordo com Ribeiro (2017, p. 125), “as relações de gênero são dialógicas e dialéticas, refletindo contradições e concepções de gênero internalizadas por diferentes atores sociais”. Por isso, quando se trata da categoria “relações de gênero”, deve-se entender que mulheres e homens vivenciam relações e experiências distintas, visto que, na sociedade contemporânea, não existe igualdade de gênero desde as 100

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situações mais simples até as mais elaboradas e complexas. Ainda há grande segregação em relação às mulheres que, aos poucos, ocupam os espaços tradicionalmente destinados aos homens. Nesse caminho trilhado de lutas, derrotas, conquistas e resistências, o corpo feminino precisa ser discutido para além do aparato biológico. É preciso observar os valores em jogo, os aprisionamentos, as estereotipias criadas e legitimadas nos discursos. Valores como beleza e feiura, moda, saúde e aparência física necessitam de problematizações, a fim de superar a padronização e a tentativa de apagamento das subjetividades. Conforme Simone de Beauvoir (2016), é ensinado desde muito cedo às meninas que é preciso ser bonita, em detrimento de qualquer outra característica, para conseguir um noivo e concretizar o casamento. Dessa forma, a vida feminina gira em torno da conquista do amor de um homem, o que é sempre sinônimo de felicidade. E essa busca é alimentada por uma indústria que se propõe a financiar os sonhos femininos. Há, nessa atmosfera, o culto da mulher como princesa desde o pedido de casamento (feito sempre pelo homem) até o fruto desse “amor” que são os filhos. Festas e espetáculos sociais brindam esses momentos, instaurando uma rede de desejos que devem ser atingidos. E, para conseguir percorrer esse caminho de sonhos de forma bem-sucedida, é preciso se ajustar em termos corpóreos nesse conjunto de signos. A princesa geralmente é magra, frágil, sensual (na medida!) e subordinada compulsoriamente à figura masculina que lhe completa. Assim, faz-se da busca pela perfeição em relação à aparência uma verdadeira obsessão feminina. Esse movimento também deixa marcas e ecos em diversos contos de fadas, filmes, novelas, anúncios etc. Nesse sentido, em uma sociedade imagética e amplamente invadida por redes “sociais”, em que o sujeito é definido por sua aparência no mundo, não há como desconsiderar o sofrimento psíquico decorrente de todas as regulações sociais que incidem Círculo

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sobre o corpo feminino. Essa regulação acontece, sobretudo, em uma atmosfera mercadológica na qual o corpo se torna objeto de consumo e nele se entrecruzam valores negociáveis. Novaes (2011, p. 484) afirma que o “corpo também é capital. Tem valor de troca ou, como bem, adquire um status a partir das insígnias que carrega”. É nessa direção que defendo, na presente reflexão, o corpo como arena de vozes em tensão, em que o aparato biológico é apenas reflexo, sendo as múltiplas facetas sociais que emergem desse corpo a refração. Isso significa afirmar que o corpo reflete e refrata realidades exteriores, arquitetadas em diferentes signos ideológicos. Esses signos, na maioria das vezes, se concentram em torno de um corpo belo e saudável. Cria-se a imagem de um corpo jovial, saudável, feliz, erotizado. Mas, aqui faço uma ressalva: essas imagens estão no plano da refração, no plano dos efeitos de sentidos. Portanto, acrescenta-se o “parecer”, nesse conjunto de imagens que concorre para o corpo ideal, uma vez que esses valores são profundamente relativos e construídos ao longo da história. Por isso, enfatizo pelo menos dois pontos a serem problematizados nessa construção social: a moda e a saúde aceitáveis para os corpos femininos. A relação do corpo feminino com as regulações da moda é puramente social, política e econômica. As roupas, desse modo, aparecem como signos que perpetuam certos conceitos de beleza e feiura. É interessante pontuar que o “belo” e o “feio” não estão na roupa em si. Esses valores são impregnados nos corpos que vestem as roupas. Há um imperativo que regula o que é adequado para cada tipo de corpo e a violação ou não dessas regras culmina nas valorações de beleza e feiura. Novaes (2011, p. 493) explica que “a lógica consumista contribui para que certo conjunto de atitudes perceptivas e comportamentais, concernentes à estética, conviva simultaneamente, com ideologias e valores extremamente conservadores”. Mas, há, nessa convivência, o espaço para a quebra e 102

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para a manifestação das singularidades que transformam esses valores, abrindo caminhos para atitudes e discursos de resistência. A mesma tensão acontece em relação à noção de saúde. Por um lado, há a tentativa de associação quase que cega entre o corpo magro à ideia de saudável, de outro lado, com a visibilidade de doenças geradas por transtornos alimentares, esse padrão começa a ser problematizado, até mesmo, na esfera midiática que é a grande promotora da ditatura da magreza na contemporaneidade. Uma constelação de sentidos emerge nessas associações. Destaco duas questões nodais e interseccionais nessa rede de associações: a) a percepção de si no mundo e o controle do corpo como valor positivo; b) o corpo, a saúde e a beleza como objetos de poder. Para Lupton (2000), a obesidade é encarada como um sinal tangível de falta de controle e impulsividade, enquanto o corpo magro é um testemunho do poder da autodisciplina, um exemplo do domínio da mente sobre o corpo e de um virtuoso sacrifício. Respaldado em um discurso médico, os sujeitos buscam a eliminação da gordura vista como causa de muitos problemas de saúde. Além disso, a eliminação da gordura pode ultrapassar os limites da busca pela saúde e a tirania por um ideal de corpo entra em cena. Nessa atmosfera de sentidos, surge a noção de vitória, plenitude em relação ao corpo: o corpo gordo eliminado passa a ser um signo que remete a poder; o corpo gordo que permanece remete ao desleixo, à falta de autocuidado, à derrota pessoal. Circunscritos em uma sociedade do espetáculo de alta competitividade, os sujeitos, especialmente as mulheres, tendem a acatar esses sentidos e acabam facilmente vítimas de uma indústria fitness que promove e propaga o controle dos corpos, mesmo diante de um cenário contemporâneo que vem, paulatinamente, propondo a diversidade como pauta política para o diálogo. Pensando na complexidade dessas questões, é pertinente pensar que o corpo se torna manifestação social e política. Ele reage como Círculo

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resposta aos valores em circulação. Beauvoir (2016, p. 83) pontua que “a humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica”, ou seja, “ela [a humanidade] não sofre passivamente a presença da Natureza”. Outrossim, a mulher não pode ser vista somente no seu organismo sexuado, pois a consciência que a mulher constrói de si não é definida apenas pelo fator sexual. Essa consciência se constitui nas interações sociais, intimamente ligadas aos fios ideológicos que formam as estruturas da sociedade. Nesse contexto, o corpo feminino, principalmente na contemporaneidade é o espaço de resistência. Ele reage à moda, ressignifica valores de saúde que são impostos para a sua manutenção nos padrões, enfim, o corpo feminino promove rupturas de padrões e se torna ativo e responsivo politicamente. A diversidade dos corpos passa a ser o imperativo nesse cenário e com isso novos sentidos se instauram, novas vozes ecoam e novos valores começam a circular. Na próxima seção, coloco em foco o corpo pelas lentes dialógicas da arte. Será possível notar as rupturas propostas pela ilustradora Carol Rossetti, bem como os tensionamentos que surgem dessa nova perspectiva da mulher no mundo.

A OBRA DE CAROL ROSSETTI EM ANÁLISE: TENSIONAMENTOS O livro Mulheres: retratos de respeito, amor próprio, direitos e dignidade, da ilustradora brasileira Carol Rossetti, apresenta, artisticamente, diversos temas do universo feminino e faz surgir uma série de questionamentos que envolve padrões de beleza, direcionados à mulher, instaurados ao longo da história. Circunscrita não só ao livro, mas também circulante em redes sociais, a obra de Rossetti se organiza em torno de temas femininos plurais, instaurando o debate sobre racismo, homofobia, gordofobia2, xenofobia, 2 Termo que designa o sentimento de aversão e repulsa em relação ao corpo gordo, 104

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entre outros. O arranjo das ilustrações, no livro, se dá nos seguintes eixos: corpo, identidade, moda, escolhas, amores e valentes. O eixo corpo focaliza a desconstrução do controle sobre o corpo feminino, problematizando a ideia unívoca de beleza feminina. São apresentadas ilustrações que tratam de cabelo, pele, pelos, altura, forma corporal. O eixo identidade traz temas como sexualidade, gênero, valores e crenças. O cerne das ilustrações é a aceitação do ser e o direito de se expressar livremente. O eixo moda questiona pontos que envolvem a indústria da beleza, enfatizando-se a importância de uma moda mais inclusiva e plural que abarque todos os tipos de corpos. O eixo escolhas problematiza as diversas ações de escolhas que envolvem as mulheres na sociedade, polemizando temas como: profissão, maternidade, casamento, família e atividades em geral. O eixo amores questiona a ideia tradicional de relacionamentos baseada numa relação heterossexual, entre brancos, cisgêneros, jovens e cristãos. As cenas ilustrativas desse eixo deixam o seguinte questionamento: por que outras formas de amor consentido incomodam? Por fim, o eixo valentes trata dos diferentes desafios que mulheres enfrentam numa sociedade ainda violenta e discriminatória. Nesse eixo, as ilustrações valorizam ideias como coragem e determinação para vencer traumas, doenças e vulnerabilidade social. Ao trazer esses temas, a obra insere-se em um contexto contemporâneo no qual imagens e palavras se articulam em diferentes planos para chamar os sujeitos à reflexão e à responsividade do ser no mundo. De acordo com Ribeiro (2019), o texto-ilustração vem ganhando amplo espaço nas mídias sociais justamente por se tratar de um discurso verbo-visual de composição altamente dinâmica e variável. As ilustrações, na contemporaneidade, sintetizam, causando diversos comportamentos discriminatórios e situações constrangedoras. Círculo

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artisticamente, diferentes conceitos, ideias, reflexões e podem se arquitetar em várias semioses. Na ilustração, há a fusão dialógica do verbal e do visual e até mesmo do sonoro em alguns casos, criando um cenário que favorece a figurativização de temas complexos. Considerando essas especificidades da ilustração, e pensando no contexto da obra de Rossetti, nesta seção, apresento a análise dialógica de duas ilustrações do livro Mulheres: retratos de respeito, amor próprio, direitos e dignidade. Na Figura 1, analiso a ilustração do eixo moda que versa sobre moda e forma corporal. Na Figura 2, analiso a ilustração do eixo valentes que versa sobre saúde e forma corporal. Procuro mostrar a construção da polêmica, organizando a análise em um percurso dialógico que compõe a cena da ilustração: a) análise do enunciado crítica; ii) análise da imagem feminina centralizada; b) análise do enunciado refutação. As categorias, em foco, são eleitas, considerando os elementos discursivos constitutivos das ilustrações. Essa constituição discursiva apresenta três partes que se relacionam dialogicamente: em um primeiro plano da ilustração, há o enunciado crítica que se refere a vozes sociais que desqualificam determinada postura ou imagem feminina; em segundo plano, e de forma central na ilustração, há uma imagem feminina desenhada que se contrapõe ao enunciado crítica; por fim, em terceiro plano, há o enunciado refutação que é a voz de um locutor que critica abertamente as vozes suscitadas no enunciado crítica. Assim, inicio a discussão com o seguinte questionamento: o que há na forma corporal em si que legitima um corpo como belo ou feio? Ao valorizar a magreza, os diferentes discursos na contemporaneidade associam o corpo gordo à falência moral, ao fracasso e ao desajuste (FISCHLER, 1995). Além disso, a atmosfera avaliativa se avoluma, quando se trata de moda e vestuário no universo feminino, criando-se uma rede de imposições do que pode ou não ser consumido pela mulher gorda e seus significados

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na sociedade. Na Figura 1, a protagonista da ilustração é Marina e o mote da discussão é o uso de roupas listradas e o corpo gordo. FIGURA 1: Ilustração retirada da seção “moda” do livro de Rossetti

Fonte: ROSSETTI (2015).

O Enunciado crítica, no topo do quadro, abre a cena ilustrativa ressaltando o choque entre duas vozes: a voz do sujeito que gosta de usar vestido listrado na horizontal e as vozes que ditam a moda de roupas em relação ao tipo de corpo, tais como revistas de moda que orientam sobre listras horizontais. Abrindo uma polêmica aberta em direção às vozes de revistas femininas de moda, o locutor problematiza o signo “combinar” que, nesse contexto, retoma Círculo

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já-ditos que se entrecruzam no mundo da moda. Para esses discursos, listras horizontais “engordam”, alargam a imagem, deixando o sujeito maior em largura. Como ser e/ou parecer gorda é esteticamente negativo em nossa sociedade, principalmente se for o corpo feminino, essas vozes passam a ditar as combinações, ou seja, somente corpos magros combinam com listras horizontais. Nessa direção, aparecem em polêmica, vozes sociais que desaprovam o corpo gordo, fazendo surgir no discurso do Enunciado crítica forças centralizadoras com ideia de “peso ideal” ou de “forma corporal ideal” para cada tipo de listra. Ao corpo gordo, é destinada a listra vertical, uma vez que, no mundo da moda, esse tipo de listra alonga o corpo, refratando sentidos que enaltecem a magreza. Nessa polêmica, percebemos a crítica do locutor quanto ao apagamento da forma corporal gorda e os significados puramente culturais das roupas nos corpos. Essa avaliação toma contornos humanos na Imagem feminina centralizada da ilustração. No traço do desenho da artista, é possível notar o tom axiológico de plenitude da mulher representada. Marina é destacada com o vestido listrado, tem um corpo que foge ao padrão da magreza e seu tom facial e corporal é de satisfação, figurativizando a polêmica. Essa atitude avaliativa do locutor refrangida na imagem da personagem faz emergir no discurso a descentralização dos padrões. Com a instauração da satisfação da mulher com seu corpo e com o vestido em listras horizontais, a polêmica se constrói na ilustração, trazendo o embate direto com as vozes da moda (ditames das revistas). O corpo, nessa visão, tem um valor cultural que coloca o indivíduo na rede simbólica de um grupo. Por isso, a busca para ter um corpo “perfeito”, “bem delineado”, “em boa forma” promove o coroamento desse sujeito diante desse grupo. A gordura, a flacidez, o sedentarismo, nesse contexto, fazem emergir sentidos de indisciplina e descaso. Há, portanto, na ilustração, a tentativa de

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tirar a mordaça do sujeito gordo e colocá-lo numa rede simbólica de valores também positivos e socialmente aceitos. Nesse cenário, o locutor instaura valores que buscam o não silenciamento da mulher gorda no que tange à moda. No Enunciado refutação, o locutor se dirige à Marina, colocando três atos em debate: o ato de usar a roupa que se gosta; o ato de aceitar seu corpo gordo; e o ato de ignorar os padrões de beleza que se imputam à mulher. Os signos “gosta”, se “sentir bem” e “próprio corpo” em letras maiúsculas refletem e refratam sentidos de ênfase na aceitação de si, combatendo vozes que tentam perpetuar padrões de moda e de corpos. Ao refutar a centralização dos padrões, ampliam-se as possibilidades de uso dos diferentes tipos de vestuário que poderão acompanhar as diversidades e as especificidades dos corpos femininos. Barata (2004) ressalta que os padrões estéticos impostos pelo mundo fashion vão além da determinação sobre a vestimenta, ou seja, esses padrões interferem na construção do corpo social e suas relações com a corporeidade. Tais padrões, tornam-se pontos de referência e lançam o sujeito numa procura desenfreada de espelhos externos que funcionam como “fetiches” em uma sociedade mercadológica de consumo. Desse modo, a sociedade pós-moderna rende-se a estilos impostos, fechados em poucas possibilidades para o corpo gordo e muito distantes da realidade. Segundo Novaes (2011), mulher e beleza são historicamente associadas e a feiura tem sido intimamente ligada à gordura e ao envelhecimento, sendo a maior forma de exclusão socialmente validada em variados discursos. Se Marina, na Figura1, se choca com vozes da moda, Teresa, na Figura 2, se choca com vozes de saúde e bem-estar. A personagem da próxima ilustração aparece num cenário danoso de associação entre magreza, saúde e beleza.

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FIGURA 2: Ilustração retirada da seção “valentes” do livro de Rossetti

Fonte: ROSSETTI (2015).

O locutor abre a cena ilustrativa colocando, em polêmica, as ideias de elogio à magreza e de doença denominada de anorexia. O Enunciado crítica traz à tona vozes sociais que erigem na magreza, a qualquer custo, valores positivos. É importante ressaltar, nesse contexto, a polêmica velada direcionada ao mundo da moda, uma vez que muitos estilistas produzem roupas para modelos que precisam ter o corpo magérrimo, culminando muitas vezes em transtornos alimentares, tais como a anorexia e a bulimia. Normalmente, esses transtornos começam com uma preocupação excessiva com corpo, peso, contagem de calorias, exercícios etc. 110

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Além disso, o Enunciado crítica, ao abordar esse transtorno, centraliza a polêmica no ato de parabenizar o emagrecimento. Esse ato reflete e refrata valores sociais de vitória, de sacrifício e de destaque social. Há certo glamour em emagrecer, pois representa que o sujeito consegue vencer o corpo gordo, considerado muitas vezes “doente”. Nesse sentido, a crítica se direciona justamente a muitos discursos discriminatórios disfarçados de discursos em prol da saúde, revelando, através de Teresa, que nem sempre um corpo magro é sinônimo de saúde. Esse movimento no discurso relativiza as ideias de doença e saúde associadas aos corpos gordos e magros. Para Cardoso (2000), a valorização social do corpo magro seria um dos fatores sociais que mais contribui para o desenvolvimento dos transtornos alimentares. A autora destaca dois fatores que interferem na sociedade e que podem acabar acarretando os distúrbios alimentares: primeiramente seria a apologia à magreza, disseminada diariamente nos meios de comunicação (revistas em geral, programas de TV, Internet etc.); depois, o problema seria a maneira como o corpo e a imagem são construídos nas diferentes esferas sociais. Trata-se, concretamente, de um interesse pela forma como o corpo feminino é perspectivado como um objeto de consumo, capaz de ser manipulado e moldado, para parecer cada vez mais jovem, magro e supostamente saudável (CARDOSO, 2000, p. 3). Diferentes facetas dessa objetificação de um corpo magro saudável acontecem na ilustração em foco. Num jogo temporal de estar doente e estar recuperado, o locutor apresenta a Imagem feminina centralizada de uma Teresa magra que deixa em aberto a noção da recuperação em relação à anorexia. Uma leitura possível desta imagem de mulher é o projeto de dizer estar centrado no destaque do emagrecimento dito “saudável”. Teresa, representada magra e recuperada da anorexia, cria sentidos de vitória sobre o transtorno alimentar, emergindo, no discurso, vozes que salientam a Círculo

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necessidade de que o emagrecimento, quando necessário, deve ser algo que coloque a saúde em primeiro lugar em relação à estética. O bem-estar da personagem fica caracterizado no semblante de sorriso no traço do desenho. Esse choque de valores impresso no semblante da personagem que dialoga tensamente com o Enunciado crítica é apenas reflexo e refração do choque de valores midiáticos sobre emagrecimento e beleza na mídia. Se de um lado, há vozes de alerta sobre doenças como os diversos transtornos alimentares, por outro, há vozes midiáticas muitas vezes pedagógicas que ensinam um sem número de dietas e tipos de exercícios que publicizam uma perda de peso rápida e eficaz. O Enunciado refutação, nessa direção, é todo em polêmica aberta contra todas as vozes que levianamente associam magreza a sucesso e à superação do corpo gordo. Essa polêmica destaca em negrito os signos “elogiar” e “prejudicial”. Em tom de recado, o locutor mostra no discurso o quanto pode ser negativa essa associação. Essa refutação dialoga com diversas críticas a estes discursos que colocam o corpo magro como saudável e único como padrão de beleza. Além disso, destaco que a refutação se constrói de maneira refrangida na personagem: Teresa se recuperou da doença e passou a saber que elogiar a magreza alheia pode ser um perigo por incentivar cada vez mais o transtorno alimentar do sujeito elogiado. É interessante notar que o valor impregnado ao elogio, no contexto dessa ilustração, é totalmente negativo. Teresa parece representar não só quem sofre do transtorno, mas também aqueles que proferem elogios prejudiciais, complexificando a rede de discursos danosos. É possível compreender esse movimento como a tentativa de mostrar quão velados e profundos são esses valores que imbricam sujeitos que elogiam e que são elogiados por magreza.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta breve reflexão, procurei discutir como os Enunciados crítica e os Enunciados refutação se unem dialogicamente ao desenho que ilustra a Imagem feminina centralizada no quadro. Na fusão dos signos, fica claro o embate entre já-ditos que centralizam os sentidos (promovem os padrões) e a voz que propõe a descentralização e a aceitação do múltiplo. Esse movimento dialógico promove a captação do público feminino para se sentir representado, verticalizando o debate sobre a necessária quebra de padrões de beleza. Essa quebra acontece por meio de polêmicas abertas e veladas no discurso. As polêmicas abertas se constituíram a partir da menção clara às vozes no Enunciado crítica como na ilustração sobre a forma corporal e o padrão de listras horizontais. As vozes das revistas de moda foram evidentemente problematizadas pelo locutor. Certamente, tais vozes do universo da moda ganham intensa circulação na esfera midiática e encontram, nessa esfera, a rede de signos que garante a sedimentação desses valores. Assim, o embate de vozes, travado nas ilustrações em foco, é apenas reflexo e refração do embate travado em discursos advindos de diferentes esferas. Se por um lado, ainda temos a presença de vozes que rechaçam o corpo gordo e o associam à doença, por outro, há o surgimento de novos valores, nos quais se relativizam o poder de circulação do corpo gordo na sociedade. Nas ilustrações, em análise, essa relativização toma forma na polêmica travada pelo locutor ao se posicionar contra a padronização da roupa que magros e gordos podem usar e contra o suposto elogio que gordos recebem ao emagrecerem, uma vez que esse emagrecimento pode ter sido fruto de graves transtornos alimentares retroalimentados por uma danosa indústria fitness. Por fim, é interessante ressaltar que, no contexto das ilustrações em cena, inseridas no todo da obra de Rossetti, o mote desses Círculo

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discursos é a aceitação das singularidades femininas. A ideia da aceitação da diferença cria, no discurso proposto pela artista, reflexos e refrações de empoderamento feminino em variadas instâncias, ou seja, a ideia de aceitar-se empodera mulheres sobre o seu corpo e sobre a sua identidade, emergindo, na contemporaneidade, novos valores e novos padrões femininos de beleza.

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A IMAGEM DA MULHER NA CONSTRUÇÃO DO DISCURSO INTOLERANTE NAS REDES SOCIAIS

Luciane Alves Branco Martins1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS O presente capítulo2 tem como objetivo investigar como é construída discursivamente a imagem da mulher em discursos intolerantes nas redes sociais No referencial teórico, apresentam-se conceitos desenvolvidos pelo Círculo de Bakhtin que subsidiam a perspectiva dialógica do discurso. A reflexão sobre os conceitos de intolerância e de discursos intolerantes são fundamentadas nas ideias de Diana Barros, Roger-Pol Droit e Ruth Amossy. Desenvolveu-se, também, um estudo sobre o feminismo, com base

1 Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestra em Linguística pela PUCRS (Bolsa CAPES). Membro do grupo de pesquisa Tessitura: Vozes em (Dis)curso (CNPq). https://orcid.org/0000-0002-4203-022X. E-mail: luciane.martins75@edu.pucrs.br. 2 Este capítulo é resultante de pesquisa de dissertação de mestrado intitulada O discurso intolerante contra a mulher nas redes sociais: uma análise bakhtiniana e faz parte do projeto de pesquisa institucional Ethos e ato ético: o discurso intolerante em redes (sociais) de sentidos (PUCRS/CNPq), coordenado pela Profa. Dra. Maria da Glória Corrêa di Fanti. A dissertação foi realizada com apoio da CAPES – Código de Financiamento 001.” 116

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na concepção de Simone de Beauvoir, Marcia Tiburi e Michelle Perrot. A discriminação contra a mulher é um fato histórico na sociedade. A discussão sobre a desigualdade de gênero não é recente, pois, dos gregos até recentemente, se acreditava que as mulheres eram seres inferiores em relação aos homens. Segundo Silva (2010, p. 557), “com um lugar de menos destaque, os direitos e deveres das mulheres estavam reservados à criação dos filhos e o cuidado com o lar.” Nesse contexto de vida privada, as mulheres ficaram, durante muito tempo, fora dos relatos da sociedade, em um silenciamento profundo, como se não fizessem parte dela. As primeiras histórias, contadas por historiadores gregos ou romanos, relatam as guerras, os reinados e os homens ilustres, portanto, as mulheres eram invisíveis nessa época (PERROT, 2019, p. 17). Os relatos sobre as mulheres eram escassos, uma vez que eram pouco vistas ao longo da história. No século XVIII, o espaço para a mulher foi um pouco maior, porém, enfatizando os inconvenientes da mulher no poder, por exemplo, como no caso do reinado de Catarina de Médici (PERROT, 2019, p. 19). A partir do século XIX, começaram a aparecer mulheres, em sua maioria aristocratas, que tentavam ganhar a vida escrevendo biografias de mulheres, como rainhas, santas, cortesãs, entre outras. A partir do século XX, os movimentos feministas desencadearam importantes conquistas, muito recentes se comparadas com a história da humanidade. Como exemplo, no Brasil, o Estatuto da Mulher Casada, sancionado em 27 de agosto de 1962, o qual, entre outras coisas, instituiu que a mulher não precisaria mais da autorização do marido para trabalhar, receber herança e, em caso de separação, requerer a guarda dos filhos. Isso ocorria há pouco menos de 60 anos, ou seja, antes disso, a mulher precisava ser autorizada pelo marido para realizar algumas atividades que se relacionavam diretamente com a sua individualidade. Círculo

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Outras conquistas importantes, como o voto feminino, o direito de estudar, a licença-maternidade, a Lei Maria da Penha, a liberdade sexual, entre outros direitos, foram passos fundamentais para a mulher, conquistados a custo de muita luta, garra e, infelizmente, vidas perdidas. Porém, apesar dessas conquistas, ainda há muito o que ser feito para que se alcance a igualdade de gênero, como no campo profissional, por exemplo, pois “foi no trabalho que a mulher cobriu em grande parte distância que a separava do homem; só o trabalho pode assegurar-lhe uma liberdade concreta” (BEAUVOIR, 1980, p. 449). Esse breve contexto histórico não teve a pretensão de esgotar a história da mulher na sociedade, mas mostrar alguns momentos que marcaram sua trajetória. Percebe-se, assim, que as desigualdades entre mulheres e homens são históricas e que precisam ser estudadas para que se provoque uma mudança de comportamento e de atitude na sociedade. A seguir, é apresentado o referencial teórico que subsidia a reflexão.

A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DO DISCURSO Bakhtin e o Círculo observaram que a língua recebe influências do contexto social, da ideologia dominante e da luta de classes. Por isso, entendem a língua/linguagem como interação social e constitutivamente dialógica. O dialogismo, um dos conceitos mais importantes da obra do Círculo de Bakhtin, é o princípio constitutivo da linguagem e do discurso, sendo uma condição da produção de sentidos. Essa propriedade da linguagem pressupõe a inter-relação permanente entre os discursos e os sujeitos. A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma intera118

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ção viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com a primeira palavra num mundo virgem, ainda desacreditado, somente este Adão podia realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e histórico, isso não é possível [...] (BAKHTIN, 1998, p. 88).

O diálogo é sempre social, construído na interação, na qual os dizeres relacionam-se com os dizeres anteriores e os dizeres futuros. O dialogismo, por conseguinte, se configura pelo encontro com outras vozes, uma vez que o discurso é produzido a partir de outros discursos, outras vozes. É uma relação permanente entre vozes, já que o sujeito falante é o resultado das suas interações. Para o Círculo de Bakhtin, a palavra corresponde ao discurso. Nesse sentido, está estreitamente relacionada à interação, ao convívio social, já que nos caracterizamos como seres sociais em nossa construção como indivíduos. [...] o importante não é tanto a natureza sígnica da palavra, mas a sua onipresença social. Pois a palavra participa literalmente de toda a interação e de todo o contato entre as pessoas [...] Na palavra se realizam os inúmeros fios ideológicos que penetram todas as áreas da comunicação social (VOLÓCHINOV, 2017, p. 106).

As crenças e valores, desse modo, estão presentes em cada palavra dita no discurso exterior, uma vez que refletem o discurso interior ou o fluxo de pensamento. Sendo assim todas as nossas palavras têm uma marca ideológica: “A palavra é um produto vivo e ideológico, funcionando em qualquer situação social (ideológica), tornando-se um signo vivo” (STELLA, 2005, p. 178). O enunciado é a unidade mínima de comunicação discursiva, puramente social. Assim sendo, o locutor e o interlocutor têm papel ativo na situação comunicativa e na produção de sentidos dos enunciados. Conforme Bakhtin (2003, p. 22), o enunciado é Círculo

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a “unidade real da comunicação discursiva” e é individual, o que significa dizer que “pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve)”. Logo, o enunciado, além de ter um estilo individual, é também ideológico, já que exprime valorações. Pode-se entender que o uso da língua se efetua em forma de enunciados, que são dialógicos, uma vez que todo enunciado é uma resposta. A compreensão responsiva está presente no enunciado já que "toda compreensão responde, isto é, traduz o compreendido em um novo contexto, ou seja, em um contexto de uma possível resposta” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 179). Nesse sentido, um enunciado neutro é impossível, já que, na interação locutor e interlocutor, há um jogo de valorações, projetos enunciativos e direcionamentos do dizer. Outro conceito importante do Círculo de Bakhtin é o de signo ideológico, que se relaciona com a consciência, a ideologia e a linguagem. Tudo que é ideológico faz parte de uma realidade e remete a algo que se encontra no mundo exterior, cujo significado se constitui ao refletir e refratar outra realidade. Essa cadeia ideológica se estende entre as consciências individuais, unindo-as, pois o signo surge apenas no processo de interação entre consciências individuais. E a própria consciência individual está repleta de signos. Uma consciência só passa a existir como tal na medida em que é preenchida pelo conteúdo ideológico, isto é, pelos signos, portanto, apenas no processo de interação social (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95).

Na teoria bakhtiniana, o signo é ideológico por natureza e, ao fazer parte de uma realidade, “reflete e refrata uma outra realidade, sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 93). Enquanto o reflexo se relaciona com a descrição ou representação fiel da realidade, a refração é a interpretação de uma realidade, conforme as suas experiências, ou seja, a criação do novo. 120

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É sempre uma ideologia social, uma vez que é uma relação com outra parte da realidade. Pode-se dizer, então, que a refração é própria do signo ideológico. Na sociedade, em seus diferentes grupos, cada pessoa, conforme o seu conhecimento de mundo, suas experiências de vida, ressignificará determinado signo. Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de aparecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia. Donde o caráter refratário e deformador do signo ideológico nos limites da ideologia dominante (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 47)

Assim sendo, todo signo carrega um conteúdo ideológico. Ele possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo, refratando e refletindo outra realidade que não a sua, e, nessa interação, há uma valoração. A entonação expressiva é considerada uma parte constitutiva do enunciado, pois só há enunciado se houver expressividade: “Se uma palavra isolada é pronunciada com entonação expressiva, já não é uma palavra mas um enunciado acabado [...]” (BAKHTIN, 2016, p. 49). Assim, uma mesma palavra, com diferentes entonações, incorpora diferentes sentidos. Ademais, a entonação revela o ponto de vista do locutor, na relação com o outro e com o discurso do outro, o que ele deseja atribuir ao objeto do dizer e ao outro. A entonação exprime, também, as posições ideológicas e as relações com o contexto extraverbal, pois é nela que a valoração encontra sua expressão mais pura. Círculo

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Não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social. É por isso que todos os índices de valor com características ideológicas, ainda que realizados pela voz dos indivíduos (por exemplo, na palavra) ou, de modo mais geral, por um organismo individual, constituem índices sociais de valor, com pretensões ao consenso social, e apenas em nome deste consenso é que eles se exteriorizam no material ideológico (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 44).

Nessa perspectiva, no ato da interação oral ou escrita, os sujeitos mobilizam determinados gêneros do discurso. Essa mobilização relaciona-se à necessidade de comunicação dos falantes, portanto, os gêneros do discurso são determinados pela interação discursiva e estão presentes em toda a atividade comunicativa humana, por meio de enunciados. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo, não só por seu conteúdo (temático) e pelo seu estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional [...] Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2003, p. 261-262).

A partir da reflexão de importantes conceitos da teoria dialógica do discurso, inicia-se um breve estudo sobre a intolerância contra a mulher.

A INTOLERÂNCIA CONTRA A MULHER A intolerância e o preconceito estão enraizados na sociedade e há exemplos diários disso: discriminação contra a mulher, os idosos, as pessoas com necessidades especiais; a intolerância por orientação sexual, raça, classe social, crença religiosa, ou não a ter, 122

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como no caso das pessoas adeptas ao Ateísmo e demais manifestações de não crença etc. (FARAH, 2017). Assim sendo, a postura do preconceituoso é de superioridade, completamente intolerante a tudo o que lhe é diferente. O intolerante nega o diferente, mas há muito dele nesse outro. “O inferno são os outros” mostra isso, em um enunciado dito por uma das personagens da peça de teatro Huis clos (Entre quatro paredes, na tradução brasileira), do francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), escrita em 1945. Como não consegue dialogar com esse outro, é mais fácil desprezá-lo, pois ele se tornou uma espécie de “inferno particular”, já que não sabe lidar com essa diferença. O que a tolerância e a intolerância têm a dizer sobre o diferente? O filósofo francês Roger-Pol Droit, em seu livro Tolerância, disserta sobre essa questão: Unificar tudo é rigorosamente impossível. Aliás, nem seria desejável. Portanto, sempre discordaremos em algum aspecto, essa é a realidade mais plausível. Mas, se for o caso, se não conseguimos chegar a um acordo, então precisamos, de toda maneira, nos tornar tolerantes! Precisamos aceitar que os outros, mesmo que às vezes pareçam aberrantes para nós, existem como são e não como gostaríamos que fossem... (DROIT, 2017, p. 87).

Na relação entre o “eu” e o “outro” e considerando os movimentos de empatia e exotopia, desenvolvidos por Bakhtin (2011), percebe-se que o sujeito intolerante se centra sobre si mesmo e vê o outro de fora, exotopicamente, sem se aproximar dele via empatia. Tanto a empatia quanto a exotopia são imprescindíveis nas relações sociais, já que somente vou (re)conhecer o outro se me aproximar dele e, simultaneamente, me afastar para vê-lo de fora, a partir do meu mundo. É pela relação de alteridade que o “eu” e o “outro” se reconhecem e são reconhecidos. Nesse contexto, o machismo é um tipo de preconceito que exalta a masculinidade, que oprime e que está introjetado na sociedade, Círculo

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por isso, em determinados grupos, seja tão difícil modificá-lo. “O machismo é um modo de ser que privilegia os ‘machos’ enquanto subestima todos os demais” (TIBURI, 2019, p. 62-63). Alguns preconceitos são tão fortemente criados e difundidos na sociedade que começam a fazer parte da cultura do povo, tornando-se “verdades absolutas”. Assim são construídos os estereótipos, que passam de geração em geração, se fortalecendo no modo de pensar e sentir de um grupo social (SILVA, 2010, p. 563). Segundo Amossy e Pierrot (2011, p. 50), “os estereótipos são imagens pré-concebidas que medeiam nossa relação com a realidade.” O machismo e a misoginia também aparecem nos estereótipos quando o assunto são os gêneros femininos e masculinos. Muitos estereótipos são produzidos rotineiramente nos meios de comunicação (em propagandas de produtos de limpeza, nas quais aparecem somente mulheres) ou em frases como “isso é trabalho de homem”, “lugar de mulher é na cozinha”, entre outros exemplos. Nos discursos intolerantes e preconceituosos, o locutor projeta o seu interlocutor, direciona seu discurso para os sujeitos “considerados como maus cumpridores de certos contratos sociais” (BARROS, 2016, p. 8). Com a Internet, houve uma intensificação do preconceito contra a mulher, a qual se tornou um alvo desses discursos intolerantes, que a desqualificam, defendendo a superioridade masculina. Esse contexto é abordado no estudo sobre o feminismo apresentado a seguir. O feminismo é uma ideologia e um movimento social que busca a igualdade de gênero tanto nas oportunidades, quanto nos direitos e que se fortaleceu a partir do início do século XIX. O movimento feminista, apesar de seus avanços como o direito ao voto, a inserção da mulher no mercado de trabalho, entre outros, ainda tem muitos desafios para conquistar. Hoje, graças às conquistas do feminismo, torna-se dia a dia mais normal encorajá-la [a mulher] a estudar, a praticar esporte; mas perdoam-lhe mais 124

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facilmente do que ao menino o fato de fracassar; tornam-lhe mais difícil o êxito, exigindo dela outro tipo de realização: querem, pelo menos, que ela seja também uma mulher, que não perca sua feminilidade (BEAUVOIR, 1980, p. 255).

Feminismo e machismo não podem ser considerados pensamentos contrários. O feminismo pode ser definido “como o desejo por democracia radical voltada à luta por direitos daqueles que padecem sob injustiças que foram armadas sistematicamente pelo patriarcado” (TIBURI, 2015, p. 12). O machismo defende a superioridade masculina, a misoginia, por meio de pensamentos, atitudes, fatos e costumes discriminatórios em relação às mulheres e provoca números alarmantes de casos de violência contra a mulher. Algumas condutas são acessíveis aos homens, porém, proibidas às mulheres, ou “não aconselhadas”. Essas condutas são construídas ao longo da história e são constantemente legitimadas nas diferentes esferas da atividade humana, como religião, política, arte etc. “A humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo. [...] O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (BEAUVOIR, 1980, p. 3). Quantas vezes já não se soube de casos em que o homem decide a roupa que a mulher usará, a cor do batom, do esmalte, o tipo de sapato e o penteado. Consentido por muitas mulheres, pelos mais diversos motivos, o homem está no comando das operações e, na sua visão preconceituosa, deixa claro o exercício pleno do autoritarismo. Há muitas outras maneiras mais sutis mediante as quais os homens tiram proveito da alteridade da mulher. Para todos os que sofrem de complexo de inferioridade, há nisso um linimento milagroso: ninguém é mais arrogante em relação às mulheres,

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mais agressivo ou desdenhoso do que o homem que duvida de sua virilidade (BEAUVOIR, 1980, p. 8).

Muitos homens traduzem essa insegurança em violência contra a mulher, que se expressa de várias formas. Seja violência física ou emocional, ela deixa marcas irreversíveis no corpo e na alma da mulher. Portanto, o conservadorismo patriarcal oprime a mulher e impede a transformação social necessária para a igualdade de gênero.

A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DISCURSIVA DA MULHER EM DISCURSOS INTOLERANTES As redes sociais têm um potencial de mobilização muito grande, pois qualquer evento marcado pelo ambiente virtual pode se tornar imenso. Esse alcance também pode ter o efeito contrário, já que notícias falsas podem ter um número enorme de compartilhamentos. Não faltam exemplos que comprovam o efeito avassalador dessas notícias, como o da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, que morreu após ter sido espancada por um grupo de moradores do Guarujá, no litoral de São Paulo, em 2014. Em virtude de informações veiculadas em uma rede social, com um retrato falado de uma possível sequestradora de crianças para rituais de magia negra, a dona de casa foi confundida com a criminosa e linchada por moradores dessa cidade. Os discursos intolerantes são, em relação às paixões construídas nos discursos (...), fortemente passionais, e seus sujeitos são, assim, sempre sujeitos apaixonados. Predominam, nesses discursos, dois tipos de paixões – as paixões ditas malevolentes (antipatia, ódio, raiva, xenofobia etc.) ou de querer fazer mal ao sujeito que não cumpriu os acordos sociais acima mencionados, e as paixões do medo do “diferente” e dos danos que ele pode causar (BARROS, 2011, p. 7).

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Os discursos intolerantes reforçam o preconceito presente na sociedade e representam uma parcela de pessoas que, a partir de uma argumentação emocional, desconsideram o outro, que é diferente. A emoção prevalece nesses discursos e repercutem interlocutores que se identificam com a posição ideológica do interlocutor. Quanto aos procedimentos metodológicos, no que tange à coleta, realizou-se uma pesquisa em três redes sociais, Facebook, Twitter e Instagram, para fazer um levantamento dos discursos intolerantes contra a mulher, considerando que, na materialização de mensagens, há a propagação de discursos que desqualificam a mulher e são curtidos, comentados e compartilhados nessas redes sociais. Para delimitar essa coleta, foram utilizados os termos “machismo” e “machista” devido às inúmeras postagens de cunho machista, que defendem seu posicionamento. A partir dessa delimitação, foram encontradas, no Facebook, cerca de 70 comunidades brasileiras, que têm no título os termos mencionados. No Instagram, com os termos delimitados, encontrou-se em torno de 40 perfis brasileiros. No Twitter, foram encontrados cerca de 30 perfis brasileiros, nos quais os termos delimitados apareciam em seu título. A coleta foi realizada em postagens publicadas no período entre janeiro de 2014 e agosto de 2019 nas referidas redes sociais. Cabe ressaltar que, ao delimitar os critérios para a seleção do material, no universo de todas as postagens pesquisadas, a data dessas postagens não foi relevante para a sua escolha. No que diz respeito à seleção do material, foram escolhidas três postagens, uma de cada rede social, considerando os seguintes critérios: a) pesquisa nas redes sociais dos termos “machismo” e “machista” em comunidades ou perfis brasileiros; b) postagens cuja temática fosse a desqualificação da mulher a partir do uso de tons depreciativos a sua imagem. Dessa forma, foram selecionados os seguintes discursos: um post da comunidade “Prints Machistas”, Círculo

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do Facebook (2014), um anúncio do produto de limpeza Mr. Músculo, veiculado em seu perfil no Twitter (2015) e um post do perfil “Machista_Sincero”, do Instagram (2019).

FACEBOOK FIGURA 1 - Print Machista do Facebook

Fonte: NINGUÉM (2014).

A postagem selecionada pertence à comunidade Prints Machistas, que foi criada em 30 de março de 2013, tendo atualmente 274 seguidores. O conteúdo das postagens dessa comunidade é totalitariamente de cunho machista, nas quais a mulher é vítima de discriminação e de intolerância. O contexto dessa postagem versa sobre o visual de uma mulher que está vestida com um uniforme, avental e touca. Seus cabelos estão arrumados, ainda que pouco visíveis, e ela usa brincos. Seu rosto apresenta uma expressão suave, não aparentando cansaço ou descontentamento, já que está lavando em uma pia cheia de 128

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louça, e seu corpo é magro, considerado elegante para os padrões hegemônicos. Esse “retrato” auxilia a naturalizar uma imagem de mulher feliz dentro de casa, mulher que segue os padrões de uma sociedade patriarcal. A mulher que se sente protegida em casa e que usa roupas consideradas adequadas, ou seja, que estão dentro dos padrões estabelecidos pelo patriarcado. O discurso do locutor relaciona o fato de que a mulher que está dentro de casa, ocupada com os afazeres domésticos, não corre o risco de ser estuprada. Essa relação de tom preconceituoso do locutor, que deprecia e inferioriza a mulher, sugere que aquela que está na rua, ocupando-se com outros afazeres, pode ser estuprada. A entonação “é especialmente sensível em relação a todas as oscilações do ambiente social que circunda o falante" (VOLÓCHINOV, 2019, p. 123). No enunciado “ninguém é estuprada em casa lavando a louça”, acentua-se, também, a legitimação da cultura do estupro. Nesse enunciado, o subentendido, que é “o horizonte espacial e semântico comum dos falantes” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 119), se estabelece uma vez que quem está em casa não é estuprada, então, há lugares em que o estupro é possível e justificado. Segundo o locutor do discurso da postagem, a casa é o refúgio da mulher, sendo que ela está protegida pelas paredes do lar, por uma (pre) suposta figura masculina que pode ser inferida como marido, já que na sociedade o casamento de uma mulher com um homem é algo esperado, idealizado e normatizado, e ela também está cuidando dos filhos e servindo a família Há uma banalização do estupro, sendo que se percebe a misoginia nos discursos que culpabilizam as vítimas. A cultura do estupro se estabelece a partir da aceitação do estupro como punição social. Além disso, ideias de que lugar de mulher é longe de lugares públicos ainda são frequentes (KOLLONTAI, 2016).

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Em contraponto, há o interlocutor que refuta o discurso de tom machista do locutor da postagem analisada. Esse interlocutor acredita que a mulher pode cuidar da casa e dos filhos e que, além dessas tarefas, ela também pode e deve trabalhar, estudar, ir à academia, sair para se divertir, ou seja, o ambiente doméstico não deve ser o único espaço da mulher, pois, dessa forma, ela é privada de sua liberdade, é impedida de vivenciar sua individualidade. O signo ideológico “casa” se desdobra em duas refrações possíveis: casa como um ambiente seguro, sem risco de assédio onde a mulher se sente protegida e deve estar; e casa como lugar contrário à rua que onde o homem pode estar, é o lugar de libertinagem, onde tudo pode ser feito. Esse segundo lugar não é permitido à mulher. Na relação do locutor e a mulher, vítima da intolerância, percebe-se que uma há uma predominância de exotopia do locutor sobre a mulher, ou seja, ele a vê distanciadamente, apenas de um lado, não a vê em seu todo, pois não tem empatia o suficiente para conhecê-la “integralmente”. O discurso do locutor e do interlocutor precisa um do outro. Nessa interdependência é que estabelecem uma compreensão dialógica e responsiva, pois, segundo Di Fanti (2015, p. 421), Cada um, ocupando singularmente um lugar num tempo definido, pode ver no outro o que ele sozinho não consegue ver, pois são diferenciados horizontes de valor. Percebe-se assim uma relação de interdependência entre o eu e o outro, necessária para a constituição do sujeito, do discurso e do sentido.

Os tons valorativos que compõem o enunciado indicam os estereótipos de uma cultura machista e sexista, na qual a mulher é oprimida. Nota-se que o conteúdo dessa postagem é de cunho desrespeitoso em relação às mulheres. Há, claramente, uma discriminação de gênero, no qual a mulher sempre é desfavorecida.

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TWITTER FIGURA 2 – Print do Mr. Músculo no Twitter

Fonte: KAUWERTZ (2016).

A postagem escolhida pertence ao perfil da marca de produtos de limpeza “Mr. Músculo”, tendo sido publicada no dia 28 de janeiro de 2015, na rede social Twitter. O conteúdo das postagens desse perfil, criado em julho de 2014, versa sobre a linha de produtos de limpeza. O contexto da publicação apresenta a mulher como uma dona de casa dedicada, mantendo o lar limpo e depois, quando sobrar tempo, ela pode começar a pensar em si mesma. A prioridade deve ser a manutenção do lar limpo, pois seus “projetinhos” pessoais devem ficar em segundo plano. Círculo

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Na parte visual, o anúncio apresenta uma mulher sentada no chão com as pernas tramadas, com uma mão no queixo e outra segurando uma xícara, magra, cabelos presos, aparência serena, tranquila, elegante, sonhadora, bonita para os padrões hegemônicos, veste uma camisa e uma calça claras. A casa aparenta estar limpa e há produtos de limpeza no anúncio. Na parte verbal, observa-se que a palavra “casa”, como signo ideológico, reflete e refrata valorações diferentes: reflete a moradia e refrata o compromisso da mulher a partir de uma visão conservadora. “[...] a mudança da significação sempre é uma reavaliação: a transferência da palavra de um contexto valorativo para outro. A palavra ou é elevada a uma potência superior, ou seja, é degradada a uma interior” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 237). O uso dos diminutivos “limpinha” e “projetinho” indica a acentuação valorativa das palavras. Na sociedade atual, um projeto pessoal envolve questões que se relacionam com a sua individualidade, como estudar, trabalhar, cuidar de sua saúde, porém, assim como o discurso ora analisado, a mulher é sempre vista como mãe, dona de casa e esposa antes de ser mulher. Destaca-se, também, a questão temporal no discurso: antes, a mulher deve limpar a casa e depois pensar em si. As dimensões visual e verbal são indissociáveis, como se observa no próprio olhar sonhador da mulher associado à palavra “sonhou”, bem como a aparência da mulher de dever cumprido associada ao fato de que a “casa está limpinha". Ao priorizar a limpeza da casa em relação à vida pessoal da mulher, o locutor desse discurso machista, primeiramente, vale-se mais uma vez do estereótipo da mulher “do lar”, aquela que “só cuida de casa e não faz mais nada”. Esse discurso ainda se perpetua, pois é comum ouvir que o homem que trabalha fora tem motivos para se sentir cansado, mas a mulher, que “só fica em casa”, em uma incessante jornada de afazeres domésticos, reclama de cansaço sem razão. 132

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Na expressão “projetinho pessoal”, percebe-se uma valoração voltada para uma forma de depreciação do projeto pessoal da mulher, como sendo irrelevante, já que cuidar da casa seria mais importante. Há uma entonação valorativa, também, no enunciado “músculos à obra!”. Na visão do locutor de tom machista, a mulher passaria a usar os músculos somente para começar o seu projeto pessoal. Para a limpeza da casa, o produto “Mr. Músculo” a teria ajudado. Mais uma vez, a capacidade da mulher é desconsiderada. O nome do produto, “Mr. Músculo”, associa-se diretamente ao masculino. O produto é todo figurativo como um homem musculoso que resolve todos os problemas de casa. A força é um atributo sempre masculino. Nesse sentido, a mulher é auxiliada por esse produto, representado pela força masculina, pois, na visão do locutor, é incapaz de realizar essa tarefa sem a ajuda do produto. O “músculo” é associado ao masculino.

INSTAGRAM FIGURA 3 – Print Machista Sincero do Instagram

Fonte: ACHO (2019).

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A postagem ora analisada pertence ao perfil Machista Sincero da rede social Instagram, e foi publicada em 22 de junho de 2019. O contexto da publicação versa sobre a polêmica do uso da camisa verde e amarela pela seleção brasileira feminina de futebol, na qual constam as cinco estrelas alusivas aos cinco campeonatos mundiais conquistados pela seleção masculina. Desde que o uniforme da seleção feminina foi divulgado, devido à sua participação na Copa do Mundo de Futebol Feminino 2019, na França, esse debate se instaurou nas redes sociais. Nessa postagem, aparecem a jogadora Marta, da seleção brasileira feminina, e o jogador Neymar, da seleção masculina de futebol. Na parte verbal, é publicado o seguinte enunciado “Acho super errado as meninas usarem a camisa com as 5 estelas sendo que ganhou as copas foram os homens. As mulheres só nos envergonham com esse futebolzinho de quinta, não é atoa que nunca ganharam nada e não há renovação nessa selemerda tanto que a Formiga tem 41 anos kkkkkkkk ou seja só tem a piorar pq além da Marta e Cristiane que já são velhas não tem mais ninguém de destaque nessa seleçãozinha. Mulher deveria voltar pro seu habitat natural que é lavar passar e cozinhar.” No enunciado do Instagram “acho super errado as meninas usarem a camisa com as 5 estrelas sendo que ganhou as copas foram os homens. [...]”, o locutor revela sua insatisfação pelo uso da camisa da seleção brasileira pelas jogadoras da seleção feminina. No ponto de vista dele, o futebol feminino é inferior ao masculino. Essa insatisfação segue em “[...] as mulheres só nos envergonham com esse futebolzinho de quinta, não é atoa que nunca ganharam nada [...]”. O uso do diminutivo na palavra “futebolzinho”, de forma pejorativa, enfatiza a perspectiva negativa do locutor em relação à seleção brasileira feminina de futebol. Na mesma postagem, o discurso preconceituoso continua: “[...] e não há renovação nessa selemerda tanto que a formiga tem 41 anos kkkkkkkkkk ou seja só tem a piorar pq além da Marta e 134

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Cristiane que já são velhas não tem mais ninguém de destaque nessa seleçaozinha. [...]”. Nesse enunciado, o locutor utiliza a junção de duas palavras ("seleção" e "merda") para inferiorizar a seleção feminina. O signo “merda” refrata o uso pejorativo dessa palavra, como algo desprezível, insignificante, ruim. Segue em seu discurso de menosprezo à seleção feminina ao assinalar, com veemência, a idade da jogadora Formiga, utilizando a expressão “KKKKKKKK”, que significa risos nos discursos da Internet. Enfatiza, novamente, a questão da idade, exemplificando com as jogadoras Marta e Cristiane, pois, segundo esse locutor, são as jogadoras de destaque, porém, já estão velhas. O uso do diminutivo na palavra “seleçãozinha” contribui para a carga negativa atribuída à seleção feminina. Assim como nas postagens do Facebook e Twitter, a habitual concepção de que a “[...] mulher deveria voltar para seu habitat natural que é limpar, passar e cozinhar” finaliza o enunciado do Instagram. Para esse locutor de olhar machista, a mulher não tem aptidão ou talento para ser jogadora de futebol, mas somente para o ambiente doméstico. Essa ideia recorrente de que a função da mulher é ligada aos afazeres domésticos remete à situação de comunicação, que “constitui assim o quadro de referência ao qual se reportam os indivíduos de uma comunidade social quando iniciam uma comunicação” (CHARAUDEAU, 2013, p. 59). Para o discurso de tom machista, esse é o habitat da mulher. A comunicação na Internet possui, segundo Barros (2014, p. 4), entre outros traços, a potencialização da mensagem e o alargamento da comunicação. Qualquer postagem pode “provocar ondas enormes de preconceito e intolerância, verdadeiros tsunamis.” De forma explícita, em seu perfil ou comunidade, ou implícita, por meio de perfis fakes (falsos), o locutor das redes sociais expressa a sua opinião de forma clara, não deixando dúvidas sobre o seu posicionamento.

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A camisa da seleção brasileira é um signo ideológico de nosso país, já que “tudo que é ideológico [...] é um signo. Onde não há signo também não há ideologia” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 91). Para os apaixonados por futebol, a camisa verde e amarela é quase um cartão de visitas, pois está associada às conquistas dos campeonatos mundiais. Assim sendo, para o locutor da postagem em análise, as mulheres não estão à altura de vestirem essa camisa, que representa as conquistas de um esporte que, até bem pouco tempo, era um “privilégio” masculino. Cabe ressaltar, também, como os jogadores se apresentam nessa imagem: o jogador Neymar sorrindo e a jogadora Marta com uma expressão mais tensa. Nesse contexto, o que se percebe é o preconceito contra a mulher, que está presente, inclusive, na escolha da foto, para a desqualificação da jogadora. Ambos os atletas são de origem negra, mas essa escolha marca, mais uma vez, o estigma da mulher negra que, em uma sociedade retrógrada, está em posição de inferioridade ao homem também negro e isso precisa acabar. “Ao promover uma multiplicidade de vozes, o que se quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se pretende universal” (RIBEIRO, 2017, p. 70). Assim sendo, o discurso de tom machista carrega consigo toda a carga de preconceito e intolerância contra a mulher, representativo de parcela da sociedade que acredita na superioridade masculina. Para eles, a mulher é somente capaz para servir, procriar e ouvir, já que, muitas vezes, são interrompidas quando estão falando, pois o que dizem não é considerado importante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS OAs três postagens analisadas versam sobre o mesmo tópico: a discriminação da mulher. Tal discriminação, no entanto, se particulariza em cada enunciado verbo-visual, fazendo emergir temas 136

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únicos via acentos de valor. No Facebook, o tema está associado à cultura do estupro, em que a mulher não tem direito de transitar na rua, espaço em que o estupro é legitimado, mas sim de voltar-se para as tarefas do lar, vestindo roupas adequadas. No Twitter, o tema refere-se à prioridade dada aos cuidados da casa em detrimento à vida pessoal da mulher. No Instagram, o tema é a discriminação da mulher no futebol, com ênfase na mulher negra. No conjunto dos enunciados estudados, aparecem fotografias de mulheres que, no engendramento das verbo-visualidades, apresentam acentos valorativos que orientam para a construção do discurso intolerante. Tanto no post do Facebook quanto no do Twitter, a mulher representada imageticamente é branca e magra e reitera os padrões de beleza ditados pela sociedade patriarcal. Já no Instagram, a jogadora de futebol Marta é negra e foge aos padrões de beleza prescritos pelos padrões hegemônicos. Nas duas primeiras postagens, as mulheres “belas” são atreladas aos afazeres domésticos: lavar a louça e limpar a casa. Na última postagem, a mulher é uma profissional, jogadora de futebol, que atua numa área predominantemente masculina. Tais acentos de valor apontam para as posições assumidas pelo locutor, que valoriza a mulher submissa ao lar e aos padrões tradicionais da sociedade e reprova a mulher que trabalha em considerados domínios masculinos. Em virtude das análises das postagens das redes sociais Facebook, Twitter e Instagram escolhidas para este trabalho, entende-se que a imagem de mulher que circula nas redes sociais analisadas é a de uma mulher que tem como principal função ser dona de casa, mãe e esposa e que deve permanecer em seu lar, pois, do contrário, estaria em perigo fora do ambiente doméstico. Essa mulher também tem sua individualidade menosprezada, uma vez que somente após limpar a casa podem pensar em seus projetos pessoais. Além disso, há a tensão de uma profissional do futebol, que não teria (para o locutor) aptidão para exercer essa função. Círculo

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O preconceito e a intolerância contra a mulher estão disseminados na sociedade dos “cidadãos de bem”, na cultura machista que trata a mulher como um objeto, que a discrimina nas oportunidades de trabalho, nas faixas salariais, nos altos cargos. As três postagens investigadas nesse trabalho mostram que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que a mulher possa decidir sobre sua vida, com o respeito que ela merece.

REFERÊNCIAS ACHO super errado as meninas usarem a camisa com as 5 estrelas […]. 22 jun. 2019. Instagram: @machista_sincero. Disponível em: https://www. instagram.com/machista_sincero/?hl=pt-br. Acesso em: 25 abr. 2020. AMOSSY, R.; PIERROT, A. Estereotipos y cliches. Buenos Aires: Edeuba, 2010.

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TENSÕES DISCURSIVAS ENTRE O GOVERNO FEDERAL E A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR

Norberto Niclotti Catuci1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Este capítulo apresenta reflexões iniciais referentes à dissertação de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). A dissertação investiga a tensa relação entre a Base Comum Curricular e as diretrizes do atual governo federal. O Brasil é um país constituído por uma imensa diversidade cultural, proveniente das inúmeras etnias, regionalismos, crenças e religiões de seu povo. Isso não significa, contudo, que vivamos em uma sociedade livre de preconceitos. Na verdade, crimes de ódio são frequentemente relatados. Nossa maior virtude e nossos grandes desafios estão, justamente, nessa diversidade. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o Brasil é o 5º país em mortes violentas de mulheres no mundo. Também, o país registra uma morte por homofobia a cada 23 horas, de acordo com o Grupo Gay da Bahia, 1 Mestrando em Linguística pela PUCRS, com bolsa do CNPq. Membro do grupo de pesquisa Tessitura: Vozes em (Dis)curso. https://orcid.org/0000-0002-2263-6208. E-mail: betocatuci@gmail.com. Círculo

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e somente o racismo é responsável por 71% dos assassinatos, conforme o Atlas da Violência 2018. Em janeiro de 2018, a Secretaria Especial de Direitos Humanos apresentou um relatório com dados sobre as denúncias realizadas em 2015. Com esse levantamento, constatou-se que houve um crescimento de 633% das denúncias de xenofobia no Brasil em comparação com o ano anterior. A regularidade com que casos de comportamentos xenófobos são noticiados reforçam tais números. Em julho de 2018, por exemplo, passou a circular na Internet um vídeo que mostra um refugiado sírio sendo agredido pela Guarda Civil Metropolitana de São Paulo. Comportamentos intolerantes sofrem um processo de normalização social quando legitimadas pela disseminação de enunciados permeados por tons de ódio, tão facilmente difundidos nas redes sociais. O enunciado é visto sempre como concreto, um evento social e não pode ser reduzido a abstrações, sendo considerado, em Marxismo e Filosofia da linguagem (BAKHTIN, 1990) um ato de fala. Este fenômeno ocorre, pois a linguagem é constituída por ideologias interindividuais, as quais promovem atos concretos, por vezes, na forma de agressões verbais ou físicas. Um crime de ódio possui motivação ideológica, discursiva, diferentemente dos chamados crimes comuns, e requer políticas públicas educativas para que seja coibido. Segundo a Dra. Guisleine Trigo Silveira, coordenadora da Coordenadoria de Gestão da Educação Básica da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo e consultora da construção da Base Nacional Comum Curricular, “em um país como o Brasil, marcado por acentuada diversidade cultural e profundas desigualdades sociais, [promover inclusão e superar desigualdades] é um compromisso fundamental e um grande desafio” (BRASIL, 2018). Dessa forma, é necessária uma ampla discussão acerca da valorização da diversidade cultural na sociedade, o que engloba, 142

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de forma efetiva, o âmbito escolar. Contudo, esse entendimento está longe de ser um consenso no país. Desde as eleições de 2018, observou-se crescente discussão acerca do papel da educação. Projetos como o Escola sem Partido, inclusive, visam a uma suposta neutralidade ideológica por parte dos professores. Esse debate, no entanto, foi dominado por locutores e interlocutores com um posicionamento político mais conservador em relação aos costumes e (neo)liberal em relação ao sistema econômico, postulando um caráter tecnicista para a educação escolar, formadora apenas de mão de obra para o mercado de trabalho, sem a promoção de valores humanos e consciência crítica, social. Para que construamos, realmente, um país, uma sociedade com mais democracia, precisamos de uma escola que amplie os horizontes e trabalhe as relações interpessoais. Nós temos crianças que têm identidades diferenciadas, ou que têm deficiências, ou uma origem racial, uma origem étnica diferente, ou problemas com a sua identidade sexual. Todos esses problemas identitários estão presentes quando a gente está falando na escola inclusiva e, sobretudo, mais tolerante, que saiba conviver com as diferenças. Coisa que tem sido difícil, muitas vezes, no Brasil. Viver junto com os diferentes. Nós temos que educar as nossas crianças para isso. Porque o mundo está ficando assim (IGUALDADE, 2018).

Seja no âmbito profissional, acadêmico ou cotidiano, precisamos aprender que para bem viver é preciso saber conviver com pessoas de diferentes etnias, religiões, sexualidades, entre outras questões, às quais, muitas vezes, as crianças têm acesso limitado apenas nos seus lares. O processo de educação ocorre nos lares, na sociedade em geral e nas instituições escolares. Como uma referência escolar, surge o documento tratado na próxima seção.

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A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR: UMA REFERÊNCIA Considerando o tamanho e a diversidade do Brasil, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) traz um apanhado geral dos objetivos indispensáveis a serem alcançados e do que precisa ser aprendido nas instituições de ensino do país. Documento de caráter normativo, a BNCC define as aprendizagens: define as aprendizagens essenciais a serem desenvolvidas por todos os alunos da Educação Básica (ensino infantil, fundamental e médio). Isso se dá perante o que preconizam o Plano Nacional de Educação (PNE) e o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996). Tais documentos asseguram os direitos de aprendizagem e desenvolvimento de todos os cidadãos, “orientando-se pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, 2018, p. 21). A BNCC serve de referência obrigatória para a formulação dos currículos e propostas pedagógicas das redes públicas estaduais e municipais, e não é obrigatória para a rede privada. Ela também propõe o alinhamento de políticas e ações para a formação de professores e “critérios para a oferta de infraestrutura adequada para o pleno desenvolvimento da educação” (BRASIL, 2018, p. 19). Faz-se relevante mencionar, contudo, que a BNCC não é currículo. Os currículos devem adequar as proposições da BNCC à realidade local, considerando a autonomia dos sistemas ou das redes de ensino e das instituições escolares, como também o contexto e as características dos alunos (BRASIL, 2018 p. 16). Cada instituição de ensino deve elaborar seus próprios currículos e metodologias, tendo como objetivo básico, atender aos princípios descritos no documento. Alguns dos objetivos que os currículos baseados na BNCC devem buscar são: a superação da “fragmentação das políticas educacionais e o aprofundamento da 144

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colaboração entre as diferentes esferas do governo, primando pela qualidade da educação” (BRASIL, 2018, p. 17). Assim, para além da garantia de acesso e permanência na escola, é necessário que sistemas, redes e escolas garantam um patamar comum de aprendizagens a todos os estudantes, tarefa para a qual a BNCC é instrumento fundamental (BRASIL, 2018, p. 8).

Para tal, o documento aborda o que chama de competências gerais, que subsidiam os direitos e fomentam o desenvolvimento da aprendizagem integral2. No entendimento presente na BNCC, toda educação é integral, pois atingimos o aprendiz no todo, não só no intelectual. O professor, muitas vezes, está muito mais preso à questão intelectual, à questão do desenvolvimento cognitivo, do que às outras coisas. A ênfase na educação integral é para lembrar que todo ser humano, na situação de educação, é um ser humano completo (IGUALDADE, 2018).

Educadores precisam estar atentos para a responsabilidade que carregam, a qual vai além da simples transmissão de conteúdos disciplinares que não abordam os temas transversais; entendimento ainda comum na nossa sociedade na qual proliferam projetos como o Escola sem Partido e outras formas de censura. O mundo inteiro vem seguindo um caminho fundamentado no direito imensurável da aprendizagem por meio da promoção da cidadania, o qual não é apenas um conceito jurídico, mas político, social e pedagógico. A pura repetição de regras gramaticais nas aulas de língua, por exemplo, vistas em frases descontextualizadas e sem sujeitos, está em desacordo com a proposta da BNCC. A compreensão de que 2 O termo integral é utilizado, na BNCC, para se referir a uma educação ampla, voltada para a vida. Apesar disso, a BNCC também promove acréscimo no número de horas-aula. Círculo

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o papel da escola é de promover o amplo letramento, mobilizando habilidades para desenvolver competências dos alunos para desempenhar atividades das mais variadas e significativas para além da escola está explicitado na BNCC em oposição ao “conteudismo” do passado. Paulo Freire (1978, p. 70), dialoga muito bem com essa visão: “Não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.”. Na concepção bakhtiniana, inclusive, a língua só existe em função do uso que os locutores e interlocutores fazem dela em situações de comunicação. O ensinar, o aprender e o empregar a linguagem passam necessariamente pelo sujeito, o agente das relações sociais e o responsável pela composição e pelo estilo dos discursos. Além disso, um enunciado sempre é modulado pelo falante para o contexto social, histórico, cultural e ideológico: “Caso contrário, ele não será compreendido”, explica a linguista Beth Brait, estudiosa de Bakhtin, em entrevista concedida ao blog Nova Escola, ainda em 2009 (PINHEIRO, 2009).

UM COMPROMISSO COM A DIVERSIDADE É neste entendimento de competências como afirmativas de valores e estimuladoras de “ações que contribuem para a transformação da sociedade, tornando-a mais humana, socialmente justa e, também, voltada para a preservação da natureza” (BRASIL, 2018) que ecoam vozes “freireanas”, oriundas dos Parâmetros Curriculares Nacionais, de onde vem parte da inspiração da BNCC. Em seu último texto, Paulo Freire se posiciona de forma contundente: Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não

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transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda (FREIRE, 2000, p. 66).

Refletem-se aqui o papel do professor como agente transformador social e a abordagem escolar centrada nas necessidades do aluno, o que nos lembra também do conceito de alteridade da teoria dialógica do discurso, que servirá de apoio referencial para o desenvolvimento da dissertação. Em seu preâmbulo, a BNCC aborda preceitos que subjazem a sua construção: “[...] orientado por princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.” (BRASIL, 2018, p. 23, grifos nossos). Além de apontar a importância de se organizar as práticas de sala de aula de acordo com os eixos temáticos e os campos de atuação, a BNCC chama a atenção para o cuidado que é preciso ter ao selecionar conteúdos transversais que expressem valores de inclusão em relação à diversidade cultural do nosso país no momento de planejar cada aula. O que se propõe é a ampliação do repertório dos alunos, a interação com culturas, línguas e usos linguísticos diversos. Segundo a BNCC: “A ideia é que os estudantes conheçam e aprendam a valorizar essas diferenças”, o que dialoga em consonância com a formação de sujeitos colaboradores ao invés da transformação de oprimidos em opressores, como Paulo Freire propõe em sua Pedagogia do Oprimido. Ao nos referirmos aos fundamentos pedagógicos da BNCC, que são a educação integral e o foco nas competências, há, por trás disso, uma visão de política educacional. A BNCC é a política educacional mais importante da história do país, pois é ela que vai permitir que se alinhem a produção de materiais, avaliações, a formação de professores. Toda política educacional, numa sociedade democrática, como acredita-se que o Brasil seja, necessita se valer de princípios que digam respeito à igualdade e equidade. Não há possibilidade de termos uma sociedade justa, solidária Círculo

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e verdadeiramente democrática, sem garantirmos esses valores para todo mundo. “Promover a equidade supõe reconhecer que as necessidades dos estudantes são diferentes, e, portanto, orientar o planejamento e a ação curricular e didático-pedagógica para a inclusão de todos e a superação das desigualdades” (IGUALDADE, 2018). O princípio da igualdade de direitos ao acesso à educação se concretiza na BNCC por meio da promoção de objetivos gerais, os quais determinam que todos têm o direito, independentemente de suas condições físicas, psicológicas ou econômicas, de receber os mesmos ensinamentos e atingir os mesmos objetivos de cada etapa. Já os currículos, a serem construídos em cada instituição, balizados pela BNCC, se ocupam de concretizar o princípio da equidade, considerando que todos os indivíduos são diferentes e precisam ser tratados de formas diferentes para que consigam atingir o mesmo patamar, alguns recebendo mais de alguma coisa: “O que guia a Base é: o mesmo para todos. E o que guia o currículo é: a cada um, aquilo, de acordo com as suas necessidades, o seu potencial” (IGUALDADE, 2018). FIGURA 1 - Ilustração do conceito de equidade

Fonte: IGUALDADE, 2018. 148

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Em termos da BNCC, igualdade significa definir as aprendizagens a que todos têm direito. Equidade é oferecer condições adequadas às especificidades de cada indivíduo. Na imagem, a BNCC é metaforicamente representada por um dos livros sobre os quais os alunos se apoiam para ver além da cerca. Mas, é somente quando há outros apoios, além da BNCC, que se alcança a equidade.

TENSÕES DISCURSIVAS CONFLITANTES Há um claro conflito discursivo em relação aos enunciados produzidos por líderes do atual governo federal e os presentes na BNCC, conforme demonstram as figuras a seguir. FIGURA 2 - Notícia sobre visão do presidente sobre “ideologia” e ensino.

Fonte: PINHEIRO (2019).

Desde as eleições de 2018, passando pelo discurso (pronunciamento) de posse do presidente e até o momento de redação deste texto, em junho de 2020, são constantes os ataques aos Direitos Humanos Universais e ao que entendem por politicamente correto.

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FIGURA 3 - Postagem sobre Direitos Humanos

Fonte: DICA, 2017.

Além disso, denúncias de descaso do governo para com a elaboração de políticas públicas para educação vêm sendo feitas. Projetos e reformas são aprovados sem discussão com especialistas, professores são ofendidos e até demitidos. A página online do Jornal Nacional (Rede Globo) noticiou a criação, por parte do governo federal, de um canal para denúncias. Segundo a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares R. Alves, a “Escola não pode ensinar nada que atente contra a moral, a religião e a ética da família. A família precisa ser ouvida”. 150

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FIGURA 4: Notícia sobre canal de denúncias do governo

Fonte: GOVERNO, 2019.

Um forte clima de denuncismo e promoção de censura tem sido atribuído à falta de diálogo com especialistas e de pluralidade de ideias. Segundo Priscila Cruz, diretora-executiva do “Todos pela Educação”: A gente tem uma vasta evidência mostrando que a aprendizagem acontece quando há um ambiente de confiança, e uma boa relação entre alunos e professores. Então, esse tipo de canal de denúncia, que pode propiciar uma perseguição, uma desconfiança, e um olhar diferente, desconfiado, das famílias em relação aos professores, isso pode prejudicar a aprendizagem dos nossos alunos que já está em um patamar muito baixo.

Diante disso, esta investigação faz-se relevante também para a promoção de um debate mais produtivo, reflexivo, para além do senso comum, que resulte em informação e proteção dos direitos dos professores, educadores e alunos. Nesse sentido, o objetivo principal da investigação é analisar, à luz da teoria dialógica do discurso, relações de tensão entre enunciados do governo federal brasileiro e seu coral de apoio (seguidores) e as vozes sociais relativas à promoção da diversidade cultural

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para o processo de elaboração de currículos e formação de professores presentes na BNCC. Para tal, além da BNCC, serão selecionados enunciados produzidos pelos sujeitos em análise, como o Presidente da República (Jair Messias Bolsonaro) e seu Ministro da Educação, e divulgados em suas contas oficiais na rede social Twitter, por ser uma plataforma extremamente importante para sua estratégia de comunicação. Os gêneros discursivos nos quais os enunciados se organizam deverão ser abordados adequadamente, considerando suas peculiaridades. Acredita-se que os tons valorativos encontrados no cotejamento dos enunciados possuam uma relação profundamente dissonante, a ser demonstrada pelas análises e reflexões. No que diz respeito ao referencial teórico, a pesquisa ancora-se em Bakhtin e seu Círculo, que tem como pressuposto epistemológico de base o dialogismo3. Segundo Bakhtin, a unidade real da língua é o enunciado posto em diálogo: a interação de pelo menos duas enunciações. O diálogo é uma realidade em constante formação, dada a sua inconclusibilidade: um enunciado sempre responde a um anterior e projeta um posterior, como elos em uma corrente discursiva. Desta forma, vivemos “em um mundo de palavras do outro, de complexas relações de reciprocidade com a palavra do outro em todos os campos da cultura e da atividade”: A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o dis3 Conhecido como o filósofo do diálogo, o russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) dedicou sua vida à análise da linguagem, definindo conceitos e categorias, como os discursos artísticos, cotidianos, filosóficos e científicos. Bakhtin, contudo, não esteve sozinho em sua trajetória, sendo acompanhado pelo linguista Valentin Volóchinov (1895-1936) e pelo teórico literário Pavel Medvedev (1891- 1938), formando, assim, o Círculo de Bakhtin, responsável por notável volume de textos, ensaios e livros redigidos e pela teoria dialógica do discurso, central para este trabalho. 152

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curso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa (BAKHTIN, 2010, p. 88).

Essa percepção, de que os enunciados não estão isolados, mas constituem respostas a outros enunciados, se faz produtiva para que analisemos as relações axiológicas entre os discursos a serem contrastados, pois os veremos, sempre, em relação de tensão. Dado o caráter transdisciplinar da teoria dialógica do discurso, teóricos de outras áreas, como sociologia e história, são contemplados no trabalho. O tema da intolerância será aprofundado para que se possa justificar e qualificar a dissertação, a qual trata da importância de se promover o tema da multiculturalidade na escola a fim de construir-se uma sociedade mais tolerante, com menos preconceito, crimes de ódio e injustiças sociais. A partir do exposto, pode-se compreender que a nossa investigação está voltada para o desenvolvimento de uma reflexão acerca da temática da diversidade cultural na sociedade e, em especial, na escola. Também reflete sobre como os diferentes valores que permeiam os discursos de professores e de líderes políticos afetam tanto o aprendizado quanto o pleno desenvolvimento dos alunos como cidadãos. Entendemos que a escola não pode mais ser vista simplesmente como um lugar onde os pais deixam seus filhos e pouco se importam com a qualidade da educação ou apenas esperam que decorem conteúdos, sem desenvolverem consciência crítica, habilidades biopsicossociais, mantendo, assim, o sistema social profundamente injusto e desigual em que vivemos.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, M. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. São Paulo, 2016. Círculo

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BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo, Martins Fontes, 2006.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016.

BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: Questões de literatura e de estética: A teoria do romance. Tradução de Aurora F. Bernardini et al. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

BAKHTIN, M. (VOLÓCHINOV, V. N). Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na Ciência da Linguagem. Tradução de Michel Lahub e Yara Frateschi Vieira. 5. ed. São Paulo, 1990. BEZERRA, P. Polifonia. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2012. p. 191-200. BRAIT, B. (org.). Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto, 2009.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2019. 595 p. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 8 dez. 2019.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial: República Federativa do Brasil: seção 1, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em: 4 maio 2020. BUBNOVA, T. Voz, sentido e diálogo em Bakhtin. Bakhtiniana, São Paulo. 2011, p. 268-280. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/bak/v6n1/ v6n1a16.pdf. Acesso em: 4 maio 2020.

DICA para redação do Enem quando Bolsonaro for eleito presidente em 2018. [São Paulo], 4 nov. 2017. Twitter: @CarlosBolsonaro. Disponível em: https://twitter.com/CarlosBolsonaro?ref_src=twsrc%5Egoogle%7Ctwcamp%5Eserp%7Ctwgr%5Eauthor. Acesso em: 4 maio 2020. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. Apresentação de Ana Maria Araújo Freire. Carta-prefácio de Balduino A. Andreola. São Paulo: UNESP, 2000.

IGUALDADE e equidade. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (8 min). Publicado pelo canal Cursos MEC. Disponível em: https://youtu.be/BhE-C1h_UXg. Acesso em: 4 maio 2020.

GOVERNO cria canal para denúncias sobre ocorrências em escolas. Jornal Nacional, Rio de Janeiro, 20 nov. 2019. Disponível em: https://g1.globo. com/jornal-nacional/noticia/2019/11/20/governo-cria-canal-para-de154

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nuncias-sobre-ocorrencias-em-escolas.ghtml. Acesso em: 8 dez. 2019.

PINHEIRO, T. Mikhail Bakhtin, o filósofo do diálogo. Nova Escola, São Paulo, 1 ago. 2009. Disponível em: https://bityli.com/8RVUe. Acesso em: 4 maio 2020 PINHEIRO, E. “Vamos ensinar sem ideologia”, diz Bolsonaro em Goiânia. Opção, Goiânia, 9 dez. 2019. Disponível em: https://www.jornalopcao. com.br/ultimas-noticias/vamos-ensinar-sem-ideologia-diz-bolsonaro-em-goiania-219523. Acesso em: 9 dez. 2019.

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A MORTE DE UM JOVEM NEGRO E DE UM JOVEM BRANCO: AS AVALIAÇÕES IDEOLÓGICAS NA MORTE DE EXPRESIDIÁRIOS

Camila Franz Marquez1 Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Nessana de Oliveira Pereira2 Universidade Federal de Pelotas (UFPel)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS À luz da teoria dialógica proposta pelo Círculo de Bakhtin, concebemos a linguagem associada ao contexto histórico, social e cultural em que os sujeitos estão inscritos. Além disso, revelando o caráter dialógico da teoria, Bakhtin aponta que: Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, 1 Mestranda em Letras pela Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Rio Grande do Sul. Membro do grupo de pesquisa A caracterização de língua/linguagem em Bakhtin/Volóchinov. https://orcid.org/0000-0002-0574-4012 E-mail: millamarquez@hotmail.com. 2 Mestranda em Letras pela Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Rio Grande do Sul. Membro do grupo de pesquisa A caracterização de língua/linguagem em Bakhtin/Volóchinov. https://orcid.org/0000-0003-4880-7527. E-mail: nes-sana@hotmail.com. 156

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reelaboramos, e reacentuamos (BAKHTIN, 2019, p. 54).

O tratamento do nosso corpus será dado a partir desses e outros pressupostos postulados pelo Círculo. Nosso objeto de pesquisa é constituído por duas postagens que noticiam a morte de dois presidiários - um branco e um negro - postadas no perfil de um site em uma rede social, o Instagram, e os respectivos comentários-resposta dos usuários a partir dessas duas postagens. Nosso objetivo é analisar o acento ideológico dado para a morte de cada um deles a partir dos enunciados presentes no corpus. De acordo com a concepção bakhtiniana de linguagem, o sujeito passa a ocupar papel de destaque em qualquer situação de interação, uma vez que é a partir dele que se torna possível a compreensão das diversas relações sócio-históricas que caracterizam uma sociedade: [...] esse sujeito histórico produz enunciados que, na verdade, são acontecimentos que exigem a) uma determinada situação histórica; b) a identificação dos atores sociais; c) o compartilhamento de uma mesma cultura; d) o estabelecimento de um diálogo (DIAS et al., 2011, p. 144).

Sabemos que as palavras são um ato bilateral, ou seja, determinadas por quem as dirige e para quem são dirigidas. Sendo assim, ao escolher determinadas palavras, o site de notícias da cidade de Imperatriz, no Maranhão, do qual retiramos nosso corpus de análise, está usando o acento valorativo de acordo com sua visão do contexto dos enunciados acerca do óbito dos garotos ex-presidiários, que iremos analisar a seguir. Mas, também, acentua os enunciados de acordo com aquilo que julga que seus leitores esperam. Somente o contexto concreto e ideológico permite certos enunciados, sendo assim, “a palavra está sempre repleta de conteúdo e de significação ideológica ou cotidiana” (Volóchinov, 2017, p. 181). Círculo

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A mesma palavra que nos atravessa pelos meios de comunicação deixando marcas linguísticas, nos atinge ideologicamente e faz com que concordemos ou não com enunciados que se apresentam a nós, mas sempre dialogando com eles.

SITUAÇÃO HISTÓRICA É de conhecimento comum a muitos brasileiros que a nossa história carrega a mancha da escravidão, cujas consequências para o povo escravizado, os afro-brasileiros, ainda é muito latente na sociedade brasileira. O percurso do negro depois da abolição da escravatura acontecida em 13 de maio de 1888 é marcado pela exclusão e o racismo (BENTO; BEGHIN, 2005). Uma das formas de expressão do racismo está relacionada ao tratamento que a população jovem negra (18 a 24 anos) tem no país se comparada à mesma população de jovens brancos. Menos escolaridade, menos oportunidade de emprego, menores salários, mais submissões a abordagens policiais, maior número na população carcerária e maior índice de jovens mortos dentro dessa faixa etária. Além disso, dados divulgados pelo Infopen, Departamento Nacional Penitenciário, em 2018, apontam que 61,7% da população carcerária no Brasil é de negros ou pardos, sendo que a população com essa mesma característica racial representa 53,7% da população brasileira (CALVI, 2018). Sabe-se que o discurso sobre os encarcerados, no Brasil, em sua maioria, não é em prol da ressocialização do preso. Em 2016, a Data Folha divulgou uma pesquisa que evidencia que 57% da população brasileira concorda que “bandido bom é bandido morto”. A partir desses dados, podemos questionar: qual bandido que é bom morto? Essa é a questão que buscamos responder neste trabalho. Dentro desse contexto histórico, o enunciado do locutor ganha seu tom valorativo, pois, conforme Volóchinov (2018, p. 206), “a 158

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situação social mais próxima e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, de dentro, a estrutura do enunciado”. E mais: De fato, não importa qual enunciado considerarmos: ainda que ele não represente uma mensagem objetiva (uma comunicação no sentido estrito), mas uma expressão verbal de alguma necessidade como, por exemplo, a fome, concluiremos que sua orientação é inteiramente social. (...) Essa situação mais próxima e os participantes sociais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais do enunciado. As camadas mais profundas de sua estrutura são determinadas por ligações sociais mais duradouras e essenciais, das quais o falante participa (VOLÓCHINOV, 2018, p. 206).

Logo, podemos apontar que o enunciado não está alheio à situação social do seu contexto, sendo que nosso corpus revela, em suas estruturas, a situação histórica anteriormente ilustrada neste texto. Partimos da hipótese de que os negros são julgados pela da cor de sua pele, a qual carrega vários estigmas25 impostos no período de colonização. Bento e Beghin (2005) apresentam uma vertente desse estigma, pertinente para a nossa discussão, que trata do período após a abolição da escravatura:: Uma enorme massa de negros libertos invadiu as ruas do país. Tanto eles como seus antigos senhores sabiam que sua condição miserável era fruto da violência física e simbólica perpetuada por quase quatro séculos pelas elites. É possível imaginar o pânico e o terror da elite, que investiu, então, nas políticas de imigração europeia, na exclusão desse contingente de pessoas do processo de industrialização que nascia, e no confinamento psiquiátrico e carcerário dos negros (BENTO; BEGHIN, 2005, p. 196).

De acordo com Bakhtin (2019, p. 20) “os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem”. Portanto, Círculo

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“cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” (BAKHTIN, 2016, p. 26) e, sendo uma unidade real, uma materialidade da língua, o enunciado pressupõe a alteridade dos sujeitos no discurso. Assim, há uma: Alternância dos sujeitos do discurso, que cria limites precisos do enunciado nos diversos campos da atividade humana e da vida, dependendo das diversas funções da linguagem e das diferentes condições e situações de comunicação, tem uma natureza diferente e assume formas várias (BAKHTIN, 2016, p. 26).

Essa alternância possibilita que o sujeito molde o enunciado e estabeleça um limite com outros enunciados, diferenciando-os e dando a possibilidade ao interlocutor de resposta, seja em concordância ou não. Deste modo, os enunciados publicados pelo site podem ser lidos como o locutor; os comentários-resposta, os interlocutores. Como afirma Bakhtin: A obra, como réplica do diálogo, está disposta para a resposta do outro (dos outros), para a sua ativa compreensão responsiva, que pode assumir diferentes formas: influência educativa sobre os leitores, sobre suas convicções, respostas críticas, influência sobre seguidores e continuadores. Ela determina as posições responsivas dos outros nas complexas condições de comunicação discursiva de um dado campo da cultura (BAKHTIN, 2016, p. 34).

Portanto, para que comportamentos se perpetuem, é necessário que haja a réplica, criando uma base estrutural que é fortalecida através do discurso, através de outros enunciados que se vinculam de forma semelhante ao que foi dito, podendo ser formas relativamente estáveis. A língua materna chega até nós da enunciação concreta e junto com ela carrega o acento valorativo de quem lhes deu acesso à língua, concordando ou discordando de enunciados, criando tensão entre as vozes que se rompem ou cristalizam ideologias. 160

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A PALAVRA É MEDIADORA DO MUNDO INTERIOR E DO EXTERIOR Conforme Volóchinov (2017, p. 151), “a linguagem interior é a esfera, o campo em que o organismo passa do ambiente físico ao social”. Assim, a linguagem está na construção que se realiza na interação verbal, e compreender enunciações é compreender o consciente que permeia o que é analisado, do mesmo modo que não deixa a situação social fora desse entendimento acerca do discurso outro, sendo nesse gume que está o processo lento e gradual de mudança social. Sabemos que cada enunciado é um elo na cadeia comunicativa; por isso, a palavra é a mediação entre mundo interior e exterior. E é através dela que é possível examinar a materialidade que ali consta, seu sentido e a formação ideológica do locutor ou, como Volóchinov postula (2017, p. 100), “a palavra se tornou o material sígnico da vida interior: a consciência”. Assim a ideologia do cotidiano é o momento em que conseguimos acessar o interior e exterior, sendo o ato o momento de expor a avaliação social que determina no consciente. De acordo com Volóchinov, Qualquer palavra realmente dita não possui apenas um tema e uma significação no sentido objetivo, conteudístico dessas palavras, mas também uma avaliação, pois todos os conteúdos objetivos existem na fala viva, são ditos ou escritos em relação a certa ênfase valorativa (VOLÓCHINOV, 2017, p. 233).

A palavra, portanto, é revestida de uma avaliação social, que é expressa com o auxílio da entoação expressiva, considerando que essa avaliação social irá se dar de acordo com a situação social mais próxima do sujeito. No caso dos comentários aqui expostos, verificamos que, majoritariamente, os interlocutores dos posts são brancos, sendo essa uma importante observação a ser feita, visto que isso influencia na valoração dos comentários-respostas, dado Círculo

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nosso contexto sócio-histórico relacionado ao racismo. É através dessas formas típicas da composição e do acabamento que o gênero é revelado juntamente com a avaliação feita pelo interlocutor através da entoação avaliativa. Volóchinov assevera que: A avaliação social tem uma enorme importância, mesmo em um enunciado com um sentido mais amplo e apoiado em um vasto auditório social. Apesar dessa avaliação não ser expressa adequadamente por meio de uma entonação, ela determinará a escola e a ordem de todos os principais elementos significantes do enunciado (VOLÓCHINOV, 2017, p. 236).

A intenção discursiva é exposta quando o sujeito produz sentido, isto é, quando o sujeito fala o que quer dizer, quando verbaliza a intenção determinando a própria escolha estrutural do enunciado, sendo todo enunciado uma orientação avaliativa. Essa orientação avaliativa é fundamental para que entendamos que o sentido expresso é resultado da formação do cenário valorativo do sujeito enunciativo.

DESCRIÇÃO, ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO Sobral e Giacomelli (2016, p. 1077) sintetizam que toda comunicação humana dentro dos estudos da Análise Dialógica do Discurso (ADD) é feita por meio de enunciados que se organizam da seguinte maneira: 1. O enunciado (e não a frase) é a unidade de análise da ADD porque os sujeitos falam usando enunciados; 2. Os enunciados são usados pelos sujeitos na interação, que é a base das relações dialógicas; 3. Na interação, usando enunciados, os locutores recorrem a signos que na ADD são sempre ideológicos, no sentido de marcados por uma avaliação social; 4. Na interação, os locutores usam signos ideológicos em enunciados de acordo com os gêneros do discur-

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so, definidos como formas relativamente estáveis de enunciados.

Portanto, é na interação com as postagens noticiadas que é analisada a posição ideológica não somente dos seguidores da rede social, como também do próprio blog. Desse modo, é possível uma análise a partir de dois acentos valorativos que são dados para o mesmo caso. Para o presidiário branco, observamos primeiramente a legenda dada à foto no site: FIGURA 1 - Jeferson Martins foi socorrido por um carro particular, mas, veio a óbito. Nossas condolências aos amigos e familiares.

Fonte: JEFERSON (2019).

As legendas são enunciados cujo objetivo é explicar a imagem postada. Na Figura 1, explica-se, junto com a imagem do rapaz branco que “Jeferson Martins foi socorrido por um carro particular, mas, veio a óbito. Nossas condolências aos amigos e familiares". De acordo com o tema – a morte – e a forma de composição do enunciado (nome completo do falecido, motivo da morte, confirmação do óbito e pêsames), podemos afirmar que a

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legenda está de acordo com o gênero condolências, obedecendo a suas formas estáveis. Agora observemos a legenda para o presidiário negro: FIGURA 2 - Pedim não resistiu e veio a óbito.

Fonte: PEDIM (2019).

A legenda dada para noticiar a morte do rapaz negro é “Pedim não resistiu e veio a óbito. #imperatriz #maranhao”. Estamos, novamente, diante do mesmo tema – a morte –, porém as formas de composição são expressas de maneira diferente: ao invés do nome completo do falecido, temos o apelido dele, “Pedim”, e no final do enunciado há ausência de pêsames à família e amigos. Comparando a forma dos enunciados da primeira e segunda legenda, encontramos a posição ideológica do próprio blog. Por meio da legenda usada, é revelada a posição ideológica do locutor, bem como as relações dialógicas que se estabelecem através da interação verbal, visto que essa publicação é dirigida aos interlocutores típicos da página. Assim, ao publicarem dois casos com um mesmo contexto – o óbito -, produzem enunciados com diferentes valorações dado à forma como são construídos os enunciados. A ausência do nome completo do rapaz negro pode conferir valoração racista ao enunciado. No período colonial, segundo Amaral (2011), uma das estratégias de dominação dos negros escravizados 164

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era a coisificação, isto é, os direitos relacionados à pessoa foram negados e, atualmente, em nossa sociedade o nome próprio ocupa um lugar privilegiado, demarcando a identidade da pessoa e tratando-se de um direito relacionado à decência humana (GIACOMETTI, 2019). Dessa forma, de acordo com Bezerra, o enunciado revela que [...] não está voltado só para seu próprio objeto, mas também para os discursos do outro sobre esse objeto. Como esses discursos vão de simples questões do dia a dia a pontos de vista sobre o homem e o mundo, o passado, o presente e o futuro, abrangem um vasto campo da comunicação cultural. Assim “o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva, não pode ser separado dos elos precedentes que o determinaram tanto de fora quanto de dentro, gerando nele atitudes responsivas diretas e ressonâncias dialógicas”. Como elo do processo de trocas culturais, o enunciado une passado, presente e futuro, pois “não está ligado apenas aos elos precedentes, mas também aos elos subseqüentes da comunicação discursiva”, formando, assim, um continuum na cadeia histórica da cultura (BEZERRA, 2016, p. 161).

Além disso, não emitir condolências aos familiares e amigos de Pedim está relacionado à discussão anterior porque o nome próprio carrega a história da família, bem como evidencia a presença dela na história do sujeito. Gostaríamos aqui de chamar atenção para o nome da página que se chama “asmosimp”. Ao pesquisarmos sobre a palavra asmos (ASMOS, 2020), encontramos a definição do dicionário acerca da etimologia da palavra ázimo (ÁZIMO, 2020), cujo significado refere-se a um pão sem fermento, não levedado, neutro. A partir desse contexto, fomos em busca de uma melhor definição para essa palavra e encontramos uma passagem bíblica que se refere aos “asmos da verdade”: 1 Co. 5:8. “Por isso, celebremos a festa não com o velho fermento, nem com o fermento da maldade e da malícia, e sim com os asmos da sinceridade e da verdade.” (BÍBLIA, 1993, p. 138, grifos nossos). Já “imp” acreditamos ser a abreviação de Círculo

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Imperatriz, segunda cidade mais populosa do Maranhão.Estaria o blog seguindo os asmos da verdade sem maldade ou malícia? A partir da análise feita da legenda usada para ambos os casos, percebemos que a posição axiológica do blog não é neutra, mas, ao contrário, reforça e cristaliza discursos racistas nas suas publicações já que o dizer é perpassado por outros dizeres, que nossa voz é sempre também a voz do outro e que todos os enunciados se constituem a partir de outros. O dialogismo ou relação dialógica entre textos é, portanto, intrínseca à linguagem (DIAS et al., 2011, p. 144).

Nos comentários na publicação sobre a morte do presidiário branco encontramos o seguinte enunciado: FIGURA 3 - Meus sentimentos aos pais desse jovem que mesmo coberto de amor e carinho pela família, preferiu se envolver com más amizades! <3

Fonte: JEFERSON (2019).

Por outro lado, no comentário sobre a morte do presidiário negro, encontramos enunciados como: FIGURA 4 - Esse já fez muita mãe chorar!!! Vagabundo...

Fonte: PEDIM (2019).

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Ambos os comentários fazem referência a familiares, mas eles diferem completamente na valoração que é dada a cada um: no primeiro, é afirmado que os pais do garoto branco estão sofrendo – por isso, “meus sentimentos”, mas ele teve a escolha de se envolver com más amizades, mesmo tendo amor e carinho da família; já no segundo, o sofrimento é uma constante porque se percebe, por meio de “já fez” que o interlocutor pressupõe que o presidiário já havia cometido outros crimes. Assim, em nenhum momento há condolências para a família do jovem negro, enquanto para o branco, além de elas estarem presentes, há ainda modalizadores, que “suavizam” os comentários, como a palavra “infelizmente”, em exemplos como: FIGURA 5 - Infelizmente é o fim de pessoas que entram para o mundo do crime [...]

Fonte: JEFERSON (2019).

Os enunciados até aqui evidenciam que há valorações diferentes para a mesma situação: dois jovens presidiários que vieram a óbito. Se considerarmos que as notícias se referem a dois jovens, pressupomos que ambos têm família, entretanto o locutor e os interlocutores, ideologicamente, consideram que apenas um deles tem um núcleo familiar. Além disso, a morte do presidiário branco é vista com pesar, contudo encontramos o seguinte comentário na notícia a respeito do presidiário negro:

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FIGURA 6 - Eu já tava indo dormir triste, 22:30 e ainda não tinha nenhum CPF [...]

Fonte: PEDIM (2019).

Vemos, no enunciado “Eu já tava indo dormir triste, 22:30 e ainda não tinha nenhum CPF de bandido cancelado, esse aí valia por 10”, a valoração sobre o presidiário negro de um “bandido” que “valia por 10”, isto é, julga-o como um bandido perigoso. Além disso, o agenciamento da expressão “valia por 10”, somado com o uso do advérbio de tempo “já”, o qual geralmente indica algo que acontece de maneira antecipada, com antecedência, demonstra que a morte do rapaz estava demorando para acontecer, dado o bandido que era Ademais, verifica-se a repetição de um enunciado muito comum nos comentários do corpus: “cpf cancelado”. Esse enunciado, como referência ao óbito, demonstra a descaracterização do sujeito, que deixa de ser uma pessoa e passa a ser um número. Observemos o comentário referente ao presidiário branco: FIGURA 7 - Ele já tinha sido preso ou essa foto foi em algum evento do pai dele? [...]

Fonte: JEFERSON (2019).

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A seguir, a foto do jovem branco na delegacia: FIGURA 8 – Post do Instagram

Fonte: JEFERSON (2019).

Notamos que a posição dos braços do rapaz, sua postura e o plano de fundo indicam que ele está numa delegacia na condição de detento e não de um convidado. No comentário “Ele já tinha sido preso ou essa foto foi em algum evento do pai dele? Ficou Círculo

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estranha...”, temos claramente a entoação do locutor como dúvida, questionando se o presidiário branco não estava em algum evento da delegacia juntamente com sua família (o pai), ou seja, a cor da sua pele parece ser fator de questionamento na sua presença nesse espaço na condição de detento, réu. Outros comentários-respostas a respeito do detento negro chamam a atenção, pois nota-se pelas valorações dos enunciados que esse não é digno de condolências mas sim de uma expressão de alívio, formulada em poucas palavras: “Adoro” ou ainda “Oh glória” ou “-1”. O comentário “-1” indica menos um bandido, que remete ao ditado “bandido bom é bandido morto”, entretanto a exposição revela que isso só é válido se o bandido for negro. É possível ainda examinar nos comentários anteriores a respeito do rapaz negro o acento valorativo dado a partir das escolhas lexicais que os interlocutores usam para ambos os casos. Conforme Bakhtin (2016, p. 47), a relação valorativa do falante com o objeto do seu discurso (seja qual for esse objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado. O comentário a seguir possibilita evidenciar novamente as diferentes posições ideológicas assumidas pelos interlocutores a partir da notícia sobre a morte do presidiário branco: FIGURA 9 - Independentemente da conduta dele [...]

Fonte: JEFERSON (2019).

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No comentário anterior, podemos ver o seguinte enunciado: “Independentemente da conduta dele, meus pêsames à família dele e às demais famílias que estão enlutadas em virtude dos últimos acontecimentos em nossa sociedade. Que deus nos proteja nesses dias tão difíceis!”. Percebem-se três tópicos no enunciado em que se verificam acentos valorativos usados que remontam à família, às condolências e à religião. Essas marcas valorativas corroboram para o que havíamos interpretado anteriormente, visto que somente o presidiário branco é digno de condolências. Observemos ainda o início da enunciação: “Independentemente da conduta dele”. Essa marca mostra de maneira clara a posição do interlocutor em relação ao detento branco, ou seja, independentemente da conduta que o presidiário teve para ter sido levado à cadeia, ele e sua família continuam sendo passíveis de comoção e condolências, essa valoração se repete em outro comentário: FIGURA 10 - Que deus conforte o coração da mãe e toda família dele...

Fonte: JEFERSON (2019).

Outra observação pertinente é a importância que é dada pelo julgamento de padrão estético para o rapaz branco, do qual surgem comentários como: FIGURA 11 - Tão bonito

Fonte: JEFERSON (2019). Círculo

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FIGURA 12 - Tão novo e bonito :( que Deus conforte os familiares:’(

Fonte: JEFERSON (2019).

Já para o presidiário negro nada aparece que seja relacionado à beleza. Desse modo, podemos interpretar que o padrão aqui é o branco, o que nos mostra a imagem do ser humano construído através da valoração positiva desse modelo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A comparação entre os enunciados que se referiam ao jovem negro e o branco mostra que as valorações dadas aos enunciados são destoantes, mas podem servir de espelho da situação racial no Brasil. O discurso racista é passado de geração em geração sendo compartilhado dentro de uma mesma sociedade. Assim, negros ainda são condenados em virtude da cor da pele, bem como ainda convivem com políticas de extermínio e genocídio, como está evidenciado nas políticas de segurança dos governos, nos noticiários dos jornais, nas conversas cotidianas. Ao observarmos o racismo do ponto de vista dialógico, constatamos o teor racista dos enunciados-comentários. Eles revelam, nos entremeios da sua constituição, o tom valorativo de grande parte da sociedade brasileira, a qual reproduz que “todo negro é bandido”, “cara de bandido”, “bandido bom é bandido morto!”. Como vimos, são dois casos de jovens detentos, mas a forma dos comentários é muito diferente. Do ponto de vista linguístico, o corpus revela o caráter dialógico inscrito na linguagem e o tom valorativo que cada sujeito dá 172

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em seu enunciado relacionado à situação social mais próxima. Segundo Volóchinov (2017, p. 232), “compreender o enunciado alheio significa orientar-se em relação a ele, encontrar para ele um lugar devido no contexto correspondente”, o que nos leva a compreender que a interação verbal possibilita que nos relacionemos de forma distinta em relação aos discursos que perpassam a sociedade. Assim, é também possível acreditarmos que, ao entender o enunciado como racista, verificando como se dá sua constituição, podemos nos orientar de forma oposta, a fim de que haja cada vez menos espaços para discursos provenientes do racismo, ou até mais, pois, como afirma Angela Davis (1983, p. 20, grifos nossos), “em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”.

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O NAZIFASCISMO CORPORIFICADO: DIALOGICIDADES ENTRE BRASIL E ALEMANHA1

Cristiano Sandim Paschoal2 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

PALAVRAS INICIAIS O corpo é o último grito do cosmos. BAKHTIN

Desde a pré-história – período que corresponde ao aparecimento da humanidade sobre a Terra –, estudos de diferentes áreas do conhecimento perscrutam o desenvolvimento corporal humano. A historiografia, por exemplo, ao identificar o australopithecus como sendo o hominídeo mais antigo que habitou o planeta terrestre, percebeu, por meio da análise desses fósseis que, 1 A presente reflexão consiste em um recorte teórico-metodológico a partir do trabalho de dissertação que está em fase de desenvolvimento, cujo intento principal de seu projeto enunciativo será a observação de uma possível dialogicidade entre a arquitetônica verboaxiológica nazifascista e os discursos do universo político da extrema direita brasileira. 2 Graduado em Letras Português, Espanhol e Respectivas Literaturas pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Mestrando em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), desenvolvendo, por meio do órgão de fomento CAPES/PROEX, investigações atreladas à linha de pesquisa Teorias e Usos da Linguagem, com participação no grupo de pesquisa Tessitura: vozes em (dis)curso (PUCRS-CNpq). https://orcid.org/0000-00021638-4120. E-mail: Cristiano.Paschoal@edu.pucrs.br. Círculo

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contemporâneos de 600.000 anos a.C., apresentavam um certo desenvolvimento cerebral, locomoviam-se em posição quase ereta e, por conhecerem o fogo, cozinhavam seus alimentos. Todavia, mesmo que se possa atestar, por esses indícios, a eminência de uma linguagem corporal, desde o australopithecus ao homem de Cro-Magnon (do período paleolítico à Idade da Pedra Polida), os movimentos gestuais humanos se mostravam elementares, não podendo ser elevados à insígnia do ideológico, uma vez que as pessoas da Idade da Pedra, que conheciam os modos mais simples de obtenção de alimento – a colheita de ervas comestíveis e a caça de animais selvagens – satisfizeram-se por muito tempo com essa linguagem, que convencionalmente pode ser chamada de linguagem manual, pois os movimentos das mãos desempenhavam nela um papel central. É claro que os sons podiam acompanhar esses “enunciados” gestuais e de expressão facial, mas eles ainda não eram articulados e se reduziam mais provavelmente a gritos de emoção, isto é, de um homem que está em um estado de forte agitação (VOLÓCHINOV, 2019, p. 242, grifos do autor).

É somente quando o humano neolítico começa a se desenvolver por meio de uma pretensa e elementar organização social, percebendo-se enquanto ser pensante e de linguagem, que a palavra começa a lhe configurar a consciência do existir na e pela interação. Assim, a linguagem, sobretudo a verbal, surge a partir das necessidades sociais da humanidade, pois desde que “um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e semelhante a si próprio, o desejo e a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar meios para isto” (ROUSSEAU, 1978, p. 259). Entrementes, na medida em que a humanidade progrediu, enquanto configuração social e linguística, conscientizou-se do poder da linguagem, compreendendo que o corpo diz e, sobretudo, 176

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como ele pode ser utilizado para dizer. Isso sugere a diferenciação nodal acerca da linguagem corporal humana e da linguagem corporal animal, uma vez que esta a utiliza apenas enquanto código, como uma fonte de transmissão de informações3. O ser humano, por sua vez, embora tenha no todo de sua linguagem corporal gestos que lhe são herdados culturalmente, por meio da mímesis, o faz conscientemente; ampliando-a, lapidando sua mais complexa configuração aos seus mais cavos anseios, que envolvem desde um singelo gesto de cumprimento às mais variadas e desenvolvidas formas de participação político-social. Embora as configurações de poder e autoridade sempre tenham existido nas relações humanas, esses elementos, sob a égide política, foram principiados na sociedade greco-romana com o intuito de substituir o poder despótico4 pela orgânica dos legisladores - um conjunto de dirigentes que intuíam a descentralização do poder absoluto da figura pública de rei. Mesmo sob o verniz democrático, no universo discursivo da política, puderam/podem ser assistidas diversas performances corpóreas que, acompanhadas de axiologias consideradas autoritárias, foram/são utilizadas para fins de persuasão em situações comunicacionais em massa. Sobrancelhas franzidas, testas vincadas, mãos e braços em gestos abruptos, veias pulsantes em pescoços, foram frequentemente presenciados em discursos proferidos por Benito Mussolini, Adolf Hitler e tantos outros atores sociais políticos, cujo intuito principal era o recrudescimento regimental antidemocrático. Contudo - visto que a história, do ponto de vista dos sentidos, não pode ser concebida apenas como mudança, mas, também, como reiteração 3 No texto intitulado Comunicação animal e linguagem humana, o linguista Émile Benveniste, partindo dos estudos realizados pelo zoólogo Karl von Frisch sobre a comunicação entre abelhas, versa sobre as diferenças comunicacionais do mundo animal e humano, reiterando a ideia de que o universo não humano apresenta apenas códigos de informações rudimentares. 4 Forma governamental em que uma única pessoa, geralmente do gênero masculino, possui poder absoluto. Círculo

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de práxis - pode-se presenciar uma linguagem corporal da qual emergem discursos autoritários de uma série de líderes políticos contemporâneos. Situando-se nesta seara semântica que flerta com sentidos mobilizados pelo totalitarismo, o atual governo brasileiro tem protagonizado demonstrações de “namoro” com a nostalgia de uma ditadura presa a um passado mitificado; o caráter messiânico de certos representantes políticos; os ataques aos grupos minoritários, entre eles indígenas, negros e negras, homossexuais, queers ou transexuais; o desrespeito a formas de religião distintas das de matriz cristã-judaica; a ampliação de poderes de classificação do sigilo de documentos históricos; a repressão à liberdade pedagógica a partir da justificativa de doutrinação ideológica; a flexibilização do porte de armas de fogo; a celebração do exílio de adversários políticos (SCHWARCZ, 2019, p. 236).

Nesse processo de reconstrução e ressignificação do autoritarismo político, encontra-se o corpo, sendo ele um elemento essencial para a agudização dos sentidos vetustos que o permeiam, reiterando as ideologias constitutivas no processo de verbalização. Atrelando-se à ampla esteira investigativa do grupo de pesquisa Tessitura: Vozes em (Dis)curso (PUCRS-CNPq), que tem como ancoragem central a teoria dialógica do discurso, postulada pelo conhecido Círculo de Bakhtin, este capítulo se propõe a observar uma possível dialogicidade existente entre a linguagem corporal da Alemanha nazista com a projeção sociodiscursiva corpórea da atual política de extrema direita brasileira. Para este breve empreendimento investigativo, no primeiro momento desta reflexão, circunscreveram-se os conceitos de signo ideológico e coral de apoio, com vistas a compreender a complexidade corporal em suas dimensões social, histórica e axiológica, sob a égide bakhtiniana. No momento procedente, foram mobilizados os conceitos anteriormente mencionados, observando como se materializa o 178

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processo corpóreo-discursivo atrelado aos preceitos de políticas regimentais consideradas autoritárias, a partir de duas situações concretas - uma do período ditatorial-totalitário nazista e outra do atual governo brasileiro. Nesse ínterim, durante o processo analítico, destacou-se a dialética interna da materialidade corpórea, fazendo emergir outras projeções corporais que rechaçam os efeitos de sentidos que surgem nas situações interacionais analisadas. Destarte, embora não fora uma pretensão asfixiar as múltiplas possibilidades de semantização dos leitores, pôde-se perceber que o corpo, enquanto materialidade ideológica, funciona, integralmente, como um suporte discursivo que reitera axiologias projetadas no verbal por sujeitos socialmente organizados.

O CORPO BAKHTINIANO: UM BIOLÓGICO QUE, AO ENUNCIAR, ENUNCIA-SE Nos limites do corpo e do mundo ou do corpo antigo do novo, em todos os acontecimentos do drama corporal, o começo e o fim da vida são indissoluvelmente imbricados. BAKHTIN

Como mencionado nas palavras preambulares deste trabalho, há diferentes estudos inclinados à leitura das projeções gestuais, que, de maneira geral, apresentam-se sob a esteira do anatômico e do psicofisiológico. Contudo, dentro do escopo dos estudos da linguagem, há a perspectiva discursiva, que, apresentando-se multifacetada no que tange aos múltiplos arcabouços teóricos que compõem sua seara, integra aos seus estudos objetos que ultrapassam os limites da linguagem verbal, destacando-se, dentre os muitos, os princípios bakhtinianos. Embora a teoria dialógica do discurso considere, parcialmente, os estudos realizados pela linguística formalista até os anos Círculo

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iniciais do século XX, pode-se entender como sendo um arcabouço teórico-metodológico marcado por rupturas que integram desde pensamos filosóficos à concepção de se fazer ciências humanas. Isso ocorre pelo fato de o Círculo de Bakhtin ter em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto específico da Linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos abstraídos pela Linguística, os que têm importância primordial para os nossos fins. Por este motivo as nossas análises subsequentes não são linguísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas na Metalinguística, subentendendo-a como um estudo [...] daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da Linguística (BAKHTIN, 2002, p. 181).

Assim, por considerar em seus empreendimentos investigativos elementos que ultrapassam os limites do verbal, ou seja, elementos da dimensão extralinguística, a teoria dialógica do discurso, intitulando-se como Metalinguística (ou, como prefere Todorov, Translinguística), integra ao seu olhar analítico componentes do nível semiótico; estando dentre eles o corpo dos sujeitos envolvidos em uma situação de interação discursiva. Todavia - diferentemente do que ocorre com noções como enunciado, gêneros discursivos, polifonia entre outras conceituações que aparecem, em algum momento, centralizadas na arquitetônica autoral bakhtiniana - a questão corporal, enquanto materialidade discursiva, emerge, ora presumidamente nas entrelinhas de alguns escritos, ora tratada diretamente, mas por breves hiatos. Em O autor e a personagem na atividade estética, Bakhtin faz referência à problemática cultural do corpo, desmistificando a ideia de uma consciência individual interina que os sujeitos podem ter de si mesmos, necessitando, para uma possível completude semântica,

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o auxílio de uma consciência alheia, de um universo outro. Nas palavras do filósofo russo, Meu aspecto físico, a expressividade do meu corpo, são vividos por mim internamente; é somente com fragmentos díspares, ligados à minha percepção interna, que minha exterioridade é captada no campo das minhas sensações externas e, acima de tudo, no campo da minha visão; mas essas sensações externas não representam a minha última instância, mesmo quando me acontece perguntar-me se se trata realmente do meu próprio corpo, e a resposta só me é fornecida por minha percepção interna que assegura também a unidade das imagens fragmentárias que tenho da minha expressividade externa e as traduz em linguagem interna. A percepção é feita assim: num mundo constituído em um todo que me é visível, audível e tangível, não encontro minha exterioridade expressa enquanto objeto que constitui um todo igualmente externo, objeto entre os outros objetos; encontro-me na fronteira do mundo que vejo e aí não sou aparentado com o nível plástico-pictural (BAKHTIN, 1992, p. 47).

Dessa forma, Bakhtin atrela a ideia de corpo ao conceito de exotopia, cuja edificação se dá na esteira da atividade estética autoral, representando, quando mobilizada aos interesses de análise discursiva, um movimento alteritário em que o outro ambientaliza o eu, dando-lhe um acabamento semântico, uma totalidade que o eu não pode construir por encontrar-se imerso em seu universo corpóreo-discursivo, encarnado em seu cronotopo (hic et nunc / aqui e agora). Já o outro, com olhos exteriores, permite-se vê-lo, interpretá-lo, lapidá-lo, sem, no entanto, aprisioná-lo em termos de fecundação axiológica. Esta abertura polissêmica decorrente da alteridade transmite à consciência do sujeito um caráter social, desvestindo-a das roupagens teóricas do psicofisiológico, e, ao mesmo tempo, calcando sua possível existência apenas por meio da dialética entre discurso interno e discurso externo. Assim,

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por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, a expressão do rosto -, o mundo ao qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele (BAKHTIN, 1992, p. 43).

Este dual semântico atribuído ao corpo permite-nos considerá-lo, em sua integridade física e social, como sendo um signo ideológico, uma vez que não se trata apenas da axiologização de um sujeito sobre si mesmo, mas, principalmente, da sua integridade sociocorpórea para o outro, que lhe confere estatuto fenomenológico e existencial (o eu-para-mim e o eu-para-o-outro). Portanto, qualquer elemento, independente de sua materialidade, que ganhe na realidade concreta da vida, minimamente, dois pontos de vista em um determinado horizonte social, estará sob a insígnia do ideológico. Pensemos, por exemplo, para fins elucidativos, no símbolo da suástica, um dos principais signos ideológicos nazistas, ilustrado a seguir: FIGURA 1 - Suástica

Fonte: QUAL (2018, [s. p.])

Terminologicamente provinda do sânscrito (su – bem; ast – ser), a suástica significa, em termos gerais, sucesso, podendo sua 182

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simbologia ser encontrada há cerca de 5 mil anos, em diferentes culturas, do oriente ao ocidente e, consequentemente, adquirindo diferentes sentidos e distintas valorações.” Composta por uma espécie de cruz, cuja inclinação figurativa varia conforme o contexto social, na sociedade hindu, por exemplo, tem sua forma projetada mais à direita, em ângulo de 90°. No entanto, durante o regime militar, a cruz passou a ser oficialmente utilizada pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) e, em 15 de setembro de 1935, foi adotada como simbologia da bandeira nacional alemã, numa angulação de 45°, também à direita como na sociedade hindu, porém menos inclinada, dando-lhe, assim, um aspecto mais retilíneo, nas cores preta, branca e vermelha. Quanto à sua utilização enquanto simbologia central do regime totalitário, “Hitler justificou a escolha da suástica como emblema do nazismo dizendo que ela representa a missão da luta pelo triunfo do homem ariano ao mesmo tempo que a ideia do trabalho criador, já que ela sempre foi e será anti-semítica.” (RIBEIRO, 2005, p. 69). Isso indicia que o uso da suástica não apenas refletiu uma realidade assistida pela sociedade alemã na década de 30, como, também, refratou muitas outras realidades que nela se inseriam. A sua utilização em braçadeiras de guardas militares evocava, aos judeus que lhe avistavam, medo da morte, do cárcere, dos porões de gás letal. Causava não apenas temor, mas, também, repúdio aos sujeitos pacifistas, feministas, esquerdistas; em suma, às vozes sociais não comungantes com os preceitos que permeavam este signo ideológico que, quando descobertas, eram silenciadas pela força e tortura brutais. Mesmo assim, sua existência e persistência semântica por um determinado tempo sócio-histórico foi garantida pelo processo de reverberação axiológica pelo qual passou. As reiterações de sentidos que lhes foram atribuídos por um conjunto de seguidores da ideologia hitleriana podem ser atribuídas, sob o enfoque bakhtiniano, ao coral de apoio, uma: Círculo

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comunidade das valorações: o pertencimento dos falantes a uma mesma família, profissão, ou classe social, a algum grupo social e, finalmente, a uma mesma época, posto que todos os falantes são contemporâneos. As valorações subentendidas aparecem então não como emoções individuais, senão como atos socialmente necessários e consequentes. As emoções individuais, por sua vez, somente podem acompanhar o tom principal da valoração social em sua qualidade de matiz: um “eu” somente pode realizar-se na palavra se se apoia nos “outros” (VOLÓCHINOV; BAKHTIN, 2011, p. 158).

No entanto, é importante destacar que a ideologia, vista por lentes bakhtinianas, emerge em consciências interindividuais que, por sua vez, só podem ser configuradas pela palavra. Sem ela, a consciência, abstraída de um aparato verbal, seria nada. Uma completa não existência, semelhante a um estado de insconsciência ou de sono sem sonhos. E para que retornemos novamente ao estado “consciente”, precisaríamos quebrar essas paredes de não existência, deixar entrar toda essa confusão de palavras e representações que reveste os nossos pensamentos, desejos e sentimentos, e pronunciar, dentro de nós, ao menos uma pequena palavra: “Eu”. Chamemos esse fluxo de palavras que observamos em nós de discurso interior (VOLÓCHINOV, 2019, p. 254, grifos do autor).

Nesse sentido, a partir da observação precedente, impõe-se à presente análise dialógico-discursiva a necessidade de considerar a complexa dialética existente na díade corpo e palavra, entendendo que esta última, além de lapidar o universo interior humano, traça sua relação com o universo exterior. Assim, depreende-se que a palavra traduz as interações humanas, lapida seus horizontes sociais e, nesse processo de configuração, o corpo lhe dá ancoragem. Até mesmo a inexistência de trejeitos em uma situação sociodiscursiva entre sujeitos faz do corpo um elemento nodal nessa configuração linguageira, tornando-o um signo ideológico, pois, assim 184

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como o ato de silenciar verbalmente denuncia um ponto de vista, o não gestual contém sua semântica, seu tom axiológico. Mesmo que circunstancialmente não se sobressaia uma evidência visual semântico-semiótica, há, inevitavelmente, um projeto enunciativo-corporal instaurado nessa situação interacional. O corpo, ao enunciar, enuncia-se. Ao existir no mundo social organizado, ideologiza-se e é ideologizado. Por isso, assim como o movimento processual ideológico da suástica anteriormente esboçado, a presença corporificada de Hitler, sob o enfoque discursivo-dialógico, pode ser considerada um signo ideológico. Para averiguar uma das possibilidades de se olhar este fenômeno, convida-se, neste momento, o leitor a se lançar nas observações subsequentes.

“HI HITLER!”: UM CORPO ALEMÃO NAZIFASCISTA E SUAS TÍMIDAS POSSIBILIDADES REFRATÁRIAS Ora, as janelas são para uma casa o que os cinco sentidos são para uma cabeça. MARX

Sob o viés filosófico-histórico marxista5, o termo nazifascismo nasce a partir do cruzamento dos ideários de dois regimes totalitários surgidos no período entre guerras, mais precisamente, no contexto sociohistórico de crise econômica em que se encontrava a Europa após a primeira guerra mundial. Trata-se do Fascismo estabelecido na Itália, cuja figura de maior representatividade foi Benito Mussolini; e do Nazismo, cujo principal líder foi Adolf Hitler, na Alemanha. Considerados por respeitáveis pesquisadores como sendo os dois regimes mais totalitários da história da humanidade, tanto o Fascismo quanto o Nazismo, quando conjugados, formam 5 Devido ao caráter plástico da área das Ciências Humanas e Sociais, existem diferentes vieses para compreender o Fascismo. Círculo

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uma arqueologia de características que, em termos gerais, vão de encontro a todas as axiologias que definem regimes democráticos. Dentre as muitas características do totalitarismo nazifascista apontadas por estudiosos, destacam-se: o ultranacionalismo, o anticomunismo, o antissemitismo, a religiosidade na política, a mitização de figuras públicas, o etnocentrismo, a intolerância às classes minoritárias, o antiintelectualismo e, sobretudo, o autoritarismo. Contudo, salienta-se que, embora os regimes de Mussolini e Hitler comunguem ideias totalitárias, há algumas características que lhes são específicas, justamente por se estabelecerem em contextos socioculturais distintos, mas que, paralelamente, se configuram em uma forma de comportamento político marcada por uma preocupação obsessiva com a decadência e a humilhação da comunidade, vista como vítima, e por cultos compensatórios da unidade, da energia e da pureza, nas quais um partido de base popular formado por militantes nacionalistas engajados, operando em cooperação desconfortável, mas eficaz com as elites tradicionais, repudia as liberdades democráticas e passa a perseguir objetivos de limpeza étnica e expansão externa por meio de uma violência redentora sem estar submetido a restrições éticas ou legais de qualquer natureza (PAXTON, 2007, p. 358).

Dentre as muitas aproximações verboideológicas que há entre o fascismo e o nazismo, está a linguagem corporal de seus principais regentes políticos. Benito Mussolini, por exemplo, em seus muitos discursos inflados pelo território italiano, apresentava, juntamente às suas verbalizações, uma linguagem corporal abrupta, possivelmente com o intento de emitir um imagético que reiterasse os sentidos que compunham sua arquitetônica axiológica regimental. Consonante a isso, na Alemanha, presenciava-se um regime político marcado por nefasta brutalidade, cujo principal representante é Adolf Hitler, que 186

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pela força é mantido, sem delegação, nem escolha por parte do povo. Ele simboliza a ordem social e política totalitária, não por encabeçar uma estrutura única, mas por ser independente de qualquer organização e capaz de dominar todos os centros de poder. A sua personalidade ocupa todo o espaço e é elevada pelo amorfismo das massas que lhe estão por baixo. O que ele deseja será feito. Sua vontade é lei. O Führer, assim, tem que ser livre de preconceitos; não deve respeitar homens ou ideias, pois é a ele que cabe fazer a História. Como disse Hitler: “O forte é mais forte sozinho”. O Führer é o primeiro entre os cidadãos; nunca erra, é infalível, pois age audaciosa e decididamente, como representante dos desejos da comunidade do povo, apoiado no amor entusiástico dos que ele libertou (RIBEIRO, 2005, p. 64, grifos do autor).

Essa personificação de um poderio centralizado, inicia sua jornada em 1919, na Baviera, momento em que o Partido Nazista é fundado. Na ocasião, Hitler comparecera à primeira reunião do Partido dos Trabalhadores Alemães (PTA), organizada pelo ferroviário Anton Drexler. Dentre os motes temáticos que o PTA propunha destacam-se: o anticomunismo, o antissemitismo e o descontentamento com as propositivas que compunham o Tratado de Versalhes6. Em pouco tempo de filiação, Adolf Hitler - por demonstrar em seus pronunciamentos uma retórica fanática e fervorosa -, tornou-se líder principal do grupo, lançando um conjunto de princípios ideológicos, para o partido por ele renomeado de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei - NSDAP). Dentre o conjunto arquitetônico verboaxiológico7 do nazismo, podemos encontrar diversas axiologias que perpassam, segundo 6 O Tratado de Versalhes fora um documento organizado pelas potências europeias que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. 7 O conceito de arquitetônica verboaxiológica é desenvolvido em seus pormenores no trabalho dissertativo ao qual este capítulo se faz imbricado. Entretanto, salientase, para fins elucidativos ao leitor, que, em termos gerais, ele é concebido por nossa Círculo

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Ribeiro (2005), as instâncias da ética, da economia e da política, que, quando entremeadas, formam o todo valorativo autoritário do ideário hitleriano. No que diz respeito ao aspecto ideológico nodal que, em certa medida, singulariza o nazismo quando associado ao fascismo italiano, tem-se o antissemitismo. Hitler, desde a gênese do PTA, demonstrou ser crucial para o bem da Alemanha um pensamento nacionalista étnico com o intuito de excluir os não alemães do Estado de direito. Para o ditador, a comunidade do povo (Volksgmeinschaft) só podia ser representada por pessoas puramente arianas e, para que essa configuração social fosse alcançada, era necessária a prática da eugenia, a qual culminou no Holocausto nazista, cuja premissa era de atingir diferentes tipos sociais que não correspondiam aos preceitos hitlerianos, e segregar, principalmente, a etnia judaica - com discursivizações do tipo “os judeus são nossa desgraça” (RIBEIRO, 2005, p. 48), resultando numa estimativa de 6 milhões de judeus mortos. No que tange, sumariamente, à tríade ético-político-econômica nazista, pode-se observar que este regime, embora não tenha impossibilitado a existência de propriedades privadas, manteve-as sob a égide do Estado para que as grandes empresas não viessem a se tornar instrumentos de concentração de poder. Atrelado a isso, percebe-se a contradição nomenclatural do partido nazista que, em sua denominação, carrega o termo socialista, mas, evidentemente, em nada se contrapôs a grande parte dos preceitos capitalistas arianos, e, sim, opôs-se apenas aos capitalistas de etnia judia, demonstrando que “a política fascista se alimenta da sensação de vitimização e ressentimento causada pela perda do status hierárquico” (STANLEY, 2018, p. 94). Comungado a isso, tem-se, no espectro político nazista, o anticomunismo que se estenderá ao rechaço à democracia parlamentar, autoria como sendo os sentidos que se fazem presentes no conjunto de enunciados de um determinado ator sociopolítico. 188

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ocasionando a marginalização e o assassinato de membros que se mostrassem opositivos às axiologias do NSDAP. Dessa forma, em meados de 1934, durante o movimento Noite das Facas Longas8, a Alemanha, mesmo já inserida em um sistema unipartidário, sofre, sob a coordenação dos nazistas, a destituição do presidente Paul von Hindenburg, sendo concedido a Hitler o poder totalitário da nação. Assim, materializados por meio de ações políticas precedidas de projeções discursivas, veem-se arquitetados posicionamentos socioideológicos antiliberalistas, antisemitistas, antimarxistas e “nacionalistas” que, alicerçados por grupos paramilitares, utilizaram da liberdade parlamentar para instituir um regime que substituiu a democracia pela tirania, fazendo uso das “liberdades da democracia contra ela mesma” (STANLEY, 2018, p. 44). Devido à destreza retórica do austríaco, o nazismo aproveitou essa imagem e endeusou Hitler como o demiurgo apto a manifestar o infinito da pulsação cósmica que traz consigo e o anima. Nas escolas alemãs chegaram a ensinar as crianças a recitarem orações como esta: Führer, meu Führer que Deus me deu. Protege e conserva por muito tempo a minha vida. Tu salvaste a Alemanha dos abismos da miséria. É a ti que devo o pão de cada dia. Conserva-te muito tempo junto de mim, não me abandones. Führer, meu Führer, minha fé, minha luz. Salve meu Führer (RIBEIRO, 2005, p. 66, grifos do autor).

Consequentemente, além de discursivizações como essas, compreendidas na arquitetônica verboaxiológica nazista, encontra-se, enquanto signo ideológico, o todo corpóreo de Adolf Hitler. Analisa-se, a seguir, uma imagem emblemática que ilustra esse fenômeno:

8 Movimento organizado pela milícia de Adolf Hitler, na noite de 30 de junho de 1934, em que ocorreram diversas execuções de políticos que se opunham a ideologias preconizadas pelo partido nazista. Círculo

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FIGURA 2 – Projeção corpóreo-discursiva ‘Hi Hitler’

Fonte: O HOMEM (2012, [s. p]).

A figura antecedente consiste em uma fotografia, publicada no dia 22 de março do ano de 1991, no jornal semanário alemão Die Zeif. Trata-se de um registro no qual a situação discursiva esboçada data do dia 13 de junho de 1936, dia em que Adolf Hitler realizou um comício, em Hamburg, para trabalhadores do estaleiro Blohm & Voss, apresentando como conteúdo temático central de seu discurso o lançamento de um navio-escola da marinha alemã. Embora, sob o viés bakhtiniano, faça-se importante analisar situações discursivas imersas em cronotopos específicos, ou seja, em um tempo e um espaço contextualizados, o que se destaca, neste momento analítico, é o gesto corporal dos inúmeros sujeitos retratados na imagem. Percebem-se diversos homens cujos braços direitos encontram-se estendidos no ar, em angulação de 45° ou 90° graus - a depender das condições espaciais disponíveis -, com a palma da mão disposta para baixo e os dedos reunidos. Trata-se de um movimento corporal bastante divulgado e investigado pela historiografia fascista, e que traça uma relação imbricada com o enunciado concreto Heil Hitler! (Salve Hitler!), utilizado como 190

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saudação a Führer por qualquer sujeito que o encontrasse e, principalmente, em resposta a seus discursos proferidos para grandes massas. Existem várias controvérsias em relação à criação da saudação verbogestual Salve Hitler!. Alguns historiadores designam a sua gênese a Joseph Goebbels9, outros, ao próprio Hitler. Além disso, encontra-se, na literatura que se propõe a versar sobre regimes fascistas, uma aproximação desse movimento corporal à saudação corpórea em massa a Benito Mussolini, durante seu regime, atrelando-se, por sua vez, aos movimentos corporais realizados na Roma Antiga. Independentemente das disparidades quanto à origem desta linguagem corporal, o que se pode compreender, em termos discursivos, é que este movimento gesto-verbal não somente indica uma concordância com o navio marítimo, mas, principalmente, um comungar com toda ou grande parte da verboaxiologia construída por Hitler até o momento em questão. Este gesticular idêntico e/ou aproximado, feito e reverberado em diversas ocasiões nas quais o corpo de Führer se fazia presente, reitera a ideia de que sua materialidade física funciona como um signo ideológico cuja existência é garantida por um coral de apoio. Portanto, a enunciação corporal dos sujeitos da imagem precedente, dá-nos a possibilidade de interpretá-la com um sim ao ódio pelos judeus e pelas minorias, bastante presente nas discursivizações hitlerianas, um sim ao propagandismo falacioso, ao machismo, ao racismo, à homofobia, ao militarismo brutal e assassino vigente na época regimental nazifascista, ao clientelismo capitalista benéfico a uma elite estratificada da sociedade alemã. Desse modo, a linguagem corporal de seu coral de apoio revela um signo ideológico que reflete e refrata uma realidade concebida por uma visão de mundo autoritária, totalitária e cruel. 9 Político nazista e Ministro da Propaganda do regime de Adolf Hitler. Círculo

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No entanto, sob o prisma bakhtiniano, o sujeito não é concebido como sendo cartesiano, biológico, pragmático e, tampouco, assujeitado, uma vez que eu sou “participante no existir de modo singular e irrepetível, e eu ocupo no existir singular um lugar único, irrepetível, insubstituível e impenetrável na parte de um outro” (BAKTHIN, 2010, p. 96). Logo, embora exista um coro de apoio ideológico dado a Hitler, cada sujeito participante de seu ideário, valora sua presença corpórea de forma distinta, a depender de seu hic et nunc. Os sentidos que emergem do discurso interior, alicerçado pelo exterior, são inúmeros e imensuráveis, revelando que cada sujeito é um microuniverso polissêmico. Outro ponto a se atentar na imagem é o círculo à direita revelando um homem que, contrariamente a todos os outros sujeitos presentes, nega a enunciar-se corporalmente. Devido a essa negação, a fotografia se tornou, midiaticamente, famosa, resultando, inclusive, em contradições na identificação do operário metalúrgico – alguns afirmam ser Landmesser, outros dizem ser Wegert. Independentemente de quem seja, faz-se importante destacar que o ato de negar a saudação corpórea a Hitler pode ser lido como uma refração frente ao seu corpo ideológico e as axiologias que dele emergem. Do ponto de vista dialógico-discursivo, este fenômeno ocorre pelo fato de a materialidade corporal de Hitler agir por meio de forças centrípetas diante dos sujeitos sociais, impondo-se enquanto única verdade a ser reconhecida e refletida no horizonte espaço-temporal da sociedade alemã. Há, no projeto enunciativo de Hitler, o intento nodal de monologização discursivo-axiológica, que pode ser atestada, em grande parte, pela submissão corpórea diante de sua presença físico-ideológica. Ao mesmo tempo, presencia-se um sujeito que rechaça essa submissão, age de forma centrífuga e, ao não discursivizar seu corpo, luta para que outras interpretações de mundo se tornem possíveis, outras verdades sociais, plurivalências valorativas. Consequentemente, por um lado temos um conjunto de corpos inclinados à submissão 192

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– nos muitos sentidos em que esta palavra pode ser configurada; de outro, um corpo que nega a ideologia hitleriana, mesmo que de forma tímida devido às restrições que o regime totalitário impõe. Assim, o corpo de Hitler se faz signo ideológico, participando e contribuindo para o caráter tensivo da malha discursiva nazista. Como enunciado em observações precedentes deste trabalho, “o ressurgimento, pois, do fascismo continua possível, sobretudo hoje – mesmo que, provavelmente não se revista agora exatamente das mesmas formas de que se revestiu no passado” (POULANTZAS, 1978, p. 10). Partindo dessa proposição, passemos a seguir para a observação de uma possível dialogicidade corpórea entre o nazismo e a realidade atual da política brasileira.

UMA ARMINHA E UM L MANUAL EM RISTE: O NAZIFASCISMO BRASILEIRO CORPORIFICADO E SUAS REFRAÇÕES RESPONSÍVEIS O signo bakhtiniano (...) exige também uma atitude dialógica de um outro sujeito, o qual produz signos, num exercício de aproximação entre o signo em observação e outros já conhecidos. DI FANTI

Para que se possa analisar o corpo nazifascista brasileiro10 ao qual este capítulo referencia, faz-se necessário versar, mesmo que sumariamente, sobre o processo sociopolítico que precedeu as eleições presidenciáveis de 2018, uma vez que os mecanismos processuais discursivos que o antecedem se fazem refletidos no resultado final das urnas eleitorais. RRealizada em dois turnos, a eleição presidencial teve 14 candidatos, sendo o segundo turno 10 Salienta-se que os ecos nazifascistas na corporificação brasileira aqui analisada fazem referência ao quadro atual da política brasileira. No entanto, cabe lembrar que esse fenômeno pode ser visualizado em diferentes momentos de nossa historiografia como, por exemplo, na época da ditadura militar. Círculo

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disputado pelo candidato Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT), totalizando 44,87% dos votos computados pela Justiça Eleitoral, e pelo candidato Jair Messias Bolsonaro, do Partido Socialista Liberal (PSL), sendo o vencedor da disputa com 55,13% dos votos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Esse resultado pode ser atribuído em parte à atmosfera socioeconômica que o circundou: Na esfera política, o juiz Sergio Moro condena, com visível inexistência de provas materiais, em setença ridicularizada por especialistas internacionais, o ex-presidente Lula à cadeia. Líder isolado nas pesquisas, Lula tinha a preferência de cerca de 40% do eleitorado, o dobro do segundo colocado, Jair Bolsonaro. As eleições foram, por sua vez, dominadas por fake news e acusações de financiamento ilegal em favor do candidato que antes detinha apenas metade das intenções de votos de Lula. Terminado o pleito, Bolsonaro eleito, Sergio Moro receberia como prêmio ao seu “trabalho” o cargo de superministro das atividades repressivas (SOUZA, 2019, p. 250).

Além dessas características factuais, outro elemento que indicia ter caráter de contribuinte ao resultado do processo eleitoral foi o fato de, além da reputação do Partido dos Trabalhadores ter sido maculada por boa parte da esfera jornalística brasileira, Jair Messias Bolsonaro sofrera um atentado substancialmente atípico. Em um dos seus pronunciamentos eleitorais, na cidade de Juiz de Fora (MG), o candidato foi vítima de uma suposta facada. No entanto, há várias especulações e teorias conspiratórias não esclarecidas à sociedade civil brasileira quanto aos acontecimentos devidos do caso. Consequentemente, o ocorrido na cidade mineira serviu de engodo para boa parte do seu eleitorado, resultando em enunciações nas mais diversas plataformas digitais sob a insígnia do “homem que sobreviveu”, sentido este bastante presente na ditadura nazifascista semantizando força e heroísmo.

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Embora Jair Messias Bolsonaro já tivesse construído 30 anos de carreira política, seu desempenho enquanto parlamentar pode ser considerado inexpressivo, uma vez que, no conjunto de seus mandatos, obteve apenas um projeto aprovado na Câmara dos Deputados. Umas das explicações para isso é o fato de o político, em suas discursivizações, apresentar-se avesso aos princípios democráticos, característica esta que fora acentuada no seu projeto enunciativo de campanha eleitoral. Todavia, mesmo apresentando, em seus pronunciamentos, considerável inclinação às ideologias fascistas - citadas na seção antecedente deste capítulo - o fracasso dos candidatos que representavam a elite brasileira (Geraldo Alckmin, por exemplo) “jogou toda a elite nos braços de Bolsonaro. Afinal, o fascismo sempre foi o ‘plano B’ dos proprietários que só pensam no próprio bolso em todos os casos históricos relevantes.’’ (SOUZA, 2019, p. 250). Dentre as muitas ideologias do candidato que se atrelaram à arquitetônica verboideológica do nazifascismo, está sua campanha armamentista. No que tange a isso, observam-se, primeiramente, as imagens ilustrativas que seguem: FIGURA 3 – Projeção corpóreo-discursiva da ‘arminha’

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Fonte: COM AGENDA (2019, [s. p.]) e LIMA (2018, [s. p.]).

As imagens precedentes, embora possuam suas singularidades semânticas por questões cronotópicas, aproximam-se da imagem de Hitler, anteriormente analisada, pelo fato de estarem imbricadas, axiologicamente, a um invólucro ideológico mais amplo. Durante sua campanha eleitoral, Jair Bolsonaro apresentou, como um dos motes principais de seu pretenso plano governamental, o afrouxamento armamentista. Sob a égide do enunciado concreto “Bandido bom é bandido morto”, o candidato sugeriu, como forma de resolução dos altos índices de criminalidade nacional, a flexibilização legal para o porte de arma de fogo. Conforme proferiu em uma entrevista dada à Rede TV, no dia 11 de outubro de 2018: Pretendo sim, no que depender de mim, pois isso passa pelo parlamento, fazer com que todo cidadão de bem, homem ou mulher, caso queiram ter uma arma dentro de casa, cumprindo alguns critérios, possam tê-la. Quanto ao porte, ele não pode ser tão rígido como temos no momento (MUDANÇA, 2019, [s. p.], grifos nossos).

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Inicialmente, o que nos chama atenção na enunciação do então candidato à presidência é o da expressão cidadão de bem que, embora não seja objeto de especulação deste trabalho, nos leva à observação das possíveis erupções semânticas que dela podem emergir. Ao fazer o uso dessa expressão, o candidato não especifica por qual ângulo está concebendo as noções de cidadania e bem, cujos sentidos são amplos e envolvem áreas diversas como a filosófica, a sociológica, a jurídica, a psicológica e, inclusive, a religiosa. Contudo, como “não pode haver um ‘sentido em si’ – ele só existe para outro sentido” (BAKHTIN, 2017, p. 42), ao relacionarmos essa expressão à malha discursiva histórica do candidato, podemos perceber que o cidadão de bem ao qual ele se refere é heterossexual, preferencialmente branco e religioso, uma vez que o candidato, em diversos pronunciamentos de sua carreira pública, mostrou ter aversão aos homossexuais, ser racista e “cristão”. Esculpindo o seu cidadão de bem, Jair Messias Bolsonaro, ao perceber que sua campanha armamentista frutificaria, cria o sinal da “arminha” manual, gesticulando-o em inúmeros eventos de campanha eleitoral para fins de criminalizar grupos sociais que não comungavam com a arquitetônica verboaxiológica do seu projeto. Tornou-se comum, durante a campanha, o gesto manual vir acompanhado por terminologias como vagabundo, petralha, criminoso, marginal etc., pois, “no gesto sempre dorme o embrião do ataque ou da defesa, da ameaça ou do carinho, sendo que ao observador é reservado o lugar de cúmplice ou testemunha” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 127). E, neste caso, Jair Bolsonaro encontrou em seus observadores um robusto coral de apoio para sua reverberação, caso contrário, sua campanha armamentista teria erodido, “como acontece quando uma pessoa, ao rir, de repente percebe que está rindo sozinha: o seu riso cessa ou se altera” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 124). A partir dessa ancoragem ideológica, presenciaram-se na sociedade brasileira inúmeras situações semiodiscursivas em que Círculo

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muitas pessoas recebiam e enalteciam o presidenciável com o seu gesto manual. Dentre os subgrupos que integram seu coral de apoio, podem ser encontrados religiosos, políticos, policiais, formandos universitários e da educação básica e, inclusive, crianças. A segunda imagem por nós elencada demonstra este culto ao gesto manual. Consiste em um grupo de apoiadores de Jair Bolsonaro que organizou uma coreografia cujo vídeo foi postado na rede social Facebook, no dia 8 de setembro de 2018, momento fervoroso da campanha presidenciável e que se procedeu logo após o suposto atentado sofrido pelo candidato. A performance coreográfica ocorreu à beira mar, na cidade de Fortaleza, ao coro sonoro de uma produção musical cuja composição fazia súplicas pelo voto no candidato, bem como menção à necessidade de se aderir ao projeto armamentista. O ato de todos os envolvidos fazerem sincronicamente o gesto manual de arminha dá-se devido à sua inserção no gênero coreografia. No entanto, em eventos distintos em que a presença corpórea de Bolsonaro se fazia presente, o gesto era reverberado, muitas vezes, de forma assíncrona, uma vez que, contrariamente ao que ocorria na Alemanha, antes e durante a instauração totalitária, era obrigatório o gesto submisso a Hitler. No Brasil, entretanto, o gesto reverberado deu-se, muitas vezes, sem a obrigação no nível do dito. Ademais, cabe lembrar que, após a sua vitória, presencia-se esse gesto manual em muitas ocasiões em que Jair Bolsonaro se encontra, porém não mais com tanta veemência. Embora não se possa afirmar que o coral de apoio, ao reverberar seu gesto manual, compactue com sua ideologização de forma equipolente devido ao caráter singular dos sujeitos envolvidos, o gesticular arminhas na presença corporal de Jair Bolsonaro reitera seu corpo enquanto sendo um signo ideológico. Tem-se um material imagético que suscita responsividade e, para além disso, não apenas um comungar com o armamentismo. Pode-se ler esta reverberação corpórea como um sim ao ódio apresentado pelo ator social às ideologias de gênero, um sim ao racismo, à xenofobia, ao 198

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patriarcalismo, ao machismo, entre outras ideologias que acompanharam seus discursos de vida pública e política. Assim como a presença corpórea de Hitler suscita submissão, pacto e aceitação aos sentidos autoritários e ditatoriais por ele defendidos, o corpo de Jair Messias Bolsonaro também faz surgir idealizações ao “mito”, ao “homem que sobreviveu”, ao “salvador da pátria”, sentidos esses que dialogam com as situações de interação discursiva que circundaram e perpassaram pela arqueologia fascista e por isso se mostram concordatas ao hitlerianismo. Em contrapartida, nesta combustão discursiva de ambientação eleitoral, renasce um gesto corporal de um coral de apoio divergente às ideologias apresentadas e defendidas por Jair Messias Bolsonaro e seus seguidores. Trata-se do L manual gesticulado por apoiadores da política construída por Luiz Inácio Lula da Silva, ator sociopolítico com expressiva representatividade social do Partido dos Trabalhadores. Durante sua vida pública, tornou-se habitual em seus pronunciamentos, seus interlocutores projetarem o L manual, direcionando-o a sua presença corpórea para semantizar pacto, carinho, admiração, concordância, entre outras valorações. Contudo, no processo eleitoral de 2018, esse gesto corpóreo passou a sinalizar sentidos que vão para além de subjetividades passionais. Visualiza-se, primeiramente, o gesto: FIGURA 4 – As responsividades do L em riste

Fonte: LULA (2019, [s. p.]). Círculo

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O sentido nodal que a projeção manual em L da imagem precedente, ao se fazer presente e bastante reverberado nas eleições de 2018, relaciona-se, diretamente, ao processo judiciário da prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, que resultou na impossibilidade de sua participação na disputa eleitoral. Como dito inicialmente nesta seção, diversas autoridades da esfera jurídica, sobretudo a internacional, consideraram a ordem carcerária dada a Lula inconstitucional devido ao obscurantismo que marcou seu processo sentencial, assinalado pela ausência de documentos comprobatórios que sustentam a acusação. Logo, é possível interpretarmos que o fio semântico condutor do L manual é a desaprovação à prisão do político, bem como um pedido a sua liberdade, sob a ancoragem verbal do enunciado concreto “Lula Livre”, bastante reverberado em redes sociais na época. No entanto, desta axiologia nuclear, emergiram sentidos que não refratam unicamente o processo de prisão e o pedido de liberdade do então pré-candidato, mas, também, passa a acenar para as possibilidades ideológicas asfixiadas na arquitetônica verboideológica de Jair Bolsonaro. Dessa forma, o L em riste se torna essencial para a campanha eleitoral de Fernando Haddad, candidato substituto de Lula, uma vez que rechaça os sentidos que circundam o cárcere do ex-presidente e, ao mesmo tempo, mostra-se responsível à arminha manual e às semânticas que ela sugere. Para além da negação ao porte de armas, o L em riste sugere a negação aos sentidos imersos no projeto enunciativo do candidato Jair Bolsonaro, uma vez que eles vão de encontro ao processo de redemocratização brasileira, que se intensificou nos 16 anos de poder esquerdista (FRATESCHI, 2018). Deste modo, assim como pôde ser percebida a tensão discursiva que permeou o nazifascismo, a partir das imagens analisadas, no Brasil, durante o período eleitoral, veem-se corpos em embates axiológicos, posições discursivas em confronto, mãos que retratam 200

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a linguagem verbal e corporal como sendo universos contraditórios. Assim, o corpo se concretiza enquanto signo ideológico, convocando, por meio da díade gestual-verbal, atitudes responsivas ativas e suscitando entrechoques sociais.

PALAVRAS (NÃO TÃO) FINAIS O fascismo, pela natureza de sua organização, não suporta colaboradores com paridade de direito, quer apenas servos acorrentados. GRAMSCI

Ao versar, inicialmente, de maneira sumária, sobre as questões que orbitam o universo da linguagem corporal, este capítulo se propôs a perscrutar, sob a ótica da teoria dialógica do discurso, como se projeta, discursivamente, o corpo enquanto sendo um signo ideológico. Nesse sentido, ao ser escolhida a linguagem corporal sob a insígnia da política autoritária, visou-se não apenas mostrar como o totalitarismo nazista buscou monologizar suas axiologias pelo verbal, mas, também, evidenciar a ancoragem dada ao verbal pelo corporal, de modo que, ambos se relacionam dialeticamente. Devido às limitações espaciais que uma publicação implica (e que se fazem justificadas), não foi possível pormenorizar as verboaxiologias que permearam o projeto enunciativo de Hitler como um todo, ou seja, sua arquitetônica verboaxiológica. No entanto, tentou-se, mesmo que sucintamente, evidenciar as ideologias principais que se fizeram imersas durante esse regime ditatorial e, principalmente, como corporificaram pelo gestual “Hil Hitler”. Da mesma forma, buscou-se evidenciar, nesse movimento investigativo, a realidade corpórea brasileira no período eleitoral de 2018, mostrando uma possível dialogicidade entre o gesto da arminha e o a linguagem corporal hitleriniana, uma vez que, em Círculo

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ambas projeções, emergiram sentidos que se integram a um escopo autoritário e, por isso, cultuam à violência. Ademais, tanto na Alemanha Nazista quanto no Brasil atual, presencia-se a submissão corporificada de um coro de apoio frente a um ator sociopolítico que ideologiza ações políticas antidemocráticas. No entanto, visto que a linguagem funciona como uma arena de visões axiológicas, discursivizadas ideologicamente, percebeu-se que há corpos que se projetam contrários aos sentidos reverberados pelos políticos em questão. Embora o sistema nazista tenha impossibilitado, quase que totalmente, a legitimidade de visões de mundo que divergiam do que impunha, atestou-se, na imagem analisada, um fenômeno de refração, mesmo que tímido. No Brasil, por conseguinte, observam-se ecos das ideologias nazifascistas pelas enunciações de Bolsonaro e seu coro de apoio, materializadas, dentre muitas coisas, pela arminha. No entanto, pelo fato de as imagens referentes ao Brasil aqui analisadas estarem numa situação cronotópica que, por ora, pode ser considerada democrática, a refração se torna mais permissiva e visível. De certa forma, isso pode sugerir, a partir do que foi analisado, uma polarização no âmbito brasileiro mais acentuada comparada à ambientação alemã. Todavia, é importante salientar que a teoria bakhtiniana fornece subsídios para analisar as interações discursivas por diversos flancos, não nos permitindo ter a veleidade de preconizar que o enfoque aqui apresentado é o único possível. Além disso, cabe sublinhar que, sob o enfoque dialógico, as singularidades devem ser contempladas e, por isso, não somente os sujeitos que integram os polos ideológicos aqui analisados valoram o “Hi Hitler”, o silêncio ao “Hi Hitler”, a arminha e o L em riste. Há sujeitos que se projetam e valoram, de maneiras diversas, ao meio desses polos, não cabendo a presente autoria, nesta conjuntura investigativa, lançar-se às múltiplas dimensões interpretativas.

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No entanto, ao destacar a polarização, mostrou-se a veracidade do corpo enquanto signo ideológico, evidenciando sua capacidade de se projetar, dos anseios elementares aos mais complexos, nos quais a esfera política sempre se mostrou presente. Em muitos casos, como na Alemanha, os resultados da reverberação corpórea autoritária trouxeram danos imensuráveis à sociedade alemã. A história nos mostra o quanto o nazifascismo, escolhido em prol do caminho democrático, tornou-se o algoz de quem por ele optou. Suas projeções semiodiscursivas anunciaram e legitimaram armas e uma forma de governar singularmente letais, tolhendo vidas e condicionando inúmeros sujeitos a uma subsistência quase espectral. No Brasil atual, por sua vez, podem ser percebidos os ecos discursivos desta arquitetônica ideológica, a começar pelo corpóreo. Resta-nos tentar mitigar o impacto dos seus reflexos sociais. Embora, antecipadamente, a historiografia nos sugira que, neste resgate semântico, o final é, inevitavelmente, desastroso, pois os sujeitos, ao se guiarem pelo caminho autoritário “apenas podem morrer por ele, mentir por ele, matar e ensanguentar por ele. Ninguém, na solidão central de seu eu, pode almejar que ele triunfe” (BORGES, 2007, p. 155).

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017.

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do Ato Responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

BORGES, J. L. Outras inquietações. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Círculo

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MUDANÇA no Estatuto do Desarmamento é promessa de campanha de Bolsonaro. G1, Brasília, 15 jan. 2019. Disponível em: https://g1.globo. com/politica/noticia/2019/01/15/mudanca-no-estatuto-do-desarmamento-e-promessa-de-campanha-de-bolsonaro.ghtml. Acesso em: 3 maio 2019. O HOMEM que não saudou os nazistas. O Globo, Rio de Janeiro, 9 fev. 2012. Mundo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/o-homem-que-nao-saudou-os-nazistas-3923145. Acesso em: 1 maio 2020. PAXTON, R. O. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

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ROUSSEAU, J. Ensaio sobre a origem das línguas. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

SCHWARCZ, L. M. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. SOUZA, J. A elite do atraso. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.

STANLEY, J. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. Tradução de Bruno Alexander. Porto Alegre: L&PM, 2018.

QUAL é a origem do suástica, o símbolo nazista? Super Interessante, São 204

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Paulo, 4 jul. 2018. Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/qual-e-a-origem-da-suastica-o-simbolo-nazista/. Acesso em: 1 maio 2020. VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. VOLÓCHINOV, V.; BAKHTIN, M. M. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.

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RELAÇÕES AXIOLÓGICAS DA VISÃO DOMINANTE DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: ANÁLISE DOS DISCURSOS DE LINGUISTAS BRASILEIROS

Giselle Liana Fetter1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

INTRODUÇÃO A divulgação científica tem gerado, ao longo dos anos, diversas pesquisas em diferentes áreas do conhecimento. Na área de Letras, os programas de pós-graduação stricto sensu possuíam, no ano de 20172, 15 projetos de pesquisa em andamento, cadastrados à plataforma Sucupira da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com o objetivo de desenvolver estudos em divulgação científica (BRASIL, 2018). No catálogo de teses e dissertações da CAPES3, há, entre os anos de 2015 e 2019, 67 trabalhos publicados sobre o tema na grande área de conhecimento denominada “Linguística, Letras e Artes”. 1 Mestra em Linguística pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutoranda do curso de pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS. Membro do grupo de pesquisa Tessitura: Vozes em (Dis)curso. http://orcid.org/0000-0002-55772214. E-mail: gisellerevisora@gmail.com. 2 Ano base disponível para consulta em abril de 2019 (data do início da coleta de dados para pesquisa de doutorado). 3 Pesquisa realizada pela busca do termo “divulgação científica” no dia 3 de janeiro de 2020 (BRASIL, 2016). 206

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Apesar de não ser possível apresentar, neste breve capítulo, um comparativo que abranja anos anteriores, esses poucos dados sobre os estudos da divulgação científica na área da Linguística nos demonstram que o tema continua a suscitar novas investigações. Assim, este capítulo integra esse rol de pesquisas e explora uma questão ainda não observada pela Linguística. Nas leituras por nós realizadas acerca da divulgação científica no Brasil, identificamos que muitos linguistas argumentaram, em suas pesquisas sobre esse gênero do discurso, que haveria entre os cientistas uma visão dominante. A “visão dominante” a qual se referem os linguistas foi apontada por Stephen Hilgartner em seu artigo publicado em 1990 e, posteriormente, reiterada por Greg Myers (2003), ambos pesquisadores estadunidenses. Segundo Hilgartner (1990, p. 520, tradução nossa), os cientistas caracterizam a divulgação científica como uma distorção do discurso científico, e este, por sua vez, seria o “conhecimento genuíno, objetivo e cientificamente certificado”. Contudo, o autor, assim como Greg Myers (2003) e os linguistas brasileiros não apresentam estudo estatístico que corrobore suas afirmações de que os cientistas, em sua maioria, conceberiam a divulgação científica como um discurso distorcido da ciência. De acordo com levantamento de artigos científicos produzidos na América Latina (MASSARANI; ROCHA, 2017, p. 23), a divulgação científica atingiu seu pico em número de pesquisas entre os anos de 2013 e 2015. Considerando que esse pico de investigações ocorreu aproximadamente 30 anos depois da publicação do artigo de Hilgartner (1990), questionamo-nos sobre a validade da visão dominante para a divulgação científica brasileira e sobre o porquê de essa premissa ainda ser apresentada pelos linguistas para tratar do tema. Na Linguística, são escassas as pesquisas que investiguem o cientista e sua relação com a divulgação científica. Geralmente, estuda-se os gêneros do discurso de divulgação científica, Círculo

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especialmente, textos publicados na mídia. Dessa forma, nossa pesquisa de doutorado em desenvolvimento tem o propósito de analisar os discursos dos cientistas brasileiros4 de modo a verificar quais seriam suas concepções a respeito da divulgação científica. Neste capítulo, que se constitui como uma etapa dessa pesquisa de doutorado, temos o objetivo de analisar os discursos dos linguistas brasileiros que se fundamentaram na visão dominante da ciência (HILGARTNER, 1990), discorrendo sobre as impressões valorativas que transparecem em suas argumentações e as relações dialógicas envolvidas nesses discursos. O interesse em explorar essa questão jaz na influência que os artigos científicos desses linguistas podem exercer sob pesquisadores que investigam a divulgação científica. Fundamentamos nossa análise na teoria dialógica do discurso – Círculo de Bakhtin –, que será abordada na próxima seção. Como corpus, coletamos 18 artigos científicos de linguistas brasileiros, publicados entre os anos de 2009 e 2016, que citam Hilgartner (1990) e/ou Myers (2003). Na seção intitulada Relações dialógicas e valoração nos discursos dos linguistas, abordaremos os discursos dos linguistas, retomando alguns aspectos tratados no artigo de Hilgartner (1990). Por fim, traremos algumas considerações sobre a análise apresentada e sobre o desenvolvimento de estudos em divulgação científica.

HORIZONTE AXIOLÓGICO-DIALÓGICO DO CÍRCULO DE BAKHTIN O Círculo de Bakhtin era composto por intelectuais e cientistas de diferentes áreas, que debatiam assuntos ligados à política, cultura, entre outras discussões filosóficas. No que tange à questão da linguagem, podemos dizer que Mikhail Bakhtin, Valentin 4 Um estudo preliminar foi realizado em Fetter (2020), em que analisamos as concepções de divulgação científica em dois artigos da área da Física e da Linguística. 208

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Volóchinov e Pável Medviédev foram os membros que se dedicaram com mais afinco aos estudos linguísticos. Apesar de os componentes do Círculo nunca terem propositalmente formulado uma teoria da linguagem, seus preceitos motivaram “o nascimento de uma análise/teoria dialógica do discurso” (BRAIT, 2009, p. 9-10). A perspectiva de linguagem proposta pelo Círculo de Bakhtin evidencia que a língua não está limitada apenas ao código que temos diante de nossos olhos. Em um enunciado, mesmo que ele seja constituído de uma única palavra, há um horizonte de significações que ultrapassam o sistema linguístico e que estão condicionadas à vivência social e cultural do indivíduo. A teoria dialógica do discurso permite observar os enunciados a partir de uma concepção de linguagem que transcende o código linguístico. Para Bakhtin (2010, p. 207), a linguística possui limitações na análise da língua, pois abstrai do estudo do discurso os “aspectos da vida concreta”. Esses aspectos conduziram Bakhtin a propor a metalinguística em sua obra sobre Dostoiévski, publicada, pela primeira vez, em 1929. A metalinguística estudaria as relações dialógicas do discurso, ou seja, “as relações de sentido entre os diferentes enunciados” (BAKHTIN, 2016b, p. 88). Bakhtin (2016b) não deprecia o valor da linguística, pelo contrário, enfatiza que tanto a linguística quanto a metalinguística são complementares, são duas perspectivas que contemplam a língua de modos distintos. A dimensão extralinguística da linguagem, apoiada nessa perspectiva da metalinguística, concretiza-se por meio de enunciados, que se entrecruzam por relações dialógicas. O elemento dialógico da linguagem se instaura na relação do eu e do(s) outro(s). Logo, como explica Brait (2014, p. 15), as relações dialógicas “não estão prontas, acabadas nos textos em si, nos enunciados em si”, já que estão impregnadas pelo campo da vida. Complementarmente, Di Fanti (2003, p. 98) observa que os sentidos – as significações – são possibilidades e não podem ser Círculo

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reduzidos ou limitados. Podemos dizer que o sentido é algo relativo, visto que não está finalizado, mas está sempre em relação com outros sentidos precedentes. Ademais, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e dos alheios com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (BAKHTIN, 2016a, p. 26).

As relações dialógicas estabelecidas entre enunciados podem ser entendidas como um diálogo constante, em que os enunciados carregam enunciados de outros. Porém, ainda que tenhamos dois enunciados iguais, cada um é singular e único, e pertencente a um determinado espaço no tempo. Dessa forma, a ideia de “diálogo constante” que mencionamos não significa ininterrupto, pelo contrário, queremos enfatizar que nossos discursos estão marcados pelos discursos alheios, pelas vozes sociais de outros. O que determina os limites – exauribilidade – do enunciado é a alternância de sujeitos, com seus pontos de vista que concordam e discordam. Os enunciados possuem “um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros” (BAKHTIN, 2016a, p. 29). Ao compreendermos as relações dialógicas, percebemos que o aspecto propriamente dialógico se revela na inseparabilidade dos discursos, pois nosso discurso não é só nosso: “[...] o enunciado é representado por ecos como que distantes e mal percebidos das alternâncias dos sujeitos do discurso [...]” (BAKHTIN, 2016a, p. 61). Contudo, não há só ligação com enunciados antecedentes, conforme Bakhtin (2016a, p. 62), os “elos” também se compõem por enunciados posteriores, que consistem na expectativa de resposta, na “ativa compreensão responsiva”. 210

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A todo momento, quando enunciamos algo, estamos respondendo a enunciados anteriores. Tal atitude responsiva pode corresponder tanto a uma réplica imediata ao que ouvimos quanto a uma resposta “de efeito retardado” (BAKHTIN, 2016a, p. 25). Todo enunciado possui essa característica intrinsecamente responsiva, que requer uma tomada de posição, pois “devemos formular respostas enquanto vivermos” (HOLQUIST, 2002, p. 28, tradução nossa). Essa “cadeia complexa de enunciados” (DI FANTI, 2003, p. 101), que respondem a enunciados antecedentes e provocam outros subsequentes, concebe o diálogo como “a forma mais natural da linguagem” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 272). O diálogo é um conceito-chave na teoria dialógica do discurso e é, por meio dele, que nos relacionamos com o outro – e outros. Até mesmo o enunciado aparentemente monológico ou o discurso mais íntimo contém uma essência dialógica, dirige-se a um outro, a um ouvinte. O ouvinte também é falante, isto é, não está em uma conversa – ou leitura – passiva; ele compreende e responde. Sua resposta pode ser de “concordância ou discordância”, porém, independentemente da posição assumida, a atitude diante do enunciado configura sua “percepção avaliativa” (VOLÓCHINOV, 2019b, p. 273). Ao responder a um enunciado, não estamos julgando as significações das palavras isoladamente, mas “o sentido, o conteúdo, o tema contidos na palavra, ouvida ou lida” (VOLÓCHINOV, 2019c, p. 316, grifos do autor). A avaliação referente ao sentido do enunciado condiz com a situação social em que estamos inseridos. No ensaio A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica, Volóchinov (2019a, p. 124) reflete sobre a questão da valoração – axiologia –, referindo-se a um grupo social como “coro de apoio”. Nossas percepções sobre os discursos são compartilhadas com os indivíduos de nossa classe, de nosso grupo social. Tais valorações estão condicionadas à coletividade,

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e reconhecidas “como dogma” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 122), conduzindo nossos pontos de vista. Assim ocorre com o signo ideológico (VOLÓCHINOV, 2017). Os grupos sociais e suas épocas constituem o “repertório de formas discursivas da comunicação ideológica” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 109), e o signo é a representação das mudanças históricas na sociedade. Por meio da interação discursiva, os sistemas ideológicos se organizam, e “a mudança dessas formas acarreta uma mudança do signo” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 109). A influência do grupo social não é infalível. As visões do grupo podem enfraquecer em nossa consciência. Sendo o signo ideológico fruto das interações sociais, ele também está sujeito às mudanças sociais, mas é “capaz de fixar todas as fases transitórias” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 106). Enquanto certo grupo “perde a força” (VOLÓCHINOV, 2019a, p. 124), outro se fortalece, como retoma Volóchinov (2019b, p. 275-276, grifo do autor) em Estilística do discurso literário II: a construção do enunciado, ‘Meu ato será ruim?.’ De qual ponto de vista? Do meu, pessoal? Contudo, de onde eu tirei esse ponto de vista ‘pessoal’, a não ser dos pontos de vista daqueles que me educaram, com quem estudei, daqueles que li em jornais e livros, que ouvi manifestações e palestras? E se eu negar as opiniões do grupo social ao qual pertencia até aquele momento, é somente porque a ideologia de outro grupo social dominou a minha consciência, a preencheu e a obrigou a reconhecer a razão da existência social que a havia gerado (VOLÓCHINOV, 2019b, p. 275-276, grifo do autor).

A partir dessa reflexão, Volóchinov (2019b) nos proporciona sintetizar que os enunciados, até mesmo os mais íntimos, como já mencionamos, estão repletos de relações dialógicas. Elas, por sua vez, produzem os elos que encadeiam as respostas. Quando respondemos a um enunciado, em consentimento ou em reprovação, manifestamos certa avaliação advinda do grupo social ao 212

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qual pertencemos. Nossas posições avaliativas contextualizam nossa vivência, pois “viver significa ocupar uma posição axiológica em cada momento da vida, significa firmar-se axiologicamente” (BAKHTIN, 2011, p. 174). Cabe-nos destacar o interesse dessas questões da teoria dialógica do discurso no que tange à análise dos discursos dos linguistas sobre a visão dominante. Como linguistas que pesquisam a divulgação científica, fazemos parte desse grupo social. Por essa razão, já nos valemos, em análise anterior (FETTER, 2017), dessa visão de que os cientistas se opõem à divulgação científica, visto que eram diversos os trabalhos que se apoiavam em tal premissa. Além disso, muitas pesquisas utilizavam o argumento de Hilgartner (1990), bem como de Myers (2003), para analisar seus objetos de estudo, o que nos conduziu a considerar a importância dos artigos de ambos autores para os linguistas da divulgação científica5. Entretanto, a ideologia de um grupo social pode ser, por nós, reavaliada. Podemos responder criticamente (BAKHTIN, 2016, p. 34), discordar e polemizar (VOLÓCHINOV, 2019, p. 276) com a perspectiva de nosso grupo. Assim, em certo momento, questionamo-nos sobre a validade do argumento da visão dominante (HILGARTNER, 1990) para a ciência do Brasil. Entendemos que, considerando o aumento do interesse pela divulgação científica no país, como apontaram Massarani e Moreira (2016, p. 1591), faz-se necessária uma reavaliação dos discursos dos linguistas da divulgação científica, especialmente em vista de ainda haver, até recentemente, publicações na área da Linguística que confirmam a visão dominante apresentada por Hilgartner (1990). A esse respeito, também vale destacar que a menção à visão dominante feita pelos linguistas possui um acento axiológico. 5 Para facilitar a discussão proposta, os linguistas brasileiros que estudam a divulgação científica serão doravante referidos como linguistas da divulgação científica. Círculo

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Tudo que é afirmado ou argumentado nos artigos científicos está “em relação a certa ênfase valorativa” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 233). Sendo assim, feitas as aproximações teóricas, apresentaremos, na seção seguinte, a metodologia de coleta dos artigos científicos dos linguistas da divulgação científica.

METODOLOGIA DE COLETA DOS ARTIGOS A coleta dos artigos de linguistas da divulgação científica foi realizada por meio da ferramenta de busca Google Acadêmico6 (Google Scholar em inglês). Essa ferramenta permite rastrear todas as publicações acadêmicas disponíveis em websites como livros, capítulos de livros, artigos, teses, dissertações, entre outras, indexando-as independentemente de sua qualidade e da forma de avaliação (LÓPEZ-CÓZAR; ORDUNA-MALEA; MARTÍNMARTÍN, 2019, p. 97). Sendo assim, o Google Acadêmico possibilita que tenhamos acesso a documentos que seriam desconsiderados se utilizássemos outras bases de dados mais “tradicionais”, que aplicam certas restrições (LÓPEZ-CÓZAR; ORDUNA-MALEA; MARTÍN-MARTÍN, 2019, p. 96). A busca por publicações de linguistas da divulgação científica restringiu-se às palavras “visão dominante” e “divulgação científica” e recuperou 152 resultados7 de documentos8 publicados entre os anos de 2009 e 2018. A escolha por esse período se deve à indisponibilidade, no Google Acadêmico, de artigos de linguistas sobre a visão dominante em periódicos científicos anteriores ao ano de 2009. Já o ano de 2018 corresponde ao ano anterior de início desta pesquisa. Cada um dos 152 resultados foi verificado 6 Website para acesso à ferramenta: https://scholar.google.com.br/. 7 Busca realizada em 7 de outubro de 2019. 8 Os documentos indexados no Google Acadêmico estão submetidos à sua disponibilidade no website de origem (LÓPEZ-CÓZAR; ORDUNA-MALEA; MARTÍN-MARTÍN, 2019, p. 97). Dessa forma, os resultados de publicações encontradas podem variar caso haja inclusão ou exclusão de algum documento. 214

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com o objetivo de coletar apenas artigos científicos publicados em periódicos, pois entendemos que o fator de impacto desse tipo de publicação é maior do que de teses e dissertações (LARIVIÈRE; ZUCCALA; ARCHAMBAULT, 2008; WEIDEMAN, 2014) e uma análise de todas as publicações demandaria um trabalho mais extenso que este. Além disso, não consideramos artigos científicos publicados em anais de eventos devido à possível ausência de critérios de avaliação prévia. Assim, ao final da seleção das publicações, foram coletados 22 artigos de linguistas da divulgação científica publicados em periódicos científicos que citam a visão dominante9 com base em Hilgartner (1990) e/ou Myers (2003). Porém, selecionamos 18 artigos dessa coleta, pois, devido à extensão deste trabalho, não poderíamos abordar todas as questões implicadas nos discursos. No Quadro 1, a seguir, apresentamos a lista de artigos coletados – título e autor(es): Quadro 1 – Lista de artigos científicos coletados Identificação do artigo

Autor e Título

1

MARCUZZO, P. O gênero notícia de popularização da ciência: objetivo comunicativo e organização retórica. Interdisciplinar.

2

MOTTA-ROTH, D.; LOVATO, C. dos S. Organização retórica do gênero Notícia de popularização da ciência: um estudo comparativo entre Português e inglês.

3

MOTTA-ROTH, D. Sistemas de gêneros e recontextualização da ciência na mídia eletrônica.

4

GERHARDT, L. B. A didatização do discurso da ciência na mídia eletrônica.

5

MARCUZZO, P. Ciência em debate: uma análise do gênero notícia de popularização da ciência.

6

MOTTA-ROTH, D.; MARCUZZO, P. Ciência na mídia: análise crítica de gênero de notícias de popularização científica.

9 A partir desta seção, por uma questão de praticidade de leitura, empregaremos “visão dominante” para nos referirmos à “visão dominante de Hilgartner (1990)”. Citaremos o sobrenome do autor apenas quando for conveniente para a discussão. Círculo

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7

LOVATO, C. dos S. Análise Crítica de Gênero: organização retórica de notícias de popularização científica na revista Ciência Hoje On-line.

8

MOREIRA, T.; BEVILAQUA, R.; SCHERER, A. O discurso da ciência em notícias de popularização da ciência sobre informática.

9

MOTTA-ROTH, D.; LOVATO, C. dos S. O poder hegemônico da ciência no discurso de popularização científica.

10

LOVATO, C. dos S. Análise da retórica jornalística em notícias de popularização científica.

11

BEVILAQUA, R. Considerações sobre letramentos e ciência para o Ensino de linguagens.

12

MOREIRA, T. Análise de textos de popularização da ciência na área de informática.

13

SILVA, F. V. Didatização da divulgação científica: uma análise de manuais didáticos de língua portuguesa do ensino médio.

14

BEVILAQUA, R.; MACHADO JÚNIOR, J. F. Diversidade linguística e preconceito na análise da representação léxico-gramatical da sociolinguística na mídia.

15

FERREIRA, R. R. O discurso de divulgação científica: caminhos percorridos, conceitos, desafios e práxis.

16

FLORES, N.; GOMES, I. M. de A. M. O público da divulgação científica no paradigma da cultura participativa.

17

LOVATO, C. dos S. Características linguístico-discursivas da popularização da ciência.

18

MOTTA-ROTH, D.; SCHERER, A. Popularização da ciência: a interdiscursividade entre ciência, pedagogia e jornalismo.

Fonte: Elaborado pela autora.

Nesse levantamento, podemos observar todos os anos (como veremos na próxima seção) em que foram publicados artigos conforme os critérios estabelecidos e mencionados anteriormente. O espaço temporal que delimitamos evidencia a capacidade de projeção do discurso de Hilgartner (1990) e/ou Myers (2003). Apesar de não podermos indicar os caminhos teóricos que os linguistas da divulgação científica percorreram para ter acesso ao artigo de Hilgartner (1990), podemos, no entanto, observar a propagação do argumento da visão dominante nos trabalhos analisados. Cabe-nos destacar, novamente, que Myers (2003) trata da visão dominante com base no artigo de Hilgartner (1990) e da visão 216

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canônica apontada por Grundmann e Cavaillé (2000). Estes, por sua vez, também se fundamentaram no artigo de Hilgartner (1990) e, assim como Myers não apresentam um panorama estatístico que possa confirmar que a ciência considera a divulgação científica uma distorção. Assim, neste artigo, entendemos que, quando os linguistas apresentam a visão dominante, mas referem-se à Myers (2003), o discurso de Hilgartner (1990) está dialogicamente vinculado. Na próxima seção, abordaremos esse princípio dialógico dos discursos dos linguistas e as relações axiológicas – valorativas – que eles manifestam, com base na teoria dialógica do discurso. Por vezes, recorreremos ao artigo de Hilgartner (1990) para explicitar os sentidos que são concebidos a partir dos discursos sob análise. Para isso, trechos dos artigos dos linguistas foram dispostos em quadros, contendo a identificação numérica do artigo conforme o Quadro 1, o sobrenome do(s) autor(es), ano da publicação e página. Quaisquer erros de digitação, ortográficos e bibliográficos ocorridos nas versões originais dos artigos não foram corrigidos.

RELAÇÕES DIALÓGICAS E DISCURSOS DOS LINGUISTAS

VALORAÇÃO

NOS

O Círculo de Bakhtin desenvolveu um amplo estudo sobre a linguagem que transcendeu a noção que, na época, a Linguística empregava. Assim, os pressupostos da teoria dialógica do discurso possibilitam interpretar a linguagem além do código linguístico. Dentre os vários aspectos metalinguísticos trazidos na proposta do Círculo está o contexto, que devemos comentar, pois ele movimenta a justificativa da presente análise. O contexto histórico e também geográfico do período retratado por Hilgartner (1990) em seu artigo sobre a divulgação científica diferem do contexto no qual se situam os linguistas brasileiros. Como mencionamos na seção anterior, não há artigos de Círculo

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periódicos publicados sobre a visão dominante anteriores ao ano de 2009, que já representa para as pesquisas da época um espaço temporal de 20 anos da publicação do trabalho de Hilgartner (1990). Além disso, esse autor, por ser estadunidense assim como Greg Myers, discorre sobre a visão dominante do ponto de vista da ciência de seu país. Mesmo que não seja nosso foco comparar os contextos históricos da divulgação científica americana e brasileira, entendemos que, ao trazer o argumento da visão dominante com base nos autores citados, os artigos sob análise problematizam a situação da divulgação científica no Brasil por esse viés. Dos 18 artigos do corpus, 4 (quatro) relacionam a visão dominante da divulgação científica aos anos de 1990. Esses artigos utilizam Hilgartner (1990) como referência à realidade da época. Um quinto artigo separa a divulgação científica em fases, mas não menciona datas específicas para cada uma delas. Os excertos, a seguir, no Quadro 2, correspondem a esses 5 (cinco) artigos: Quadro 2 – Excertos de artigos da visão dominante nos anos de 1990 Identificação do artigo

Trecho do artigo

Página Marcuzzo, 2009, p. 94

Até meados da década de 90, a visão dominante acerca do PC se baseava em um modelo formado por apenas dois estágios: “primeiro, os cientistas desenvolviam conhecimento puro, genuíno; subsequentemente, versões simplificadas eram disseminadas ao público” (HILGARTNER, 1990, p. 519).

5

Marcuzzo, 2010, p. 40-41

Até meados da década de 90, a perspectiva dominante e tradicional acerca da popularização da ciência (PC) se baseava em um modelo formado por dois estágios: “primeiro, os cientistas desenvolviam conhecimento puro, genuíno; subsequentemente, versões simplificadas eram disseminadas ao público” (HILGARTNER, 1990, p. 519).

6

Motta-Roth; Marcuzzo, 2010, p. 516-517

Até meados da década de 90, o processo de PC era visto de modo reducionista, na pior das hipóteses, como uma “distorção” ou “degradação” da ciência e, na melhor, como uma simplificação de baixo nível, adequada a um público que entende mal a maior parte do que lê (HILGARTNER, 1990, p. 519).

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Autor/ Ano/

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Moreira; Bevilaqua; Scherer, 2011, p. 1

Flores; Gomes, 2014, p. 7

Há pelo menos duas décadas, estudos sobre a popularização da ciência (doravante PC) têm feito referência a duas visões desse processo: uma canônica e dominante e outra contemporânea e democrática (p. ex., HILGARTNER, 1990; BEACCO et al., 2002; MYERS, 2003; VOGT, 2003; MOTTA-ROTH, 2009). Uma questão importante que ocorre na segunda fase de estudos da divulgação científica é a vinculação da prática da DC ao poder. [...] Hilgartner (1990) problematiza essa questão ao abordar os usos políticos que se fazem da atividade. [...] Partindo das reflexões de Zamboni e Hilgartner, podemos perceber que a concepção de DC como tradutora do discurso científico reveste-se de um viés ideológico ao impor um grau de submissão da DC ao discurso da ciência.

Fonte: Elaborado pela autora (grifos nossos).

O signo ideológico “divulgação científica” é carregado de sentidos. Ao longo dos anos, diferentes momentos históricos e culturais acompanharam o fenômeno da divulgação científica na sociedade brasileira. Massarani e Moreira (2016, p. 1577) descrevem que, entre os séculos XVI e XVIII, quando o país ainda era colônia de Portugal, atividades voltadas à ciência moderna e sua comunicação eram praticamente inexistentes. No início do século XIX, a comunicação científica começou a tomar forma no Brasil, porém, até o início do século XX, o país ainda não tinha uma tradição institucionalizada de comunicação da ciência. Segundo as autoras, foi a criação da então chamada Associação Brasileira de Ciências, em 1916, que se tornou um marco histórico para ciência no Brasil, iniciando, em 1917, atividades relacionadas à comunicação da ciência para sociedade. Já, sobre as décadas mais atuais – a partir de 1980 –, Massarani e Moreira (2016, p. 1585) relatam que há um contínuo crescimento nesse campo. Não é nosso objetivo contextualizar a divulgação científica, mas esse sucinto cenário da história da ciência no Brasil serve para ilustrar o “horizonte social de uma época” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 110) que envolve os sentidos de um signo ideológico, neste caso, da divulgação científica e suas mudanças sociais. Nos trechos de artigos do Quadro 2, vemos que os linguistas fazem referência à Círculo

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visão dominante, relacionando-a aos anos de 1990, mas eles não explicitam o país e, por serem artigos de linguistas brasileiros, presumimos que estejam tratando do caso do Brasil. Nos artigos, não são citadas pesquisas sobre a opinião dos cientistas acerca da divulgação científica nesse período em questão, o que nos leva a supor que a visão dominante se aplicaria à ciência do Brasil. De igual maneira, Hilgartner (1990) não se refere a nenhum país. Seus argumentos para discorrer a respeito da visão dominante fundamentam-se nas opiniões de cientistas em relação a um artigo, publicado em 1981, sobre as causas do câncer, que gerou algumas polêmicas devido às várias versões reelaboradas a partir da versão original. O autor, ao não expor outros casos nem fundamentar suas premissas, de certa maneira, faz uma crítica à ciência e autoriza-nos a supor que a visão dominante predomina entre os cientistas. Volóchinov (2017, p. 110) propõe algumas diretrizes metodológicas para o estudo dos signos ideológicos que inclui o não isolamento da “ideologia da realidade material do signo”. Quando os linguistas, como mostramos no Quadro 2, relacionam a visão dominante de Hilgartner (1990), sendo que o autor está situado no contexto americano, à divulgação científica brasileira, não estão considerando esse signo ideológico dentro da ideologia da ciência do Brasil. Percebemos que a ideologia da ciência proposta pelo autor é replicada pelos linguistas em seus artigos como uma maneira de explicar o caso da divulgação científica brasileira. Dessa forma, se nos anos 1990, no Brasil, havia uma visão dominante da ciência, como podemos presumir a partir da leitura desses trechos, ela seria manifestada pelos cientistas brasileiros da época, já que as significações – sentidos – de um signo são determinadas pela sociedade, por um grupo social (VOLÓCHINOV, 2017). Contudo, não há estudos que analisem tal questão. Entretanto, apesar de 5 (cinco) artigos do corpus associarem a visão dominante aos anos de 1990, mesmo que não contextualizem 220

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a situação no Brasil, na maioria dos artigos sob análise (13 artigos), os linguistas transmitem a ideia de que a visão dominante é uma ideologia que ainda está em evidência no Brasil. Trata-se de um ponto importante para esta análise, pois ele movimenta nossa justificativa. O Quadro 3, a seguir, apresenta trechos desses artigos: Quadro 3 – Excertos de artigos da visão dominante em evidência Autor/ Identificação do artigo

Ano/

Trecho do artigo

Página Marcuzzo, 2009, p. 94

A partir dos estudos na área da sociologia do conhecimento científico, a visão dominante do PC tem se mostrado cada vez mais inadequada quando considerados pelo menos três aspectos (HILGARTNER, 1990, p. 522).

Motta-Roth, 2010, p. 154

A “visão canônica” de ciência e de sua popularização pressupõe dois discursos separados: um discurso de autoridade, dentro das instituições científicas, e um discurso público externo a elas (MYERS, 2003, p. 266). Tal divisão só interessaria às próprias instituições científicas como meio de manutenção do poder na sociedade.

4

Gerhardt, 2010, p. 4

Terceiro, o modelo tradicional defende uma noção de conhecimento científico puro, genuíno que contrasta com o conhecimento popularizado, as diferenças entre conhecimento genuíno e popularizado são tidas como distorções e degradações produzidas por jornalistas e público leigo (HILGARTNER, 1990).

5

Marcuzzo, 2010, p. 41

A partir de estudos na área da sociologia do conhecimento científico, a perspectiva dominante da PC tem se mostrado cada vez mais inadequada quando considerados pelo menos três aspectos (HILGARTNER, 1990, p. 522).

7

Lovato, 2011, p. 176

[...] tal como é concebido pela visão tradicional da ciência (Moirand, 2004). Essa concepção sobre o processo de popularização da ciência estabelece que o conhecimento científico é inacessível para sociedade mais ampla (Hilgartner, 1990, p. 521).

1

3

8

Moreira; Bevilaqua; Scherer, 2011, p. 1

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Na visão dominante (HILGARTNER, 1990, p. 519), a PC é vista como poluição, uma distorção do conhecimento científico para que leigos possam ter acesso a uma versão simples e descomplicada do conhecimento científico.

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Motta-Roth; Lovato, 2011, p. 252

Entretanto, perspectivas culturalmente dominantes do processo de PC preconizam que a pureza do discurso da ciência, certificado exclusivamente por cientistas, deveria ser protegida contra a contaminação desvirtuante do discurso popular do jornalismo (Hilgartner, 1990).

Bevilaqua, 2011, p. 8

A autora [LOVATO, 2010] , citando Hilgatner (1990), aponta para um caráter monológico das notícias de seu corpus, fato que, segundo ela (ibidem, p. 82), insere esses textos em uma visão dominante de ciência cujo processo de popularização é entendido enquanto transmissão e/ou tradução de conhecimentos. Essa visão dominante compreende o público leigo, não especializado, como incapaz de entender o conhecimento científico. Não há, assim, uma discussão pública e democrática sobre ciência a fim de que se possa expandir não apenas seu conhecimento, mas também seus impactos sobre a sociedade e sobre o meio-ambiente.

Moreira, 2011, p. 671-672

Considerando o estatuto da popularização da ciência apresentado por Nascimento et al10. (2008), pode-se dizer que há duas visões acerca de PC: a visão conservadora ou canônica e a contemporânea. Na visão conservadora, a popularização da ciência é apresentada em artigos científicos numa linguagem mais simples e acessível ao público leigo (MYERS, 2003).

13

Silva, 2013, p. 224

De acordo com Hilgartner (1990, apud Giering, 2012), a percepção tradicional que concebe os textos de popularização da ciência tende a achar que estes seriam uma espécie de deturpação do conhecimento ‘genuinamente’ científico. Assim, o discurso de popularização da ciência passa a ser encarado como sendo inferior, como uma simplificação, muitas vezes grosseira, do conhecimento científico. Trata-se de uma visão reducionista que restringe e até mesmo rechaça os textos de divulgação da ciência.

15

Ferreira, 2014, p. 5

O autor [Myers, 2003] afirma que a visão de dentro das instituições científicas que prevalece é a de que a sociedade é totalmente leiga em se tratando de assuntos científicos.

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10 Nascimento et al. não estava nas referências do artigo, portanto, não foi possível verificar se esses autores se fundamentaram em Hilgartner e/ou Myers para discorrerem sobre a visão dominante. 222

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Essas considerações sobre o processo de popularização da ciência apontam para a visão dominante da ciência (HILGARTNER, 1990) ou tradicional (MOIRAND, 2004). Nessa visão, a popularização da ciência é considerada uma simplificação, “uma atividade educacional necessária, que simplifica o conhecimento científico para torná-lo legível para um público não especializado” (HILGARTNER, 1990, p. 519).

17

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Lovato, 2014, p. 73

Motta-Roth, Scherer, 2016, p. 172

Essa visão é contestada por vários autores (HILGARTNER, 1990; PAUL, 2004; MYERS, 2003) e está enraizada na noção idealizada de pureza do conhecimento científico genuíno (HILGARTNER, 1990, p. 519). [...] Hilgartner (1990, p. 520) argumenta ainda que a popularização da ciência serve aos cientistas como um recurso político, visto que oferece uma linguagem coloquial que marca a distância retórica entre a ciência verdadeira e a popularização ou produtos da ciência e produtos midiáticos da popularização. A “visão canônica” da PC assume que existem dois discursos separados quanto à ciência: um discurso de autoridade, de expert, dentro das instituições científicas e um discurso público externo a elas (MYERS, 2003, p. 266). Essa tem sido, conforme aponta Hilgartner (1990, p.519), a visão culturalmente dominante, em que há uma forte ruptura entre o discurso científico puro, genuíno, e o discurso de popularização, que simplifica e distorce o discurso científico para que este chegue à sociedade em geral. Essa simplificação do discurso científico, em PC, vista como distorção, posiciona os jornalistas como forasteiros, estranhos à cultura científica, e os consumidores da PC, o público em geral, como “leigos”, pessoas não-especialistas que, muitas vezes, sequer entendem o que leem (HILGARTNER, 1990, p. 519).

Fonte: Elaborado pela autora (grifos nossos).

Na perspectiva do Círculo de Bakhtin, a palavra – o signo ideológico – é determinada pela estrutura social. O indivíduo apropria-se da palavra, que já está permeada pelos discursos de outros. Não se trata de um outro qualquer, mas daquele grupo social que cerca o indivíduo, que divide com ele um horizonte social-ideológico. Nos discursos dos linguistas, no Quadro 3, percebemos uma apropriação do argumento da visão dominante. Em seus discursos (Quadro 3), os linguistas empregam o tempo verbal do presente do indicativo, o que ressalta a ideia de validade da visão dominante. É interessante pontuar que o emprego desse Círculo

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tempo verbal, nesses discursos, produz um efeito factual, estabelecendo sentido de atualidade. Os verbos no presente do indicativo, nesses discursos, evidenciam que a visão dominante continua em evidência na ciência, embora o ano de publicação do artigo de Hilgartner seja 1990. Por se tratar de uma referência razoavelmente desatualizada para o caso da ciência brasileira, já que a divulgação científica teve um crescimento representativo no país, esses discursos conjugados no presente do indicativo contribuem para a compreensão de que a visão dominante predomina até o momento de publicação dos artigos. A análise de predominância da visão dominante, nos discursos em foco, decorreu não somente pela observação do uso do tempo verbal, mas também pela valoração salientada nesses enunciados. Citar Hilgartner (1990) ultrapassa as questões implicadas na escolha de referencial teórico, esse ato se constitui como um evento axiológico. A valoração atribuída à visão dominante como algo “que restringe e até mesmo rechaça” (SILVA, 2013, p. 224), “que prevalece” (FERREIRA, 2014, p. 5), “está enraizada” (LOVATO, 2014, p. 73) e “em que há uma forte ruptura” (MOTTA-ROTH; SCHERER, 2016, p. 172) denota uma crítica à ciência brasileira, pois são enunciados que revelam a axiologia e a ideologia dos linguistas em relação aos cientistas. Esses enunciados buscam uma certa objetividade e também um tom valorativo de negatividade. Trata-se de escolhas linguísticas que representam uma tentativa de parafrasear o discurso de Hilgartner (1990), porém reforçam, ainda mais, a contrariedade dos linguistas em relação aos cientistas e sua suposta visão dominante. Os discursos do corpus representam o horizonte social dos linguistas da divulgação científica, que formam um grupo social. Nesse grupo são compartilhadas opiniões e perspectivas que se desenvolvem em direção à construção do signo ideológico divulgação científica, formando uma “cadeia ideológica” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95). As ideias do grupo concernentes 224

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à visão dominante penetram em suas consciências individuais, “pois o signo surge apenas no processo de interação entre consciências individuais” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95, grifo do autor). Esse processo de interação ocorre, no caso dos linguistas, por meio de seus discursos nos artigos científicos, configurando o “conteúdo ideológico” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95) do grupo. Assim, linguistas que passam a integrar o grupo também associam a visão dominante à ciência do Brasil e replicam esses enunciados já consagrados dentro do grupo. O posicionamento axiológico dos linguistas da divulgação científica a respeito dos cientistas põe em evidência uma visão cultural para a qual o cientista é um ser autoritário e hierarquizado, como por exemplo, vemos nos enunciados: “A ‘visão canônica’ de ciência e de sua popularização pressupõe dois discursos separados: um discurso de autoridade, dentro das instituições científicas, e um discurso público externo a elas” (MOTTA-ROTH, 2010, p. 154) ou “não há, assim, uma discussão pública e democrática sobre ciência” (BEVILAQUA, 2011, p. 8). Por outro lado, o linguista é um cientista, e a divulgação científica é tomada, nos discursos do corpus, enquanto gênero do discurso relevante para a sociedade, como nos fragmentos: “Argumentamos que a ‘notícia de popularização da ciência’ se constitui em [...] um gênero em que se podem explorar as relações entre linguagem, ciência e sociedade” (MOTTA-ROTH; LOVATO, 2009, p. 235), “ciência configura-se como um bem cultural a ser partilhado” (MOTTA-ROTH, 2016, p. 173) e “o gênero notícia de popularização científica pode ser considerado, portanto, um dos mecanismos que possibilitam a discussão pública da ciência, aproximando-a da sociedade” (LOVATO, 2011, p. 177). Desse modo, se os cientistas da linguagem investigam a divulgação científica, atribuindo-lhe certo mérito, questionamo-nos sobre quais áreas do conhecimento, segundo esses linguistas, seriam compostas por

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cientistas que se vinculam à visão dominante e se colocam em uma posição de autoritarismo e hierarquia na ciência do Brasil. Entendemos que a visão dominante é uma visão “que domina”, ela não se constitui como uma totalidade. Podemos supor que há outras perspectivas na ciência que contrariam a visão dominante. A questão jaz no fato de que não é possível determinar se essa visão é realmente a dominante, pois ela é apresentada, no texto de Hilgartner (1990), a partir de casos pontuais que não podem ser tomados como uma constatação a respeito da ciência. Na conclusão de seu texto, Hilgartner (1990, p. 534) fala que os cientistas não representam uma unidade, não respondem a uma mesma organização hierárquica. Por essa razão, suas opiniões podem ser bastantes variadas: uma simplificação feita por um cientista pode ser uma distorção para outro (HILGARTNER, 1990, p. 534). No entanto, o que transparece dos discursos dos linguistas é uma voz consensual, representada por Hilgartner (1990) e/ou Myers (2003), de que os cientistas brasileiros, de modo geral, julgam que a divulgação científica é uma distorção. Todo enunciado é essencialmente expressivo (BAKHTIN, 2016a, p. 47). Os discursos dos linguistas sobre a visão dominante revelam a validação do argumento de Hilgartner (1990), uma valoração com a qual concordam. O ato de consentir também é carregado de valoração, pois todo texto é uma resposta, que “pode assumir diferentes formas” (BAKHTIN, 2016a, p. 34). A atitude responsiva dos linguistas se torna evidente ao citarem Hilgartner (1990). Os linguistas parafraseiam as reflexões do autor e/ou de Myers (2003) e produzem, a partir delas, as suas palavras próprias. Ao tratarem da visão dominante, os linguistas não podem “deixar de ocupar alguma posição dialógica em relação a ele [objeto], concordar e discordar dele [...]” (BAKHTIN, 2016c, p. 147). Por meio das paráfrases dos discursos dos linguistas, percebemos relações dialógicas diversas, que se estabelecem na tomada da palavra do outro sobre a visão dominante. Essas relações 226

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dialógicas, no caso de artigos científicos, podem ser melhor observadas por meio das referências bibliográficas, que permitem visualizar o movimento de vozes no texto. Obviamente, não podemos mensurar todas as relações dialógicas que entrelaçam os discursos, visto que os linguistas da divulgação científica realizam diversas leituras que entram em contato com seus enunciados, formando novas valorações. Essa característica expressiva do enunciado é determinada, conforme Bakhtin (2016a, p. 53), pela “expressividade típica (de gênero)”. Na teoria dialógica do discurso, a entonação não pertence à palavra da língua; é a interação entre discursos dos outros e os nossos discursos que determinam a valoração, “mantendo em menor ou maior grau os tons e ecos desses enunciados individuais” (BAKHTIN, 2016a, p. 53). Hilgartner é sociólogo. Em seu artigo sobre a visão dominante, o autor não analisa particularidades linguísticas de textos de divulgação científica. Seu objetivo é demonstrar, com base em um artigo sobre as causas do câncer publicado em 1981, como a visão dominante é usada pelos cientistas para criticar a divulgação científica. Nas palavras do autor: “a visão dominante estabelece conhecimento genuíno científico, o epistêmico ‘padrão ouro’, como a reserva exclusiva dos cientistas; os legisladores e o público podem apenas aproveitar versões simplificadas” (HILGARTNER, 1990, p. 520, tradução nossa). Nesse excerto, vemos, de maneira resumida, que a visão dominante é, como exposto no próprio termo, uma “visão”, ou seja, ela é uma perspectiva, um ponto de vista, um olhar. Nos artigos do corpus, os linguistas analisam textos de divulgação científica, em que objetivam: “comparar a organização retórica de 30 notícias de popularização da ciência” (MOTTA-ROTH; LOVATO, 2009, p. 233), “uma análise das vozes apresentadas em notícias de popularização da ciência (PC)” (MARCUZZO, 2010, p. 40) e “identificar e interpretar a organização retórica de notícias de popularização científica, publicadas na revista Ciência Círculo

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Hoje On-line, oferecendo uma descrição dessa organização e uma interpretação” (LOVATO, 2011, p. 173). Esses trechos constituem uma pequena parte dos discursos, mas serve para ilustrar que seus objetivos se concentram na análise da linguagem dos textos de divulgação científica. Como mencionamos, a visão dominante é um ponto de vista que os cientistas têm em relação à divulgação científica. Contudo, o discurso da visão dominante apresentado por Hilgartner (1990) sofre uma ressignificação e passa a desempenhar uma nova orientação nos artigos dos linguistas. Em 7 (sete) artigos do corpus (Quadro 4), os linguistas afirmam que os textos analisados em seus trabalhos apresentam a visão dominante: Quadro 4 – Excertos de artigos da visão dominante nas análises Autor/Ano/

Identificação do artigo

Página

Trecho do artigo

2

Motta-Roth, D.; Lovato, C., 2009, p. 260

Quanto às diferenças entre os dois subcorpora, uma delas diz respeito ao fato de as notícias em português preservarem mais claramente a visão dominante (HILGATERNER, 1990) ou tradicional (MOIRAND, 2003) da ciência, o que confere a essas um caráter monológico, quando somente a comunidade científica tem autoridade para debater e avaliar a pesquisa.

7

Lovato, 2011, p. 194

Esse caráter monológico mostra que, nas notícias analisadas, prevalece a visão dominante da ciência (Hilgartner, 1990). Desse modo, novamente, a visão de ciência que parece permear as notícias do jornal ZH está ligada à visão tradicional.

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Moreira; Bevilaqua; Scherer, 2011, p. 12 e p. 20

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Em nossas análises acerca das notícias de PC do jornal ZH, por meio das categorias referentes à intertextualidade manifesta (FAIRCLOUGH, 2001), observamos que tais textos são permeados por uma perspectiva moderna (JAPIASSÚ, 1982) ou canônica de ciência e de PC como um processo de simplificação da ciência (HILGARTNER, 1990).

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Motta-Roth, D.; Lovato, C., 2011, p. 263264

Assim, as notícias analisadas legitimam o que Hilgartner (1990) chama de Visão dominante da ciência. [...] Essa idealização levanta dois aspectos que são reproduzidas no discurso de PC nas notícias analisadas: (i) cientistas desenvolvem conhecimento científico genuíno e (ii) popularizadores disseminam simplificações para o público (Hilgartner, 1990, p. 519).

Lovato, 2011, p. 185

A retórica nas notícias analisadas identifica, portanto, o processo de popularização da ciência como uma mera tradução e simplificação do processo científico (HILGARTNER, 1990). Há, desse modo, uma contradição em relação ao papel da popularização da ciência na sociedade.

Bevilaqua, R.; Machado Júnior, J., 2013, p. 192

Essa representação está relacionada a uma visão canônica de ciência (HILGARTNER, 1990; MYERS, 2003, p. 266), uma vez que a situa nos limites do laboratório, entendido como locus privilegiado de cientistas apenas; o público, nessa visão tradicional, é entendido como tábua rasa para quem o conhecimento é direcionado.

Motta-Roth; Scherer, 2016, p.185-186

Ao contrário do que uma visão democrática de PC pressupõe, a interdiscursividade identificada nas notícias de PC revela uma visão canônica de PC, ao sugerir que a sociedade em geral é consumidora e reverenciadora do capital científico, em vez de ter uma voz de interferência no debate e nas implicações sociais da ciência.

Fonte: Elaborado pela autora.

Hilgartner (1990) não aborda a visão dominante como um aspecto presente nos textos de divulgação científica, ele discorre sobre uma perspectiva que os cientistas têm a respeito desses textos. De acordo com o autor, a fronteira entre “simplificação apropriada” e “distorção” é “ambígua, flexível e dependente do contexto” (HILGARTNER, 1990, p. 529). A visão dominante procura dividir os textos em categorias que oscilam em diferentes graus determinados pela percepção dos cientistas. Hilgartner (1990, p. 530) ainda menciona que a visão dominante sofre de problemas conceituais e empíricos. Por conceituais, o autor se refere justamente aos conceitos de “simplificação apropriada” e “distorção”, bem como as variações entre um e outro. Já os problemas empíricos estariam Círculo

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relacionados à aplicação desses conceitos na distinção das formas de divulgar o conhecimento científico. Desse modo, a visão dominante se dá em um movimento de cima para baixo, isto é, da ciência para a divulgação científica, e, por essa razão, não pode ser visualizada nos textos como argumentam os linguistas: “fato de as notícias em português preservarem mais claramente a visão dominante” (MOTTA-ROTH; LOVATO, 2009, p. 260); “observamos que tais textos são permeados por uma perspectiva [...] canônica de ciência e de PC como um processo de simplificação da ciência” (MOREIRA; BEVILAQUA; SCHERER, 2011, p. 20); “as notícias analisadas legitimam o que Hilgartner (1990) chama de Visão dominante da ciência” (MOTTA-ROTH; LOVATO, 2011, p. 263); “a retórica nas notícias analisadas identifica, portanto, o processo de popularização da ciência como uma mera tradução e simplificação do processo científico” (LOVATO, 2011, p. 185). Os linguistas apropriam-se da visão dominante como uma característica imanente à divulgação científica, supondo que ela poderia ser “visualizada” em textos desse gênero. Aqui, novamente nos valemos de Hilgartner (1990), para quem a visão dominante é concebida pela opinião dos cientistas a respeito da divulgação científica. Até mesmo quando cientistas escrevem textos desse gênero, é possível que outros cientistas se apoiem na visão dominante para julgar a divulgação científica como uma distorção, mas, ainda nessa situação, a visão dominante é uma perspectiva sobre os textos, ou seja, parte de cima (dos cientistas) para baixo (em relação à divulgação cientifica). Outro aspecto a ser destacado está em Bevilaqua e Machado Júnior (2013). Os linguistas citam Hilgartner (1990) apenas na conclusão do artigo. Nesse caso, vemos que a visão dominante não precisa ser reiterada como parte da fundamentação teórica. Tal movimento nos conduz a percepção de que o argumento da visão dominante já penetrou nos discursos dos linguistas como

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algo esperado na divulgação científica do Brasil, como uma visão consagrada e reconhecida no horizonte ideológico dos linguistas. Em alguns dos artigos do corpus, são analisados textos escritos por jornalistas. Cabe-nos apontar que a visão dominante não é uma perspectiva da mídia jornalística como apontam esses linguistas ao se fundamentarem em Hilgartner (1990). Desse modo, um jornalista – como divulgador científico – não poderia expressar, em seus textos, a visão dominante, porque ela interessa aos cientistas e, portanto, somente eles poderiam avaliar os textos de divulgação científica por essa perspectiva. Como já mencionamos, a visão dominante estaria nos discursos dos cientistas ao tratarem da divulgação científica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Assumimos, neste capítulo, uma atitude responsiva em relação à visão dominante trazida pelos linguistas para a ciência brasileira no contexto atual, pois “em cada palavra de um enunciado compreendido, acrescentamos como que uma camada de nossas palavras responsivas [...]” e, assim, “[...] traduzido por nós para outro contexto ativo e responsivo (VOLÓCHINOV, 2017, p. 232). Contudo, este trabalho não responde a todos os aspectos da discussão proposta. Os discursos dos linguistas mostram outros sentidos que, devido à extensão deste capítulo, não pudemos abordar. Entendemos que os artigos analisados suscitam respostas e que o presente trabalho poderá provocar outras análises que a ele responderão, guiando-nos a novas valorações na Linguística. Não pretendemos desconsiderar a validade das análises que esses linguistas propõem, mas tê-las como uma motivação na verificação dos discursos de cientistas sobre a divulgação científica no contexto atual. Percebemos que, sem dados estatísticos, ou sem uma análise mais abrangente das opiniões dos cientistas sobre a divulgação Círculo

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científica, não é possível determinar se a visão dominante é realmente dominante. Os diferentes sentidos concebidos pelos linguistas acerca da visão dominante instigam-nos a analisar os discursos de cientistas de outras áreas do conhecimento e, dessa forma, investigar se a visão dominante está presente na ciência do Brasil.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

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“A MULHER, O ÍNDIO, O NEGRO”: SIGNOS ESTEREOTIPADOS EM UM DISCURSO CÔMICO-PRECONCEITUOSO1

Graziella Steigleder Gomes2 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

INTRODUÇÃO O preconceito é uma opinião não submetida à razão. (Voltaire)

No presente capítulo, constituir-se-á em objeto de nosso escrutínio um esquete cômico-preconceituoso veiculado pelo canal de televisão Multishow, cuja programação é largamente voltada à produção de conteúdo humorístico. O esquete em questão é parte do programa 220 Volts, que foi ao ar em 5 temporadas (2011-2016). Nele, o humorista Paulo Gustavo - reconhecido por interpretar papéis bastante diversos, mas que possuem em comum a intenção de gerar riso e propiciar entretenimento - dá vida a diferentes personagens, geralmente baseadas em estereótipos. Nossa atenção 1 O presente capítulo é constituído por recortes da dissertação de mestrado intitulada “Discurso humorístico-preconceituoso como crítica social? O caso da Senhora dos Absurdos”, sob orientação da Profa. Dra. Maria da Glória Corrêa di Fanti. Porto Alegre, PUCRS, 2017. 2 Mestre em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Membro do grupo de pesquisa: Estudos Cognitivos e Culturais das Linguagens. https://orcid.org/0000-0003-3043-6385 E-mail: graziella.gomes@edu.pucrs.br. Círculo

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se volta a uma das personagens do show, que não possui nome, mas é apresentada por um epíteto: Senhora dos Absurdos. Segundo o website do programa, ela é “Uma senhora rica e politicamente incorreta. Acha que a melhor invenção do homem foi o dinheiro e que gente feia não devia estar na TV, mas jura que preconceito não existe.” (220 VOLTS, 2011). Em sua fala, são percebidos preconceitos das mais variadas sortes, estando entre seus alvos: índios, negros, obesos, analfabetos, idosos e homossexuais, dentre outros. Analisaremos seu discurso depreciativo relativamente a mulheres, índios e negros, conforme a ordem em que aparecem na transcrição do esquete. Assim, nosso objetivo é verificar como um esquete que tem o projeto enunciativo voltado para o humor trabalha a questão relativa a estereótipos, que, se por um lado, podem ser objeto do discurso humorístico, por outro, podem ser usados para legitimar a exclusão social. A fim de dar conta desse propósito, encontramos respaldo nos estudos do Círculo de Bakhtin, principalmente no que tange a noções como dialogismo, enunciado, vozes socioculturais, signo ideológico e gêneros do discurso. A esse aporte teórico, agregamos noções de áreas conexas que tratam de humor, preconceito, intolerância e estereótipos. Em função da contingência de espaço, daremos aqui ênfase a aspectos que consideramos pontuais para a apreciação do conteúdo do esquete sobre o qual recai nosso interesse. Dessa maneira, o estudo encontra-se organizado nas seguintes seções: Procedimentos metodológicos, na qual brevemente explicitaremos como levamos a cabo a análise; Tópicos sob o mesmo guarda-chuva, na qual procuraremos estabelecer uma relação entre humor e estereótipos; Esquetes: um gênero discursivo, na qual discorrer sobre o entendimento das características de esquetes humorísticos torna-se relevante para que se possa melhor apreender o tipo de discurso sob exame; A mulher, o índio, o negro:

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estereótipos em funcionamento, a qual se constitui como centro deste artigo, por ser a análise em si, seguida da seção Para concluir.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Sendo nosso intento analisar discursivamente o funcionamento de um discurso considerado humorístico, mas que, em seu âmago, traz questões relativas a preconceito e estereotipação, faremos uso dos procedimentos metodológicos de investigação fundamentados na perspectiva dialógica do discurso, assim como proposto por Volochínov: 1. Formas e tipos de interação discursiva em sua relação com as condições concretas; 2. Formas dos enunciados ou discursos verbais singulares em relação estreita com a interação da qual são parte, isto é, os gêneros dos discursos verbais determinados pela interação discursiva na vida e na criação ideológica; 3. Partindo disso, revisão das formas da língua em sua concepção linguística habitual (VOLOCHÍNOV, 1929/2017, p. 220).

De acordo com Scherma e Turati (2012), a pesquisa metodológica sob um olhar bakhtiniano/volochinoviano deve passar pelas seguintes etapas (que se constituem em um complemento daquelas delineadas em Marxismo e Filosofia da Linguagem): observação da realidade social, histórica, política e econômica na qual o enunciado foi produzido, bem como o auditório para o qual ele foi direcionado, levando em conta a hierarquia social entre o locutor e seus interlocutores; identificação do tipo de gênero discursivo e a esfera de atividade humana a qual pertence o enunciado, bem como sua entoação (ênfases valorativas); observação das escolhas gramaticais (tais como léxico, estrutura sintática e sua disposição nos enunciados) e como eles se configuram no cerne do discurso. Sinteticamente, os procedimentos conduzidos seguiram a ordem Círculo

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metodológica proposta, qual seja: a observação do enunciado (dizeres da Senhora dos Absurdos), em sua indissociável relação com o gênero (esquete) e a esfera de comunicação em que surge (midiática, de cunho humorístico).

TÓPICOS SOB O MESMO GUARDA-CHUVA: HUMOR E ESTEREÓTIPOS Nesta seção, será nosso intuito estabelecer um vínculo, que consideramos necessário, entre humor e estereótipos, dado que se cruzam e juntos têm a potencialidade de provocar e mesmo legitimar opiniões e atitudes equivocadas relativamente a seus alvos. Essa relação, nociva em seu âmago, no entanto, parece por muitos não ser completamente reconhecida. O humor, para além de constituir-se em uma forma de entretenimento, pode trazer em seu bojo questões ligadas ao funcionamento da sociedade como um todo, tais como raça e etnicidade, conflitos políticos, resistência social e desigualdades de gênero (KUIPERS, 2008). Ainda de acordo com a autora, o humor [...] é um fenômeno quintessencialmente social. Piadas e outras enunciações humorísticas são uma forma de comunicação que é usualmente compartilhada na interação social. Essas enunciações humorísticas são social e culturalmente talhadas, e frequentemente singulares relativamente a um espaço e tempo específicos. E os tópicos e temas sobre os quais as pessoas fazem piada são geralmente centrais para a ordem social, cultural e moral de uma sociedade ou grupo social (KUIPERS, 2008, p. 361, tradução nossa).3

3 No original: “Humor is a quintessentially social phenomenon. Jokes and other humorous utterances are a form of communication that is usually shared in social interaction. These humorous utterances are socially and culturally shaped, and often quite particular to a specific time and place. And the topics and themes people joke about are generally central to the social, cultural and moral order of a society or a social group.” 240

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Tal reflexão remete ao seguinte fato: o humor pode trazer à tona aspectos referentes ao funcionamento da sociedade em que é veiculado. Via humor, posições ideológicas entram em circulação. Segundo Possenti (2008), o humor se materializa em diversos gêneros do discurso, tais como chistes, piadas e anedotas, estabelecendo relações com diferentes campos do conhecimento, como psicologia, sociologia e história. Por esse viés, podemos dizer que o discurso humorístico, como todo discurso, é dialógico. Dessa forma, faz-se necessário que as relações dialógicas estabelecidas em seu interior sejam compreendidas pelo interlocutor desse projeto enunciativo, a fim de que o efeito cômico possa aparecer. Possenti (2008, p. 39) postula que “dificilmente se exigirá um conhecimento exato e exaustivo para entender qualquer piada, porque ela usualmente aciona um estereótipo”. Ao fazer circular visões estereotipadas de certos indivíduos, o humor pode tornar-se motivo de exclusão social, quando, por exemplo, é proferido em uma entrevista de emprego a favor de sujeitos que, em princípio, não são alvos de preconceito. A identidade estereotipada que aparece nas piadas traz em si uma generalização exagerada, que, em grande parte dos casos, põe em ação o imaginário coletivo. Nessa perspectiva, de acordo com Possenti (2014, p. 40), a estereotipação em piadas trata de “um efeito necessário da relação interdiscursiva, em especial no caso de tal relação ser polêmica”. É nesse sentido que Kuipers (2008) argumenta que há abordagens que relacionam humor e conflito. O humor é visto enquanto uma arma de ataque com poder subversivo ou como um meio de defesa, o qual permite que as pessoas analisem de forma crítica a situação em que se encontram, expressem hostilidade contra os que estão no poder e criem um espaço de resistência, no qual antes não era possível tratar de assuntos que eram tidos como normais, inquestionáveis ou silenciados.

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Segundo a autora, [...] humor e riso são correlatos da superioridade social: toda piada é basicamente uma crítica ou um ato de exclusão social [...] humor e riso são mecanismos de controle social, baseados na ridicularização e no constrangimento (KUIPERS, 2008, p. 383, tradução nossa)4.

O humor pode ser, assim, visto enquanto uma forma construída sobre o “nós”, forma essa que pode ser de adesão ou exclusão. No que tange à questão do estereótipo, é sabido que esse termo começou a ser utilizado na imprensa do século XIX, que, via processo de clichagem (que deu origem ao termo clichê, também chamado “estereotipia”), consistia na possibilidade de reproduzir em grande escala um modelo fixo. De acordo com Charaudeau e Maingueneau (2014), os estereótipos se circunscrevem na esfera da rigidez no nível do pensamento. Seguem os autores afirmando que a psicologia social e a sociologia vislumbraram, nos processos desencadeados por esse fenômeno, representações coletivas marcadas pela cristalização e por um ideário pré-concebido, potencialmente hostil. Os estereótipos alicerçam-se sobre conceitos socialmente compartilhados; dessa forma, temos em nosso subconsciente uma imagem do que vem a ser um médico, um professor, uma mãe; enfim, possuímos uma ideia do coletivo que nos permite caracterizar indivíduos nos diversos papéis sociais por eles ocupados, mesmo que essa ideia seja equivocada ou pervertida, não submetida à razão e a argumentos. É desse modo que o estereótipo pode contribuir na compreensão do preconceito e da discriminação social.

4 No original: “[...] humor and laughter are correlates of social superiority: every joke is basically a putdown or an act of social exclusion. [...] humor and laughter are social control mechanisms, based in ridicule and embarrassment.” 242

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Por ser generalizador, o estereótipo tende a provocar uma visão equivocada, simplificada e deformada do outro. Passamos a vê-lo sob lentes que não levam em conta capacidades ou méritos individuais. Segundo Amossy e Pierrot (2010, p. 45): [...] el estereotipo que desvaloriza aparece como un instrumento de legitimación en diversas situaciones de dominación. No sólo cuando hay competencia y conflito la imagen despreciativa de otro cumple funciones importantes, sino también en los casos de subordinación de un grupo étnico o nacional a otro.

Portanto, é por intermédio de estereótipos que a imagem de superioridade projetada sobre as minorias se torna uma das maneiras de propagar e manter a dominação das classes hegemônicas, que usam o preconceito como objeto de tensão e dissenso nas relações comunicativas interpessoais e coletivas. Afirma Crochík (2011, p. 132): “[...] não é só o indivíduo que gera o estereótipo para se defender de um mundo ameaçador, mas a própria cultura cria estereótipos, aos quais o indivíduo deve se adaptar”. É dessa forma que se pode afirmar que, quanto mais distintos julgarmos que somos do objeto de nosso preconceito, mais seguros nos sentiremos. Ainda conforme Charaudeau e Maingueneau (2014), o estereótipo é, de forma geral, nefasto, já que ele está na base da discriminação e preconceito, desde o momento em que pode criar uma previsão, caracterização e generalização do outro. Amossy e Pierrrot (2010) sustentam que o estereótipo, enquanto veiculador de preconceito, é fundamentalmente o resultado de uma aprendizagem social e de contatos reiterados com representações pré-construídas. Disso depreendemos que o estereótipo funciona como um fator de tensão em relações interpessoais, ele intermedeia a representação que temos de nós mesmos e dos outros, atribuindo a eles características que podem ser usadas para legitimar preconceito e exclusão. Círculo

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ESQUETE: UM GÊNERO DISCURSIVO O esquete refere-se a um tipo de gênero midiático, veiculado em peças de teatro, produções específicas para Internet, cinema e televisão. Sua etimologia remonta, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa Houaiss, a 1668, vindo do inglês sketch (HOUAISS, 2001, p. 1240). De acordo com o dicionário Cambridge Online, sketch significa “uma parte cômica de curta duração de um show mais longo, exibido no palco, televisão ou rádio”5 (SKETCH, 2020, tradução nossa). Em língua inglesa, há para sketch (nesta acepção) a variante skit. Vasconcellos (2009, p. 109) chama a atenção para o fato de que sketch “significa literalmente esboço, rascunho”. Esse gênero aborda, de modo geral, temas do cotidiano, podendo ser em forma de diálogo ou monólogo, improvisado ou não. Pavis, em seu Dicionário de Teatro (2008, p. 143), define esquete como: [...] uma cena curta que apresenta uma situação geralmente cômica, interpretada por um pequeno número de atores sem caracterização aprofundada ou de intriga aos saltos e insistindo nos momentos engraçados e subversivos. Nos esquetes, os atores interpretam uma personagem ou uma cena com base em um texto humorístico. [...] Seu princípio motor é a sátira, às vezes literária (paródia de um texto conhecido ou de uma pessoa famosa), às vezes grotesca e burlesca (no cinema ou na televisão) da vida contemporânea.

Travaglia (2016) discorre sobre as especificidades do gênero discursivo esquete, tomado em suas diferentes modalidades. Segundo o autor, o esquete é considerado um gênero oral, porque dele depende a voz humana, havendo ou não um roteiro escrito. 5 No original: sketch (noun): a short, humorous part of a longer show on stage, television, or radio. 244

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É com frequência produzido na esfera do entretenimento; entretanto, há esquetes não humorísticos, tais como os produzidos e/ ou utilizados em escolas, empresas e igrejas, os quais possuem um caráter educativo ou moralizante. Abaixo, ainda de acordo com o autor, listamos algumas características geralmente tidas como específicas desse gênero (TRAVAGLIA, 2016, p. 3): a) ele é uma peça teatral curta. Há inclusive quem determine uma duração máxima de dez minutos para um esquete; b) ele é apresentado em lugares diversos: teatro, teatro de revista, circos, cafés-concerto, televisão, rádio, escolas, igrejas, empresas etc.; c) ele é referido como geralmente cômico, humorístico; d) ele é comumente parodístico sobre algo, mostrando o ridículo de algo o que se relaciona diretamente com seu aspecto humorístico e com os objetivos do humor de criticar e denunciar; e) ele comumente tem um viés satírico.

Importam para a análise, área sobre a qual repousa a nossa atenção, as especificidades trazidas em “d” e “e”, pois esses tópicos remetem de forma direta a elementos que são perceptíveis no material a ser analisado: trata-se de um esquete no qual se mostra “o ridículo de algo”, que busca criticar e denunciar e que essa denúncia se dá por um “viés satírico”. Observamos, a partir do exposto, que a personagem Senhora dos Absurdos atende às condições para que sua veiculação seja feita por meio de esquetes: trata-se de uma cena cômica de pequena duração, com um ator apenas, cujo conteúdo é humorístico, apresentando um ponto de vista satírico da sociedade na qual ele foi gerado.

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A MULHER, O ÍNDIO, O NEGRO: ESTEREÓTIPOS EM FUNCIONAMENTO Antes de darmos início à análise, cabe lembrar que o esquete em questão é parte de um show, intitulado 220 Volts, no qual figuram diversos outros esquetes, cada um com um personagem diferente, mas sempre encenado pelo mesmo ator, o humorista Paulo Gustavo. O esquete em pauta traz a fala da Senhora dos Absurdos, que foi originalmente ao ar em 19 de junho de 2012, figurando na segunda temporada, episódio 9, cujo tema é “Um assunto leva ao outro”. FIGURA 1 – Senhora dos Absurdos: temporada 2, episódio 9

Fonte: 220 VOLTS (2012).

A transcrição a seguir tem a temática relacionada ao preconceito e à estereotipação da mulher (e também do homem)6, do índio e do negro. A personagem enuncia olhando para a câmera, dirigindo-se a um possível interlocutor projetado em seu dizer (o 6 Apesar de, para nossos propósitos, ser o foco nesse primeiro excerto a estereotipação da mulher, na análise não pudemos nos furtar de igualmente contemplar o “homem”, dado que, na enunciação da Senhora, esses aparecem imbricados. Entendemos, entretanto, que a mulher carrega em nossa sociedade muito mais estereótipos depreciativos que o homem, por isso nossa opção de não o citar no título da seção. 246

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“garoto”, que é mencionado no início do esquete). Levando-se em conta termos mais abrangentes, o interlocutor do esquete é quem o está assistindo, ou seja, o telespectador. Observemos a seguir a transcrição do esquete selecionado: Porque são regras, garoto. Sempre foi assim. Toda mulher é safada e todo homem é corno. Toda mulher é vigarista e todo homem é ridículo. É assim que é. Sempre foi, desde os primórdios. Adão foi o primeiro idiota, Eva foi a primeira salafrária. Se a gente for pegar lá atrás, estudar, foi assim que aconteceu. O índio, o índio serve pra nada. Serve pra quê? Pra o dia inteiro ficar andando naquela selva, pra cima e pra baixo, coçando o saco. Não serve pra nada. Pode sumir com aquilo. Entendeu? O negro, não. O negro já serve pra alguma coisa. Pra quê? Pra fazer um samba, pra fazer um funk, pra outras coisas também, mas eu não vou poder falar aqui agora senão pega mal pra mim, né. Quebra um pouco dessa regra, né, da regra, porque eu não posso me misturar com um negro. Misturar minha pele com [...].7 Uma vez eu quase me misturei, né. Me envolvi com um aí, quase me perdi. Imagina se vou misturar a minha pele que é branca, alva, perolada, leite, com um negro, com a pele suja, preta, negra, deliciosa, que eu quase me perdi num aí, num dia desses.

A organização geral da análise considera a ordem em que aparecem as pessoas referenciadas pela Senhora dos Absurdos, qual seja: (i) mulher (e homem), (ii) índio e (iii) negro.

MULHER (E HOMEM) Porque são regras, garoto. Sempre foi assim. Toda mulher é safada e todo homem é corno. Toda mulher é vigarista e todo homem é ridículo. É assim que é. Sempre foi, desde os primórdios. Adão foi o primeiro idiota, Eva foi a primeira

7 Esse pequeno trecho do esquete foi eliminado por ser parte de uma frase que não é acabada. Círculo

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salafrária. Se a gente for pegar lá atrás, estudar, foi assim que aconteceu (220 VOLTS, 2012).

É fundamental considerarmos que o discurso sob análise se constitui enquanto gênero esquete, que, conforme Travaglia (2016), pode estar ligado a algo ridicularizado e relacionado a questões de humor, crítica e denúncia. Na relação entre enunciado, gênero e esfera, podemos observar que os enunciados estão articulados entre si, formando um todo coeso voltado para desqualificar a mulher e o homem. O tom autoritário de explicação, dirigindose ao interlocutor como “garoto” (“porque são regras, garoto”), pode ser associado a um modo de marcar uma diferença hierárquica, indicando que a locutora tem mais conhecimento do que o interlocutor sobre o assunto em discussão. Também o uso da palavra “regras”, no contexto desse segmento, remete ao reconhecimento de uma sociedade rigidamente estratificada, como na qual a personagem crê viver, uma vez que “regras” são muito importantes para que o status quo se reproduza. Esse tom autoritário é reiterado pelo uso do advérbio “sempre” (“sempre foi assim”, “sempre foi”) e por formas pronominais generalizantes repetidas (“toda mulher”, “todo homem”) para depreciar a mulher e o homem: “Toda mulher é safada e todo homem é corno. Toda mulher é vigarista e todo homem é ridículo”. Vemos nesse excerto a questão relativa às forças centrípetas, que buscam controlar e estabilizar a língua, desligando-a de sua característica imanentemente dinâmica. A repetição dos itens lexicais indicados procura instituir uma centralização em nível enunciativo relativamente ao heterodiscurso encontrado em diferentes segmentos da sociedade, e à enunciação da própria personagem, que também se revela por seu estilo discursivo. A mulher e o homem são estereotipados, no sentido de serem atribuídas características generalizantes a eles, o que se intensifica por tais características serem pejorativas: mulher/safada, homem/corno, mulher/vigarista, 248

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homem/ridículo. Essa ênfase valorativa é, segundo Volochínov (1929/2017, p. 111, grifo do autor), “por si só, [...] interindividual”, uma vez que “somente aquilo que adquiriu um valor social poderá entrar no mundo da ideologia, tomar forma nele e consolidar-se”. O acento valorativo assume, então, um caráter social, do coletivamente compartilhado, preenchido pela ideologia de determinada sociedade. Dessa forma, podemos ver que a estigmatização da mulher e do homem é um assunto recorrente em meio à sociedade na qual estamos inseridos. Os acentos valorativos voltados para desqualificar a mulher e o homem são intensificados com a associação a Adão e Eva, o primeiro casal segundo a Bíblia: “Adão foi o primeiro idiota, Eva foi a primeira salafrária”. Estabelecendo relação dialógica entre o enunciado da Senhora dos Absurdos e a tradição bíblica, observamos que, embora o homem e a mulher tenham sido colocados no Jardim do Éden para criarem seus descendentes, o casal, primeiro Eva e depois Adão, comeu o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal, o que desencadeou a possibilidade humana de errar. A associação das características da mulher a Eva e do homem a Adão orienta de modo avaliativo o enunciado para generalizações estereotipadas e desqualificadoras da mulher e do homem, relacionadas a questões sexuais, que podem ser assim entendidas: Mulher: salafrária, safada e vigarista. Se “Eva foi a primeira salafrária”, as outras mulheres, que vieram depois dela, também são salafrárias. Homem: idiota, corno, ridículo. Se “Adão foi o primeiro idiota”, os outros homens, que vieram depois dele, também são idiotas. Identificamos no trecho a atribuição de generalizações depreciativas à mulher e ao homem, associadas aos primórdios da cultura cristã. Essas generalizações colocam em pauta questões referentes ao imaginário coletivo atual, como o de que as mulheres muitas vezes aproveitam a dita falta de inteligência e discernimento do homem para enganá-lo, tirando vantagens dessa relação Círculo

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(por exemplo, traindo-o ou usando seu dinheiro de maneira desenfreada). Vemos, então, que o humor posto em prática pode ser entendido enquanto veiculador de uma generalização rasa, que busca menosprezar mulheres e homens a partir de uma postura preconceituosa.

ÍNDIO O índio, o índio serve pra nada. Serve pra quê? Pra o dia inteiro ficar andando naquela selva, pra cima e pra baixo, coçando o saco. Não serve pra nada. Pode sumir com aquilo. Entendeu? (220 VOLTS, 2012).

No enunciado em destaque, a Senhora afirma serem os índios inúteis: “serve pra nada”, “serve pra quê”, “não serve pra nada”. Podemos, então, reconhecer que, a partir de seu lugar de hegemonia social e econômica, a Senhora assume posições ideológicas ativas frente aos objetos de seu preconceito e intolerância. Assim, a orientação avaliativa visualizada no seu enunciado encontra-se voltada para depreciar o índio; observamos, via o verbo “servir”, o caráter utilitário do índio, que somente poderia ter algum reconhecimento social se “servisse” à sociedade tida como referência para a locutora. Em termos bakhtinianos, podemos verificar no dizer da personagem uma valoração de intolerância. De acordo com Volochínov (1930/2013, p. 172, grifo do autor), “[...] “a valoração [refere-se à] atitude dos falantes face ao que ocorre.” Logo, a conduta avaliativa encontrada nesse segmento mostra como a Senhora percebe os índios, a partir de uma estereotipação infundada, fixada no signo ideológico do índio como “aquele que vive apartado da sociedade urbana”. A fala generalizante da personagem deixa perceber um tenso discurso que se refere tanto aos descendentes do povo indígena quanto aos índios que, mesmo vivendo em suas tribos, desenvolvem 250

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papéis em centros urbanos: frequentam universidades, trabalham etc. A Senhora afirma que os índios ficam “o dia inteiro naquela selva, pra cima e pra baixo” e “coçando o saco”. Essas asserções estão calcadas em uma orientação ideológica que concebe o índio enquanto uma etnia “preguiçosa”, que dialoga com a estereotipação que surgiu na época do descobrimento do Brasil. Quando subjugados e obrigados a trabalhar de forma escrava para os portugueses colonizadores, os índios não se adaptavam a esse modo de produção/acumulação, já que, em sua cultura, a natureza provia tudo de que necessitavam: abrigo, alimentação etc. Relacionando as orientações avaliativas da personagem ao trabalho de Volochínov (1927-1928/2013, p. 260, grifo do autor), podemos observar que: Cada palavra viva contém uma avaliação social ativa. É esta avaliação social que transforma cada palavra-enunciação (isto é, desempenhos discursivos concretos) num ato social significativo [...]. Em cada uma de suas enunciações a pessoa adota uma posição social ativa. Estes desempenhos discursivos ativos são realizados em todas as esferas da vida social [...].

É assim que no enunciado “Pode sumir com aquilo”, a escolha da palavra «aquilo», com tom desdenhoso, no contexto do esquete, reflete uma atitude de extrema exclusão e intolerância, ao evidenciar o estereótipo de que índios não têm competência para desenvolverem atividades que são relevantes para a sociedade urbana, portanto, devem ser extintos. Esse é um discurso que entra em diálogo com estereótipos aos quais os índios estão sujeitos, que os discriminam e os excluem socialmente. A fim de tentar minimizar o efeito prejudicial da interferência do homem branco em relação aos povos indígenas e sua dizimação, há, em nossos dias, algumas tentativas de reparar essa exclusão, como o oferecimento de cotas em universidades federais para estudantes indígenas. Círculo

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A visão da personagem em relação ao signo “índio” pode ser considerada arcaica. Com raríssimas exceções (por exemplo, em alguma tribo que nunca teve contato com o homem “branco”), os índios não são mais os mesmos da época do descobrimento do Brasil. Isto é, na atualidade, eles possuem hábitos comuns ao dia a dia urbano. Alguns perderam suas raízes e cultura; ainda assim, merecem ser preservados e respeitados em suas diferenças, em comparação com outras etnias. No enunciado da personagem, há uma defasagem em relação à situação social dos índios na contemporaneidade. Para ela, a fim de tornar-se “útil”, o índio deveria passar por um processo de “embranquecimento” (BARROS, 2015), ou seja, passar a se comportar “como um de nós”. Logo, como os índios considerados pela Senhora têm uma cultura própria, não partilhada com brancos, e nesse jogo demarcam sua identidade sem deixar de lado suas práticas típicas, seus rituais e costumes, devem ser excluídos da sociedade: “Pode sumir com aquilo”. No fim do excerto destacado, observamos o enunciado interrogativo proferido pela personagem: “Entendeu?”. Esse enunciado, além de recuperar o interlocutor “garoto”, referido no início do esquete (“Porque são regras, garoto”), pode ser ampliado para o interlocutor/telespectador do esquete. Com esse recurso, observamos o tom de autoridade da locutora, via um saber incontestável, materializado por enunciados depreciativos e categóricos em relação ao índio: “o índio serve pra nada’’, “Pra o dia inteiro ficar andando naquela selva, pra cima e pra baixo, coçando o saco”, “Não serve pra nada”. Percebemos também que, no segmento em foco, humor e preconceito se encontram imbricados. O humor surge de uma proposição disparatada da personagem, que dialoga com um imaginário coletivo baseado em conceitos desprovidos de profundidade. Tal enunciado, com base em Possenti (2014), pode ser considerado de ordem polêmica, trazendo à tona a questão referente à tensão relativa a assuntos que não são bem resolvidos socialmente, ou seja, 252

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não é pacífico para todos a importância do índio em nossa sociedade. O humor é, nesse caso, um meio de refração da realidade, ou seja, o que o orienta é justamente [...] “o cruzamento de interesses sociais multidirecionados nos limites de uma coletividade sígnica, isto é, a luta de classes” (VOLOCHÍNOV, 1929/2017, p. 112, grifo do autor). A partir dessa citação, podemos antever que a visão da personagem é permeada pela questão do capitalismo, no sentido de que ela entende que, se os índios não estão produzindo (de preferência para homens e mulheres brancos), eles não têm serventia. Quanto à questão da crítica social, como destacamos na análise da “mulher” e do “homem”, é importante considerar a articulação entre enunciado, gênero esquete e esfera midiática humorística, que se encontra voltada para uma espécie de denúncia de preconceitos em vigência, como é o caso do preconceito contra o povo indígena (que o inconsciente coletivo parece considerar como um autóctone que vive em tribos isoladas, em oposição às atribuições que eles possuem em nossa sociedade). Essa perspectiva põe em evidência pessoas intolerantes e preconceituosas, como é o caso da Senhora dos Absurdos, que, a partir de estigmatizações, condenam à marginalização as pessoas por elas consideradas não dignas de respeito.

NEGRO O negro, não. O negro já serve pra alguma coisa. Pra quê? Pra fazer um samba, pra fazer um funk, pra outras coisas também, mas eu não vou poder falar aqui agora senão pega mal pra mim, né. Quebra um pouco dessa regra, né, da regra, porque eu não posso me misturar com um negro. Misturar minha pele com [...]. Uma vez eu quase me misturei, né. Me envolvi com um aí, quase me perdi. Imagina se vou misturar a minha pele que é branca, alva, perolada, leite, com um negro, com a pele suja, preta, negra, deliciosa, Círculo

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que eu quase me perdi num aí, num dia desses (220 VOLTS, 2012).

Nos enunciados “O negro, não. O negro já serve pra alguma coisa. Pra quê? Pra fazer um samba, pra fazer um funk, pra outras coisas também, mas eu não vou poder falar aqui agora senão pega mal pra mim, né”, podemos observar a relação dialógica estabelecida entre negro e índio, no que se refere à questão utilitária. Enquanto o índio, no dizer reiterado da personagem, “não serve pra nada” (ela repete isso duas vezes), o negro “serve” pra alguma coisa: “fazer um samba, pra fazer um funk, pra outras coisas também”. Encontramos, nesse excerto, vozes socioculturais, ou seja, pontos de vista sobre o mundo, que apoiam a estereotipação do negro, que o ligam ideologicamente a uma condição de pessoa subserviente. Muitos não os enunciam por questões de coerção moral; esses enunciados permanecem, então, no interdito. Entretanto, o que a personagem enuncia é um elo que inter-relaciona esse enunciado a outros tantos já proferidos a esse respeito e aos que estão por vir, uma vez que essa concepção é recorrente no imaginário social. Vemos que o que está sendo dito corresponde a uma visão estigmatizada do negro, valorado axiologicamente enquanto um signo que reflete e refrata o estereótipo que ele apenas é de utilidade para a classe hegemônica (brancos, héteros e ricos, conforme o bordão da personagem: “Sou branca, hétero e rica”) se levarmos em conta o entretenimento que pode proporcionar. Essas considerações, em termos dialógicos, remetem ao estereótipo – culturalmente aceito, mesmo que de maneira velada que reflete a ideologia (entendida como a forma como as pessoas pensam, agem e se percebem enquanto seres socialmente organizados) de que negros são menos aptos para desenvolverem atividades voltadas ao intelecto. Em termos de uma crítica de ordem social, é possível dizer que foi negado a esse alvo de escárnio da personagem o direito à instrução formal, postura aceita pela 254

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elite econômica. Por isso, o negro é reconhecido, no enunciado da personagem, em razão de suas aptidões tidas como naturais, como o talento para compor e tocar músicas (“fazer um samba, pra fazer um funk”) e, de modo mais velado, embora com efeito voltado para o humor, para práticas sexuais (“pra outras coisas também, mas eu não vou poder falar aqui agora senão pega mal pra mim, né”). Tais valorações voltam-se para o estereótipo de que os negros têm “ritmo” e que são “bem dotados”, o que faz com que sejam mais passíveis de serem vistos não enquanto indivíduos, mas enquanto objetos. Na sequência do enunciado, Quebra um pouco dessa regra né, da regra, porque eu não posso me misturar com um negro. [...] Uma vez eu quase me misturei, né. Me envolvi com um aí, quase me perdi. Imagina se vou me misturar a minha pele que é branca, alva, perolada, leite, com um negro, com a pele suja, preta, negra, deliciosa, que eu quase me perdi num aí, num dia desses [...] (220 VOLTS, 2012).

As escolhas lexicais referentes à pele da personagem (“branca, alva, leite, perolada”) e à do negro (“suja, preta, negra, deliciosa”) remetem a valorações axiológicas: Acima de tudo, as valorações determinam a seleção de palavras pelo autor e a percepção desta seleção (co-eleição) pelo ouvinte. [...] as palavras se sedimentam e se impregnam de valorações. [...] a valoração é ativa também com relação ao objeto da enunciação (VOLOCHÍNOV, 1926/2013, p. 88, grifo do autor).

Essas ênfases valorativas, de ordem preconceituosa e intolerante, revelam a posição ideológica da personagem frente ao negro, definindo-o como um ser inferior, apesar de sexualmente desejado. Observamos igualmente que a questão de “regra”, que aparece no primeiro trecho do esquete, é valorada nesse segmento de forma diferente. Nesse excerto a “regra” se refere ao não contato Círculo

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entre brancos e ricos com pessoas de cor negra, porque esse ato provoca uma “mistura” indesejável. Pelo fato de que enunciamos em meio a diálogos dinâmicos, é possível observar, de acordo com Volochínov (1929/2017), que nas ocorrências da palavra “regra” ao longo do esquete (uma no início, “porque são regras, garoto”, e outra na parte referente a negros, “quebra a regra”), há uma única significação: “regra”. Entretanto, essa significação singular se desdobra em dois temas distintos, ambos referentes à posição social da qual a locutora enuncia. O tema, no primeiro caso, refere-se a uma postura superior da personagem em relação ao “garoto” (se entendermos que há nesse enunciado algum tipo de ato de condescendência arrogante), e, na segunda ocorrência da palavra, uma posição social referente a um regulamento/norma contrário ao envolvimento entre brancas e negros, pois esse consiste em um ato que deve permanecer abafado. Podemos observar nos enunciados em foco a questão da responsividade ativa, que, no caso, marca a atitude da locutora em relação a enunciados já proferidos e à projeção de enunciados futuros, aguardados como réplica por parte de seus interlocutores, quais sejam, o “garoto”, em sentido estrito (referido no início do esquete), e o interlocutor/telespectador desse projeto enunciativo, em forma mais abrangente. Referentemente à questão da responsividade, é possível afirmar que: Todo discurso está voltado para uma resposta e não pode evitar a influência profunda do discurso responsivo antecipável. O discurso falado vivo está voltado de modo imediato e grosseiro para a futura palavra-resposta: provoca a resposta, antecipa-a e constrói-se voltado para ela. Formando-se num clima do já dito, o discurso é ao mesmo tempo determinado pelo ainda não dito, mas que pode ser forçado e antecipado pelo discurso responsivo. Assim acontece em qualquer diálogo vivo (BAKHTIN, 1975/2015, p. 52-53, grifo do autor). 256

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Tendo em vista essa afirmação e os enunciados em análise, podemos entender que o enunciado está constantemente à espera de um enunciado resposta, que pode ser de adesão, discordância etc. Todo enunciado é constituído de entonação, que pode ser expressa em diferentes materializações da linguagem, verbal e não verbal. É nessa perspectiva que Volochínov (1930/2013, p. 175, grifo do autor) observa a entonação como “[...] a expressão sonora da valoração social.” Sobre esse tópico, também assevera que: Mediante a entonação, a palavra se relaciona diretamente com a vida. E antes de tudo, justamente na entonação o falante se relaciona com os ouvintes: a entonação é social por excelência. É, sobretudo, sensível para com qualquer oscilação da atmosfera social em torno do falante (VOLOCHÍNOV, 1926/2013, p. 82).

No desenvolvimento do discurso sobre o qual estamos debruçados, podemos perceber que a entonação da Senhora dos Absurdos muda de acordo com o que ela está falando: no início, um enunciado intransigente e essencialmente intolerante e preconceituoso. Entretanto, quando ela inicia sua fala sobre sua experiência com negros (“me envolvi com um aí, quase me perdi”), a entonação muda de forma brusca e passa a refletir que eles são por ela desejados, mesmo que ela o negue: “não posso me misturar”. Não encontramos nesse enunciado um sentido de proibição, já que , em “não posso me misturar” há a alternativa “posso me misturar”, isto é, não há nesse caso uma restrição rígida, mas uma tensão cultural no que se refere ao convívio e ao relacionamento entre brancos e negros. As escolhas lexicais, próprias do estilo, revelam o tom axiológico do enunciado, que orienta para a maneira como a personagem se relaciona com os negros, coisificando-os ou os tratando enquanto objetos sexuais. É assim que “[...] o estilo é concebido Círculo

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como individualização da língua geral (no sentido do sistema de normas gerais da língua)” (BAKHTIN, 1975/2015, p. 31, grifo do autor). Podemos dizer que o excerto do enunciado focalizado traz a questão da regra de convivência que marca a tensão da relação eu-outro; marca ainda a tensão social entre os discursos sobre negros e brancos e, com isso, os discursos sociais quanto ao contato físico com negros (mistura entre raças que levaria a não pureza da etnia branca). Essa voz sociocultural que atravessa o discurso da personagem em análise é a herança de uma ideia corrente durante a escravatura no nosso país e que, para muitos, ainda existe: que o negro é um ser humano inferior. Se pensarmos na Senhora como um ser atravessado por saberes e dizeres sobre os quais nem ela mesma tem consciência total, é possível ouvir em sua fala ecos, traços de uma ideologia divulgada pelo regime nazista: a da eugenia. Dessa forma, o contato de brancos com seres de outras “raças” levaria à degradação caucasiana; pretendia-se, com o objetivo de legitimar essa posição racista, comprovar, cientificamente, a superioridade ariana, por meio de experimentos com as consideradas “sub-raças”. A “mistura” entre brancos e as “sub-raças” (ciganos, negros, judeus etc.) não era nem é, portanto, bem-vinda. Em consonância com as ponderações de Bernardes (2013) sobre o corpo negro feminino (e reconfigurando suas ideias em relação ao corpo negro masculino), podemos observar o corpo negro como um signo estético e, em paralelo, como um objeto de consumo. Relativamente aos negros, vemos como sua materialidade física – seu corpo, não se levando em consideração os seus aspectos que o fazem um indivíduo – torna-se no esquete um signo, logo, carregado axiologicamente. Temos nessa valoração uma espécie de diálogo ideológico que se comunica e aponta para elementos exteriores ao seu discurso; relativamente ao negro, desprovido de sua individualidade, bem como seu corpo, refratado com frequência em discursos racistas. Tal ponderação 258

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leva ao fato de que a visão corrente do corpo negro muitas vezes o reduz à sua dita inerente sensualidade (bem como, no esquete em foco, a habilidade para fazer música). O negro, então, não é considerado um ser completo, dotado de ideologia, de visões de mundo, vontades etc. Essa é uma ideia pré-concebida existente no imaginário coletivo: o corpo do negro, como signo, agrega uma função estética, construída a partir de um processo no qual as interações social e histórica se entrelaçam. Dessa forma, por ser um signo tanto ideológico quanto estético, reflete e refrata a realidade, ou seja, desdobra-se em novas perspectivas de avaliação do exterior, conforme nos ensina Volochínov (1929/2017). Por consequência, no discurso da Senhora dos Absurdos, são perceptíveis valores historicamente construídos: por um lado, uma significação que poderia, se proferida em outros meios, ensejar um sentido distinto daquele depreendido no esquete; poderia ainda ser avaliado enquanto um elogio ao corpo do negro. Mas essa significação tem no tema veiculado um aspecto que o qualifica como racista, e não como um tema que resgata exaltações ao corpo ou a outros aspectos ligados à etnia abordada.

PARA CONCLUIR Retomemos Travaglia (2016) em suas considerações acerca das especificidades do gênero esquete: esse gênero pode ter o objetivo de criticar e denunciar, comumente por meio de um viés satírico. Por meio dos enunciados da personagem em questão, o riso que amiúde ela suscita relaciona-se dialogicamente com vozes socioculturais que reproduzem a ideologia presente no esquete: que as mulheres, na voz da própria personagem, são safadas, vigaristas e salafrárias, ou seja, enganam os homens por meio de artimanhas e não merecem confiança; em relação a índios e negros, que esses não são membros plenos em nossa sociedade.

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A ideologia das classes hegemônicas, que dá sustentação a atitudes preconceituosas, busca legitimar atos de exclusão social. São visões distorcidas da realidade; consciências ptolomaicas. A alteridade, vista enquanto um ato no qual posso ver no outro coisas sobre mim, é tida enquanto uma atitude de apartamento, ou seja, o que é diferente deve ser rechaçado e não pode ser parte constitutiva do eu, mesmo que nessa diferença eu possa me reconhecer e me compreender de maneira mais aprofundada (por meio do reflexo do que é distinto de mim; sou o que o outro não é). As vozes socioculturais estereotipadas e intolerantes que a personagem profere são permeadas por uma ideologia preconceituosa em seu cerne. Esse ideário, mesmo que não se concorde com ele, faz parte da memória social e, por essa razão, torna-se motivo para que o aspecto cômico daí desponte, já que se trata de assuntos presentes em nosso cotidiano, mas para os quais não há ponto de vista pacífico. O humor passa a ser então um veiculador de ideologia, que, se por um lado pode ser uma manifestação de natureza progressista, ao denunciar verdades incômodas sobre a sociedade na qual ele ocorre, pode também, por outro, servir como um meio de corroboração de preconceitos vigentes em tal sociedade, servindo como justificativa para a exclusão de alguns (em geral os socialmente mais frágeis). Ponderando sobre aspectos positivos relacionados ao riso e ao efeito catártico que ele pode propiciar, Bakhtin, em Fragmentos dos anos 1970-1971 (1979/2017, p. 25), afirma que “O riso não coíbe o homem, liberta-o. [...] O riso abre cancelas, faz o caminho livre. [...] O riso aproxima e familiariza”. Assim cogitado, o riso (ou a comicidade, de forma mais geral) pode ser um meio de unir grupos que partilham de similaridades culturais e étnicas, de forma que as pessoas se sintam representadas por fazerem parte de um grupo identitário que demarca suas posições frente a grupos outros.

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Se o riso possui essas propriedades, que são positivas em potencial, o que dizer do discurso humorístico-preconceituoso que tem como objeto de discriminação o diferente, o marginalizado? Uma das respostas poderia ser considerá-lo como crítica social, que o discurso da Senhora – preconceituoso, intolerante e estereotipado – propiciaria um efeito humorístico, cujo objetivo é culminar em uma atitude positiva por parte do seu telespectador/interlocutor, de modo a servir de conscientização das discriminações na sociedade. Mas será que o humor tem legitimidade para valer-se de tons intolerantes e preconceituosos? Essa questão remete ao fato de o discurso humorístico-preconceituoso trazer uma espécie de legitimação da exclusão social, que pode não ser visto como crítica, mas sim como um meio de naturalização das discriminações. Dessa forma, vemos que o humor pode ser de cunho progressista, ao abordar assuntos que são, como já afirmado, uma pedra no sapato da sociedade. A partir do tipo de humor encontrado no material que analisamos, esperamos ser possível que muitos possam identificar as próprias posições e chegar à conclusão de que suas ideias pré-concebidas são de fato preconceituosas, e, talvez, rever sua posição ideológica sob uma nova perspectiva. E podemos acrescentar: ridendo castigat mores8: rir dos outros - e principalmente de si pode resultar em uma percepção mais apurada do mundo que nos circunda. Em outras palavras: o humor pode destruir e construir novas ideologias.

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220 VOLTS Senhora dos Absurdos: Negro. [S. l.: s. n.], 2012. 1 vídeo (1 min). Publicado pelo canal Rodrigo Chaves Marques. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=bhjY9RTK1oI Acesso: 28 mar. 2020. AMOSSY, R; PIERROT, A. H. Estereotipos y clichés. Buenos Aires: Universitária de Buenos Aires, 2010. BAKHTIN, M. (1975). Teoria do Romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: 34, 2015.

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A ÊNFASE AXIOLÓGICA DA CAMISETA DA SELEÇÃO BRASILEIRA: UMA TENSÃO CONSTITUÍDA POR REFRAÇÕES

Luciana Saratt1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Ao detectar que os diversos campos da atividade humana são ligados e organizados por meio do uso da linguagem (BAKHTIN, 2016), engendra-se a concepção de que no processo de construção da sociedade, os sujeitos, por meio da língua viva, de enunciados concretos, operam juntos, compartilhando, nesse movimento, palavras não estáveis, tampouco acabadas, as quais se renovam em processos de vicissitudes. Assim, ao arquitetar o mundo, os atores sociais lhe dão sentidos sem acabamento, além de retomar significações, pois conforme elucida Bakhtin (2017, p. 79) “não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação [...] questão do grande tempo”. É tecida, então, a ideia do vir-a-ser e da não-finalização de processos linguageiros.

1 Mestranda em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS. Membro do grupo de pesquisa Discursos em Diálogo. 0000-0001-5578-1164. E-mail: luciana.saratt@edu.pucrs.br 264

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Verifica-se, portanto, que a sociedade é permeada por tons valorativos; uns herdados, outros evocados pelos agentes contemporâneos. Desse modo, ao agir sobre o tecido social, os sujeitos alteram sentidos. Ao comungar esta ação de renovação, ancoradas em coros de apoio, práticas político-discursivas podem suscitar a ressignificação de símbolos sociais, imprimindo uma estratificação à sociedade. A noção de símbolo pode ser compreendida como aquilo que, por um princípio de analogia, representa ou substitui algo, que por sua forma e natureza, evoca ou representa. Assim, ao entender que os símbolos de um país comungam insígnias e manifestações de nacionalidade, é possível, por meio deles, retratar uma sociedade e perceber processos sociopolíticos. A simbologia representativa de determinada tessitura social é contornada por um aspecto de patriotismo e nacionalismo, além de fulgurar no horizonte nacional como um sentido relativo ao sentimento de pertencimento a uma sociedade, a um conjunto de vozes, ou ainda, a uma “comunidade imaginada” (BENEDICT, 2008). Há diversas correntes representativas de nacionalismo, bem como formas de expressá-lo e, assim sendo, uma delas ocorre por meio do uso da simbologia nacional. Nesse sentido, a respeito dos símbolos que representam o Brasil, constam, na Constituição Federal de 1988, Capítulo III, Artigo 13, a bandeira, o hino, o selo e as armas nacionais como símbolos da República Federativa, os quais representam, a partir de um acento axiológico, o país em diferentes eventualidades. A camiseta da seleção brasileira de futebol está imbricada neste ideário de simbologia, pois, embora não seja considerada símbolo por meio do artigo 13, ela, em virtude da histórica identificação entre a seleção e uma parcela significativa da sociedade, possui uma simbologia nacional. Ao compartilhar mudanças sociais, múltiplas vozes, cores e axiologias habitaram, a partir de 2013, as ruas brasileiras, quando, Círculo

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com um cardápio multíplice de demandas, multidões saíram às ruas para protestar. Ao conjugar, no ato, o verbo “protestar”, esses indivíduos carregaram consigo alguns símbolos brasileiros. Percebeu-se, de forma recorrente, o uso da bandeira nacional e, conforme Pinto (2019, p. 47), “a maioria das pessoas estavam vestidas com camisetas amarelas da seleção de futebol do Brasil”. Ao perceber que esses sujeitos usaram, assiduamente, a camiseta da seleção, nota-se um possível movimento de revaloração desse símbolo. Diante disso, ancorado na teoria dialógica do discurso, este trabalho2 pretende contribuir para um caminho investigativo acerca do acento valorativo que passou a habitar a camiseta da seleção, tencionando perceber possíveis refrações. Almeja-se, ademais, propor uma reflexão acerca do movimento tensivo que constitui as vozes emergentes desta situação sociopolítica. Ressalta-se, portanto, a necessidade de entender esse movimento de ressignificação da simbologia, o qual, ao refratar, interfere no tecido social, na medida em que polariza a sociedade brasileira. Faz-se necessário lembrar que, na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem (2018), Volóchinov propõe a reflexão de que tudo que é ideológico possui uma significação, ele reflete e refrata algo encontrado fora dele, ou seja, é um signo. Propõe-se, assim sendo, que a camiseta da seleção, por figurar em arenas axiológicas, pode ser concebida como signo ideológico, uma vez que o campo da ideologia coincide com a esfera dos signos e, além disso, aquilo que for ideológico apresenta significação sígnica. Ao discorrer acerca desta concepção, Miotello (2005, p. 170) assevera que “uma camiseta na qual se pinta um escudo de um time de futebol é muito mais que uma camiseta [...] temos aqui o que Bakhtin chama de signo”. 2 Este artigo faz parte de uma pesquisa de mestrado que está sendo desenvolvida (2019 - 2020) no programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, com apoio financeiro do CNPq. 266

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Percebe-se a necessidade de estudar e compreender esse movimento a respeito da simbologia na medida em que ele reverbera valorações e incute consequências. Destaca-se desse modo, o teor apreciativo desta pesquisa, voltado ao caráter de mudanças no tecido social, bem como a carência de estudos teóricos acerca desta temática. Nesse sentido, esta proposta aponta para a ressignificação de signos sociais enquanto movimento que intervém na realidade para transformá-la, de modo que fomenta a estratificação da sociedade. Engendrar-se-á, desse modo, o trajeto deste estudo, a partir de um espaço de reflexão acerca dos conceitos bakhtinianos que perpassam a concepção dialógica e subsidiam teoricamente esta pesquisa. Posteriormente, será proposto um panorama geral acerca da situação sociopolítica que potencializou novos acentos axiológicos ao signo para, por fim, encaminhar uma reflexão a respeito da relação tensiva que contorna os projetos enunciativos cujo tema é a camiseta da seleção. Os caminhos percorridos nesta proposta sugerem que o signo refrata diferentes acentos valorativos, suscitando uma tensiva relação entre línguas sociais.

PRINCÍPIOS DIALÓGICOS: POSTULADOS BAKHTNIANOS Para o desenvolvimento desta proposta de pesquisa, será adotada uma concepção teórica construída a partir da relação intrínseca entre a língua e a sociedade: a teoria dialógica do discurso, postulada pelo conhecido Círculo de Bakhtin. Destaca-se, em primeiro lugar, que toda análise fundamentada no Círculo deve perceber a visão totalizante que engendra as enunciações, tendo em vista que “ao separar o enunciado do solo real que o nutre, perdemos a chave tanto da forma quanto do sentido, restando em nossas mãos o cadáver invólucro linguístico abstrato” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 12). A vida influencia, sendo assim, os enunciados, impregnando-os

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enquanto uma comunidade de existência que permeia os locutores e enquanto pontos de vista gerados por essa existência. Para essa concepção teórica, o dialogismo é uma noção basilar, compreendido, de acordo com o Dicionário de Linguística e da Enunciação (DI FANTI, 2009, p. 80), como “o princípio da linguagem que pressupõe que todo discurso é constituído por outros discursos, mais ou menos aparentes, desencadeando diferentes relações de sentido”. Assim, dialogicamente, a palavra comporta dois lados, pois precede de um enunciador e dirige-se a outro, caracterizando os enunciados como elos discursivos, determinados pela alternância dos sujeitos. Ao detectar que o dialogismo está presente na interação, percebe-se a enunciação como um ato responsivo. O enunciado, desse modo, faz sentido quando suscita uma resposta, pois “o ouvinte, ao compreender o significado do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma posição ativa responsiva: concorda ou discorda, completa-o, aplica-o, prepara-o para usá-lo, etc.” (BAKHTIN, 2016, p. 25). Portanto, a compreensão é sempre responsiva e, em algum momento, o ouvinte torna-se falante. Nem todas as respostas ocorrem, no entanto, ao final de um enunciado, elas podem assumir um caráter retardado ou podem ser silenciosas. Em uma ordem militar, por exemplo, a resposta ocorre na forma de ação do cumprimento do comando. Dessa maneira, a compreensão responsiva pode ocorrer por meio do discurso verbal subsequente do interlocutor, ou do seu comportamento, dependendo do gênero discursivo, uma vez que diferentes gêneros exigem diferentes respostas. A referida concepção de responsividade ativa está imbricada com a perspectiva do Círculo acerca da ideia de sujeito discursivo. O sujeito, por conjeturar outras concepções, como ideologia e alteridade, é construído socialmente pela e na relação com o outro. É nesse sentido que Bakhtin, muitas vezes, diz que não tomamos nossas palavras do dicionário, mas dos lábios dos outros, 268

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tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros [...] com a sua entonação, em sua tonalidade valorativo-emocional. A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo (BAKHTIN, 2017, p. 30).

Em virtude da heterogeneidade da realidade linguístico-social, o sujeito não absorve apenas uma voz social, mas muitas. Dessa maneira, o sujeito é compreendido a partir das incomensuráveis vozes e suas tensões constitutivas. A noção de vozes ou línguas sociais é concebida como complexos semióticos-axiológicos com os quais determinado grupo humano interpreta e fala sobre o mundo. A partir da interpretação ativa, ocorre uma relação entre diferentes contextos, de diferentes pontos de vista e horizontes, de diferentes línguas sociais (VOLÓCHINOV, 2019). Assim, a língua é um conjunto de vozes sociais, as quais podem se apoiar, se contrapor, se disseminar em outras etc (BAKHTIN, 2015). Tais vozes atuam de formas díspares. Algumas funcionam como vozes de autoridade e outras como vozes persuasivas. A palavra de autoridade é aquela que interpela o sujeito, impondo uma adesão – uma voz centrípeta e resistente. Já a palavra de caráter persuasivo, emerge como uma entre várias. É centrífuga e descentralizadora da vida verboideológica. A ideologia, sob o prisma bakhtiniano, é social e estritamente ligada ao sujeito. O Círculo não concordava com a concepção de que a ideologia é algo pronto, pois para ele, a ideologia está no conjunto das discussões filosóficas. No texto O que é a linguagem?, Volóchinov versa que entendemos por ideologia todo o conjunto de reflexos e refrações no cérebro humano da atividade social e natural, expressa e fixada pelo homem na palavra, no desenho, artístico e técnico ou em alguma outra forma sígnica (VOLÓCHINOV, 2019, p. 243). Círculo

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Portanto, concebe-se a ideologia como uma visão de mundo expressa pelos locutores. Essa visão de ideologia está relacionada à noção de signo, pois qualquer produto ideológico é não apenas uma parte da realidade natural e social – seja ele um corpo físico, um instrumento de produção ou um produto de consumo – mas também ao contrário desses fenômenos, reflete e refrata outra realidade que se encontra fora dos seus limites. Tudo o que é ideológico possui uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é um signo (VOLÓCHINOV, 2016). Os signos representam uma realidade, a partir do lugar valorativo no qual estão imersos, por isso eles refletem e refratam outras realidades. Os signos criados e interpretados a partir dos diferentes processos de intercâmbio social. É nesse sentido que eles devem ser estudados a partir da situação que lhes confere significação, e não a partir de um lugar isolado, como resultado de um processo individual. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Volóchinov (2018) explica que um instrumento de produção por si só não possui sentido, possui apenas uma função de produção, porém ele pode ser transformado em signo ideológico. É o que aconteceu com a foice e o martelo, usados no emblema da antiga União Soviética. Da mesma maneira, um produto de consumo pode se tornar signo. Por exemplo, o pão e o vinho no sacramento cristão. Salientamos que esses produtos e objetos tornam-se signos a partir da interferência da valoração do contexto ideológico no qual estão inseridos, pois, de acordo com Volóchinov (2018, p. 93) “O campo ideológico coincide com o campo dos signos. Eles podem ser igualados. Onde há signo há também ideologia. Tudo o que é ideológico possui significação sígnica”. Neste processo, os signos podem realizar duas ações: refletir e refratar o mundo. Os signos apontam para alguma realidade externa e, concomitantemente, a refratam. A concepção de refração, para o Círculo, está ligada à ideia de construção e interpretação do mundo, pois um signo 270

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significa ao refratar. Isso porque, conforme elucida Faraco (2009), as significações dos signos não são dadas em si, tampouco em um sistema abstrato e atemporal, mas sim construídas no contexto, permeadas pela diversidade história e cultural dos grupos humanos, a partir de diferentes valorações e vozes sociais. Percebe-se, então, que a refração é a maneira como as diferentes experiências humanas se marcam nos signos. Se tais experiências são heterogêneas, os signos podem ser somente, plurívocos (multissêmicos). A palavra é um fenômeno ideológico por excelência, assim, toda palavra enunciada não é somente um ponto de vista, é um processo avaliativo. A realidade da palavra decorre da função de ser signo. Além de ser a forma mais representativa dos signos, é também um signo neutro. Assim, quando imersa no dicionário, ela se mantém neutra em relação a funções ideológicas específicas, povoada por uma potencialidade. No entanto, quando inserida em um contexto, ela torna-se signo ideológico. Desse modo, a palavra não é, de fato, a fotografia daquilo que ela significa. A palavra é um som significante, emitido ou pensado por uma pessoa real em um determinado momento da história real e que é, portanto, um enunciado inteiro ou parte dele, seu elemento. Fora desse enunciado vivo, a palavra só existe nos dicionários, mas lá é uma palavra morta, mero conjunto de linhas retas ou semicirculares, marcas de tinta tipográfica nas folhas de papel em branco (VOLÓCHINOV, 2019, p. 315).

O discurso é atravessado por fios valorativos, pois as palavras, como enunciado concreto, já são cobertas por um tom axiológico. A entonação e a valoração orientam o sentido da palavra, elas dependem do contexto e da significação compartilhada em uma valoração comum. Desse modo, a estruturação do discurso necessita de um coro de apoio que compartilhe as mesmas valorações. O coro de apoio é, desse modo, usado como uma base para os discursos e localiza-se no meio social, nas fronteiras das enunciações. Círculo

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Quando um coro de apoio não é encontrado, o enunciado se perde, como uma piada quando não desperta o riso, podendo ser concebido, então, como uma comunidade das valorações: o pertencimento dos falantes de uma mesma família, profissão, ou classe social, a um grupo social e, finalmente, a uma mesma época, posto que todos os falantes são contemporâneos. As valorações subentendidas aparecem então não como emoções individuais, senão como atos socialmente necessários e consequentes (BAKHTIN; VOLÓCHINOV, 2011, p. 158).

Para a teoria bakhtiniana, o diálogo, o dialogismo e a concepção acerca dos signos aparecem como uma metáfora que sustenta as discussões linguísticas. Assim, essa concepção teórica entende o enunciado como unidade da comunicação discursiva, permeado por expressividade e responsividade. Os enunciados e os emaranhados de vozes sociais possuem caráter dialógico, desse modo a língua é um processo interativo, alinhavado pelo diálogo e por índices de valorações sociais. Detectando os elos possibilitados pelos fios dialógicos, bem como por entender que o discurso na vida não é autossuficiente, que ele depende da situação que o projeta (VOLÓCHINOV, 2019), para fins de ambientação sociodiscursiva, tecer-se-á uma visão geral sobre os movimentos que agitaram o tecido social do Brasil e foram arquitetados com um tom verde-amarelo.

AS RUAS COMO ARENAS: O TOM VERDE-AMARELO CONTORNA OS PROTESTOS PRÓ-IMPEACHMENT Muitas vozes sociais envolveram, nos últimos anos, as ruas do Brasil. Em especial a partir de 2013, quando se percebe a sensação de que algo está fora do lugar no cenário político, conforme avalia, no prefácio da obra Como as democracias morrem (2018), o cientista social Jairo Nicolau. Desde a luta pela redemocratização do 272

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Brasil, no início da década de 1980, as ruas tinham sido envolvidas por grupos identificados com as posições políticas de centro-esquerda e esquerda (PINTO, 2019). A partir de 2013, com acentuação em 2014 e 2015, no entanto, os manifestantes se identificavam com os pensamentos políticos de centro e de direita. As referidas posições foram herdadas da Revolução Francesa e dividem, em partes opostas, o universo político. Uma das principais diferenças entre esquerda e direita reside em concepções distintas entre, de um lado, a ação individual, e a escolha voluntária – destacadas pela direita -, e a ação coletiva, preferida pela esquerda (TELLES, 2019). Entre os estudiosos desta díade está Norberto Bobbio, o qual postula alguns prolegômenos que, para ele, perpassam as distinções ideológicas desses posicionamentos. Sendo assim, o pensador político legitima a concepção de que a esquerda é permeada pela promoção da igualdade entre os sujeitos, à medida que a direita interpreta que há uma intrínseca relação entre desigualdade e sociedade, “o que caracteriza a esquerda perante a direita é o ideal, a inspiração ou a paixão que costumamos chamar de “ethos da igualdade” (BOBBIO, 2011, p. 150, grifos do autor). Esquerda e direita, nessa perspectiva, são termos antitéticos, opostos, impregnados de valorações, os quais podem ser usados para magnificar ou insultar determinado grupo. Além disso, essa díade pode ser entendida como cosmovisões, a partir das quais os atores arquitetam suas experiências de vida e atuam socialmente. Depreende-se, então, que as agendas desses posicionamentos se espraiam e constituem os sujeitos nas esferas de convívio social. Circundadas por estas concepções políticas, em 15 de março de 2015, um milhão e 350 mil pessoas saíram às ruas para protestar contra o governo da então presidente Dilma Rousseff. Um ano depois, sob os slogans com contornos intolerantes “O Brasil não será outra Venezuela” e “Quero meu país de volta”, 3 milhões de pessoas estavam nas ruas novamente, exigindo o impeachment Círculo

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de Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (TATAGIBA, 2018). Outro enunciado exibido pelos manifestantes foi “minha bandeira jamais será vermelha”; nesta construção, visualiza-se, de forma imediata, a voz centrípeta que atravessa a construção do ato enunciativo, a qual não considera outras visões de mundo que comungam de ideologias representadas pelo tom vermelho. Percebe-se, ademais, imbricado neste ato enunciativo, a ideia de que a coloração que projeta estes protestos é o verde-amarelo, o qual contorna alguns símbolos brasileiros usados nas manifestações, conforme ilustra a Figura 1. FIGURA 1 - Protestos pró-impeachment

Fonte: COM MAIS (2016).

Percebe-se, portanto, a camiseta da seleção como o tom estético que transpassou e vestiu a maioria dos sujeitos que se moveram a favor do impeachment. Desenhado por Aldyr Garcia Scheele3 em 1954, esse símbolo se difunde socialmente a partir da conquista de 3Gaúcho, nascido em Pelotas, foi um escritor, jornalista, tradutor, desenhista e professor universitário As suas especialidades foram a criação literária, a literatura uruguaia e gaúcha, a identidade cultural e as relações fronteiriças. Faleceu em 2018. 274

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Copas do Mundo, pois, desse modo, a seleção começa a despertar o interesse da população e a se tornar a encarnação preferencial de nação brasileira (GUEDES; DA SILVA, 2019). Outra característica desses atos anti-Dilma foram os “panelaços”. Entendidos como o ato de bater panelas em janelas ou sacadas, ao longo da história eles se tornaram uma prática política assídua no mundo, sobretudo em países da América Latina, como Argentina, Venezuela e Colômbia (DAMAZIO, 2016). Um dos primeiros registros desse tipo de protesto ocorreu em meio ao movimento conhecido como “Movimento da panela vazia”, acontecido no Brasil, em 1953, quando milhares de trabalhadores marcharam carregando panelas vazias, com o intuito de protestar contra a elevação de produtos de consumo durante o governo de Getúlio Vargas. Durante alguns pronunciamentos da ex-presidente Dilma Rousseff, os panelaços ocorreram em forma de resposta, uma vez que “toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo, é de natureza ativamente responsiva ”, “toda compreensão é prenhe de resposta” (BAKHTIN, 2016, p. 25). Esses panelaços atribuíram, nessa perspectiva, um acento valorativo negativo a respeito das falas da então presidente. Convocados por meio das redes sociais, com forte repercussão jornalística, o primeiro registro de panelaços, neste contexto histórico, é do dia 8 de março de 2015, durante o pronunciamento realizado por Rouseff a respeito do dia Internacional da Mulher. Essa prática tornou-se corriqueira, conforme Bezerra e Lucena (2016), ao longo de 2015, os panelaços ganharam força, ao mesmo tempo que protestos presenciais Anti-Dilma ocupavam as ruas brasileiras. Cartazes contendo imperativos contra a corrupção e a favor do impeachment estampavam com as cores da bandeira do país o clamor de grupos sociais nas avenidas, bem como as capas dos jornais e revistas de maior circulação nacional (BEZERRA; LUCENA, 2016, p. 9). Círculo

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A Figura 2 ilustra esse movimento dos atores sociais que, ao se manifestarem a favor do impeachment, comungaram o uso das cores verde e amarelo, bem como a prática dos panelaços. FIGURA 2 - Panelaços pró-impeachment

Fonte: CASTRO (2015).

Percebe-se, logo, que diferentes tons ideológicos perpassam movimentos que usam panelaços como ato responsivo, pois cada campo da esfera de atividade humana suscita diferentes acentos ideológicos. O signo panelaço pode, então, carregar sentidos de luta, de contestação etc., a depender do projeto ao qual se propõe o sujeito que pratica o ato. Entre as peculiaridades que conectaram os sujeitos presentes nos protestos, está o antipetismo (TELLES, 2019). Nesse sentido, para os manifestantes, os principais males do Brasil são atribuídos aos governantes identificados como petistas, sendo que 91% declararam que o PT fez um grande mal ao país e 82% deram nota zero ao PT. O antipetismo também pode ser encontrado no julgamento que fazem dos seus quadros: 81% consideram que Lula é um dos principais malfeitores do país, 82% concordam que Dilma também é um das malfeitoras e 24% afirmam que 276

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Jair Bolsonaro seria um bom presidente para o Brasil (TELLES, 2019, p. 60).

Os protestos pró-impeachment, assim sendo, foram arquitetados a partir de uma base social antipetista, paulatinamente construída a partir de dinâmicas de mobilização social e dinâmicas eleitorais. Este repertório antipetista encontrou subsídio no contexto do início das investigações da Polícia Federal, com a operação Lava Jato, destinada a investigar desvios de recursos públicos e lavagem de dinheiro. É possível entender o antipetismo por meio de dois vieses: a partir de uma ótica, é um fenômeno político-eleitoral, circundado pela ideia de rejeição a um partido; por outro lado, é um fato sociopolítico, expresso no sentimento e manifestação de ódio. Nesse viés, Tatagiba (2018) assevera que 70% dos protestos de direita ocorridos, nesse ínterim histórico, apresentaram como pauta o combate à corrupção, a defesa da destituição de Dilma Rousseff e/ou a prisão de do ex-presidente Lula. Em torno dessas agendas circulavam temas como a manutenção dos valores da família, bem como da ordem e da segurança. Uma manifestação que simbolizou a rejeição aos governos petistas foi a contestação, manifestada em cartazes, do slogan “país rico é país sem pobreza”, o qual foi reacentuado e transformado em “país rico é país sem corrupção”. A campanha pelo impeachment, portanto, ficou marcada por sua força simbólica e numérica. Contornados pelo tom verde-amarelo, para marcar uma pauta patriótica e nacionalista, a direita brasileira foi às ruas, unida pelo ódio ao Partido dos Trabalhadores, um gatilho emocional para os protestos que legitimaram um novo acento valorativo à camiseta da seleção, observável por refrações.”

A PROPÓSITO DA REFRAÇÃO SÍGNICA O ambiente no qual os sujeitos se constituem é habitado por signos ideológicos, os quais refletem e refratam a realidade encontrada fora dos seus limites, possibilitando que os sujeitos arquitetem Círculo

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novos sentidos. Entendendo a camiseta da seleção como um signo encadeado à simbologia, detecta-se o seu potencial de intervenção na sociedade, visto que o signo não é somente uma parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade, sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico e assim por diante (VOLÓCHINOV, 2018, p. 93).

Evidencia-se, assim, a capacidade que os signos possuem de refletir e refratar, ou seja, de apontar para algo externo e, simultaneamente, alterar algo na organização do tecido social, uma vez que as muitas valorações e vozes se perpassam, engendrando novas significações. Esse processo de refrangir revela a maneira como as diferentes experiências humanas se circunscrevem nos signos e, principalmente, no processo de construir o mundo e lhe dar sentidos. Ao perceber a tensão e os acentos valorativos que contornam os projetos enunciativos acerca do uso da camiseta da seleção, uma designer desenvolveu, em 2018, um projeto que culminou na denominação “camiseta da seleção versão da esquerda”. A figura 3 expressa a mencionada proposta: FIGURA 3 - Camiseta da seleção versão da esquerda

Fonte: DEARO (2018).

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Os signos se originam nas relações interindividuais e adquirem, por meio dos interlocutores, novos centros de valor. Detectando o novo tom axiológico da camiseta da seleção, a escola de samba Paraíso do Tuiuti, no ano de 2018, a usou como traje para vestir personagens que compuseram uma ala nomeada “manifantoches”. Assim, a partir do enredo “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” a escola inseriu a camiseta na esfera carnavalesca, de acordo com a figura 4, caracterizando sujeitos que teriam se tornado “fantoches”, sendo manipulados por projetos políticos. Destacase, ainda, que os manifestantes também carregavam outros signos, como panelas e patos amarelos, em alusão à campanha da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), a qual apoiou a destituição da ex-presidente Dilma Rousseff. FIGURA 4 - Manifantoches

Fonte: RAMOS (2018).

Percebe-se que a camiseta da seleção, enquanto signo ideológico, refratou partir de um novo acento axiológico. Esse processo de refletir e refratar ocorre porque as comunidades linguísticas são organizadas por distintos grupos de vozes, os quais, a partir de diferentes realidades materiais e ênfases ideológicas, germinam a Círculo

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ressignificação dos signos. Assim, ao serem refletidas nos signos, as diferentes visões de mundo atribuem-lhes novas nuances de sentido, ditando diferentes avaliações.

A CAMISETA EM ENUNCIADOS CONCRETOS: UMA TENSÃO CONSTITUTIVA Alguns enunciados emergentes no contexto de revaloração evidenciam a tensão constitutiva de sentidos a respeito da camiseta. Esse signo é comumente usado na esfera esportiva, sendo povoado por um contorno valorativo próprio desse campo, contudo, quando imergido em outra realidade material, ele é contaminado por novos acentos axiológicos, possibilitando enunciados que refratam semanticamente. No projeto enunciativo “Vou torcer para a seleção conquistar o hexa, mas não quero ser confundido com paneleiros e manifantoches” (PIRES, 2018, [s.p.]), observa-se, de forma imediata, o caráter dialógico que permeia a enunciação. Ao potencializar o signo “paneleiros”, habitado por diferentes acentos valorativos, o locutor propõe uma relação com os sujeitos que, conforme demonstrado na contextualização, bateram panelas durante alguns discursos de Dilma Rousseff com o intuito de depreciá-la. É importante ressaltar, nesse sentido, que cada enunciado é um elo na cadeia da comunicação e não pode, portanto, ser separado dos elos precedentes, justamente por desencadear relações (BAKHTIN, 2016). Outra ressonância dialógica é evidenciada no uso de “manifantoches”, quando o locutor projeta um encadeamento com o desfile da escola de Samba Paraíso do Tuiuti (2018). Ao detectar esta relação entre o signo “manifantoches” e a escola de samba, conjugamos a proposta bakhtiniana de que o sentido que o enunciado tem na vida não coincide somente com a sua forma verbal, pois as palavras são repletas de ditos e não ditos, sempre há, além da palavra, a situação extraverbal da vida (VOLÓCHINOV, 2019). 280

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Por perceber que toda palavra enunciada é um ponto de vista avaliador para algum horizonte ou fenômeno da realidade, percebe-se uma valoração negativa acerca da camiseta, uma vez que ao enunciar “não quero correr o risco”, é traçada, negativamente, uma ênfase axiológica que reflete um distanciamento entre o sujeito e o signo. Esse distanciamento provoca uma perturbação no tecido social, em um movimento de alterações sobre a simbologia, as quais se concretizam por meio da palavra, pois ela é o meio em que ocorrem as lentas acumulações quantitativas daquelas mudanças que ainda não tiveram tempo de alcançar uma nova qualidade ideológica nem de gerar uma nova forma ideológica acabada (VOLÓCHINOV, 2018, p. 106).

Atrela-se a isso a concepção bakhtiniana de que a língua é transpassada por acentos axiológicos, os quais podem propiciar uma união entre vozes sociais, ou, ainda, um movimento de confronto. Desse modo, o enunciado “Vou votar em Bolsonaro, então vim com a camiseta para concretizar isso” (POR BOLSONARO, 2018, [s.p.]) também emerge deste contexto sociopolítico, projetando uma tensão enunciativa. Ao acionar o conectivo “então” e o verbo “concretizar”, o enunciador propõe a concepção de que os eleitores de Jair Bolsonaro comungam o uso da camiseta da seleção como um signo que os identifica, indicando a apropriação política do símbolo nacional. Na perspectiva bakhtiniana acerca do uso da língua, algumas vozes assumem um tom centrípeto, isto é, interpelam os sujeitos de forma a não abrir fronteiras, impondo uma adesão. Bakhtin (2015) assevera que todo enunciado concreto é um ponto de aplicação de forças, sejam centrífugas ou centrípetas, nele se cruzam os movimentos de unificação e separação. Assim, o vocábulo “concretizar”, empregado no enunciado, assume tal concepção de voz centrípeta, não permitindo a disseminação em outras línguas sociais, ao incutir uma entonação valorativa característica dos apoiadores de Jair Círculo

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Bolsonaro, tendo em vista que as forças centrípetas são “centralizadoras da vida verboideológica” (VOLÓCHINOV, 2019, p. 42). O enunciado "vou votar em Bolsonaro então vim coma camiseta apara concretizar isso" é construído de forma a buscar coros de apoio que sustentem as valorações imbricadas no meio social para o qual ele está orientado. Sendo assim, um coro de apoio mobilizado são as vozes representativas dos militares; em uma relação de causa e explicação, usa-se a conjução “porque” a fim de explicar a motivação para votar em Bolsonaro. Assim, referindo-se aos militares para enunciar “a gente tá apoiando ele”, o locutor se alicerça no fato de eles pertencerem real e materialmente à mesma parcela da existência, o que atribui a essa comunidade material uma expressão ideológica, bem como um desenvolvimento ideológico posterior (VOLOCHINOV, 2019, p. 120).

Há, nas duas enunciações analisadas, uma tensão inscrita, um choque entre as diferentes línguas sociais, contornado pelos acentos ideológicos atribuídos à camiseta da seleção. Esse movimento estratifica a tessitura social, interpolando as vozes. Ressalta-se, todavia, que essa polarização não enclausura vozes, tendo em vista que, no âmbito dialógico, sempre ecoarão vozes outras em composição.

CONSIDERAÇÕES (NÃO TÃO) FINAIS Ao conceber a camiseta da seleção brasileira como um signo ideológico, condicionado pelo processo de interação entre indivíduos socialmente organizados, bem como ao detectar a sua submersão em diferentes campos de atividade humana, buscou-se, nesta proposta, refletir a respeito da tensão existente entre as vozes sociais que enunciam sobre o uso do referido signo, com vistas a observar possíveis refrações.

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Detectou-se, pelo exposto na reflexão, que a camiseta da seleção, povoada por um novo acento axiológico, a partir da sua imersão na esfera política, deixa-a atrelada aos atores sociais que se identificam com agendas de direita e marcharam a favor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Percebendo a refração como algo constitutivo dos signos e das práticas discursivas, foi demonstrado como as diferentes visões de mundo habitam os signos, pluriacentoando-os. A partir do novo contorno ideológico do signo, verificamos que, entre "Vou torcer para a seleção conquistar o hexa, mas não quero ser confundido com paneleiros e manifantoches e "Vou votar em Bolsonaro, então vim com a camiseta para concretizar isso", há uma tensão inscrita, um choque, indícios de estratificação da sociedade brasileira entre os que comungam o uso do signo e aqueles que o repelem, tendo em vista que a língua é atravessada por uma saturação de axiologias, permeada pelos índices de valores advindos das diversas condições históricas dos grupos sociais. Revelam-se, dessa forma, vozes centrípetas que objetivam, a partir de ecos discursivos e coros de apoio, impor uma apropriação sígnica. Todavia, uma vez que o movimento de ressignificação do signo ideológico e o Círculo de Bakhtin não comportam observações estanques, tendo em vista que são norteados pelo fundamento da inconclusividade, não se concluirá que a camiseta da seleção, ao sofrer diferentes respingos ideológicos, tornou-se símbolo da direita brasileira. Dir-se-á, não obstante, que ela ficou vinculada a esta cosmovisão política, conforme evidenciaram o movimento de refração e a tensão que passou a constituir as vozes emergentes.

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A RELAÇÃO ALTERITÁRIA ENTRE DOCENTE E ALUNOS: UM ASPECTO DE INVISIBILIDADE DA ATIVIDADE DE TRABALHO

Maíra da Silva Gomes1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

INTRODUÇÃO O objetivo deste estudo é, a partir da teoria dialógica do discurso e da abordagem ergológica, refletir sobre um aspecto de invisibilidade do trabalho docente: a relação alteritária entre professor e alunos. Para tanto, analisamos partes de uma entrevista realizada com um professor de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Restinga, mostrando as complexidades não aparentes dessa atividade. Essa entrevista analisada é parte de um corpus de outras entrevistas que compõem um projeto de pesquisa de doutorado2 em desenvolvimento que versa sobre a 1 Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora de nível básico e superior no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Restinga. Doutoranda em Linguística do Programa de PósGraduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Bolsista Capes. Apoio IFRS. Integra o Grupo de pesquisa Tessitura Vozes em (Dis)curso (CNPq). https://orcid.org/0000-0003-3851-873X Email: maira.gomes@restinga.ifrs.edu.br 2 A nossa pesquisa de doutorado desenvolve aspectos de invisibilidade na atividade docente. Para isso, partimos da abordagem ergológica e da teoria dialógica do discurso. 286

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invisibilidade do trabalho do professor de Português e Literatura no contexto do curso Integrado no IFRS, Campus Restinga. Esse projeto de doutorado é orientado pela Profa. Dra. Maria da Glória Corrêa di Fanti, no PPG em Letras da PUCRS, no período de 2017 a 2021. Partindo da teoria bakhtiniana, analisamos o discurso produzido pelo professor entrevistado, aproximando atividade de linguagem e de trabalho no fazer desse docente. É importante destacar que, na perspectiva do Círculo de Bakhtin, a linguagem é constitutivamente dialógica, ideológica, axiológica e alteritária, e o enunciado concreto, proferido por falantes socialmente organizados, é considerado a real e mínima unidade da comunicação discursiva. Utilizamos os conceitos bakhtinianos de empatia e exotopia, signo ideológico, reflexo e refração e valoração para analisar os enunciados da entrevista. Partindo da perspectiva ergológica, que visa conhecer uma atividade para transformá-la e entende o trabalho enquanto atividade humana industriosa que envolve sempre um debate de normas e valores, analisamos a atividade docente, via acesso à fala do próprio trabalhador. Para análise da entrevista, utilizamos os conceitos ergológicos de renormalizações, debates de normas e valores e dramáticas do uso de si. A primeira parte deste texto é composta por uma breve reflexão sobre alguns conceitos das teorias bakhtiniana e ergológica. Na segunda parte, trazemos as análises da entrevista realizada com o professor de Língua Portuguesa e Literatura do IFRS. Por fim, trazemos as considerações parciais.

A ABORDAGEM ERGOLÓGICA E A PERSPECTIVA BAKHTINIANA Nesta seção, trazemos as reflexões teóricas da abordagem ergológica e da perspectiva dialógica de linguagem. Yves Schwartz (2016), uma das principais referências da área, diz que a Ergologia Círculo

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não pode ser considerada uma teoria, mas sim uma abordagem multidisciplinar que contempla um abrangente diálogo com disciplinas das Ciências Humanas e das Ciências da Linguagem. Nesse sentido, observa que nunca a definimos como uma disciplina científica. Mas o que é a Ergologia? Adotamos o termo, ou a expressão, em português, abordagem como uma maneira de afirmar que não é uma nova disciplina, é uma postura, uma abordagem que requer outras, todas outras disciplinas, notadamente as das Ciências Humanas, sempre em uma situação de discussão com elas às vezes de crítica, numa dimensão de uso e de polêmica com essas disciplinas. Alguns pensam que é uma disciplina, uma ciência, que é filosofia, por exemplo. Prefiro falar de abordagem. O que é verdade na sua pergunta é que a Ergologia tem necessidade de interface com outras disciplinas das Ciências Humanas e, notadamente, das Ciências da Linguagem (SCHWARTZ, 2016, p. 230-231, grifo do original).

Assim, vemos que a Ergologia, entendendo que a atividade de trabalho é muito complexa para ser analisada apenas sob um viés, constitui-se como uma abordagem pluridisciplinar. Nessa perspectiva, o trabalho não pode ser entendido apenas como um protocolo a ser seguido, visto que essa abordagem refuta toda a tentativa de mecanizar o trabalho humano, mas como uma atividade que é industriosa. Isso implica considerarmos que, em todo trabalho, há tomadas de decisão, debates de normas, tensões de todo tipo que exigem que o trabalhador expresse a sua singularidade. O trabalho caracteriza-se como “uma possibilidade de viver com saúde cada encontro com o momento presente, momento sempre misto de sedimentações históricas e de circunstâncias inéditas” (SCHWARTZ, 2016, p. 254). Nas situações de trabalho, há uma relação dinâmica e tensa entre normas antecedentes (conjunto heterogêneo de componentes e valores partilhados sobre o que se deve fazer) e renormalizações 288

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(a realização viva do trabalho). Desse modo, pode-se dizer que haverá sempre uma distância entre o que é planejado e o que é realizado no trabalho, porque, em qualquer atividade, o ser humano singulariza-se. Tais ponderações nos conduzem a reflexão de que os atos de trabalho, por mais que pareçam uma reiteração mecânica, expressam a relação dialética entre o repetível (normas de todos os tipos e sequência de hábitos) e o irrepetível – as imprevisibilidades do presente convocam o trabalhador a agir de uma forma nova, a renormalizar. Conforme Schwartz (2011, p. 34), o conceito de renormalização se refere a [...] múltiplas gestões de variabilidades, de furos das normas, de tessitura de redes humanas, de canais de transmissão que toda situação de trabalho requeira, sem, no entanto, jamais antecipar o que elas serão, na medida em que essas renormalizações são portadas por seres e grupos humanos sempre singulares, em situações de trabalho, elas mesmas, também sempre singulares (SCHWARTZ, 2011, p. 34).

Nesse sentido, as renormalizações estão sempre presentes na atividade de trabalho, porque agir já implica tomar uma decisão com base em coerções não apenas das normas, mas especialmente da eventicidade do aqui e agora da atividade. Para Schwartz (2010, p. 30), a “Ergologia é a aprendizagem permanente dos debates de normas e de valores que renovam indefinidamente a atividade: é o ‘desconforto intelectual’”. Com isso, podemos perceber que essa abordagem se centra no fundamento de que o trabalho humano é complexo, pois as ações no trabalho exigem do corpo-si um debate de normas e valores e dramáticas a serem enfrentadas. As dramáticas de uso de si são as respostas que damos aos eventos que não podem ser antecipados e que exigem de nós “fazer, agir, produzir.” O autor diz que a “atividade” é uma sucessão ininterrupta de dramáticas “uma tentativa permanente do corpo-si no sentido de viver em saúde a relação com seu meio a viver” (SCHWARTZ, 2014, p. 264). Círculo

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Desse modo, para a Ergologia, a atividade de trabalho “refere-se a escolhas, portanto, a um mundo de valores que nos permitem decidir. Essas escolhas criam situações novas, fazem história, nenhuma racionalidade teria podido predeterminá-las” (SCHWARTZ, 2009, p. 1). Na perspectiva ergológica, conforme Yves Schwartz (2011, p. 20), o trabalho é “uma realidade enigmática”, que não pode ser definida de uma maneira simples e unívoca. Toda atividade humana, segundo o autor, pode ser caracterizada “como um nó de debates entre normas antecedentes e tentativas de ‘renormalização’ na relação com o meio” (SCHWARTZ, 2011, p. 34). Nesse debate de normas, “a atividade de trabalho ‘não se vê’, somente são apreendidos seus resultados e seus meios”, ou seja, há partes a serem desvendadas, pois o trabalho “sempre comporta uma parte invisível ou uma penumbra” (SCHWARTZ, 2011, p. 31). Pode-se dizer que a abordagem ergológica entende o trabalho como a tensa relação entre o geral – a norma – e o singular – as renormalizações na atividade concreta de trabalho, visto que a atividade de trabalho [...] é sempre o lugar, mais ou menos infinitesimalmente, de reapreciação, de julgamentos sobre os procedimentos, os quadros, os objetos do trabalho, e por aí não cessa de ligar um vaivém entre o micro do trabalho e o macro da vida social cristalizada, incorporada nessas normas (SCHWARTZ, 2011, p. 33).

Passando para a perspectiva teórica bakhtiniana, vemos que a língua é focalizada a partir da sua realidade concreta e viva e de suas relações dialógicas. O Círculo de Bakhtin entende que “a linguagem é uma atividade que se constitui a cada interação verbo-social, na comunicação dialógica, verdadeiro campo da vida da linguagem, do discurso, do enunciado concreto” (DI FANTI, 2012, p. 312). O enunciado, unidade mínima da comunicação discursiva, é sempre situado e concreto, relacionado às situações em que é proferido. Nessa perspectiva, a linguagem é constitutivamente dialógica, 290

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alteritária, ideológica e se materializa, através de enunciados, na inter-relação com o outro. Bakhtin diz que todos os enunciados já encontram seu objeto (aquilo de que se ocupam) permeado de valorações “pela luz de discursos alheios já externados a seu respeito”; o enunciado voltado para seu objeto “entra nesse meio dialogicamente agitado e tenso de discursos, avaliações e acentos alheios, entrelaça-se em suas complexas relações mútuas, funde-se com uns, afasta-se de outros, cruza-se com terceiros” (BAKHTIN, 2015, p. 48). Desse modo, os enunciados estão sempre em relação dialógica com outros enunciados e discursos, visto que enunciar já é responder ativa e axiologicamente a alguém ou a outro enunciado: todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau; porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte) (BAKHTIN, 2003, p. 26).

Nessa perspectiva, os enunciados não são jamais neutros, mas carregados de valores e acentos alheios; eles orientam-se dialogicamente, são participantes “no ativo diálogo social” e nas discussões ideológicas maiores; o enunciado “responde, refuta, ou confirma algo, antecipa as respostas e as críticas possíveis, busca apoio e assim por diante” (VOLOCHINOV, 2017, p. 219). Assim, o dialogismo, constitutivo da linguagem, se concretiza nas enunciações, que sempre se aproximam de alguns discursos e se distanciam de outros, respondem a enunciados antecedentes e antecipam futuras respostas. O enunciado, assim como o discurso, não se realiza como uma vontade individual de expressão de um falante, mas “surge no diálogo como réplica viva, forma-se na interação dinâmica com Círculo

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o discurso do outro” e está orientado para uma resposta; ele “não pode evitar a influência profunda do discurso responsivo antecipável” (BAKHTIN, 2015, p. 52, grifos do autor). Nessa concepção, o falante está sempre em relação dialógica com o outro – discurso, interlocutor, enunciado – e se constitui nessa relação. Nessas interações, em que a palavra própria e alheia se cruzam, é possível observar os movimentos de empatia e exotopia, “que são, tal como as relações dialógicas, constitutivos da linguagem e implicam a relação dos dois centros de valor da enunciação, o eu e o outro” (BARBOSA, 2017, p. 62). A empatia é o movimento de se aproximar do outro, de se colocar no lugar do outro; a exotopia é o movimento de voltar ao lugar original, de ver o outro do meu próprio lugar. Quanto a isso, Bakhtin diz que Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento (BAKHTIN, 2011, p. 23).

Pelo movimento empático, o ser “tem a possibilidade de complementar o outro, buscando compreender o mundo a partir dos “mesmos” acentos valorativos que definem esse eu” (BARBOSA, 2017, p. 62). O movimento de exotopia é o retorno do eu a si mesmo, “o que permite o excedente de visão”, que significa poder ver o que o outro sozinho não consegue enxergar de si mesmo. Assim, os movimentos de aproximação e distanciamento constituem a nossa relação com o outro; colocamo-nos no lugar do outro para voltarmos ao nosso lugar diferentemente, criando “um ambiente concludente”. Para o Círculo, a palavra é o signo ideológico por excelência, onde se encontram diversas vozes, pois “em todo signo ideológico 292

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cruzam-se ênfases multidirecionadas. O signo transforma-se no palco da luta de classes” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 113). A palavra é orientada pela inter-relação entre falante e ouvinte, e, desse modo ela “é um ato bilateral”. Nesse sentido, Volóchinov (2017, p. 205) diz que “Toda palavra serve de expressão ao “um” em relação ao “outro”. Na palavra eu dou forma a mim mesmo do ponto de vista do outro e, por fim, da perspectiva da minha coletividade. A palavra é uma ponte entre o eu e o outro” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 205). Nessa concepção, a língua em uso “é povoada e repovoada por intenções alheias” (BAKHTIN, 2015, p. 70) e próprias, cheia de acentos de valor que se concretizam no ato da enunciação. O signo, para o Círculo, não apenas reflete a realidade, mas principalmente refrata-a, pois ele é constituído por acentos de valor. Nas palavras de Volóchinov (2017, p. 91), qualquer produto ideológico “reflete e refrata outra realidade que se encontra fora de seus limites. Tudo o que é ideológico possui uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é um signo”. Volóchinov (2017, p. 94) também diz que “cada campo da criação ideológica possui seu próprio modo de se orientar na realidade, e a refrata a seu modo”. Podemos dizer, então, que a refração é uma orientação de valor ao enunciado realizada no momento da enunciação, e é estabelecida pela situação da interação. Nessa concepção, em todo enunciado há acentos valorativos e, desse modo, nunca é neutro. A enunciação para o Círculo de Bakhtin é um ato, um evento, sempre irrepetível; mesmo que eu enuncie a mesma sequência linguística que enunciei há minutos atrás, será um novo enunciado, visto que não estou mais no mesmo tempo. Assim, o ato de enunciar para Bakhtin é concreto, responsável, responsivo, singular, insubstituível e irrepetível. A abordagem ergológica e a perspectiva dialógica bakhtiniana podem se aproximar, na medida em que elas enfocam as atividades Círculo

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de trabalho e de linguagem a partir da concretude do ato e não de abstrações e generalizações. As duas teorias não negam que existam generalizações – normas para a ergologia e um sistema linguístico de formas para o Círculo –, mas consideram que a particularidade das atividades de trabalho e de linguagem só pode ser observada na singularidade do ato humano. A realidade da atividade de trabalho na Ergologia é o debate de normas e valores na atividade industriosa concreta. A realidade da atividade de linguagem, para o Círculo, é a concretude do ato enunciativo produzido por falantes em um contexto específico.

A ALTERIDADE COMO ASPECTO DE INVISIBILIDADE DA ATIVIDADE DOCENTE A entrevista que iremos analisar foi realizada, no dia 23 de maio de 2019, com um professor efetivo do IFRS do Campus Restinga. Ele é professor de Português e Inglês, graduado pela Unisinos, Mestre pela Unisinos e doutor pela UFRGS. Atua como docente do Campus Restinga há mais de quatro anos. Assim como os outros professores de língua do Campus Restinga/ IFRS, ele tem lecionado em diversas turmas e modalidades, inclusive no Ensino Médio Integrado (enfoque da pesquisa de doutorado em andamento), como professor de Português e Literatura. Para a finalidade deste capítulo, realizamos um recorte das partes mais significativas da entrevista para compor a análise, com o objetivo de mostrar a alteridade entre docente e alunos como um aspecto de invisibilidade da atividade do professor. A entrevista foi composta por um roteiro feito previamente, que incluía 7 perguntas sobre: 1) a adequação das Ementas da disciplina de Língua Portuguesa e Literatura do curso Integrado; 2) as normas institucionais que orientam o trabalho; 3) a formação teórica do professor; 4) a concepção de linguagem e sua operacionalização nas aulas; 5) aspectos envolvidos na atividade de trabalho dentro e 294

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fora da sala de aula; 6) a necessidade de se alterar algo nas normas; 6) o gerenciamento da diferença entre o planejado e o realizado. Para este estudo, não trazemos todos os enunciados-resposta de cada pergunta, mas selecionamos trechos que revelam a alteridade constitutiva na atividade docente. Com a contextualização feita acima, partiremos agora para a análise de enunciados da entrevista. Para compor a análise, selecionamos 5 recortes. Passemos para a leitura do primeiro recorte: QUADRO 1 – Recorte 1

O evento aula não é uma ementa. Não é um planejamento. Não é um plano de ensino. O evento aula é quando tu está naquele espaço com aquelas pessoas e vocês constroem uma situação de diálogo ali. Só que o planejamento não é aula [...]. Às vezes, na primeira semana de aula, o professor entrega, com as semaninhas ali, até o final do semestre, até o final do ano exatamente... Não vai sair assim. E se for assim é porque o professor atropelou algumas coisas, negligenciou outras. E seguiu o papel. Não o evento. Eu procuro pautar muito meu trabalho nisso. Na situação do diálogo, da autonomia em sala de aula, dos acordos em sala de aula. Fonte: Elaborado pela autora.

Os acentos valorativos, representados pelas escolhas lexicais como “evento aula” “não é um planejamento” “situação de diálogo” e “acordos”, apontam discursivamente para a perspectiva do professor sobre seu trabalho. Para ele, a atividade docente não é um planejamento, mas é um evento construído através da interação com os seus alunos, por meio de acordos e de diálogo. Podemos perceber nessa fala, o debate de normas e valores e a renormalização da atividade de trabalho de que fala Yves Schwartz, já que “trabalhar é sempre aplicar um protocolo, ao mesmo tempo é sempre aplicá-lo de uma maneira singular [...] não somente eu não faço jamais exatamente aquilo que me mandaram fazer, mas Círculo

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eu não faço exatamente aquilo que eu previ fazer” (SCHWARTZ; DURRIVE, 2010, p. 70). Assim, podemos perceber um exemplo do debate de normas e valores que perpassa o trabalho do professor, ao descrever a tensão existente entre o que é planejado e as necessidades específicas da turma (a atividade concreta e singular do trabalho). Esse trecho da entrevista nos mostra tanto o debate entre o que é prescrito e as exigências da atividade real, como a impossibilidade de seguir somente o que é prescrito para a atividade, já que há especificidades de cada turma e necessidades dos alunos que devem ser consideradas. Assim, considerar somente o “papel” significa negligenciar os alunos. A partir do enunciado do professor, também podemos analisar as dramáticas de uso de si, visto que “[...] toda atividade industriosa é sempre uma dramática do uso de um corpo-si” (SCHWARTZ, 2014, p. 259). A dramática de uso de si envolve um contínuo debate de normas que permeiam as atividades, pois todo trabalho contempla [...] a gestão de posicionamentos e tomadas de decisão bastante complexas, como organização de imprevistos e crises típicas do desenvolvimento da atividade que passam, na maioria das vezes, despercebidas, mas que exigem muito do trabalhador, ou seja, do si (BARBOSA, 2017, p. 84).

Essas dramáticas, partes invisíveis do trabalho, envolvem decisões, muitas vezes complexas, sobre o que é mais adequado aos alunos, considerando suas especificidades e necessidades. Isso mostra o debate de valores e de normas no trabalho do professor, pois esse trabalho não é apenas uma execução mecânica, ou um cumprimento de regras. Ao contrário, o trabalho do professor envolve o debate entre o que a norma orienta e o que ele acredita ser adequado aos alunos, levando-o a refletir sobre quais seriam as decisões mais adequadas a tomar, tendo em vista a realidade dos alunos, na sua situação concreta de trabalho. 296

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Observando o enunciado em destaque, percebemos que, para considerar a realidade dos alunos, deve-se retrabalhar o que está prescrito enquanto normas, adequando-se às necessidades das pessoas envolvidas: os alunos. Um outro aspecto relevante levantado por esse professor na entrevista é a impossibilidade de os documentos preverem a singularidade do evento, que é o real do trabalho. Observando a fala do professor, vemos que a interação com os alunos é priorizada no seu trabalho. Isso implica considerar que os movimentos de empatia e exotopia fazem parte da atividade docente. Conforme o Círculo de Bakhtin, a empatia é o movimento de aproximação do outro, de me colocar no lugar do outro, e a exotopia é movimento de voltar ao meu lugar, de ver o outro do meu lugar. Assim, o docente realiza os movimentos de aproximar-se dos alunos para verificar suas necessidades, dificuldades, preferências (movimento empático) e de afastar-se, voltando ao seu lugar original de professor (movimento exotópico) para tomar providências sobre maneiras de atender as necessidades dos alunos. Assim, podemos dizer que a empatia e a exotopia são movimentos de interação com o outro que fazem parte da atividade docente. Via análise da fala do entrevistado, podemos dizer que o acontecimento de aula não pode ser pré-definido por qualquer norma, pois, por melhor que ela seja, não poderá prever os debates, as tomadas de decisões e as tensões que o professor terá de enfrentar na interação viva e concreta com os alunos na sala de aula. O docente observa que o planejamento de aula é uma etapa importante, mas que, na interação real com os alunos, ele (o planejamento) não deve ser o protagonista, salientando que seguir exatamente o que planejou, significa negligenciar aspectos concretos da aula. Nesse sentido, os esforços do professor de suprir as necessidades do aluno, em um tenso debate com as normas, não pode nunca ser algo prescrito enquanto norma, porque essas necessidades vão Círculo

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sendo percebidas e construídas na relação e no diálogo com os alunos nas aulas. Outro aspecto não aparente no trabalho do professor tem a ver com o espaço heterogêneo da sala de aula e com as renormalizações necessárias para contemplar a diversidade de alunos, visto que toda atividade de trabalho é sempre o espaço “mais ou menos infinitesimalmente, de reapreciação, de julgamentos sobre procedimentos [...] e por aí não cessa de ligar um vaivém entre o micro do trabalho e o macro da vida social cristalizada, incorporada pelas normas” (SCHWARTZ, 2011, p. 33). Podemos perceber esse espaço de julgamentos sobre procedimentos, reapreciação e renormalizações nesta fala a seguir, em que o professor tem de se adequar às necessidades de tempo e de diversidade das turmas: QUADRO 2 - Recorte 2

As turmas são heterogêneas e dentro de uma turma existem diferentes grupos. Aquele grupo que chega no horário, que faz todas as atividades que tu tem que dar um insumo a mais. Tu tem que dar outras demais atividades ou alguma maneira não pode deixar eles sem fazer nada simplesmente. A realidade é o que acontece naquele evento(...). A partir disso, o novo planejamento também precisa ser alterado porque, às vezes, a gente tem: Ah, vou trabalhar 3 semanas... com essa turma durante 3 semanas os contos da literatura brasileira”. Só que a coisa rendeu. A coisa foi muito além do que eu esperava. Eles amaram, se interessaram. Vamos pegar mais uma semana, né? Então, o tempo tem que ser administrado de maneira inteligente e dinâmica. Se acontece algum imprevisto, eu preciso explicar 5 vezes o uso da crase, não uma ou duas, eu não posso fazer de conta, porque o meu planejamento previa [...] Eu preciso mudar o meu planejamento. Então, o planejamento tem que estar a serviço da aula. Ponto final. O planejamento é um instrumento para qualificar a aula. Ponto final. Fonte: Elaborado pela autora.

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Os signos ideológicos “heterogêneas”, “a coisa rendeu”, “eles amaram, se interessaram” “explicar 5 vezes o uso da crase” refletem e refratam o fato de que o professor renormaliza para contemplar a heterogeneidade dos seus alunos. Com isso, podemos ver que a atividade docente não é autárquica, mas relacional, pois é o diálogo com os alunos que vai orientando os atos do docente. Desse modo, há dramáticas de uso de si pelas quais o professor passa para se ajustar às situações que exigem sua constante renormalização para corresponder à eventicidade do presente. Assim, a relação alteritária com os estudantes estabelece coerções para o uso de si: as atividades preparadas para uma semana podem durar bem mais, e a explicação de um conteúdo pode ter de ser repetida inúmeras vezes. Nesse sentido, esse trabalho, assim como a vida, envolve uma “sequência de debate de normas, exigidos pela configuração das normas antecedentes, de um lado, e impossível e invivível, do outro, que desembocam na série de resultantes que denominamos renormalizações” (SCHWARTZ, 2014, p. 264). Além de constituírem uma parte invisível do trabalho, as renormalizações são [...] as múltiplas gestões de variabilidades, de furos das normas, de tessitura de redes humanas, de canais de transmissão que toda situação de trabalho requeira [...] na medida em que essas renormalizações são portadas por seres e grupos humanos sempre singulares, em situações de trabalho, elas mesmas, também sempre singulares (SCHWARTZ, 2011, p. 34).

No trecho da entrevista enfocado, pode-se perceber que a atividade docente se constitui de múltiplas gestões de variabilidades, porque envolvem pessoas singulares em uma situação concreta de trabalho e de linguagem. Outro aspecto invisível do trabalho do professor é a relação emocional com seu trabalho, como vemos no recorte do Quadro 3:

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QUADRO 3 - Recorte 3

A gente vai com a energia da sala de aula para casa. Tem dia que a gente chega super feliz que a aula foi boa. Tem dia que a gente chega deprimido, destruído, não é? Como isso foi ruim. E a saúde mental, emocional da gente vai também oscilando conforme oscila também o processo de ensino e aprendizagem. Fonte: Elaborado pela autora.

Os acentos valorativos, representados pelos signos ideológicos em destaque, apontam discursivamente para o fato de que a atividade docente, ao contrário de ser um trabalho mecânico, envolve um trabalho com o ser humano, numa relação dialógica e alteritária com o outro. Nessa interação viva e concreta por meio da linguagem, o enunciador – professor – se constitui na relação com o outro – aluno e turma – e não pode escapar das reações ativas responsivas desse diálogo. A tristeza, a frustração e o cansaço, assim como a alegria e a satisfação podem oscilar como reações emocionais responsivas resultantes dessa situação de interação com seus alunos. O esgotamento físico, e acrescentaria também o emocional, podem ser explicados pelo viés dialógico, pois representam reações responsivas ao outro na atividade de trabalho, e também pelo viés ergológico, pois [...] compreendemos que toda atividade demanda uma polarização de valores, que [...] envolve um conjunto de recursos do corpo-si para sustentar essa relação polarizada, e não simplesmente cálculos intelectuais, e isso explica a possibilidade de estarmos fisicamente esgotados ao final de uma jornada de trabalho (SCHWARTZ, 2014, p. 262).

O professor entrevistado destaca algumas questões interessantes sobre seu trabalho. Uma delas se refere à importância de se estabelecer interações amistosas em sala de aula, como podemos ver no recorte do Quadro 4:

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QUADRO 4 - Recorte 4

[...] a interação precisa ser boa na sala de aula. Ou seja, a maneira como eu chego, eu entro, como eu falo com os alunos, isso também está ensinando eles o tempo todo. Não é só o que eu boto no quadro. Então, eu chegar lá e tratar eles com dignidade, com respeito [...] então, acho que a maneira como a gente interage na sala de aula, como a gente olha para os alunos. Até mesmo a roupa que veste. Eu não sinto... Quer usar? Usa. Mas eu não me sinto autorizado a ir muito bem vestido naquele ambiente de trabalho. Isso é uma linguagem. Quando eu chego, assim, muito formal, vestido de uma forma muito formal, eu me afasto do aluno”. Fonte: Elaborado pela autora.

A entonação valorativa do enunciado, revelada pelos signos ideológicos “interação boa”, “tratar eles com dignidade, com respeito”, “a maneira como a gente interage”, “a roupa que veste”, engendra sentidos voltados para a importância da relação alteritária entre professor e alunos. Assim, poderíamos dizer que o trabalho do professor passa pela preocupação de estabelecer uma boa relação com o aluno, aproximando-se dele, por um movimento empático, tanto na roupa que veste, como nas maneiras de interagir e falar. Observando o enunciado, podemos perceber que o signo ideológico “roupa” é refratado como um meio de se aproximar ou de se afastar dos alunos. O ato de vestir-se de modo mais informal é orientado ao outro, o que revela a importância dada aos estudantes. Como esse docente valora como essencial a proximidade com os alunos, ele veste roupas que podem conectá-lo a eles. Assim, a atividade docente também envolve cativar os alunos, chamar sua atenção para a aula, tratá-los com respeito para construção de uma boa convivência nessa situação de ensino e aprendizagem, porque construir um bom relacionamento com eles pode fazer com que se interessem mais em ouvir seu professor. Círculo

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Esses aspectos podem revelar facetas de invisibilidade do trabalho docente, porque eles transcendem a função de ensinar conteúdos de Português e Literatura, disciplina ministrada por esse professor. Outro ponto destacado pelo entrevistado é a linguagem do toque, da afetividade, muito presente no Campus Restinga, como vemos no recorte do Quadro 5: QUADRO 5 - Recorte 5

E, para mim, uma outra linguagem que é muito forte é a linguagem do toque, não é? Nós lá na Restinga, eles são muito afetivos. E eu posso usar isso a meu favor ou eu posso usar isso contra mim. Chegar na sala de aula, dar um abraço, perguntar como é que o pessoal tá, sair para o intervalo trocando uma ideia: “Ah Sor, nem sabe. Eu fui para tal lugar no final de semana”. Ah é? E o que foi? É? O que tu achou?” [...] Ou seja, a linguagem é uma propulsora do conhecimento na sala de aula. [...] Eu acho que quando a gente estabelece um elo verdadeiro com uma pessoa por meio do nosso discurso, do nosso olhar, da nossa postura, a gente muda a vida daquela pessoa dentro e fora da sala de aula. A postura que o aluno tem quando ele se dá conta que tu leva ele a sério, que tu te preocupa com ele é outra. Fonte: Elaborado pela autora.

Os acentos valorativos do enunciado, vinculados às escolhas lexicais em destaque, apontam discursivamente para o fato da importância da relação de alteridade com os alunos na atividade docente. Vemos que o professor valora que o toque, o afeto, as conversas sobre temas cotidianos estabelecem um elo concreto e verdadeiro com os estudantes. Observando o enunciado “Eu acho que quando a gente estabelece um elo verdadeiro com uma pessoa por meio do nosso discurso, do nosso olhar, da nossa postura, a gente muda a vida daquela pessoa dentro e fora da sala de aula”, vemos que a atividade docente não se restringe à função de aplicar uma norma, ou a transmitir um conteúdo. Por meio dessas 302

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interações entre docente e alunos, nesse contexto específico de sala de aula, ou nos corredores da escola, o professor pode, conforme disse o entrevistado, mudar vidas, dentro e fora da escola. O aluno, muitas vezes, dependendo da relação de proximidade, vê o professor como um amigo, como um psicólogo, como alguém em quem confiar. Esse lugar pouco aparente do trabalho do professor, como propulsor de mudanças nas vidas dos alunos, talvez não seja claro nem para os próprios docentes. O enunciado “E eu posso usar isso a meu favor ou eu posso usar isso contra mim” reflete e refrata o sentido de que o professor, por meio de dramáticas de uso de si que convocam um debate de normas e valores, escolhe, toma decisões, gere, inova no seu trabalho. Assim, o trabalho docente envolve aspectos impossíveis, porque não se pode evitar que o corpo-si se singularize, e invisíveis, porque a atividade de trabalho é opaca, não se revela na sua complexidade. Tais ponderações desvelam aspectos de invisibilidade do trabalho do professor. Podemos perceber, portanto, que o trabalho docente envolve muito mais do que está prescrito e aparente. Muito mais do que ensinar conteúdos de Português e Literatura, o professor interage, na realidade concreta e viva, com seus alunos, relacionando-se com todas as tensões, imprevisibilidades, vulnerabilidades e singularidades envolvidas. Assim, defendemos a posição axiológica de que o trabalho do professor entrevistado vai muito além do visível. As invisibilidades de diversos tipos, algumas mencionadas aqui neste texto, e outras ainda por serem elucidadas, constituem a complexa e real atividade de trabalho. O visível é apenas a ponta do iceberg, pois o trabalho do professor não começa e nem termina na aparente simplicidade da sala de aula.

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CONSIDERAÇÕES PARCIAIS Neste capítulo, procuramos discutir a atividade de trabalho docente, buscando revelar aspectos de invisibilidades da relação alteritária entre professor e alunos. Assim, defendemos que o trabalho docente abarca uma invisibilidade constitutiva de sua atividade, que inclui os debates de normas e valores, as dramáticas do uso de si, que abrangem as decisões e tensões existentes no trabalho. Na interação concreta e viva com os alunos, dentro e fora da sala de aula, aparecem as singularidades e complexidades com que o professor se depara e entra em debate para procurar soluções. Nesse sentido, professor e alunos representam centros de valores em interação. Considerar essa perspectiva significa assumir que os atos de trabalho e de linguagem do docente não são autárquicos, mas sempre relacionais, orientados aos alunos singulares com que interage em sala de aula. Contemplar as necessidades específicas de cada estudante exige do docente um debate constante entre os saberes instituídos (saberes adquiridos pela sua formação, e todas as normas prescritas para a atividade) e os saberes investidos no presente. Isso nos faz refletir sobre as exigências do corpo-si do professor, que tem de inovar, criar e recriar formas de agir que contemplem as diversidades e as imprevisibilidades do presente. Assim, os atos de trabalho do docente são orientados para a relação alteritária com os estudantes. A relação eu e outro estabelece coerções para as tomadas de decisões e as renormalizações do corpo-si. Portanto, vemos que a atividade de trabalho docente comporta aspectos invisíveis que revelam a complexidade dessa profissão.

REFERÊNCIAS BARBOSA, V. Uma voz apagada? Análise da atividade de revisão de textos acadêmicos sob as perspectivas bakhtiniana e ergológica. 2017. Tese (Doutorado em Linguística) ─ Escola de Humanidades, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. 304

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BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, p. 261-306, 2003.

BAKHTIN, M. (1934-1935). Teoria do romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015. DI FANTI, M. G. C. Linguagem e trabalho: diálogo entre a translinguística e a ergologia. Passo Fundo: Desenredo, v. 8, n. 1, p. 309-329, 2012. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rd/article/view/2651. Acesso em:

SCHWARTZ, Y. Manifesto por um ergoengajamento. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (org.). L’Activité em dialogues: Entretiens sur I’Activité humaine (II). Toulouse: Octarés Editions, 2009. SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, p. 19-45, 2011. Disponível em: https:// www.scielo.br/scielo.php?pid=s1981-77462011000400002&script=sci_ abstract&tlng=pt. Acesso em: 29 nov. 2019.

SCHWARTZ, Y. Circulações, dramáticas, eficácias da atividade industriosa. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 33-55, 2004. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1981-77462004000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 29 nov. 2019. SCHWARTZ, Y. Trabalho e ergologia. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, Y. (org.). Trabalho & ergologia: conversas sobre a atividade humana. Tradução de Milton Athayde e Jussara Brito. 2. ed. Niterói: UFF, 2010. p. 131-188. SCHWARTZ, Y. Uma entrevista com Yves Schwartz. Letrônica, Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 9, p. 222-233, 2016. Edição especial. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/ view/25359. Acesso em: 29 nov. 2019.

SCHWARTZ, Y. Motivações do conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, 2014. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/ article/view/19102. Acesso em: 29 nov. 2019. VOLÓCHINOV, V. (1929). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Aérico. São Paulo: Editora 34, 2017.

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COWORKING: UMA ABORDAGEM FUNDAMENTADA NOS GÊNEROS DO DISCURSO

Gislene Feiten Haubrich1 Universidade Feevale (Feevale)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS O olhar voltado às questões históricas que circundam o fenômeno laboral evidencia uma distância entre as noções de trabalho e de organização. Entretanto, tal cisão favorece a criação de barreiras entre os diferentes escopos de atividade que compõem uma organização, o que ratifica níveis hierárquicos e desigualdade em seu ecossistema. Na contemporaneidade, o fenômeno coworking tem se destacado como modelo de organização fundamentado na conjunção de atores com distintas origens, cujo ponto comum são as ideias de compartilhamento e de colaboração. O coworking, entendido na fusão das concepções de espaço, de atividade e de movimento (JONES, SUNDSTED, BACIGALUPO, 2009), é um fenômeno relativamente recente. Entendendo-o como arranjo organizacional comunicativamente constituído (HAUBRICH, 2019; BLAGOEV; COSTAS; KÄRREMAN, 2019), reconhece-se que a cisão mencionada pode ser repensada mediante 1 Doutora em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale, com estágio doutoral na Universidade de Estrasburgo, França. Pesquisadora colaboradora do CITCEM, Universidade do Porto, Portugal. https://orcid.org/0000-0002-2849-0086. E-mail: gisleneh@gmail.com. 306

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uma imbricação fundamentada nas interações. Nesse sentido, este estudo visa compreender o coworking com base na noção bakhtiniana de gêneros do discurso. Para tanto, congrega as concepções de meio (CANGUILHEM, 1952), de ideologia (VOLÓCHINOV, 2013, 2017), de gêneros discursivos (BAKHTIN, 2016) e do quadro integrador comunicacional (BUILLON, 2003). Entre as estratégias para coleta de dados, investe-se nas pesquisas documental e de campo, por meio do estudo de casos múltiplos, cujas triangulações envolvem os dados coletados e as teorias investidas (YIN, 2005). Elegem-se duas unidades de análise, em Porto Alegre e Estrasburgo, com base na acessibilidade e no potencial de contribuição. Com base nos dados coletados, defende-se que os enunciados proferidos em diferentes níveis comunicacionais são sustentados por gêneros discursivos, que orientam as interações da atividade em coworking. A construção do capítulo dá-se em cinco seções, a começar por estas considerações iniciais. Na sequência, apresenta-se uma breve contextualização ao termo do coworking, para, em seguida, articular os demais conceitos acionados na investigação. A quarta seção é dedicada à apresentação do modelo que estrutura a abordagem do coworking a partir dos gêneros do discurso em relação com os elementos da pesquisa de campo desenvolvida. As considerações finais fecham o artigo com uma síntese dos principais achados da investigação e indicações para estudos futuros.

UM POUCO DE HISTÓRIA: ORIGEM DO COWORKING A dinamicidade das relações é desafiadora dada a permanente transmutação de significados que envolvem a vida coletiva. Em meio à significação cristalizada, o cenário diverso que cerceia a atuação dos atores sociais impulsiona a ânsia por transição. Nessa rede de tensão, trafegam pontos de vista paradoxais que inferem na construção social da realidade. Nos ambientes organizacionais, Círculo

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gestores deveriam reconhecer que, no quadro real do trabalho, os processos comunicacionais – ou relacionais – são plurilaterais, distantes dos fluxos padronizados e impostos. Nesse sentido, dar visibilidade aos pontos de vista diversos, que formam a realidade, implica perceber os trabalhadores como agentes fundamentais, de fato. A configuração coworking mostra-se como uma resposta possível a tal visibilidade. Na tradução literal, significa trabalhar (work) junto dos outros (co) de modo relativamente permanente (ing). No contexto sociocultural, atribui-se a atualização do termo coworking a Brad Neuberg, que, insatisfeito com sua realidade laboral, “não encontrava um modo de combinar todas as coisas que eu gostaria ao mesmo tempo: a liberdade e a independência de trabalhar para mim com a estrutura e a comunidade de trabalhar com os outros” (NEUBERG, 2019, s. p.). Diante desse impasse, Neuberg criou, em 2005, aquele que é reconhecido como o primeiro coworking do mundo, em São Francisco (EUA), chamado Spiral Muse.2 No primeiro livro publicado sobre o tema, I’m Outta Here, sem tradução para o português, Jones, Sundsted e Bacigalupo (2009, p. 8) afirmam que “a palavra coworking tem diferentes significados: [...] um nome próprio para designar um movimento, um verbo para descrever uma atividade ou um adjetivo para caracterizar um espaço”. De acordo com o portal Coworking Wiki, engajar-se ao coworking implica a adesão a uma série de valores: colaboração, abertura, comunidade, acessibilidade e sustentabilidade. Interessa mencionar que a orientação valorativa global instiga a tradução 2 Devido à necessidade de síntese, opta-se por apresentar aquela versão discursiva associada à ideologia oficial em torno do coworking. Entretanto, considerando o mundo globalizado e a amplitude da concepção de trabalhar juntos, destaca-se que a definição desta configuração laboral recebeu influência de outras práticas sociais vinculadas às tecnologias e às práticas das chamadas economias do conhecimento, criativa e colaborativa. Para ampliar essa compreensão, sugere-se a consulta da tese de Haubrich (2019). 308

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local (BHABHA, 2008) dos valores propostos, que decorre da interpretação de cada novo grupo de trabalho que se associa ao conceito de coworking. De acordo com a investigação de Haubrich (2019, p. 244), pode-se entender o coworking como “arranjo organizacional constituído por práticas comunicacionais vinculadas à atividade laboral de indivíduos engajados ao propósito de trabalhar de modo colaborativo”. A construção desta perspectiva considera a compreensão do fenômeno como uma nova forma de trabalhar, ainda que seja necessário ponderar o significado de “colaboração” nesse contexto, conforme aponta Capdevila (2014). De toda sorte, a definição do coworking como arranjo organizacional, cujo centro é o trabalho realizado pelos indivíduos que ali escolhem estar, destaca que as interações em diferentes níveis se entrelaçam para culminar com a realidade expressa em discursos sobre a atividade.

GÊNEROS DO DISCURSO: FONTE DAS INTERAÇÕES [TAMBÉM] EM COWORKING A adoção de perspectiva transversal às três significações atribuídas ao coworking se justifica pela inscrição de tal conceito na corrente de significados relativos ao trabalho, especialmente na oposição aos constantes ensaios que visam reduzir a atividade laboral humana às métricas e à produção per se. Evidencia-se, com tal escolha, a possibilidade de tradução local do conceito global de coworking, calcada em elementos culturais inter-relacionados polemicamente, ou seja: em tensão constante e produtora de sentidos fundamentais à atualização dos significados construídos na linha ininterrupta do tempo e do espaço. A atividade, enquanto permanente debate de normas, suscita a experiência de dramáticas inerentes à relação de alteridade estabelecida pelo ser que dá vida ao trabalho (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007). O/A trabalhador/a não é mero executor/a de Círculo

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algo prescrito, ou expectador/a dos eventos propostos pela organização. Ao contrário: esse sujeito toma posições e avalia constantemente cada situação que vivencia (DURRIVE, 2015). Nesse caso, a organização não pode ser reduzida aos discursos e intencionalidades institucionais, mas define-se como palco de tensão daquilo que é posto, mediante o processo interpretativo. O ápice é a renormalização produzida pelo indivíduo, que expressa suas escolhas no aqui e no agora. “Assim, a compreensão entre trabalho e organização passa a ser mediada pela comunicação, por interações que se dão no exercício da atividade laboral” (HAUBRICH, 2019, p. 81). A definição de “meio” proposta por Canguilhem (1952) é inspiradora à compreensão da organização enquanto arranjo fundamentado por práticas comunicativas. Para esse autor, o meio se constitui enquanto espaço situado no tempo, sendo que “o meio próprio do humano é o mundo da percepção, quer dizer, o campo de sua experiência pragmática onde suas ações, orientadas e regradas por valores imanentes às tendências, desconstroem objetos, situando-os uns em relação aos outros e todos em relação a si” (CANGUILHEM, 1952, p. 191). A leitura proposta por Canguilhem enfatiza a intervenção individual à constituição coletiva. Nesse caso, o ser que trabalha é reconhecido como ativo no processo laboral e, com isso, infere-se, corresponsável pelo que se passa em tal contexto. A tomada de decisão em situação sanciona e/ou desestabiliza, mas sobretudo renormaliza, o que se ensaia imposto, normatizado. Trata-se da dinâmica denominada debate de normas (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007). Por certo, esse posicionamento ativo precisa ser reconhecido pelo indivíduo e pelo coletivo, ou tende a implicar sofrimento para ambas as partes. Nesse sentido, o desafio está na imbricação dialógica entre o arranjo dos objetos imposto pelo meio – que de modo anônimo estabelece o que é normal - e o rearranjo deles, na percepção situada. Como exemplo, considera-se uma situação 310

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trivial em coworking: um trabalhador que precisa realizar uma chamada telefônica. A sequência de escolhas que ele realiza implicará o modo como ele se vincula ao coletivo, ao mesmo tempo que tais escolhas formatam o que ele considera o melhor para si, naquele momento. O tom de voz, o tempo, o tema e tantos outros objetos são reposicionados numa ação trivial, que exige sensibilidade e inteligência para a vivência do trabalho. O desafio que se impõe é como conjecturar a inter-relação entre individual e coletivo, a fim de favorecer as interações em prol da produção de conhecimento, estímulo à criatividade e inovação, comportamentos tão caros à sociedade contemporânea. Convém, então, considerar estratégias de integração entre as manifestações organizacionais discursivisadas a partir da sua base, a atividade laboral. Crê-se que a proposta de Bouillon (2003), acerca de um quadro integrador para análise das dinâmicas organizacionais, seja contributiva. Do ponto de vista micro, dá-se visibilidade à situação de comunicação no cotidiano, decorrente da realização da atividade. Neste ponto, aborda-se a produção de sentidos, a elaboração e a mobilização de saberes em situação. A segunda dimensão, meso, está vinculada aos processos produtivos de transmissão da informação e refere-se à instância direta de anonimato e normatização do espaço organizacional. Finalmente, a esfera macro implica as políticas de comunicação à produção discursiva oficial, atribuída a uma pessoa jurídica à qual, por vezes, é reduzida a organização. Nela estão englobadas ações que visam legitimar a imagem organizacional almejada, majoritariamente, pelo grupo gestor, ainda que exista, por vezes, um profundo descolamento da situação real do meio laboral. O reconhecimento do debate de normas como prática fundadora dos atos humanos contrapõe muitas defesas, cuja definição é o olhar verticalizado às relações entre sujeitos. De outro modo, reconhece-se a existência de uma tensão permanente e edificadora, que torna visível as escolhas realizadas pelos indivíduos no Círculo

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escopo microssocial de sua atividade de trabalho. A autoria reconhecida instiga-nos a uma relação distinta com os níveis meso e macro, dimensões que congregam a normatização em diferentes graus de desaderência organizacional. Assim, ainda que as normas se caracterizem como sociais, antecedentes e anônimas (DURRIVE, 2015), por reconhecer a participação individual nesse processo coletivo, o engajamento dos trabalhadores, especialmente no contexto do coworking, é essencial para sua constituição. Engajamento implica a conexão, com intensidade variável, aos temas pertencentes ao entorno normativo produzido por e para a atividade laboral, posto que materializa a organização enquanto arranjo provisório e relativamente estável. Os argumentos apresentados até o momento ressaltam a relevância da linguagem e das manifestações discursivas, em diferentes materialidades, como fundamentais à constituição da realidade, inclusive de organizações. Defende-se, então, que o enunciado proferido pelo ser que trabalha congrega a esfera ideológica acionada por ele no momento e na situação de suas escolhas. De acordo com a definição proposta por Bakhtin (2016, p. 28), enunciado é “a unidade real da comunicação discursiva”, ou seja, a manifestação verbo-visual situada e concreta. “Todo enunciado, mesmo que seja escrito e finalizado, responde a algo e orienta-se para uma resposta. Ele é apenas um elo na cadeia ininterrupta de discursos verbais” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 184). O enunciado continua e polemiza o que o antecede, assim como aguarda sua compreensão ativa e responsiva. Reconhece-se, então, que o enunciado não é desconexo, mas perpassa e decorre de relativas generalizações conjecturadas em gêneros. Bakhtin (2016) ressalta que, por meio dos gêneros, organiza-se a expressão discursiva. Uma vez que o “eu” se desenvolve por meio da linguagem de outrem, é consequente que o aprendizado seja moldado por esses sistemas ideológicos estabilizados e atualizados pelos gêneros. Importa destacar que o entendimento 312

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em relação aos sistemas ideológicos decorre da compreensão bakhtiniana de ideologia, expressa por Volóchinov (2013, p. 138): “por ideologia entendemos todo o conjunto de reflexos e interpretações da realidade social e natural que se sucedem no cérebro humano, fixados por meio de palavras, desenhos, esquemas ou outras formas sígnicas”. A ideologia é entendida sob o ângulo dialógico. Para além de uma dominação, de uma imposição oficial, as interações entre os sujeitos no cotidiano instigam a interpretação de tal ideologia, num processo de entrecruzamento de pontos de vista. Em síntese, reconhece-se a inter-relação entre as formas sígnicas, os enunciados e os gêneros mediante suas possibilidades de refletir e refratar, de produzir sentido, de acordo com as perspectivas a serem legitimadas ou ressignificadas no processo de constituição do meio. O meio, retoma-se, é a imbricação entre a dimensão normativa que se impõe e a dimensão real que renormaliza. A renormalização, por sua vez, implica a transgressão em sua dimensão de tomada de decisão, que jamais é indiferente. Ainda que o ato sancione a norma que se impõe, trata-se de uma escolha pela qual se é responsável e responsivo. Com base nestes pressupostos que se pode avançar à noção de gêneros para compreensão do fenômeno coworking. Por um lado, destaca-se a dimensão de uma ideologia oficial, que atua como força estabilizadora do gênero. Por outro lado, a ideologia do cotidiano destaca as forças desestabilizadoras, que tensionam os sentidos e impulsionam a produção de novas interpretações, o que é base para uma tomada de decisão criativa e inovadora. Nesse sentido, entender a atividade laboral como base das manifestações discursivas traz à luz o processo comunicacional enquanto constitutivo das organizações. A partir da orientação bakhtiniana (BAKHTIN, 2016), aplicada ao contexto do coworking, os gêneros podem ser reconhecidos com base nas interações estabelecidas:

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a) gêneros primários - oriundos e desenvolvidos no cotidiano, como os diálogos face a face, informais, mediados pelo espaço compartilhado (cozinha, corredor, banheiro, café etc.), ou por meio de tecnologias, como aplicativos de celular; b) gêneros secundários - abarcam o convívio cultural organizado e desenvolvem-se primordialmente por meio do texto verbal escrito, como contratos, manuais, e-mails etc. A caracterização dos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2016) decorre de três elementos: estilo, construção composicional e conteúdo temático. O estilo implica as impressões individuais à expressão enunciativa, que é delimitada temporalmente e de modo valorativo, por meio das escolhas do ser que enuncia. A abertura estilística dos enunciados é determinada pelos gêneros, sendo alguns passíveis de profunda intervenção e expressão por parte do enunciador. A construção composicional, por sua vez, refere-se à estrutura do enunciado, enquanto o conteúdo temático tange à relação entre objeto e enunciado, abarcando os referentes do mundo em sua subordinação à interação verbal. Assim, a partir das concepções tensionadas, acredita-se que compreender a constituição do coworking mediante os gêneros do discurso seja profícuo, pois o acesso aos enunciados proferidos nas diferentes dimensões comunicativas permite o mapeamento e a compreensão das interações estabelecidas entre os agentes. Dado o entendimento de que as manifestações discursivas de qualquer enunciador decorrem de um contexto situado e temporalmente delimitado, e dirigem-se a um interlocutor que está na origem e no destino de tal enunciação, pode-se avançar ao reconhecimento dos sistemas ideológicos que amparam as visões de mundo enunciadas. Nesse sentido, destaca-se que as organizações são arranjos relativamente permanentes, pois dinamicamente renormalizadas por posições avaliativas postas em interação, que revelam as vozes sociais em tensão na construção de sentidos. A seção que segue apresenta a aplicação de tal ideação. 314

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ENTRE A HIPÓTESE E O CAMPO, A CONSTRUÇÃO DE UM OLHAR INTERACIONAL AO COWORKING Antes de avançar propriamente às reflexões emergentes do campo, considera-se importante situar metodologicamente a investigação. Em termos de filiação filosófica, reconhece-se a fenomenologia como fonte contributiva, uma vez que “tenta compreender e explicar o mundo social a partir do ponto de vista das pessoas envolvidas nos processos sociais” (VERGARA; CALDAS, 2005, p. 68). Destaca-se, ainda, a abertura ao diálogo com outros pontos de vista: a socioideologia do Círculo de Bakhtin e a ergologia. Nesse sentido, o estudo se configura com abordagem qualitativa e natureza aplicada, posto que se interessa pelo desenvolvimento de uma reflexão com base em unidades de análise específicas, correlacionadas ao marco teórico delimitado. A investigação decorre dos enfoques exploratório e descritivo, cujas estratégias envolvem as pesquisas bibliográfica, documental e de campo, a partir de estudo de casos múltiplos (YIN, 2005). As triangulações propostas implicam as teorias selecionadas (coworking, trabalho e linguagem) e os dados coletados (observações, entrevistas e documentos). Já a seleção das unidades de análise se apoia nos critérios de acessibilidade e de potencial de contribuição. Definem-se: a) La Plage Digitale, localizado na cidade de Estrasburgo, região da Alsácia, na França; b) Nós Coworking, localizado na cidade de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, no Brasil. Os corpora para condução da análise referem-se a discursos sobre o trabalho, a considerar a atividade como base das tensões em aderência e em desaderência. A Figura 1 sintetiza a articulação proposta.

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FIGURA 1 – Coworking: abordagem fundamentada nos gêneros do discurso

Fonte: Elaborada pela autora.

A Figura 1 sintetiza a proposta do capítulo em relação ao objetivo proposto. Nesse sentido, destaca a atividade como o pilar fundador do vínculo discursivo, em aderência e em desaderência. Importa ressaltar que a conexão entre os níveis micro, meso e macro se dá por meio das interações, materializadas em discursos sobre a atividade, que conformam os corpora coletados para análise. No nível micro (BOUILLON, 2003), articula-se a ideologia do cotidiano (VOLÓCHINOV, 2013), que é sustentada pelas trocas e atualizações de sentido situadas. No caso da coleta de dados, as interações vinculadas aos gêneros primários são reconhecidas por meio da técnica de observação, conjugada em dois momentos. Primeiramente, de modo geral e sistemático, durante 8 horas, em dias intercalados, em cada uma das unidades de análise. Em um segundo momento, de modo cronológico, durante 30 minutos, mediante o acompanhamento da atividade realizada pelos coworkers participantes3. O nível micro congrega, ainda, discursos em relativa aderência. Mesmo que dependentes da atividade dos trabalhadores, como é o 3 Em cada unidade de análise, pode-se contar com três coworkers participantes. 316

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caso das entrevistas semiestruturada e fundamentada, concernem a abordagens que evidenciam um olhar analítico (desaderência) ao aqui e agora (aderência). Preliminarmente, objetiva-se identificar estereótipos e pontos de vista dos indivíduos em relação às experiências da atividade, a partir de diálogos pré-orientados. Em um segundo momento, visa-se instigar o trabalhador participante da investigação à interpretação específica dos eventos, por meio de uma entrevista fundamentada, realizada na sequência do registro cronológico dos fatos observados. Destaca-se que ambas as entrevistas se configuram como dispositivos de enunciação que trazem à luz as interações cotidianas e congregam gêneros discursivos primários. Os níveis meso e macro, por sua delimitação integral em desaderência, repercutem de modo direto a ideologia oficial, normatizada e normatizadora. As manifestações discursivas, nesses casos, implicam os movimentos do meio que se impõe à atividade. Além disso, apesar do anonimato intrínseco, acredita-se que, ao menos em partes, eles têm origem na assimilação de renormalizações efetivadas pelos trabalhadores, em nível micro. Por essa razão, ambos estão vinculados aos gêneros secundários, pois “no processo de sua formação, eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários” (BAKHTIN, 2016, p. 15). No escopo médio, incluem-se os regulamentos, contratos e demais estratégias de delimitação aos comportamentos dos coworkers, a fim de compor a dimensão prescritiva da cultura organizacional. Já no plano macro, a enunciação evidencia a camada da superfície organizacional, cuja articulação pode se aproximar ou se afastar dos demais níveis comunicacionais. Em todos os casos, per se, o nível macro atua como referente aos demais níveis, mas não os sintetiza. Toda a elaboração discursiva destinada à propagação de forma coletiva, que fala por um terceiro e não pela escolha individual de um si, portanto, anônima, visa estabelecer coerções comportamentais em função de metas, objetivos e/ou valores institucionais. Círculo

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Entre os interlocutores envolvidos nesta expectativa estão clientes, mídias, governos, comunidades e, também, os trabalhadores. A chamada ideologia oficial é materializada pela expressão enunciativa de uma coletividade e é plena de vozes na sua constituição, ainda que, enquanto síntese, tenha ambição de instituir uma unidade que se impõe como verdade. Todavia, lembra-se, trata-se apenas de uma versão acerca da realidade. Diante destas ponderações metodológicas, prossegue-se com o mapeamento das interações reconhecidas no exercício da atividade em coworking. As interações estruturam-se enquanto vínculos entre “eu” e o “outro”, decorrentes de orientações relativamente estáveis, que as associam à perspectiva dos gêneros do discurso e sua relevância na determinação da constituição organizacional. A variação de gêneros (BAKHTIN, 2016), uma vez identificada, colabora com o contemplar da imbricação entre as ideologias oficial e cotidiana (VOLÓCHINOV, 2017), que são fundamentais à caracterização do meio (CANGUILHEM, 1952). Importa destacar que situação, posição e relações de reciprocidade, de acordo com a proposição de Bakhtin (2016), referem-se aos pontos de visibilidade à variação dos gêneros4. O Quadro 1 apresenta alguns exemplos das interações identificadas em coworking.

4 Em decorrência da limitação espacial, elegem-se dois exemplos relativos às situações em cada um dos gêneros. Para uma compreensão mais ampla, sugere-se o acesso ao texto de tese completo (Haubrich, 2019). 318

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QUADRO 1 – Gêneros e Interações em Coworking

Gênero Primário | Diálogos face a face

Interação

Situação

Posição

Relações de Reciprocidade

Interações casuais e, por vezes, não planejadas, posto que decorrem do convívio no espaço/ tempo do coworking.

Os interlocutores se colocam em posição de igualdade, com a possibilidade de instaurar a interação verbal, ainda que a presença em situação já tenha fundado o processo enunciativo.

Os contatos estabelecidos previamente, por vezes, determinam a condução da situação, na relação eu-outro.

A informalidade pretendida com a seleção de As reuniões, uma um espaço que rompe vez agendadas, com a carga simbólica mesmo com reda noção de reunião. gularidade, estão Também implica a permeadas pelos posição dos participansentidos vinculados tes, que precisam se à formalidade, semanifestar para que o riedade e exaustão. evento seja, de fato, A escolha do local comunicativo. Ainda impacta, então, a assim, a figura que faz quebra com alguns a abertura e fechadesses pressuposmento do momento tos, acionando eleassume as posições mentos de satisfade organização e de ção e familiaridade. mediação quanto ao uso da palavra.

Os participantes da reunião precisam sentir confiança para apresentar suas perspectivas com os demais. A regularidade depende do interesse em expor-se aos demais seja com a presença ou, para além, com a manifestação verbal.

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Gênero Secundário | Manual do Coworker/ Regulamento Gênero Secundário | Anúncios em sites especializados | Materiais de Prospecção de clientes 320

Disponibilizado Enquanto documento pela gestão do orientador de comcoworking aos portamento, percebecoworkers no mo-se uma tentativa de mento de ingresso criação de hierarquia, no espaço. Também onde uma parte arbitra é disponibilizada sobre as decisões da uma cópia física outra, que deve obepróximo às áreas decer às demandas de circulação. propostas.

A importância deste documento é a proposição de um balizamento à tomada de decisão do coworker, que vai renormalizar as indicações do manual em atividade.

O coworking Embora caracteriescolhe este A multiplicidade zem-se como canais meio para dide espaços de para comunicação vulgação de coworking impulentre coworkers e informações siona a adesão coworking, os sites sobre seu às ferramentas posicionam os atores espaço. O tradicionais para em polos quase que in- coworker, por apresentação de dependentes, sendo a sua vez, pode sua proposta insti- emissão a elaboradora conhecer a tucional e serviços de uma mensagem e proposta dos prestados para a recepção, analista escritórios avaliação dos das informações. A compartilhados coworkers. Neste interação é restrita, ou mesmo do caso, diferentes ca- pois em desaderência coworking e nais (ferramentas) com o vivido e, por se vale de insuportam a maniisso, demanda mais formações disfestação discursiva tempo para que os poníveis para organizacional, cujo horizontes sociais do decidir qual propósito é seduzir eu e do tu sejam recoespaço escotrabalhadores na nhecidos mutuamente, lher. Trata-se escolha de seu am- sendo este momento de materiais biente e proposta totalmente associado de apoio e em de trabalho. à tomada de decisão desaderência situada do tu. com o cotidiano da atividade. Fonte: Elaborado pela autora.

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O Quadro 1 destaca alguns dos discursos sobre o trabalho coletados para a análise da investigação. As diferentes manifestações enunciativas aí congregadas vinculam-se aos três níveis comunicacionais, cujo ponto de referência é a aderência ou a desaderência com a atividade laboral, neste caso, em coworking. Os gêneros, conforme mencionado anteriormente, orientam as interações decorrentes desses pontos de acionamento à ação. A relação “eu” - “outro” requer permanente investimento de si para interpretar e produzir respostas aos enunciados preliminares e, logo, instigar posteriores, cujo ápice é o ato em atividade. Nesse sentido, o Quadro 1 implica um mapeamento demarcado no tempo e no espaço e, por isso, assentado nos elementos que marcam a variação dos gêneros, mostrando como o meio se impõe, por um lado, e o esforço de renormalização, por outro. Em ambas as unidades de análise investigadas, no nível micro, as conversas rápidas e casuais, exemplificam as interações norteadas enquanto gênero primário. A reelaboração de elementos normativos, por meio da comunicação cotidiana, evidencia a interpretação efetivada por interlocutores. Neste caso, as coerções decorrem dos sistemas ideológicos, no escopo extra verbal; quer dizer, que envolvem o enunciado no aqui e agora, mas não estão, ali, explícitos. Assim, o estilo enunciativo adequa-se à temática e ao contexto. Por exemplo, o diálogo resultante do encontro na fila para o café depende da presença de outras pessoas ou dos interesses circundantes. Nessa ocasião, os conteúdos temáticos podem ser diversos: dos aspectos específicos do trabalho aos gostos pessoais. A construção composicional, em geral, não é previamente preparada, mas improvisada, resultante da conjunção entre percepções e normas elaboradas pelo trabalhador e eventos normativos advindos da situação. As reuniões em coworking, ainda que se refiram às interações face a face, e por isso, ao gênero primário, são concernentes ao nível meso do quadro integrador comunicacional. No caso do La Plage Digitale, unidade de análise que oportunizou a observação Círculo

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durante a reunião, reconhece-se que o estilo visa à informalidade, cuja manifestação está no local (cozinha) e nas modalidades de participação, já que os coworkers podem intervir de maneiras diversas. Os conteúdos temáticos que orientam o encontro incluem avaliação do serviço prestado pelo coworking, difusão de saberes constituídos e demanda por melhorias. A construção composicional é relativamente estável: abertura, abordagem dos temas, convite ao debate e fechamento, ainda que alguns participantes mantenham as discussões após esse encerramento oficial. Também no nível meso, os manuais e contratos, por sua vez, referem-se à enunciação de gênero secundário, pois organiza, em desaderência, elementos normativos à atividade. Para ambas as unidades de análise, o conteúdo temático congrega a elucidação de normas de conduta esperadas pela gestão, que visam estimular o comportamento colaborativo, a partir dos atos que compõem a atividade. Para o manual e o regulamento, adota-se o estilo sugestivo, que transmite as normas em tom de recomendação amigável. Transgride-se, assim, o significado repressivo da norma (DURRIVE, 2015), ao passo que ela é abordada como beneficiária a todos os sujeitos engajados no trabalho em coworking. A construção composicional acompanha o tom complacente do manual e do regulamento, mediante a estética das linguagens verbal e visual do documento. No caso do contrato, segue-se o padrão determinado legalmente, posto que se trata de um gênero com “alto grau de estabilidade e coação” (BAKHTIN, 2016, p. 40). O último exemplo dado no Quadro 1, para explanar as interações em coworking, envolve o nível macro, mediante enunciados divulgados em sites e por meio de anúncios em sites especializados, cartões postais e material de prospecção enviado por e-mail. A construção composicional destes documentos, produzidos em desaderência, é orientada pelos elementos que o ser híbrido, a organização, precisa projetar em sua enunciação para torná-la institucional. Ainda que não sigam uma mesma orientação, o enfoque de

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tais às estratégias enunciativas está em apoiar a tomada de decisão do coworker. O estilo adotado em sites e anúncios recorre às imagens como ponto de apelo principal, destacando a questão da praticidade, o que é também evidenciada pela seleção das demais informações que compõem a enunciação. Além disso, as fotos do espaço são o principal argumento para persuasão. O conteúdo temático implica a apresentação do coworking e a difusão de informações consideradas fundamentais para que o trabalhador – cliente - construa a imagem organizacional a partir desta experiência. Neste caso, o foco está nos planos disponíveis para contratação (flex ou fixo), em conceituar o coworking e mencionar quem são os coworkers já residentes. Já os anúncios são orientados por fotos e apresentação dos serviços. A partir das interações mapeadas e sua imbricação aos gêneros, pode-se aprofundar o olhar em relação às suas especificidades, com base naquilo que os torna relativamente estáveis (BAKHTIN, 2016). A sutura das ideologias oficial e do cotidiano, ressalta as vozes sociais que permeiam essa constituição comunicativa organizacional em coworking. A partir dos enunciados analisados, pode-se identificar como os gêneros orientam as interações da atividade dos coworkers e, consequentemente, apontam para as bases valorativas da sua tomada de decisão em situação. Assim, defende-se que a aplicação da noção de gêneros seja contributiva ao reconhecimento das práticas comunicativas em coworking que, por sua vez, são base para a constituição destes arranjos organizacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O coworking pode ser considerado um fenômeno organizacional recente. Trata-se de uma configuração laboral decorrente da insatisfação de trabalhadores com a possibilidade de vivenciar Círculo

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o trabalho em suas casas ou junto a uma estrutura empresarial. Define-se como um terceiro espaço para a vivência da atividade de trabalho. Neste sentido, reconhece-se que sua constituição pode ser sustentada por meio dos eventos comunicativos. A concepção dos gêneros do discurso emerge, então, como possibilidade distinta para o mapeamento das interações e à compreensão da dinâmica de produção de sentidos. Para viabilizar sua aplicação no contexto das organizações, opta-se por colocar tal conceito em diálogo com a noção ergológica de atividade. A pesquisa de campo efetivada em Porto Alegre e Estrasburgo, para além de um comparativo, embasa a compreensão das diferentes possibilidades de tradução local às orientações globais em coworking. Nesse sentido, aspectos culturais, extra verbais, inferem de modo decisivo no processo de tomada de decisão em atividade, assim como na sua interpretação, em desaderência. A investigação sustenta a defesa da atividade como pilar fundador organizacional, posto que os níveis de aderência e desaderência ressaltam os diferentes pontos de vista à ordenação das interações entre os indivíduos e a coletividade. Além disso, no nível micro comunicacional, pode-se reconhecer que em oposição à desaderência, cuja manifestação discursiva está vinculada a conceitos coletivamente acordados, a aderência apresenta diferentes graus, cuja variação decorre da posição do trabalhador em relação à atividade. Para estudos futuros, sugere-se a aplicação desta proposta à outros contextos em coworking, assim como a outros tipos de arranjos organizacionais, como hubs ou parques tecnológicos. Reconhece-se aí dificuldade envolvida, especialmente nos procedimentos de coleta de dados, posto que organizações com/de orientação tradicional, quer dizer, verticalizada, tendem a impor diferentes formas de coação para formatar os discursos de trabalhadores. De toda sorte, acredita-se que a imbricação discursiva ora reconhecida, como base para a constituição comunicativa de tais 324

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arranjos organizacionais, destaca as interações em diversos níveis comunicacionais, em aderência e desaderência com a atividade laboral. Trata-se de uma fonte profícua para mapear e entender fraturas e fortalezas no estabelecimento de práticas de colaboração e de compartilhamento de informação e conhecimento. Outra temática relevante inclui a investigação da sobrevivência de arranjos organizacionais como coworking no contexto permeado pela Covid-19, cuja pandemia declarada em março de 2020 implicou o encerramento e adaptação das práticas laborais. Se, por um lado, os ambientes compartilhados tendem a sofrer impactos negativos pela situação de isolamento social que mobilizou trabalhadores à adoção do homeoffice, ou escritório em casa, por outro, a narrativa de Neuberg (2020) sustenta a compreensão de que esse afastamento deve ser provisório. Assim, diante do período de incerteza econômica que se avizinha das sociedades contemporâneas, aprender a colaborar de modo relacional, “com a busca de resultados sinérgicos, investindo ativamente nas dinâmicas de construção da comunidade”, (CAPDEVILA, 2014, p. 7), pode ser a única alternativa para o desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, as lições aprendidas com a atividade de trabalho em coworking são fundamentais para frutificar interações entre os sujeitos.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Editora 34, 2016. BHABHA, H. O Local da Cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Glaucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

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CAPDEVILA, I. Different inter-organizational collaboration approaches in coworking spaces in Barcelona. SSRN, 2014. DOI: http://dx.doi. org/10.2139/ssrn.2502816. Disponível em: https://papers.ssrn.com/ sol3/papers.cfm?abstract_id=2502816. Acesso em: 28 abr. 2020. DURRIVE, L. L’expérience des normes. Comprendre l’activité humaine avec la démarche ergologique. Toulouse: Octares éditions, 2015.

HAUBRICH, G. F. Coworking “is not a place, it’s a people”: um olhar comunicacional à produção de saberes no Brasil e na França. 2019. 269 f. Tese (Doutorado em Processos e Manifestações Culturais) – Universidade Feevale, Novo Hamburgo, 2019. JONES, D.; SUNDSTED, T.; BACIGALUPO, T. I’m Outta Here! How coworking is making the office obsolete. Austin: Not an MBA Press, 2009.

NEUBERG, B. The Start of Coworking (from the Guy that Started It). Blog coding in paradise. [San Francisco], 2018. Disponível em: http://codinginparadise.org/ebooks/html/blog/start_of_coworking.html. Acesso em 28 abr. 2020.

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ASPECTOS VALORATIVOS NA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: IDEOLOGIA E TRABALHO

Márcia Cristina Neves Voges1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Na era de transformação da indústria em 4.0, uma pandemia provocada por um vírus disseminado mundialmente põe em voga uma discussão antiga do meio educacional, a educação a distância (EaD) versus educação presencial2. Em um sentido mais estrito de aderência social da modalidade, a educação a distância vive relações paradoxais com sua própria existência: ao mesmo tempo que cresce anualmente em número de matrículas (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, 2019) no ensino superior, não consegue se desvencilhar dos valores depreciativos adquiridos ao longo de sua trajetória, que teve início no Brasil, por volta de 1970, por meio de estudos por correspondência. 1 Doutoranda em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS. Bolsista Capes e membro do grupo de pesquisa Tessitura: Vozes em (Dis)curso. https://orcid.org/0000-0002-9396-9499 E-mail: marcia.voges@edu.pucrs.br 2 De acordo com Behar (2020), a distinção entre Educação a Distância (EaD) e Ensino Remoto Emergencial (ERE) está em considerar que o ensino presencial físico precisou ser transposto para os meios digitais tornando-se ERE, e a EaD é uma modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação. Círculo

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Desde seu início até a ocorrência da pandemia, a educação a distância ora é vista como uma saída para a realização das demandas educacionais, ora é vista como uma modalidade desprovida de aspectos de valor, por sua vez, presentes na educação presencial. Contudo, a chegada de medidas protetivas e de isolamento que buscavam contribuir para a diminuição dos riscos de contágio da COVID-19, doença provocada pelo vírus coronavírus, não só fechou as fábricas e o comércio, para tirar a população das ruas, mas, também, fechou as portas de escolas e demais estabelecimentos de educação. Assim, milhões de alunos e professores ficaram desprovidos da educação presencial. Por conseguinte, no contexto educacional atual, pelo engajamento dos órgãos governamentais com o isolamento social, as expressões Educação a Distância (EaD) e Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) ganharam destaque no meio educacional e na sociedade em geral. Essa ênfase está atrelada à grande porcentagem de alunos que recebem atividades online, que estão de acordo com as prescrições legais de caráter emergencial contidas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (BRASIL, 1996). A LDB autoriza, em situações emergenciais, a realização de atividades a distância nos diversos níveis e modalidades de ensino. Com isso, a modalidade de ensino mediada essencialmente por tecnologias deu, ao setor de educação, o norte que esse precisava para a continuidade nas aulas nas esferas públicas e privadas de educação básica e superior. Seguindo esse fluxo, no intuito de salvar o ano letivo, as instituições escolares aderiram às diversas plataformas de ensino e canais virtuais para a execução das aulas. Essa abordagem envolve quase totalmente a educação via Internet, salvo em alguns casos, nas esferas federais e públicas, em que foram buscadas outras alternativas devido ao acesso a esse recurso. A movimentação no cenário educativo, de aderência ao ensino via Internet, configurou-se como a alternativa número um entre as 328

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instituições de ensino, mas faz despertar diversas opiniões sobre a EaD: a qualidade do ensino que se tem ofertado atualmente no país; o acesso à Internet tanto para alunos quanto para docentes; a formação de professores para os trabalhos com as TDICs nos diversos eixos da educação; o excesso de demandas escolares tanto para o professor como para os alunos e seus pais; e, dentre as preocupações manifestas, a falta de confiança da sociedade no processo de ensino e aprendizagem via Internet, entre outros fatores que remontam à sala de aula presencial, agora, sala virtual. Em tal percurso, é na última opinião mencionada que nos deteremos para desenvolver esta pesquisa, ao explorar questões valorativas e ideológicas que surgem nos signos sociais que cercam a modalidade de educação a distância (EaD). Sendo assim, nosso objetivo é fazer uma reflexão sobre aspectos valorativos que circulam nas mídias sobre a EaD. Nesse sentido, este texto é o primeiro passo para desenvolver um amplo estudo no tocante à atividade industriosa3 do professor presencial em ambientes virtuais de aprendizagem. Pretende-se, portanto, numa pesquisa maior, atentar para o corpo-si4 e para o debate de normas e de valores implicados na etimologia da educação a distância e nas práticas desse professor com vista às tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs). Também será contemplado o uso de si na atividade trabalho permeada pela tecnologia para observar possíveis ressignificações e renormalizações do professor que trabalha com ensino presencial, mas que, pelas contingências dessa época de crise mundial, precisa aderir ao trabalho virtual. 3 Conforme Schwartz (2014, p. 261), “[...] toda sequência de atividades industriosas envolve arbitragens, debates, imersos num mundo social em que a comunidade de destino é sempre eminentemente problemática, em permanente reconstrução”. 4 De acordo com Schwartz (2014, p. 263), “[...] o essencial nessa fórmula, o debate entre o uso de si por si e o uso de si por outros, a inevitável arbitragem, e, portanto, a presença de valores que possibilitam as escolhas, as resultantes das dramáticas em termos de recentramentos, ‘renormalizações’, investem e se infiltram nos circuitos hierarquizados do agir que há em nosso corpo”. Círculo

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Sabemos que não caberá neste capítulo toda a discussão proposta acima, por isso, a relevância e amplitude do estudo virá na pesquisa de doutorado, ao buscar-se, no produto final da tese, não só colaborar com a reflexão sobre a formação docente para a era da indústria 4.0, mas também apresentar elementos que possam contribuir para o (re)conhecimento de si do professor nas possíveis transformações nessa era da educação. Além disso, aspectos semelhantes à Revolução Industrial parecem estar vindo à tona no paradoxo trabalho manual versus trabalho virtual do professor, remontando o que nos parece ser a era da revolução educacional, diante das práticas profissionais entrecortadas pelas tecnologias, pela resistência profissional, pela prática obsoleta e pela educação massiva em salas de aulas virtuais, dentre outros fatores que poderíamos trazer à luz neste estudo. Em vista das discussões, em que a educação a distância é protagonista dessa possível revolução educacional, propomos, neste capítulo, uma reflexão sobre aspectos valorativos circulantes nas mídias sobre modalidade de ensino EaD. Achamos que iniciar uma pesquisa maior por essa proposta embrionária motiva e acende diversos e importantes pontos de discussão sobre a educação a distância. Ao revisar as redes sociais, deparamo-nos com muitas ofertas de cursos para o nível superior. Como nosso intuito não é escrever sobre essa temática, prosseguimos nosso percurso em busca de um corpus que atendesse o propósito das questões valorativas, mas de modo crítico que, de alguma forma, provocasse no destinatário outras reflexões e não apenas o desejo de formação superior. Nessa direção, encontramos nos memes o material de que precisávamos. Por essa razão, recortamos do cenário midiático três memes sobre educação a distância. Diante do material do corpus divulgado em mídia digital, consideramos que esse tipo de publicação se insira no que se trata de gêneros do discurso, tomando por base, nesta pesquisa, os estudos bakhtinianos. Os memes escolhidos, de 330

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um modo geral, na sua arquitetônica, caracterizam-se pelo mesmo conteúdo temático: crítica à educação a distância. No que tange ao referencial teórico, partimos dos estudos da perspectiva dialógica da linguagem (BAKHTIN, 2011, 2017; VOLÓCHINOV, 2018) e estabelecemos uma breve interlocução com a abordagem ergológica do trabalho (SCHWARTZ, 2011, 2014), que convoca diferentes dramáticas de uso de si na atividade laboral. Para tanto, a discussão organiza-se da seguinte maneira: primeiramente, uma concisa contextualização sobre a educação a distância; em segundo lugar, anotações sobre a interface ergológica e a EaD; em terceiro lugar, o meme como gênero do discurso articulado aos signos ideológicos; em seguida, a análise do corpus; e, por último, as considerações finais.

UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA EAD No século XVIII, a necessidade de se pensar em um espaço educacional para “treinar” indivíduos para trabalhar na indústria se intensificou e, com isso, reproduziu-se, no espaço escolar, o modelo aplicado às fábricas: “produção em larga escala, trabalhadores segmentados em seções e produção voltada a resultados mensuráveis” (HORN; STAKER, 2015, p. 104). A partir do século XIX, a escola passou a atender um número cada vez maior de alunos, separados, entretanto, por idade e por séries. Nesse espaço, a figura do professor ganhou projeção, mudando de papel: de instrutor passou a disseminador da informação. Nesse tempo, o “espaço escolar se desenha como meio de organização social” (HORN; STAKER, 2015, p. 104), não muito diferente da visão da escola que temos ainda hoje. Em uma linha de tempo, a educação a distância (EaD) surgiu nesse mesmo século XIX, em meio ao desenvolvimento dos meios de transporte e das comunicações, processos advindos do século Círculo

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anterior, com a revolução industrial e com a introdução das salas de aula de treinamento do futuro operário-padrão. Nessa época, alguns níveis de ensino se sobressaíram, como sociedades educacionais, institutos e escolas, sendo os cursos técnicos de extensão universitária os que se destacaram na educação, nesse período no Brasil. Na história da educação a distância, é comum que se diga que ela foi inspirada no modelo fordista de produção e que sua estrutura é voltada para a educação em massa, bem como os outros níveis de educação que temos, afirma Peters (2001). Há muitas semelhanças entre esses elementos, pois, no âmbito da didática, a educação a distância abrange produtividade de conteúdo, divisão do trabalho e produção em série. Em uma setorização, diferentemente do presencial, ela divide o trabalho de ensinar, e a mecanização está presente na reformulação dos métodos de ensino e na automação do instrumental de comunicação e informação. O Brasil é um dos países mais destacados no uso de EaD, desde 1970. Com programas como o Telecurso (Fundação Roberto Marinho), a TV Educativa, entre outros, de modo geral, o país ainda, ou por essa razão, cultiva uma certa reticência sobre a modalidade (LITTO, 2019). Atualmente, os alunos de EaD somam 1.320.025, ou 17% do total, em 2019. De fato, de acordo com o último censo da educação a distância, ocorreram mais matrículas em EAD do que em cursos presenciais (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, 2019) no Brasil. Em linhas gerais, a modalidade já abrange 46,7% das matrículas, enquanto o presencial fica na casa dos 21,6%, dados extraídos do censo EaD (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, 2019). É inegável o crescimento da modalidade de ensino, e, oportunamente, a educação a distância está ditando o “como” os docentes devem trabalhar durante o isolamento social enfrentado por eles e pelos alunos.

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Enquanto o mercado da educação a distância cresce e se multiplica no cenário de enfrentamento à pandemia, de um momento para o outro, o professor, que trabalhava essencialmente com a educação presencial, precisa abarcar muitas funcionalidades do universo digital e tornar-se um letrado digital muito mais do que por vontade, mas por necessidade. É preciso conhecimentos sobre ferramentas, habilidade com o uso de aplicativos de vídeo, áudio e outros tantos cliques e acessos que, para muitos docentes, não fazia parte da rotina profissional, seja no cotidiano de trabalho, seja na vida particular. Tardif (2017, p. 21) lembra que “ensinar é mobilizar uma ampla variedade de saberes, reutilizando-os no trabalho para adaptá-los e transformá-los pelo e para o trabalho”. Do outro lado, existe o aluno que não deve ser desconsiderado ao falar-se no trabalho do professor, pois é alvo das produções docentes. Esse, inesperadamente, precisa dividir a cota de Internet entre canais de filmes e redes sociais e a demanda de materiais enviados pela escola. Tais materiais são agora produzidos por aquele professor que, em casa, dedica-se a inserir aulas para postar em plataformas digitais. Por isso, chama a atenção esse lugar da prática educativa, pois tem se configurado como um desafio para a formação contemporânea dos professores, tendo em vista o que, em 2004, Saujat tratava: [...] a experiência profissional é assimilada à experimentação entendida como uma forma de confrontação com o real produzindo-se no contínuo de ação continuado. Cada uma das experiências realizadas em prol dessa confrontação alimentaria a dinâmica de uma reflexão na ação, articulada a uma reflexão sobre a ação conduzida a posteriori, fonte de novos conhecimentos para o profissional (SAUJAT, 2004, p. 14).

Diante desse cenário, é possível dizer que esteja ocorrendo uma mudança de paradigma na profissão docente, a saber, uma transformação que ressignifica a prática docente em tempos da revolução industrial 4.0. Círculo

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A INTERFACE ERGOLÓGICA NA EAD De um momento para outro, as aulas presencias passaram a ser ofertadas via online, assim, a intermediação da tecnologia fez com que professores e alunos passassem a enfrentar um cotidiano diferenciado em suas rotinas. Dentro do escopo da mediação, uma grande parcela da educação brasileira está sendo ofertada por meio de ferramentas tecnológicas, ou seja, o professor sai de cena como a figura central do processo educativo e passa a mediar esse processo. Essa situação imposta dentro da adversidade de um vírus letal tende a ser um redirecionamento do trabalho do professor para um futuro próximo. Na visão de Bacich e Moran (2018, p. 40), O professor como orientador ou mentor ganha relevância. O seu papel é ajudar os alunos a irem além de onde conseguiriam ir sozinhos, motivando, questionando, orientando. Até alguns anos atrás, ainda fazia sentido que o professor explicasse tudo e o aluno anotasse, pesquisasse e mostrasse o quanto aprendeu.

Contudo, entendemos esse processo como recente ainda, mas de profunda mudança, pois a exigência de um esforço sobrecomum do docente para organizar da melhor maneira as suas atividades laborais faz um ajustamento do uso de si por si, professor, e pelo outro, o aluno. Nesse sentido, buscamos em Schwartz (2014, p. 261) entender que esse “uso de si é uma imposição contínua dessas micro escolhas permanentes e disso surge a expressão do trabalho como dramática do uso de si”. Então, na dramática do uso de si, a nova rotina na vida do professor abarca gravar videoaulas e podcasts, regravar essas demandas dadas suas especificidades - pois não há uma profissionalização, mas é um professor amador que está ali na atividade -, indicar pesquisas em bibliotecas online, sites etc. A meta é enriquecer a aprendizagem, criar um espaço interativo com o aluno para não quebrar o vínculo e não perder a qualidade do que já vinha apresentando em aula. 334

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Atividades antes referenciadas ao longe pela educação a distância, hoje se sobressaem via tecnologia na vida do professor e conferem-lhe novos modos de ensinar que vão muito além do uso das velhas ferramentas pertencentes a um modelo mais desgastado de educação. Supõem-se que, depois de toda essa inserção forçada, poderá surgir um novo professor, pois segundo Schwartz (2014, p. 264), [...] uma dada pessoa pode “renormalizar” seu emprego do tempo de uma jornada de trabalho hierarquizando à sua maneira as diversas tarefas que se espera que essa pessoa realize (normas antecedentes), segundo suas próprias normas de apreciação das dificuldades, de avaliação mais ou menos crítica do uso que se espera dela, e de preservação de seus recursos físico-mentais.

Diante desses possíveis processos educativos vivenciados, que parecem seguir uma linearidade de ensino com uso das TICs e indicar o caminho para o professor, devemos nos deter na apropriação do uso da expressão EaD (Educação a Distância). Nesses processos de mediação e uso de ambientes virtuais, é comum que se atribua ao termo EaD qualquer atividade educacional que seja intermediada pelas tecnologias, porém alertamos que existe nesse uso uma pormenorização do termo. Há aqui uma tensão: nem tudo que é ensinado via tecnologias pertence à modalidade de educação a distância. Aprofundaremos esse assunto em trabalhos futuros, mas cabe dizer que é essa tensão que nos interessa nesta pesquisa, pois , decorrente do uso indevido do termo EaD em situações que não caracterizam essencialmente trabalho da modalidade a distância , surgem modos de dizer que se convertem em signos ideológicos (VOLÓCHINOV, 2018), como é o caso dos memes que iremos analisar. Eles fazem circular uma consciência de que a EaD não é confiável, que o profissional que forma ou é formado nessa modalidade não tem a mesma grandeza daquele que opta pela modalidade presencial. Vejamos mais sobre isso no Círculo

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capítulo que dedicamos à análise dos três memes escolhidos para esta reflexão. Há, no decorrer dos tempos, uma cristalização de uso do termo EaD quando se apresenta qualquer indício de que o material tem particularidades que evidenciem a distribuição desse conteúdo por vias digitais. Verdade seja dita, parece que uma parcela da EaD ficou congelada no tempo, em um passado, como curso por correspondência, ao mesmo tempo que já se lida com a inteligência artificial nessa modalidade. O termo EaD adquiriu um índice valorativo que pode ser associado ao que Faraco (2009, p. 46) comenta em relação ao próprio conceito de “ideologia”, uma palavra “maldita”. Assim, a EaD vai se ajustando entre o sinônimo de educação de má qualidade, um termo “maldito” ou de mau uso, e na contramão desse preconceito, há a obtenção crescente de um número expressivo de matrículas, que a cada ano vai ganhando terreno e se firmando no cenário da educação brasileira. Entretanto, Mill e Machado (2016, p. 16) consideram a educação a distância [...] uma forma alternativa e complementar para a formação do cidadão (brasileiro e do mundo) e tem se mostrado bastante rica em potenciais pedagógicos e de democratização do conhecimento. Trata-se de uma modalidade que apresenta como característica essencial a proposta de ensinar e aprender sem que professores e alunos precisem estar no mesmo local ao mesmo tempo.

Diante do exposto, é preciso entender que a EaD, por sua vez, é produzida por uma equipe de mais de dez profissionais em linhas de frente muito diferentes, são conteudistas, tutores, professores, design instrucional, programadores, gestores etc., onde não há espaço para o professor trabalhar sozinho. Diferentemente, a função atual docente é caracterizada pela solidão, pois, acostumado com o barulho e com a rotina da repetição no quadro negro, 336

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verde, branco ou na lousa digital, hoje o docente trava um embate entre o aprender e o ensinar via Internet. A sociedade está conectada em rede, mas distante fisicamente, e isso se mostra como um desafio para o momento da educação presencial e, consequentemente, para o professor. De acordo com Schwartz (2014, p. 264), [...] a proliferação das atividades ditas de serviço obriga a enfrentar de modo bem mais direto uma dimensão em geral bem invisível do trabalho: toda sequência de atividades industriosas envolve arbitragens, debates, imersos num mundo social em que a comunidade de destino é sempre eminentemente problemática, em permanente reconstrução. Advêm dessas arbitragens decisões sempre parcialmente não antecipáveis, “renormalizações”; mesmo num nível infinitamente pequeno, os resultados dessas arbitragens – as “renormalizações” – recriam sem cessar uma história: “ocorre continuamente algo novo” que, obrigando-nos a escolher, forçam-nos a nos escolher, na qualidade de seres às voltas com um mundo de valores.

Seguindo essa linha, possivelmente, está sendo dado ao professor o espaço para as renormalizações dentro de suas singularidades. Por coincidência, isso se dá em uma época em que forçosamente quase a totalidade de professores de alguma forma está educando online uma grande parcela de alunos pertencentes à geração Z, uma geração autônoma digitalmente.

A EAD, O MEME E OS GÊNEROS DO DISCURSO No Brasil, há uma intensa produção e difusão do gênero5 meme com as mais diversas finalidades. Esses gêneros do discurso, tal 5 Ao tratar o meme como gênero, referimo-nos aos gêneros do discurso em uma perspectiva que esteja inserida nas maneiras específicas de manifestação sígnica do homem no processo de interação nos campos de comunicação humana (BAKHTIN, 2011). Círculo

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qual trata Bakhtin (2011), têm enunciados de natureza social. Eles são produzidos por um eu situado sócio-historicamente, que enuncia de maneira singular a partir do lugar que ocupa. Os gêneros se constituem na situação comunicativa da qual fazem parte, considerando sempre a existência de um outro para quem ele enuncia. Dessa forma, os memes têm circulação viva em ambientes virtuais, como as redes sociais, os blogs, WhatsApp, entre outros meios. Estão presentes nas múltiplas esferas da atividade humana, sejam elas de caráter formal ou não. Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional (BAKHTIN, 2011, p. 261-262).

Os memes são enunciados que se compõe de materialidades verbais, visuais ou verbo-visuais construídos a partir de uma ressignificação de elementos sígnicos contidos em si mesmos. Eles circulam como gêneros do discurso e, em sua arquitetônica, relacionam-se às eventicidades, produzindo efeitos de sentido que extrapolam a sua materialidade. Em relação à temporalidade, reduzem-se à efemeridade no tempo, desse modo se distinguem do romance, por exemplo, conforme estudos bakhtinianos sobre cronotopo. A perspectiva dialógica da linguagem pontua que todo enunciado se dirige a um destinatário, ou seja, a um “outro” no processo 338

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da enunciação; o destinatário de quem se espera uma compreensão responsiva está situado na pequena temporalidade do evento. Todo enunciado se dirige a um destinatário, um “outro”, no processo de interação, instaurando um diálogo. Para Bakhtin, O diálogo, por sua clareza e simplicidade, é a forma clássica da comunicação verbal. Cada réplica, por mais breve e fragmentária que seja, possui um acabamento específico que expressa a posição do locutor, sendo possível responder, sendo possível tomar, com relação a essa réplica, uma posição responsiva (BAKHTIN, 2011, p. 294).

Em sentindo amplo, e é o mais importante para a perspectiva bakhtiniana, todo enunciado responde a discursos passados e antecipa respostas futuras. O diálogo é, portanto, constitutivo de todo enunciado. No caso dos memes tratados neste estudo, eles refutam a educação a distância, o que nos permite trabalhar com a hipótese de que o seu destinatário seja todo o indivíduo que possa tornar-se um potencial consumidor da modalidade de educação a distância. No tocante à compreensão responsiva, trata da disseminação de ideias de entoação pejorativa à modalidade de ensino a distância, a EaD. Portanto, reforça uma característica fundamental do meme: a crítica social. O direcionamento, o endereçamento do enunciado, é sua peculiaridade constitutiva sem a qual não há e nem pode haver o enunciado. As várias formas típicas de tal direcionamento e as diversas concepções típicas de destinatários são peculiaridades constitutivas e determinantes dos diferentes gêneros do discurso (BAKHTIN, 2011, p. 68). Diante disso, o meme está conectado a uma temporalidade e a um espaço, constituídos por acontecimentos pontuais, que são ressignificados pela apreciação de um determinado grupo social, o que associamos à instauração do enunciado como gênero, observável a

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partir de três elementos básicos propostos por Bakhtin (2011, p. 262, grifos do autor): Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo de comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.

Quanto à forma e ao estilo, o enunciado constrói-se por uma dimensão visual, imagem, e uma verbal, distribuída entre a parte superior e a inferior da imagem. O estilo apresenta formulações linguísticas bem acessíveis, de fácil compreensão, atendendo as particularidades do gênero. O enunciado dialoga com outros textos e imagens, muitas vezes de origem duvidosa, mas que mantém diversos vieses de entoação valorativa, ressignificando o gênero no tocante à expressividade do enunciado. Assim, considera-se que A expressividade de um enunciado nunca pode ser compreendida e explicada até o fim se se levar em conta somente o teor do objeto do sentido. A expressão de um enunciado, em menor ou mais grau, responde, isto é, exprime a relação do falante com os enunciados do outro, e não só com a relação com os objetos do enunciado (BAKHTIN, 2018, p. 297-298, grifos do autor).

Nota-se que o enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva. Como resposta, exprime a “vontade discursiva individual do falante [que] se manifesta na escolha de um determinado gênero e ainda por cima na sua entoação expressiva” (BAKHTIN, 2018, p. 283). Tal concepção está pautada no fato de que existem inúmeros gêneros do discurso e neles os sujeitos se apoiam para desenvolver seus enunciados, que são singularmente valorados.

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Essa compreensão do enunciado remete à reflexão sobre signo ideológico. Para Volóchinov (2018), a consciência individual está impregnada de signos, e estes só emergem na relação entre os indivíduos, em uma relação interindividual, coletiva, ou seja, na interação entre sujeitos. Em linhas gerais, o signo é produto da interação entre duas consciências individuais, dentro de uma coletividade. Diante dessa afirmação, verifica-se que a consciência é social, ela “pode se realizar e se tornar um fato efetivo apenas encarnada em um material sígnico” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95) e irá depender dos valores adquiridos pelo signo no processo interindividual e coletivo formador dessa consciência. Trazendo tal concepção para esta pesquisa, a educação a distância está sob valoração da coletividade que, por um lado, a aceita e define como a modalidade de educação do futuro e uma outra coletividade, que, por outro lado, a rejeita. Pode-se retomar o martelo e a foice, no exemplo de Volóchinov (2017), que, em si mesmos são apenas instrumentos de produção, mas que, ao formarem uma única imagem na bandeira soviética, tornam-se um signo ideológico. Na educação, por exemplo, o computador em si mesmo é apenas um instrumento de produção de dados, desempenha seu papel na produtividade sem refletir ou refratar alguma outra coisa. Contudo, o computador, ao ser integrado à educação, torna-se um corpo ideológico, ainda que não deixe de fazer parte de sua realidade material, tal qual o martelo e a foice, dados apenas como instrumentos, ou o pão e o vinho, como produtos de consumo. Volóchinov (2017, p. 94) afirma que “o campo ideológico coincide com o campo dos signos. Eles podem ser igualados. Onde há signo há também ideologia”. O autor ainda salienta que “cada campo da criação ideológica possui seu próprio modo de se orientar na realidade e a refrata ao seu modo. Cada campo possui uma função específica na unidade da vida social”. Sendo o signo “um

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fenômeno do mundo externo”, oriundo das relações interindividuais, ele pode gerar uma multiplicidade de signos: tanto ele mesmo, quanto todos os efeitos por ele produzidos, ou seja, aquelas reações, aqueles movimentos e aqueles novos signos que ele gera no meio social circundante, ocorrem na experiência externa.

Nesse prisma, em uma conexão do signo e da ideologia deste signo no campo que incidem os trabalhos da Educação a Distância, o computador, repetindo o exemplo anterior, é um instrumento de produção da educação a distância. Ele adquire essa ideologia, extrapola a materialidade, perpassa pela consciência ideológica em torno dele como objeto e torna-se fenômeno ideológico. Ao se apropriar de uma realidade sígnica na relação interindividual, esse instrumento virá a compor um campo, atravessado pelo fazer educação via tecnologias, a modalidade de educação a distância. Há uma “multiacentuação do signo ideológico [...], esse cruzamento de acentos proporciona ao signo a capacidade de viver, de movimentar-se e de desenvolver-se” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 113). Seguindo essa linha interpretativa, Volóchinov (2017, p. 111) considera que “somente aquilo que adquiriu um valor social poderá entrar no mundo da ideologia, tomar forma e nele consolidar-se”. No caso da educação a distância, quando estabelecida a relação constitutiva entre ideologia e signo/linguagem na dimensão valorativa presente nos discursos que circulam, surge a plurivalência sígnica que está presente no gênero e no campo que circula o gênero meme. Os significados lexicológicos neutros das palavras da língua asseguram para ela a identidade e a compreensão mútua de todos os seus falantes, mas o emprego das palavras na comunicação discursiva viva é de índole individual-contextual. Por isso pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três aspectos: como palavra da língua neutra e não pertence a ninguém; como palavra alheia dos outros, 342

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cheia de ecos de outros enunciados; e por último, como minha palavra, porque, uma vez que eu opero com uma intenção discursiva determinada, ela já está compenetrada da minha expressão (BAKHTIN, 2017, p. 53).

Consideramos, para esta reflexão, a palavra que “está sempre repleta de conteúdo e de significação ideológica ou cotidiana” e que, na concretude contextual e ideológica, dá vida aos enunciados (VOLÓCHINOV, 2017, p. 181). Nesse sentido, ao se analisar os memes sobre a educação a distância, levamos em conta acentos de valor engendrados nos enunciados verbo-visuais.

BREVE ANÁLISE SOBRE OS MEMES No percurso analítico proposto, tendo como base a perspectiva dialógica com breve interface com a abordagem ergológica, buscamos verificar como se apresentam os aspectos de valoração ideológica em relação à educação a distância. O corpus para análise foi retirado das redes sociais, mais precisamente de uma página de Facebook dedicada a memes sobre a temática EaD. A escolha desses três memes em meio a tantos outros, justifica-se por compartilharem do mesmo campo ideológico e conteúdo temático: crítica à modalidade de educação a distância. O meme que abre esta discussão, em sua arquitetônica singular, tem a figura do personagem que representa uma rede de fast-food conhecida mundialmente. Na descrição do meme, nota-se o cenário de uma cozinha ao fundo, onde o personagem está de pé e ao telefone, sua boca entreaberta caracteriza o presente momento do diálogo. Do outro lado da linha, presume-se que haja um sujeito que verifica possíveis vagas de emprego na lancheria. Esse visível diálogo resulta de uma atitude responsiva do personagem Ronald Mcdonalds na interação discursiva, que, observada pela perspectiva dialógica da linguagem, enfatiza que todo enunciado se dirige a um destinatário. No cenário dessa interação, Círculo

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observa-se que o texto inicia com uma resposta, em uma atitude responsiva de Ronald, “...É AQUI SIM ”. Essa resposta confirma a existência do outro na interação, de um interlocutor do outro lado da linha. Em seguida, Ronald responde a uma outra pergunta, supostamente já feita, caracterizando em um curto espaço temporal outra atitude responsiva de Ronald: “TEMOS VAGA PRA QUEM FEZ EAD ”. FIGURA 1: Post do Ronald McDonald’s

Fonte: ATENÇÃO (2016).

A palavra aqui, no enunciado “...é aqui sim”, na parte superior da página, tem relação com a rede de lanches fast-food, o local em que o interlocutor no meme está procurando trabalho. Nesse sentido, 344

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pode-se entrever a perspectiva de quem procura trabalho, que, nessa situação discursiva, reflete e refrata a escolha de que “quem fez EaD” ficará fadado a esse tipo de trabalho, desprestigiado socialmente. Podemos deduzir pelo enunciado que parece não haver outras vagas no mercado de trabalho para o sujeito formado em EaD, uma construção ideológica que imprime uma valoração questionadora à integridade da formação a distância. Em vista dessa mesma criação ideológica da limitação ao mercado de trabalho, há uma crítica velada ao professor que ensina a distância, que não seria suficientemente bom quanto o que ensina na modalidade presencial. Por essa razão, a essa parcela de formandos sobraria apenas trabalhar em redes de fast-food. Seguindo a análise, no enunciado verbal “temos vagas pra quem fez EAD”, situado na parte inferior da página, podemos observar, na articulação com o visual, uma espécie de motivação do autor desse meme em relacionar pejorativamente a formação em EaD ao trabalho nesse local. O espaço de trabalho, conhecido socialmente, não exige ser especialista em qualquer área. Os funcionários são treinados para atender em todas as tarefas, desde o caixa, até limpeza e atendimento geral. Ou seja, não é preciso formação de excelência acadêmica para trabalhar, basta ser estudante do ensino básico. Nessa visão simplista, a formação em EaD, ao ser referência para a vaga, apresenta-se sem representatividade ou relevância em relação à formação presencial. Desse modo, dado o caráter de exigências das contratações para trabalhar na rede de fast- -food, “quem fez EaD”, majoritariamente, está apto para trabalhar nesse espaço, onde se faz o caixa em um dia e no outro limpa-se banheiros. Em resumo, nessas perspectivas analíticas e pelos signos ideológicos verbais e não verbais (palhaço, telefone, ambiente etc.) empregados no meme, a valoração depreciativa da EaD dá-se na relação constitutiva do enunciado com o contexto social e histórico. A rede de fast-food é constituída por signos, o personagem do Ronald Mcdonalds é um palhaço (cabelo vermelho, roupas coloridas...), e por ser um palhaço Círculo

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poderíamos inventariar as vagas existentes em um lugar fantasioso, próprio para quem se forma em educação a distância. Desse modo, os signos ideológicos mobilizados refletem e refratam “outra realidade, sendo por isso mesmo capaz de [distorcê-las]” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 93), o que se dá via avaliações impostas pela formação social. Sob esse enfoque, percebe-se no meme analisado uma associação entre a precarização do trabalho e a formação em EaD, ou seja, um profissional formado a distância não terá um trabalho que o valorize. Nessa perspectiva, é possível considerar as dramáticas de uso de si em duas dimensões, seja do profissional que trabalha no McDonald’s, seja do profissional que se forma a distância para atuar no mercado de trabalho. Tais dramáticas revelam o corpo si de um trabalhador que dá de si para desempenhar suas funções e, ao mesmo tempo, é usado pelo outro para seus benefícios próprios. Essas dramáticas também fazem parte do trabalho do professor de EaD, que, constantemente, tem de provar a relevância de seu trabalho diante dos questionamentos a que é exposto. O segundo meme que este trabalho apresenta traz consigo uma polêmica recorrente entre os cursos no campo da medicina: a inserção de disciplinas em EaD. Nesse sentido, o autor do meme aproveita-se de uma notícia real na área da saúde (de 06/04/2020) e faz uma crítica às formações em EaD na área da saúde. Vale lembrar que o MEC (Ministério da Educação) não autoriza curso de medicina a distância devido à necessidade de experiências práticas e laboratoriais desta graduação. Entretanto, o criador do meme se vale de uma notícia de jornal, verídica, sobre fato ocorrido em um hospital para, em um jogo semântico, levantar críticas e especulações valorativas de cunho pejorativo que refletem o que seria o trabalho de um médico que, hipoteticamente, formar-se-ia na modalidade a distância. Nesse meme, então, refrata-se ideologicamente um gesto preconceituoso ao sugerir que, pela imperícia, seria provocada uma morte. 346

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Observemos a notícia real: FIGURA 2: Notícia sobre COVID-19

Fonte: PACIENTE (2020).

E agora, observemos o meme divulgado nas redes socias: FIGURA 3: Paródia sobre formação EaD

Fonte: QUANDO (2020). Círculo

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Embora a manchete da notícia original não evoque abertamente a formação do médico, o meme trata da formação ao associar o erro médico à EaD. Observamos assim que, nessa posição valorativa assumida, somente um profissional formado pela modalidade presencial não poria vidas em risco. Nessa mesma direção, comparando a figura 3 ao meme da figura 1, percebemos uma valoração depreciativa à EaD ao reverberar que somente a educação presencial formaria pessoas que não precisariam se sujeitar ao trabalho na rede de fast-food e médicos competentes que não errariam diagnósticos. No conjunto de signos ideológicos implicados nesses memes, recorremos a Volóchinov (2018, p. 95) que entende que “a compreensão de um signo ocorre na relação deste com outros já conhecidos: a compreensão responde aos signos e faz também com signos”. No meme que retrata o caso da morte por dengue, figura 3, a apreciação valorativa atribuída ao erro médico e associada à EaD é intensificada pelos elementos visuais, que articulam o mosquito causador da dengue (Aedes aegypti) ao tubo do exame que indica o resultado: “dengue”. Esses signos ideológicos, além da presença do humano (pele, em que o mosquito está em contato, e mão com luva, representando o profissional técnico), são potencializados pelo selo “EaD da DEPRESSÃO” que se sobrepõe à parte superior da imagem. A crítica à EaD é, portanto, institucionalizada, ou seja, o meme integra um espaço discursivo cujo projeto enunciativo é desqualificar o ensino a distância. Não são considerados, por conseguinte, os bastidores das formações pela modalidade virtual de ensino, a intensidade de trabalho dos profissionais envolvido na formação dos alunos, uma equipe multidisciplinar que atua nos bastidores, não se restringindo a uma plataforma virtual de ensino. Dentre os membros dessa equipe, estão professores com as mais variadas formações. Nessa perspectiva de não valorização da formação pela educação a distância, pode-se verificar um tom avaliativo que atribui ao ofício do professor de EaD a formação de mão de obra não qualificada ou mesmo barata, como é o 348

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caso do meme da rede de fast-food. Tal reflexão entra em embate com a compreensão da atividade de trabalho, desenvolvida pela ergologia, que valoriza a singularidade do trabalhador diante do complexo debate entre normas e renormalizações que constituem a atividade laboral. O terceiro meme em questão, Figura 4, é construído a partir da figura do ex-presidente Lula. Esse meme foi criado, em 2018, por ocasião do impasse sobre a prisão do ex-presidente e a sua não formação universitária. O enunciado “SE TIVESSE FEITO PELO MENOS EAD”, atribuído ao presidente, é valorado como uma saída para não ser preso em uma cela comum, ocupada por quem não tem curso superior. O tom depreciativo à EaD revela-se pelas escolhas lexicais, como o sintagma “pelo menos” que indica o mínimo que poderia ter sido feito, ou seja, ter feito EaD para conseguir um diploma de curso superior, independentemente da qualidade. Essa orientação é intensificada pela imagem do ex-presidente (vestido de terno e gravata) fazendo um gesto como se estivesse pensando, preocupado com algo, já que se apresenta de olhos cerrados e expressão tensa, marcada pelas rugas da testa. O enunciado verbo-visual orienta para um possível arrependimento de não ter curso superior, nem mesmo ter feito um curso qualquer na modalidade a distância para que pudesse obter vantagem de cela especial.

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FIGURA 4: Post do Presidente Lula

Fonte: SE TIVESSE (2018).

Na Figura 4, percebem-se alguns pontos de valoração: a dica, de certo modo humorada, para o interlocutor: faça um curso EaD para, pelo menos, ter cela especial caso você seja preso. E, a crítica: tivemos um presidente sem formação superior. Considerado o meme pela ótica autoral, há, ainda, o desprezo pelo cargo presidencial, pois, se o ex-presidente está preocupado com o tipo de cela, é porque nem cargo ocupado na presidência do país vai lhe livrar da cela comum. Nesse conjunto de elementos verbo-visuais, podemos perceber outros pontos de valoração, como, por um lado, efeitos de humor, no sentido de que se faça um curso em EaD para garantir uma cela especial caso seja preso e, por outro lado, uma crítica ao fazer referência a um presidente, condenado, sem formação superior. A orientação valorativa desfavorável à EaD é vinculada ao ex-presidente que, além de ser condenado, não teria feito o mínimo, um curso superior a distância. No tocante à EaD, podemos perceber, mais uma vez, que o tom depreciativo atinge quem educa a 350

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distância, o professor que trabalha nessa modalidade de ensino e, portanto, convoca diferentes saberes na sua profissão. As interações sociais das quais se ocupam os três memes fazem uma interlocução com as situações reais da vida humana. O primeiro meme (Figura 1) limita o trabalho em rede de fast-food a quem faz EaD, pormenorizando não somente a formação em EaD, mas também quem lá trabalha e tira o seu sustento. No segundo meme (figura 3), é apresentado um humor ácido, que, valendo-se de uma notícia de morte da vida real e polemizando com a COVID-19, rechaça a modalidade de ensino a distância. O terceiro meme (Figura 4), por sua vez, traz críticas à figura pública de um ex-presidente, bem como a um momento particular de sua vida, desqualificando a EaD.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o objetivo de refletir sobre aspectos valorativos que circulam nas mídias sobre a modalidade de ensino a distância, encontramos nos três memes analisados muito mais do que expressões valorativas nas diversas orientações ideológicas, mas, também, valorações implícitas em relação à formação e ao trabalho desenvolvido via modalidade EaD. Os memes analisados são perpassados por várias esferas da comunicação e suscitam os mais diversos índices de valor no campo da educação, desde efeitos de humor até subversão da dor e da morte. Com uma função social própria, os memes traduzem ideias, posições morais, políticas, entre outros elementos, que circulam nos campos ideológicos que a linguagem abarca. Percebemos, no decorrer da análise, que a posição valorativa da página do Facebook, que propaga os memes, reforça e cristaliza discursos desqualificadores sobre a modalidade de ensino a distância , ainda que o ensino “a distância” (com uma nova configuração) tenha sido a solução para resolver o problema da Círculo

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educação em tempos de pandemia, como se vê no grande número de instituições públicas e particulares que, para garantir o isolamento social, substituíram o ensino presencial pelo emergencial remoto. Nos memes analisados, observamos o quanto são carregados e atravessados por ideologias que valoram desfavoravelmente o que é ofertado pela modalidade a distância, em um entrecruzamento de vozes sociais que, por conseguinte, também afetam o trabalho do professor, seja ele da EaD ou do presencial. Nessa perspectiva, os memes refletem e refratam o preconceito sobre a modalidade de educação a distância, direcionando-se obliquamente, de alguma forma, tanto para o aluno quanto para o professor. Esse tipo de circulação depreciativa em mídias digitais não chega a prejudicar o ingresso de alunos na modalidade a distância, prova disso é o grande número de matrículas que supera as matrículas da modalidade presencial. Entretanto, não deixa de corroborar a massificação do preconceito imposto à modalidade, atingindo, indiretamente, o trabalho do professor. Tais reflexões remetem à abordagem ergológica (SCHWARTZ, 2011, 2014), que considerando o trabalho como uma atividade industriosa, volta-se para compreender a atividade do trabalhador em suas dramáticas de uso de si. Se na EaD o professor tem um papel central, no debate entre as normas antecedentes e as renormalizações, atualmente, a partir da pandemia, com os novos usos das tecnologias, a atividade docente ganha novos desafios e dimensões. Nesse sentido, pesquisas são necessárias para compreender as novas modalidades de educação via tecnologias digitais, o papel do professor, a interação com o aluno e com a comunidade etc. A perspectiva dialógica e a abordagem ergológica têm muito a contribuir nesse debate.

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O RELATO PESSOAL PELO VIÉS DIALÓGICO

Marta Maria da Silva Moreira1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Mergulhar em um relato pessoal é uma forma de compreender a dialética presente na arena da vida. É uma forma de perceber a tensão existente entre as diversas vozes que se marcam e se mostram ao tentar se esconder no ato irrepetível da “enunciação monológica”. As palavras presentes na tessitura desses enunciados já foram proferidas outras vezes, ganharam novos significados, foram rememoradas e axiologicamente acentuadas. As palavras enquanto signos ideológicos não são minhas ou suas, elas são nossas, são vivas e carregadas de significados que são continuamente reconstruídos por meio das relações de acordo ou desacordo estabelecidas dialogicamente pelos indivíduos durante o ato enunciativo na forma de gêneros discursivos relativamente estáveis. O gênero relato pessoal analisado neste capítulo, assim como os demais gêneros discursivos, está atrelado a esferas específicas de enunciação e carrega consigo um “tormento” de palavras significativas. O relato pessoal, em especial na Web, tem sido utilizado 1 Mestra em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS. Membro do grupo de pesquisa Discursos em Diálogo (PUCRS). https://orcid.org/0000-0002-4472-5041. E-mail: marta.silva@acad.pucrs.br. Círculo

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pelos internautas como forma de resistência, de expor o não visível, o não dito de forma indireta. O relato pessoal presente nas mídias sociais permite a construção de um universo de coenunciações, ao passo que o leitor desses enunciados pode tomar a situação enunciativa descrita como uma forma de desabafo, indignação, protesto, denúncia e outras significações que possam ser depreendidas dialogicamente das enunciações encarnadas sob o signo verbal. Torna-se relevante refletir sobre os significados e as valorações atribuídas a esse gênero que, por meio de estratégias específicas, incorpora à palavra do outro em um movimento de resistência e persuasão, pois atualmente, graças à democratização da comunicação e da informação em redes sociais, esse espaço serve para disseminar ideologias, unir grupos com interesses diferentes e oportunizar debates. Os relatos que antes eram ouvidos na forma de testemunhos nas igrejas, nas rodas de conversa do bar ou em centros de reabilitação, agora, passaram ao status de relato pessoal na rede. Ao apropriar-se do gênero relato, o enunciador não o faz de modo inconsciente ou deliberado, mas com um intuito que não é neutro, pois há uma relação dialógica entre um enunciador e um coenunciador que precede a materialização sob um determinado gênero. A metodologia adotada para a consecução deste estudo é de cunho qualitativo-interpretativo, adotando a perspectiva bakhtiniana de sujeito posicionado sócio-historicamente, pensando a linguagem como prática discursiva. As observações, reflexões e ponderações partem de excertos retirados de dois relatos pessoais postados em mídias sociais. Esses relatos foram selecionados com base nos seguintes critérios: compartilhar do mesmo tema, estilo e composição. Após a seleção do material de análise, realizamos o recorte de excertos estratégicos dos relatos selecionados para comparar os recursos lexicais utilizados para formar o projeto enunciativo dos enunciadores.

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Existem diferentes formas de comunicação, mas é, através da palavra, que o homem concebe o mundo, integra-se nele ou rebela-se. Bakhtin (2006) diz que a palavra é um fenômeno ideológico por excelência, funcionando como elemento essencial que acompanha e comenta toda criação ideológica, seja ela qual for. Feitas as ponderações iniciais sobre nosso objeto de estudo, o gênero relato pessoal na Web, explicitados os motivos que levaram à escolha desse tema e da metodologia adotada para as análises, passamos aos pressupostos teóricos que norteiam esta pesquisa, as noções de gênero, valoração, entonação e alteridade, desenvolvidos nos estudos realizados pelo Círculo de Bakhtin.

A TEORIA DIALÓGICA E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS O diálogo, eixo principal da teoria do Círculo, não estaria restrito às interações face a face. Ele faria parte de um fluxo contínuo de relações de sentido, manifestas de modo oral ou textual, durante o ato comunicativo. Dentro dos estudos dialógicos, o ser é construído na interação eu/outro, é através da alteridade que nos conhecemos enquanto sujeitos, pois tanto o eu quanto o outro configuram diferentes universos valorativos que resultam em perspectivas diferentes sobre o mundo. Tudo que os indivíduos produzem está carregado com os acentos valorativos e parte de uma relação dialógica entre um enunciador e um interlocutor em potencial expresso por meio de signos. Ao adotarmos a noção de dialogismo nesta pesquisa, passamos a compreender que, para construir e interagir com o mundo, ninguém parte do nada, pois reelaboramos o já dito num fluxo contínuo, no qual as tensas relações entre o interior e o exterior se marcam inclusive em “enunciações monológicas” prenhes de vida, de signos construídos socialmente e povoados de significados.

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Toda enunciação se manifesta na forma de gêneros do discurso. A essas formas, segundo os pressupostos do Círculo de Bakhtin, atribuímos o nome de gêneros do discurso. De modo sintetizado, podemos compreender que, a partir de um projeto enunciativo, algumas características relativamente estáveis vão servir de plano para materialização daquilo que se pretende comunicar. Essas características são o conteúdo temático (o assunto), o estilo (expressão individual, forma de escrever) e a forma composicional do discurso (estrutura formal), elementos que caracterizam o gênero. Os gêneros estão sempre atrelados a um recorte histórico-social que manifesta, no germe de sua criação, um horizonte de expectativas repleto de ecos, de possíveis interlocutores dentro de um período delimitado (um contexto). Segundo Volochínov (2013): Em realidade, até a tomada de consciência simples, difusa, de qualquer sensação, mesmo de fome, inclusive no caso de não haver qualquer expressão exterior, necessita de uma forma ideológica. Assim qualquer tomada de consciência tem necessidade de linguagem interior, de uma entonação interior e de um embrionário estilo interior: a tomada de consciência da própria fome pode ser suplicante, colérica, enojada, indignada etc. A expressão exterior, na maioria dos casos, não faz senão seguir aclamando a orientação social da linguagem interior e as entonações que já estão nela contida (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 149-150).

Ao nos comunicarmos diariamente, o fazemos por meio de signos ideológicos e não por meio de palavras petrificadas, tendo em vista que uma palavra despida da significação atribuída a ela em um determinado contexto enunciativo nada tem a nos comunicar. A construção dos signos é social, e não um ato solitário e imanente, pois condensa o significado atribuído aos fenômenos da realidade objetiva e os fenômenos da realidade ideológica. Todo ato enunciativo depende de um falante e de um ouvinte que, por meio de um intercâmbio de ideias, de um intercâmbio comunicativo 358

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cunhado pelo dialogismo, provoca a passagem da linguagem interior a uma expressão externa. Essa passagem é parte integrante de uma situação da vida que permanece não expressa na enunciação, mas que busca uma resposta ativa do(s) coenunciador(es) por meio de um intercâmbio de ideias e valores. Todos os tipos de intercâmbio comunicativo necessitam de uma estrutura, de uma forma relativamente estável em termos de composição, estilo e tema para tornar visível a ideia ou o fato a ser comunicado por meio dos enunciados concretos. Esses enunciados materializados compõem os gêneros discursivos. Ao nos comunicarmos, o fazemos por meio de gêneros. Estes não são fechados, eles carregam consigo todas as tensões e as alterações decorrentes das esferas enunciativas na qual foram cunhados e da orientação social dos enunciadores e coenunciadores. Para Bakhtin, As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais (BAKHTIN, 2006, p. 42).

As mudanças sociais que se instauram na palavra são, ao mesmo tempo, produto e produtoras de transformação nas esferas sociais. Assim, considerando os diversos discursos que circulam em mídias sociais e as relações de alteridade que se fortalecem ou não entre esses discursos, em especial na forma de relatos pessoais, Círculo

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pretendemos verificar como o relato pessoal reacentua e incorpora à palavra do outro a enunciação monológica como forma de resistência. Por meio das vozes que ecoam silenciosas ou gritantes pelos enunciados, podemos perceber um conjunto de elementos que foi selecionado para compor o arranjo discursivo, de modo a tornar visível o projeto de dizer do enunciador. Essas escolhas que envolvem a entonação, a escolha das palavras e a composição não são aleatórias, pois levam em conta o auditório e a orientação social do locutor. Essa orientação social está presente na enunciação e não permite ao sujeito manifestar uma anulação de suas ideologias frente a um determinado objeto de estudo. Tanto a enunciação verbal quanto a não verbal são constituídas por uma orientação social que se marca por um significado e por um conteúdo. O gênero vai realizar essa intenção comunicativa de uma forma específica, mas, até mesmo, a forma já expressa algo sobre a entonação do coenunciador. O tom valorativo tem a ver com os acentos assumidos pelos atores do jogo dialógico. A sintaxe das palavras, sua disposição e as escolhas lexicais revelam o que não está dito, mas está implícito por meio das estratégias discursivas adotadas pelos enunciadores, por meio do tom e pela valoração atribuída a esses elementos. Dentro de uma concepção bakhtiniana de discurso, é importante pensarmos sobre o fato de que há um vínculo efetivo entre o enunciado e uma situação enunciativa concreta. Essa situação é parte integrante do enunciado e não pode ser posta de lado na busca pela compreensão deste enquanto unidade dotada de sentido. O enunciado é composto por uma parte verbal e uma parte extra verbal, intrinsecamente ambas acompanham os acentos valorativos e são expressas pelo tom do discurso. Em A Construção da Enunciação e outros Ensaios (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 196) Volochínov (2013, p. 196) observa que “[...] qualquer palavra dita

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ou pensada não é somente um ponto de vista, mas um ponto de vista avaliativo”. Ainda dentro dessa perspectiva, cabe lembrar que “um ponto de vista não representa uma conquista pessoal do sujeito cognoscente, mas é o ponto de vista da classe à qual este sujeito pertence” (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 198). Mesmo ao expressar-se através de gêneros discursivos mais rígidos, o sujeito não deixa de lado a sua orientação social, as suas aspirações e assume um tom valorativo imbricado de várias vozes, pois dizer é dizer-se. Apresentados, de forma resumida, os pressupostos que fundamentam nossa pesquisa, na próxima seção, passaremos a refletir sobre o contexto de produção, circulação e recepção de relatos pessoais.

CONTEXTO DE PRODUÇÃO, CIRCULAÇÃO RECEPÇÃO DE RELATOS PESSOAIS

E

Os relatos pessoais são muito utilizados na esfera jurídica como forma de reconstrução de contextos específicos e carregam historicamente um vínculo com a ideia de veracidade, de materialização por meio da palavra, do pensamento e das memórias do enunciador, que opera no texto como um narrador de fatos, de situações a serem investigadas. Em seu Dicionário de Gêneros Textuais, Costa (2008, p. 76-77) define o gênero depoimento como sinônimo de testemunho e com significado compartilhado com o verbete declaração, que significa: “no cotidiano, revelação, confissão oral ou escrita, informal, de sentimento ou depoimento.” Os relatos pessoais em esferas restritivas como a jurídica são mais rígidos e operam de forma guiada ao relatar algo a um interlocutor que já manifesta sua intencionalidade discursiva por meio de perguntas que conduzem à exposição dos fatos. Em algumas situações, os relatos são utilizados para conferir autoridade sobre temas específicos ou simplesmente para dar apoio a ideias, pensamentos, crenças. Em alguns momentos, os relatos Círculo

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são utilizados como elemento persuasivo. O contexto de produção desse tipo de enunciado influencia diretamente na compreensão ativa responsiva dos coenunciadores do relato, ao passo que as situações enunciativas já presumem uma resposta avaliativa das escolhas feitas em relação ao tema, a composição e ao estilo utilizado na construção da enunciação. Se antes o gênero em análise, neste artigo, era fortemente discutido em esferas restritivas, tais como as jurídicas na forma de depoimento oficial, hoje notamos uma incorporação do relato nas práticas sociais de comunicação na Web como forma de expor aos demais usuários das mídias sociais algo que se julgue necessário dentro de um universo avaliativo do enunciador. Este pode desejar simplesmente demonstrar contentamento, desagrado, relutância, indignação ou, até mesmo, relatar a um coral de apoio uma denúncia acerca de situações, pensamentos ou sentimentos que ocuparam espaço na sua memória discursiva.

O GÊNERO RELATO PESSOAL POR MEIO DE MÍDIAS SOCIAIS Nos últimos anos, as novas tecnologias ligadas à área da comunicação colaboraram para o surgimento de novos gêneros discursivos, de novas formas de enunciação. O uso intenso dessas tecnologias e a relação que os usuários estabelecem entre si, por meio de suportes diversificados em esferas discursivas diversas, colaboram para a transformação, transgressão ou, até mesmo, o surgimento de novos gêneros discursivos. Os relatos pessoais, por exemplo, passaram a ser utilizados na Web de forma mais corriqueira, ao passo que os internautas se sentem à vontade para expor, em palavras, tudo o que antes estava restrito a contextos orais de conversas entre amigos no contato face a face. Sob o signo de depoimento, declaração ou relato pessoal, os diversos indivíduos contam e recontam suas memórias e suas experiências em 362

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espaços públicos ou em rede e gritam por visibilidade. Segundo Mikhail Bakhtin, [...] a passagem do estilo de um gênero para outro não só modifica o caráter do estilo nas condições do gênero que não lhe é próprio como também destrói ou renova tal gênero. Desse modo, tanto os estilos individuais quanto os da língua satisfazem aos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2016, p. 21)

Essa transformação ou renovação do gênero não está atrelada a formas rígidas, mas ao significado pretendido, no significado pensado na relação de um “eu” em direção a um “tu”. Na direção de um enunciador (internauta) em direção a um coenunciador (leitor), essa relação dar-se-á por meio da unidade enunciativa materializada nos gêneros discursivos como os relatos pessoais, que apresentam algumas características básicas: o enunciador na figura do narrador usa uma sequência de fatos, pessoas, tempo e espaço. Há um tom emotivo marcado pela escolha das palavras e da disposição dos elementos que vão tecendo o diálogo da narrativa predominantemente em primeira pessoa, que procura, por meio do uso dos tempos verbais pretérito perfeito e indicativo, descrever um acontecimento ou sentimento. Feitas as descrições básicas quanto aos elementos que são facilmente perceptíveis em relatos pessoais, passamos a realizar as observações e reflexões dos excertos pertinentes acerca dos relatos selecionados para nossas análises. O excerto a seguir foi extraído de um relato pessoal/depoimento sob autoria de Rayssa (estudante de Letras da UFG) no blog Tenho Dislexia, e Agora?, publicado no ano de 2015: [...] Eu consigo ouvir as risadas quando cometo um erro que para outras pessoas é algo banal. Eu consigo ouvir as piadinhas. Eu consigo ver a cara de decepção do meu pai quando ligo, de novo, porque estou perdida e com medo. Eu consigo ver que as pessoas não esperam mais tanto de mim, afinal, eu vim com um Círculo

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“defeito”. Mas eu espero. Eu espero de mim. Eu espero conseguir continuar lidando com os problemas da vida. Arrumando esquemas que só eu irei entender, e só eu preciso entender, para sair de uma situação de risco ou constrangedora. Eu espero conseguir continuar aprendendo que eu posso não ser comum, mas que isso não me faz inferior a ninguém (SANTANA, 2015, [s. p.]).

Nesse excerto, é possível observar a necessidade de singularizar a experiência vivenciada e o impacto das marcas dessa experiência na vida do enunciador (expor é uma forma de comunicar). Ao observarmos o enunciado “Eu consigo ver que as pessoas não esperam mais tanto de mim, afinal, eu vim com um ‘defeito”, percebemos que o enunciador desse diálogo opõe-se às enunciações pessimistas quanto ao seu potencial. Essas enunciações ressoam em sua memória discursiva e ganham um tom ou acento negativo. Logo, é possível perceber que o enunciador busca adesão do outro (as pessoas), que deveria esperar mais dele (conferir credibilidade as suas capacidades). Ao utilizar o signo ideológico “defeito” entre aspas, o enunciador reforça o porquê (o motivo) das pessoas não depositarem credibilidade nele. Ao mesmo tempo, o enunciador elabora um contradiscurso por meio da palavra de outro, que expressa um posicionamento valorativo quanto ao que é defeito e ao que não é, o que é normal e o que não é padrão dentro do seu campo de visão. Nesse sentido, sua reflexão revela a expectativa de aprendizagem contínua e enfrentamento dos problemas da vida, que mostram que “não ser comum” não implica ser inferior ao outro. Há um apelo, uma intenção de persuadir o leitor a assentar-se em seu lugar, com o intuito de que o coenunciador sinta as sensações e as emoções que ele vivenciou e experienciou. Isso se marca através dos enunciados “Eu consigo ouvir as risadas quando cometo um erro que para outras pessoas é algo banal. Eu consigo

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ouvir as piadinhas. Eu consigo ver a cara de decepção do meu pai quando ligo, de novo, porque estou perdida e com medo”. O enunciador desse relato se marca pelo forte apelo emocional, pela tentativa de sensibilizar o coenunciador sobre as dificuldades que ele enfrentou ou enfrenta dentro da sua visão. Feitas essas primeiras reflexões quanto ao enunciado apresentado, podemos perceber que o enunciador utiliza as experiências vivenciadas, interiorizadas e externadas na forma de uma nova enunciação como uma tentativa de conscientização satisfeita ou materializada sobre o gênero relato pessoal, como podemos ver no excerto a seguir também de mesma autoria do excerto anterior: [...] Eu sou inteligente. Eu sou muito inteligente. Eu consigo pensar em muitas coisas ao mesmo tempo, consigo pensar em coisas que ninguém havia pensado antes. Eu consigo sair de problemas que a dislexia causa, que nenhum não-disléxico pensaria. Eu sou disléxica. E convivo há vinte e um anos com esse cérebro diferente. Eu vivo há vinte e um anos fora dos padrões. Com os fios que regem minha vida embaraçados. Porém, há vinte e um anos eu não os permito me impedir de me movimentar. Eu me movimento. Eu existo. E eu continuarei achando maneiras de driblar problemas e continuar existindo. Eu não sou comum. Eu sou excepcional. E percebo agora, cada vez mais, que uma das coisas que me faz ser excepcional é eu ter dislexia. Eu sou incrível por ser disléxica. Eu posso não conseguir passar em fonética tranquilamente. Eu posso ser horrível em matemática e senso de direção. Mas eu sou boa o bastante. Porque eu quero ser boa o bastante. E tudo na vida requer esforço e força de vontade. E eu juro a mim mesma que eu irei me olhar, a partir de hoje, como eu realmente sou. E eu sou foda pra caramba (SANTANA, 2015, [s. p.]).

Nesse excerto, podemos perceber um contraponto aos elementos negativos apresentados no primeiro excerto: características positivas são reforçadas por meio do uso dos adjetivos e do verbo Círculo

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ser. Esse verbo expressa um reforço da imagem que o enunciador pretende projetar no imaginário do seu coenunciador sobre ser disléxico, sobre como é ser tratado de forma excludente. Em “Eu sou inteligente. Eu sou muito inteligente”, o enunciador utiliza o advérbio muito para intensificar a sua percepção acerca de si. Esse advérbio reforça a ideia de que o enunciador, na condição de ser disléxico, é alguém, que ele existe e que não está estagnado sob os estigmas a ele atribuídos socialmente na voz de outras pessoas (elas). Em “Eu não sou comum. Eu sou excepcional. E percebo agora, cada vez mais, que uma das coisas que me faz ser excepcional é eu ter dislexia”, o enunciador utiliza a palavra excepcional de forma a sinalizar algo bom, o que contrapõe o senso comum de que a palavra excepcional está ligada a uma adjetivação negativa. Isso é o que torna o sujeito dessa enunciação especial, ou seja, ter dislexia. Ao falar que “Eu posso não conseguir passar em fonética tranquilamente”, o enunciador revela que ele sabe de suas dificuldades, mas que ele compreende que, com esforço, ele consegue superar os entraves impostos pela sua condição singular. Para fechar o relato de forma que o outro da enunciação perceba a sua capacidade de superação, o enunciador confere a si mesmo autoridade sobre os seus pensamentos: “Eu juro a mim mesma que eu irei me olhar, a partir de hoje, como eu realmente sou. E eu sou foda pra caramba.” Este depoimento, seguindo Volochínov (2013), pode ser entendido pela dialética entre a linguagem interior e exterior, que reforça a produção de sentidos na construção do enunciado. Feitas as reflexões sobre o primeiro relato, passamos ao segundo. O excerto a seguir foi recortado de um relato postado no site da Associação Brasileira de Dislexia (ABD) no ano de 2016, sob o título Eu sou Disléxico. [...] Cada Dislexia tem sua personalidade e opinião própria. No meu caso a Dislexia que carrego, junto com meu ego, tem como opinião que o som não tem 366

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que ter a mínima semelhança com que eu escrevo e leio. Ela teima até hoje em me criar confusões para que eu me sinta confuso e ela (a Dislexia) se sinta dona da Razão. Não há porque nem discutir com meu Eu Disléxico, já que é teimosa e acha por que acha, que é assim e pronto [...]. Lógico que o tempo e recursos de aprendizados me ajudaram a entrar em acordo com meu Eu Disléxico. Concordamos que podíamos dar ao outro voz e escrita em momentos que o Word não tivesse presente (ou você acha que este texto não ficou todo o tempo grifado de vermelho?). Cordeamos avisar os demais que carrego um Eu Disléxico, mesmo que a moda tenha feito da Dislexia um transtorno bonitinho que todo mundo que ter, ou usa como desculpa para um Eu Ignorante. Já dou a dica; ser disléxico é um saco, é ser ridicularizado a todo momento, sem mesmo saber o que errou. É ser taxado de analfabeto. Fazer que sua professora te obrigue a ler em voz alta na frente da classe, ou manda seus pais obrigarem a decorar a matemática e investir em exatas porque a palavra e leitura não seria para mim. Saber que seu pai vai jogar pela janela todos seus quadrinhos, livros, seu verdadeiro prazer, porque acha que a professora tem razão. Ser disléxico é não desentalar o que está preso na garganta, porque sabe que ninguém vai entender o que vai dizer. Esqueça, meu caro! Dislexia não te tira uma parte do seu corpo visivelmente, mas mutila tua palavra (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DISLEXIA, 2016, [s. p.]).

O tom valorativo atribuído ao (eu) disléxico, nesse excerto, emerge pela palavra do próprio disléxico e pelas multiplicidades das relações dialógicas que os discursos de outros estabelecem entre si. Há uma ressonância de outras vozes que marcam a formação da identidade desse sujeito. Por meio de enunciados como “ser disléxico é um saco, é ser ridicularizado a todo momento, sem mesmo saber o que errou. É ser taxado de analfabeto”, o enunciador expressa sua posição e o desejo de comunicar ao interlocutor do enunciado que ele não acha “bonitinho” ser disléxico, Círculo

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que existem vários fatores implicados na condição de ser disléxico, que não são positivos. A grafia de Dislexia com letra maiúscula salienta a individualidade dessa palavra, a qual o enunciador do relato confere um status próprio. Isso é reforçado com o seguinte enunciado: “Cada Dislexia tem sua personalidade e opinião própria”. O enunciador demonstra conhecimento sobre o que ele chama de “minha dislexia”, ao falar que “o som não tem que ter a mínima semelhança com que eu escrevo e leio”, pois essa é uma das características da dislexia fonológica (discrepância ou dificuldade de fazer a relação entre grafema-fonema). O enunciador em questão expressa uma crítica à dislexia enquanto “modismo” e ao fato de ela ser usada como desculpa para o que ele chama de “Eu ignorante”. O signo ideológico ignorante, dependendo da situação enunciativa, da posição social do enunciador e da vontade de dizer do enunciador posto em uma situação comunicativa real, adquire significações diferentes. Esse signo pode estar associado à baixa escolarização, à falta de letramento adequado, à falta de polidez nas relações ou, ainda, ao trato com os demais, com a concepção de uma mente fechada ou conservadora dentre outras construções e valorações possíveis do signo ideológico em questão. Por meio desse enunciado, podemos perceber o entrecruzamento de vozes que operam na formação da identidade discursiva desse sujeito. Temos a voz da família – apresentada pelo signo pai –, da escola – que é acionada pela imagem da professora – e de um terceiro que viria a constituir os outros. Nesse trecho, ele reforça a relação entre linguagem e posições enunciativas – entre vozes discursivas –, pois temos um diálogo com o dito por diferentes sujeitos, acerca da condição do disléxico. Nesse cenário, o tom emotivo-volitivo assumido pelo sujeito enunciador adquire contornos negativos quanto à condição de ser disléxico. Ele retoma não as palavras desses diferentes sujeitos, 368

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mas o conflito com a palavra desses seres do discurso, que ocupam posições axiológicas diferentes dentro de determinadas esferas de atuação humana. Na verdade, há um jogo de poder entre essas vozes, pois a professora, nesse contexto, representa uma autoridade em relação aos demais falantes, que é reafirmado em: “[...] a professora tem razão”. Os aspectos culturais depositam na imagem da professora, enquanto agente social, uma certa autoridade, pois o discurso dela exerce influência sobre a família e marca-se como limitante das habilidades do sujeito disléxico. Há uma limitação imposta ao sujeito disléxico a partir do momento que uma figura imbuída de autoridade sugere à família que invista em exatas, isto é, nas disciplinas de matemática, física, química, para citar algumas. Essa narrativa no depoimento dos aspectos negativos atrelados à dislexia constitui uma forma de refração do sujeito aos enunciados de familiares e professores. Além disso, constitui uma espécie de compreensão particular das dificuldades imbricadas na condição disléxica que, na visão desse sujeito, são: ser vítima de bullying e ter o seu direito de escolha desrespeitado. O enunciador fala em “eu disléxico”, logo, ele assume e expõe que existe outro: o “eu não disléxico”. Há uma negação imbricada da dislexia como elemento constitutivo desse ser. O uso do pronome ela para designar a dislexia confere ao tom do enunciado uma ideia de afastamento da dislexia como elemento identitário uno, mas a percepção pelos olhos do enunciador da dislexia como uma parte da sua formação humana. De forma implícita, a escolha das palavras não é inconsciente e marca uma posição discursiva do enunciador, pois este, ao longo do relato, tenta explicar o que é ser disléxico, quais são as situações impostas a esse indivíduo durante a vida. É relevante prestar atenção na idealização da palavra que ele faz justamente pelo discurso do outro, pela ressonância das vozes de outros. Ele cita a professora na relação sobre o que é conveniente ou não ao Círculo

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disléxico por meio de elementos que tornem visível o discurso do outro sobre ele, sobre suas habilidades. Ele reforça a ideia da perda dos livros, dos quadrinhos, ou seja, elementos ligados à palavra e a suas emoções. A ideia de aproximar as emoções e as sensações experimentadas por ele enquanto disléxico são reforçadas por meio da seguinte construção: “Saber que seu pai vai jogar pela janela todos seus quadrinhos, livros, seu verdadeiro prazer [...]”. Cabe observar que nessa manifestação verbal de insatisfação com a ação do pai, o enunciador revela um movimento de refração da ideologia de que a palavra, ou seja, o universo ideológico ligado à linguagem não seria favorável ao sujeito disléxico. O enunciador concebe os elementos listados (quadrinhos e livros) como fonte de prazer, de satisfação. Logo, esses elementos seriam relevantes para ele, o que contradiz o universo de expectativas dos sujeitos representados pelo pai (família) e pela professora (escola). Em “Ser disléxico é não desentalar o que está preso na garganta, porque sabe que ninguém vai entender o que vai dizer”. Ao utilizar o verbo desentalar, o enunciador intensifica a necessidade de falar, de comunicar, como forma de não sufocar, e entendemos sufocar como um signo ideológico relacionado pelo enunciador à morte dos seus pensamentos, suas aspirações e suas vontades. O enunciador emoldura uma sensação por meio de signos, de um sentimento mais intenso do que a dor física, pois ele finaliza o seu relato revelando que “Dislexia não te tira uma parte do seu corpo visivelmente, mas mutila tua palavra”. Volochínov (2013, p. 239) destaca o fato de que “a expressão precede a emoção”, assim precisamos ter primeiramente a clareza da intenção enunciativa para, somente depois, compreendermos o peso da mutilação da qual trata o enunciador. Para ele, a dislexia faz parte de um processo que se mostra pela palavra alheia, pelo julgamento dos outros. Há uma relação de alteridade dentro desse sujeito que reelabora o seu discurso interior em relação a um outro. 370

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CONCLUSÕES O presente trabalho buscou refletir sobre a utilização do relato pessoal como forma de resistência na Web. A opção pelo gênero relato deu-se devido à sua propagação na Internet, especialmente em contextos de uso de mídias sociais. Essa inquietação nasceu da observação de relatos, com foco na narrativa em primeira pessoa, sobre a vivência de disléxicos no contexto brasileiro. Para refletir sobre as questões levantadas durante a consecução do capítulo, foram selecionados dois excertos retirados de relatos pessoais. O objetivo geral era verificar como o relato pessoal reacentua e incorpora à palavra do outro a uma forma de enunciação aparentemente “monológica” como forma de resistência. Com base na observação e análise dos relatos selecionados, verificou-se que o gênero depoimento/relato pessoal se constrói dialogicamente na forma de uma reação/resposta a algo ou alguém, a um já dito. O gênero em questão, neste estudo, tem seu horizonte temático voltado para a expressão de experiências pessoais de seu enunciador, que opera como um narrador em primeira pessoa, mas que, até mesmo, o discurso em primeira pessoa é repleto de um emaranhado de outras vozes, ecos e ressonâncias de universos, de posições sociais diferentes que se realizam de forma tensa. Foi possível observar ainda a existência de uma voz que narrava a história e uma motivação intrínseca que impulsiona o acontecimento discursivo do relato. No caso dos excertos analisados, a ideia era tornar visível, através do gênero em si, as situações adversas pelas quais os disléxicos passam continuamente. De acordo com Bakhtin: Existem gêneros que são mais propícios a refletir a individualidade do falante. Nem todos os gêneros são propícios ao reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual (BAKHTIN, 2016, p. 17)

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Ainda refletindo sobre a escolha do gênero para materialização das enunciações, podemos verificar que essa escolha já revelava aos coenunciadores da situação comunicativa um estilo embrionário. De acordo com isso, podemos perceber que o gênero relato pessoal presente nas mídias, assim como os dois depoimentos selecionados para as análises, não necessitava de uma forma padronizada. Logo eles foram propícios para expressar, por meio do tema, do estilo e da composição, o projeto enunciativo dos enunciadores através do estilo individual. Os depoimentos funcionaram também como uma forma de manifestação discursiva complexa midiatizada por um terceiro, como o veículo no qual os relatos circularam. Percebemos, nos relatos, uma entonação fortemente ligada a um contexto específico, o contexto da vida, das situações de discriminação e das dificuldades reveladas na fala dos enunciadores de ambos os relatos analisados. Para Bakhtin (2011), “a entonação sempre se encontra no limite entre o verbal e o extraverbal, entre o dito e o não dito”. Dessa afirmação, podemos entender que a entonação utilizada nos relatos buscava um coral de apoio, pois, caso não exista uma relação entre os falantes e os ouvintes por meio de um universo compartilhado, a entonação pode assumir uma expressão contrária à pretendida pelos enunciadores. Se a ideia é agregar a simpatia do coenunciador, pode ocorrer o inverso, conquistando, assim, a antipatia daquele com quem se dialoga. O conceito de valoração era marcado não com o conteúdo da palavra, mas na seleção das palavras e na entonação do discurso manifestas através do gênero. A alteridade, nos relatos analisados, aparecia por meio de dois movimentos diferentes. Primeiramente, por meio das relações do enunciador com ele mesmo, de forma que o Eu Disléxico reforçava o problema do outro (o preconceito das pessoas). Em um segundo movimento, as palavras do outro, por meio do relato, passaram de uma posição alheia para um plurilinguismo interno reavaliado e acentuado dialogicamente. 372

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O gênero discursivo relato pessoal permite um trabalho de observação da incorporação da palavra do outro, axiologicamente reavaliada ao discurso monológico. Essa relação não é sempre colaborativa, pois os coenunciadores desse discurso “despretensioso” podem entendê-lo como uma forma de desabafo, indignação, protesto, denuncia, entre outras significações que possam ser depreendidas dialogicamente das enunciações encarnadas sob o signo verbal. Torna-se relevante refletir sobre os significados e as valorações atribuídas a esse gênero que, por meio de estratégias específicas, incorpora à palavra do outro em um movimento de resistência e persuasão. Portanto, esperamos que as reflexões propostas possam ser úteis para a compreensão do gênero relato pessoal, das estratégias utilizadas e da finalidade dos excertos analisados.

REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DISLEXIA. Eu sou disléxico. 15 set. 2016. Depoimentos. Disponível em: http:// www.dislexia.org.br. Acesso em: 6 agosto. 2018. BAKHTIN, M. (VOLÓCHINOV, V.). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na Ciência da Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

BAKHTIN, M. (1952-1953). Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. Rio de Janeiro: Editora 34, 2016. COSTA, S. R. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

SANTANA, R. Tenho dislexia, e agora? [S. l.], 2015. Disponível em: https:// tenhodislexia.wordpress.com/category/dislexicos-pelo-mundo/. Acesso: em: 14 jul. 2019. VOLOCHÍNOV, V. N. (1926). A palavra na vida e na poesia. Introdução ao problema da poética sociológica. In: BAKHTIN, M. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. São Carlos: Pedro e João Editores, 2011. VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação. In: A construção da enunciação e outros ensaios. Organização e tradução de João Wanderley Geraldi. São Carlos: Pedro & João, 2013. Círculo

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OS GÊNEROS DO DISCURSO NOS ESCRITOS DO CÍRCULO DE BAKHTIN: EM BUSCA DE UM CONCEITO

Verônica Franciele Seidel1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

O CÍRCULO E OS GÊNEROS O debate em torno dos gêneros do discurso acompanha a produção do Círculo de Bakhtin desde o princípio e constitui um dos conceitos amplamente utilizados como fundamentação para pesquisas que se apoiam na teoria bakhtiniana (SIPRIANO; GONÇALVES, 2018). Dentre seus integrantes, os que mais se dedicaram a esse tema são Pável Nikoláievitch Medviédev, Valentin Nikolaevich Volochínov e Mikhail Mikhailovich Bakhtin, seja para tratar de questões literárias ou de questões linguísticas – apesar disso, a maior parte das pesquisas brasileiras atuais sobre a temática se pauta apenas no texto homônimo de Bakhtin, Os gêneros do discurso (SOUZA, 2003). De Medviédev, temos O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica, publicado originalmente em 1928 em Leningrado. De Volochínov, temos 1 Mestra em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutoranda em Linguística pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do SUL (PUCRS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Bolsista do CNPq e membro do grupo de pesquisa Discursos em Diálogo. https://orcid.org/0000-0001-6643-2154. E-mail: veronicaseidel@gmail.com. 374

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Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem, publicado originalmente em 1929, também em Leningrado. De Bakhtin, há a obra Questões de literatura e estética, publicada pela primeira vez em Moscou, em 1975. Também de Bakhtin, temos Os gêneros do discurso, que data de 1952/1953 e foi publicado originalmente em Moscou, em 1979. A fim de compreender o que esses estudiosos entendiam por gêneros do discurso e acompanhar o percurso realizado para a formação dessa concepção, apresentaremos algumas de suas contribuições acerca desse tema em cada uma das obras supracitadas, seguindo a ordem cronológica em que foram publicadas em russo, já que a data de escrita dos manuscritos, com exceção de Os gêneros do discurso, é pouco conhecida. Desse modo, será possível tecer considerações sobre a relevância e a função de tais concepções para os estudos da língua e, consequentemente, para a compreensão e reflexão acerca das formas de expressão discursiva dos sujeitos em diferentes esferas de produtividade.

O MÉTODO FORMAL NOS ESTUDOS LITERÁRIOS Em “Os elementos da construção artística”, capítulo terceiro da terceira parte da obra O método formal nos estudos literários, de 1928, Medviédev aborda o problema do gênero para os formalistas no estudo da literatura. Estes teriam primeiramente estudado e determinado todos os elementos fundamentais da construção da obra literária, para depois encontrar ou situar a relação desses elementos com o gênero literário, que seria “[...] um agrupamento específico e constante de procedimentos com determinada dominante” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 193). No entanto, essa definição implica, conforme Medviédev (2012), uma composição mecânica do gênero, como se este pudesse ser resultado da soma de determinados procedimentos. O autor Círculo

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explica que, a seu ver, dever-se-ia partir justamente do gênero, já que este “[...] é uma forma típica do todo da obra, do todo do enunciado” e que uma “[...] obra só se torna real quando toma a forma de determinado gênero” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 193). Além disso, uma vez que o significado construtivo de cada elemento em uma obra só pode ser compreendido em sua relação com o gênero, não é possível, como fazem os formalistas, atribuir um significado autônomo aos elementos abstratos e isolados da língua. Medviédev (2012, p. 194), ao definir o gênero como uma totalidade essencial, acabada e resolvida, afirma, também, que apenas na arte esse acabamento é orgânico e não convencional, superficial ou “[...] determinado por causas externas, e não pelo acabamento interno e exaurido do próprio objeto”. Em todos os outros campos da criação ideológica, como no campo científico, por exemplo, essa finalização é relativa, já que a ciência “[...] não pode ser fragmentada em uma série de obras acabadas e autônomas” ou esgotadas (MEDVIÉDEV, 2012, p. 194). Assim, esse pensador acredita que, no meio extraliterário, somente um acabamento composicional do enunciado seja possível, e não um acabamento temático. Diante disso, faz-se necessário destacar que o acabamento de um enunciado pode ser, então, de dois tipos: convencional e composicional ou temático e orgânico. Um acabamento convencional seria determinado pelas unidades formais da língua e pela sua combinação, isto é, pelos elementos repetíveis, sendo responsável, por exemplo, pelo término de uma oração e pelo início de outra. Já o acabamento temático seria uma finalização natural a determinada obra ou enunciado, sinalizando que o falante disse tudo aquilo que pretendia, colocando o objeto como definidor dessa finalização. Entretanto, a diferenciação proposta por Medviédev entre as obras literárias e as obras não literárias quanto ao acabamento não se sustenta nas demais obras analisadas neste estudo. Tanto Bakhtin quanto Volochínov entendem que os gêneros do discurso, sejam literários ou não, têm sua delimitação 376

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marcada por um acabamento orgânico e temático, como veremos nas seções a seguir. Após estabelecer essa diferenciação entre a arte e os outros campos ideológicos no que concerne ao acabamento, Medviédev disserta sobre a dupla orientação do gênero artístico. Este estaria orientado, primeiramente, para os seus receptores e para determinadas condições de realização e de percepção e, em segundo lugar, para a vida e para seus acontecimentos. Dessa forma, no que se refere à recepção, a obra artística ocupa certo lugar na existência de determinada esfera ideológica, passando a fazer parte de dado lugar e dado tempo na vida de determinado grupo, sendo concebida justamente em função desse auditório. Para exemplificar, Medviédev cita a lírica litúrgica como parte de um culto religioso, explicando que: [...] uma obra entra na vida e está em contato com os diferentes aspectos da realidade circundante mediante o processo de sua realização efetiva, como executada, ouvida, lida em determinado tempo, lugar e circunstâncias. Ela ocupa certo lugar, que é concedido pela vida, enquanto corpo sonoro real. Esse corpo está disposto entre as pessoas que estão organizadas de determinada forma. Essa orientação imediata da palavra como fato, mais exatamente como feito histórico na realidade circundante, determina toda a variedade de gêneros dramáticos, líricos e épicos (MEDVIÉDEV, 2012, p. 195).

Já no que se refere à determinação temática dos gêneros, o pensador russo defende que “[...] cada gênero é capaz de dominar somente determinados aspectos da realidade”, pois “[...] possui certos princípios de seleção, determinadas formas de visão e de compreensão dessa realidade” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 196). Medviédev (2012) afirma, no entanto, que a conceituação da unidade temática como algo formado pela combinação dos significados de suas palavras e orações isoladas, como entendem os formalistas, não é válida, já que o tema se forma com a ajuda desses elementos, mas não Círculo

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deriva deles, ou seja, não pode ser reduzido às formas linguísticas (elementos verbais de uma obra). O tema é constituído, assim, pelo todo do enunciado, “[...] considerado como determinado ato sócio-histórico. Por conseguinte, o tema é inseparável tanto do todo da situação do enunciado quanto dos elementos linguísticos” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 196-197). Isso significa que o tema não pode ser separado das circunstâncias espaciais, temporais e sócio-históricas do gênero a que pertence. Logo, conforme entende Medviédev (2012, p. 197), [...] entre a primeira e a segunda orientação da obra na realidade (orientação imediata a partir de fora e temática a partir de dentro), estabelece-se uma ligação e uma interdependência indissolúveis. Uma é determinada pela outra. A dupla orientação acaba por ser única, porém, bilateral.

Por essa perspectiva, podemos afirmar que o gênero concilia a unidade temática da obra e seu lugar real na vida. Nas palavras de Medviédev, “[...] as formas determinadas da realidade da palavra estão ligadas a certas formas da realidade que a palavra ajuda a compreender” (2012, p. 197). Importa ressaltar, assim, que, Se abordarmos o gênero do ponto de vista da sua relação interna e temática com a realidade e sua formação, então, podemos dizer que cada gênero possui seus próprios meios de visão e de compreensão da realidade, que são acessíveis somente a ele. Assim como a arte gráfica é capaz de dominar aspectos da forma espacial que a pintura é incapaz de alcançar e vice-versa, igualmente, nas artes verbais, os gêneros líricos, para dar um exemplo, possuem meios de atribuir forma conceitual à realidade e à vida que são inacessíveis ou menos acessíveis à novela ou ao drama. [...] Cada um dos gêneros efetivamente essenciais é um complexo sistema de meios e métodos de domínio consciente e de acabamento da realidade (MEDVIÉDEV, 2012, p. 198).

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Após, Medviédev explicita que, embora a língua exerça papel fundamental na tomada de consciência e de compreensão da realidade, esse processo ocorre por meio das formas do enunciado (unidades reais da comunicação discursiva) e não das formas linguísticas (palavras e frases). Assim, é possível afirmar, conforme Medviédev, que “[...] a consciência humana possui uma série de gêneros interiores que servem para ver e compreender a realidade” (2012, p. 198). Isso significa que toda nossa compreensão e orientação em relação à realidade e às nossas ações no mundo acontecem justamente com base em gêneros, os quais nos oferecem uma série de procedimentos para isso, cada um ao seu modo. Dessa maneira, também nossa forma de representação daquilo que apreendemos acerca do mundo ocorre com base na organização de determinado gênero, fazendo com que um artista e um cientista, por exemplo, entendam alguns aspectos da realidade e não outros e que esses aspectos sejam representados também de forma distinta. Podemos entender, assim, que “[...] o gênero é um conjunto de meios de orientação coletiva na realidade” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 198). Tendo em vista essas considerações, Medviédev esclarece o motivo pelo qual os formalistas estariam equivocados ao abordarem o gênero, já que estes separam a obra da realidade da comunicação social (orientação externa) e do domínio temático da realidade (orientação interna). Desse modo, fazem do gênero uma combinação de procedimentos ocasionais e mecânicos.

MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM Em Marxismo e filosofia da linguagem, de 1929, Bakhtin/ Volochínov2 discorrem acerca da importância dos estudos da língua para o marxismo, abordando, para isso, as relações entre 2 Embora hoje já se saiba (e haja certo consenso a esse respeito) que a obra foi escrita por Volochínov, a referência à autoria nas citações respeitará a edição brasileira, traduzida da língua francesa, consultada para este estudo. Círculo

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a infraestrutura e as superestruturas. Iniciam sua tese explicando que a palavra serve aos diferentes campos da atividade humana e que “[...] cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 33). Isso significa que cada área da atividade humana entende a realidade com base em suas próprias formas de percepção do mundo, alterando e influenciando esse meio também de uma forma particular. Bakhtin/Volochínov ressaltam, ainda, que “[...] existe uma parte muito importante da comunicação ideológica que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica particular: trata-se da comunicação na vida cotidiana” (2009, p. 37, grifos do autor). Esse tipo de comunicação é extremamente importante, pois está vinculado, ao mesmo tempo, à infraestrutura e às superestruturas, ou seja, é uma comunicação que surge na base, com as conversas do dia a dia, a partir das práticas do cotidiano, mas que toma forma e interfere em determinadas esferas ideologicamente constituídas e estabilizadas. Além disso, esses pensadores ressaltam a importância da organização hierárquica das relações sociais para o comportamento linguístico humano e, consequentemente, para a constituição dos gêneros do discurso. Destacam, também, que a atividade de língua – o processo de fala, seja interior ou exterior – é ininterrupta. Utilizam para explicar esse processo a metáfora de uma ilha, em que a enunciação realizada seria como uma ilha emergindo de um oceano (o discurso interior) e em que as dimensões e as formas dessa ilha seriam determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009). Desse modo, esses elementos – a situação e o auditório – obrigariam o [...] discurso interior a realizar-se em uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no contexto 380

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não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2009, p. 129).

Assim, todo enunciado carrega um vínculo com uma situação extraverbal imediata, isto é, com as condições em que o enunciado em questão emergiu, e com a situação social mais ampla. Um enunciado não pode, assim, ser explicado fora do vínculo com a situação concreta que lhe deu origem, ou seja, fora da realidade externa. Dessa maneira, Bakhtin/Volochínov (2009) consideram que a língua é o reflexo das relações sociais estáveis dos falantes. Desse modo, de acordo com cada época, grupo social, contexto e objetivo, uma ou outra forma da língua domina, caracterizando, por conseguinte, um gênero do discurso específico. Isso significa que, se uma forma se encontra relegada em detrimento de outra, esta serve com maior facilidade aos fins desejados, de maneira que os ouvintes conseguem compreender ou aceitar melhor tal forma e não outra. Trata-se, portanto, de formas que facilitam ou dificultam a transmissão de certa ideia. Diante disso, Bakhtin/Volochínov explicitam que cada gênero do discurso é apreendido de determinada maneira pelo receptor e que “[...] é importante determinar o peso específico dos discursos retórico, judicial ou político na consciência linguística de um dado grupo social numa determinada época” (2009, p. 159). Além disso, é preciso considerar a posição que um discurso ocupa na hierarquia social de valores, de modo que, quanto “[...] mais forte for o sentimento de eminência hierárquica na enunciação de outrem, mais claramente definidas serão as suas fronteiras, e menos acessível será ela à penetração por tendências exteriores de réplica e comentário” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2009, p. 159). Assim, conforme Bakhtin/Volochínov, “[...] toda esfera ideológica se apresenta como um conjunto único e indivisível cujos elementos, sem exceção, reagem a uma transformação da Círculo

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infra-estrutura” (2009, p. 40). No entanto, essa relação entre a infraestrutura e as superestruturas não pode ser entendida como mecanicista, em que uma alteração na infraestrutura ocasionará, por sua vez, determinada modificação na superestrutura. Em outras palavras, trata-se de analisar e compreender a orientação interna e externa da obra. O que Bakhtin/Volochínov (2009) discutem nesse momento é a questão do percurso existente entre um acontecimento na infraestrutura e a transformação desse acontecimento em tema de uma obra literária ou de qualquer outra esfera de criação ideológica, como o discurso religioso ou científico, por exemplo.

QUESTÕES DE LITERATURA E ESTÉTICA Em Questões de literatura e estética, de 1975, Bakhtin tem como intuito “[...] eliminar a ruptura entre o ‘formalismo’ e o ‘ideologismo’ abstratos no estudo do discurso literário” (2010a, p. 71, grifos do autor), já que a estilística, até então, ocupara-se com a palavra linguística e abstrata a serviço da vontade do artista e não com a palavra viva, isto é, com a língua em funcionamento, ligada a aspectos ideológicos, históricos, sociais e culturais – e, por conseguinte, em constante evolução. No segundo ensaio da obra, “O discurso no romance”, Bakhtin (2010a) comenta que, entre o discurso e seu objeto, há um meio formado pelos discursos dos outros sobre esse mesmo objeto ou tema, normalmente difícil de ser penetrado. Assim, seria justamente no processo de interação com esse meio que o discurso poderia individualizar-se e elaborar-se estilística e semanticamente. Isso ocorre porque todo discurso encontra seu objeto já avaliado, contestado, desacreditado pelos outros discursos que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e [...] 382

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se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode [...] influenciar todo o seu estilo (BAKHTIN, 2010a, p. 86).

Desse modo, todo enunciado surge em determinado momento social e histórico e interage, obrigatoriamente, com outros discursos tecidos pela consciência ideológica sobre determinado objeto. Esse processo dialógico pode ser representado, conforme entende Bakhtin (2010a), por um discurso-raio que tenta alcançar determinado objeto. No momento de seu disparo, inevitavelmente, esse discurso se encontrará com outros dizeres sobre o mesmo objeto, fundindo-se com eles, afastando-se deles, enfim, fazendo brilhar uma série de avaliações até alcançar seu objeto. Isso significa que nenhum discurso pode escapar dessa interação dialógica com o já dito, pois sempre encontrará, em seu percurso até o objeto, outros discursos com os quais irá estabelecer um embate ideológico constitutivo de si mesmo. Desse modo, podemos afirmar que “[...] a concepção que o discurso tem de seu objeto é dialógica” (BAKHTIN, 2010a, p. 89). O autor ressalta, ainda, que todo discurso é voltado também para a resposta de seu ouvinte, que replica ativamente, até mesmo porque ele é que instiga tal resposta. Ao fazer isso, o falante baseia-se no já dito e no que será dito, isto é, naquele discurso que ainda não existe, mas que “[...] foi solicitado a surgir e que já era esperado” (BAKHTIN, 2010a, p. 89). O enunciado, assim, além de entrar em contato como outros enunciados que dificultam/modificam seu acesso ao objeto, encontra-se com o fundo aperceptivo do ouvinte, ou seja, como este encarará tal enunciado e reagirá a ele, concordando ou discordando. Dessa forma, a compreensão por parte do ouvinte de um enunciado sempre está associada a uma resposta, a uma posição ativa. O enunciado, ao se deparar com essa resposta, é enriquecido com novos elementos, tornando-se outro. Por isso, o falante está orientado para seu ouvinte, pois sabe Círculo

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que seu enunciado entrará em contato com um círculo formado por outras concepções, convicções, crenças e dúvidas, um círculo alheio de avaliação e valoração, originando uma espécie de dialogicidade interna do enunciado. Tendo isso em vista, há: a relação dialógica com o discurso de outrem sobre um mesmo objeto; e a relação dialógica com o discurso de outrem contido na resposta antecipada. Esses aspectos constitutivos do enunciado, que podem ser denominados, respectivamente, dialogicidade externa e dialogicidade interna, auxiliam na formação do estilo, da semântica e da forma composicional do enunciado. O autor disserta, também, sobre os casos em que o plurilinguismo (ou seja, outras linguagens sócio-ideológicas) vem integrado em alguns gêneros como uma “coisa” e não como parte da língua real que constitui esse discurso. Neste caso, essas outras linguagens não entram no enunciado como detentoras de seus próprios pontos de vista, por meio das quais seria possível dizer aquilo que não se pode na língua dominante, mas como algo de que se fala, que não está no mesmo plano da língua do autor. A língua [...] é única somente como sistema gramatical abstrato de formas normativas, abstraída das percepções ideológicas concretas que a preenche e da contínua evolução histórica da linguagem viva. A vida social viva e a evolução histórica criam, nos limites de uma língua nacional abstratamente única, uma pluralidade de mundos concretos, de perspectivas (BAKHTIN, 2010a, p. 96).

A língua é, assim, estratificada em gêneros do discurso, fazendo com que os elementos da língua estejam associados com a orientação intencional e com o sistema geral de acentuação de um ou outro gênero. Tal estratificação da língua se relaciona de certo modo com a estratificação social como um todo (jargões, gírias, arcaísmos, variações de registros, língua específica de uma profissão etc.), diferenciando-se por formas específicas de interpretação 384

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e apreciação concretas e por um vocabulário próprio. Desse modo, para o falante que domina tal estratificação (gênero), essas linguagens parecem plenamente significativas e espontaneamente expressivas. No entanto, para quem está “de fora”, para quem não pertence a tal meio, esses recursos expressivos tornam o discurso pesado e alheio. Essa estratificação social “[...] se expressa por diferenças padronizadas de acentuação e de atribuição de sentido aos elementos da língua” (BAKHTIN, 2010a, p. 97). O pensador russo disserta, ainda, sobre o fato de que cada época tem sua própria língua, dotada de determinadas acentuações valorativas, e cada camada social, por sua vez, também tem determinadas linguagens socialmente típicas, isto é, formas relativamente estáveis de comunicação. Então, em cada momento de sua existência, a língua é pluridiscursiva, o que se deve à “[...] coexistência de contradições sócio-ideológicas entre presente e passado, entre diferentes épocas do passado, entre diversos grupos sócio-ideológicos, entre correntes, escolas, círculos etc.” (BAKHTIN, 2010a, p. 98). Assim sendo, todas essas linguagens consistem, na verdade, em pontos de vista específicos sobre o mundo, isto é, em determinadas perspectivas objetais, semânticas e axiológicas. Interessante citar também a seguinte passagem: “Estudar o discurso em si mesmo, ignorar sua orientação externa, é algo tão absurdo como estudar o sofrimento psíquico fora da realidade a que está dirigido e pela qual ele é determinado” (BAKHTIN, 2010a, p. 99). Isto é, para estudar e compreender o discurso, a palavra viva, é preciso levar em conta a realidade que o gerou (os discursos que têm o mesmo tema, as condições sócio-históricas nas quais se formou, o próprio objeto de seu enunciado etc.) e para a qual ele se orienta (antecipação da resposta de seu ouvinte, intenção discursiva etc.). A estratificação da língua é determinada por diferentes forças sociais, o que implica uma ausência de neutralidade nas palavras,

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fazendo da língua, para seu falante, uma percepção plurilíngue concreta sobre o mundo. Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra determinada, uma pessoa definida, uma geração, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras e formas são povoadas de intenções (BAKHTIN, 2010a, p. 100).

A palavra, enquanto não for assimilada pelo falante e impregnada com seus acentos valorativos, é semi-alheia, pois, não sendo da língua neutra (do dicionário; palavra morta), é de outrem, foi ouvida em outro contexto, para designar e falar sobre outro objeto, em outra situação. Alguns discursos se prestam melhor à assimilação por parte do falante; outros permanecem estranhos e alheios, como se, independente da vontade do falante, se colocassem entre aspas quando usados por ele, pois a língua é povoada das intenções dos outros: apropriar-se deles significa conceder à língua intenções e acentos próprios.

OS GÊNEROS DO DISCURSO Já no texto Os gêneros do discurso, de 1952/1953, Bakhtin explicita que “[...] todos os campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem”, fazendo com que “[...] as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana” (2010b, p. 261) e reflitam, assim, as condições específicas e as finalidades de cada campo não só pelo seu conteúdo, mas também pelo estilo da língua empregado. Isso significa que cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, ou seja, os gêneros de discurso. Desse modo, os gêneros acompanham a evolução de determinado campo da atividade humana, de forma que, quanto mais desenvolvido for esse campo, mais complexo e peculiar será o 386

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gênero correspondente. A isso está diretamente relacionada a classificação proposta por Bakhtin dos gêneros como primários ou secundários. Estes são mais complexos e incluem romances, textos científicos e anúncios publicitários, por exemplo, surgindo em contextos mais desenvolvidos e organizados. No processo de sua formação, [...] incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata. Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais alheios (BAKHTIN, 2010b, p. 263).

A partir disso, Bakhtin afirma que o estudo dos gêneros do discurso é de fundamental importância para que entendamos as relações da língua com a vida, já que “[...] a língua passa a integrar a vida a partir de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua” (2010a, p. 265). Assim, é preciso compreender e analisar aquilo que caracteriza um enunciado e, consequentemente, um gênero do discurso, já que uma “[...] determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinado gênero, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis” (BAKHTIN, 2010b, p. 266). Dessa forma, a mudança de estilo nos gêneros reflete todas as mudanças que ocorrem na vida social, porque nunca está divorciado do acontecimento e das contingências em que ocorre, motivo pelo qual Bakhtin afirma que os enunciados e seus tipos são “[...] correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem” (2010b, p. 268). Além disso, ressalta que a própria escolha de determinada forma gramatical pelo falante é um ato Círculo

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estilístico e que essa escolha já ocorre tendo em vista determinado gênero, indicando o modo como os sujeitos se inscrevem em uma sociedade dividida por classes e por interesses, marcada, portanto, pelas formas através das quais interagem e se expressam. Assim, o enunciado é percebido como a unidade real da comunicação discursiva. O ouvinte, quando compreende o significado daquilo que o falante disse, ocupa uma posição responsiva: concorda, discorda, nega, desconfia. E essa posição responsiva pode se concretizar das mais diversas maneiras: por meio de uma resposta verbal, por meio do silêncio, por meio de uma ação etc., de forma que, [...] cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte. Os gêneros da complexa comunicação cultural, na maioria dos casos, foram concebidos precisamente para essa compreensão ativamente responsiva de efeito retardado (BAKHTIN, 2010b, p. 272).

Assim, os enunciados possuem limites definidos pela alternância dos sujeitos do discurso, isto é, pela alternância dos falantes. O falante termina seu enunciado justamente para ceder lugar à palavra do outro, à compreensão ativamente responsiva desse outro, o que pode ocorrer de variadas formas, dependendo do campo da atividade humana a que se refere. Nos gêneros primários, como na conversa entre parentes, por exemplo, essa alternância ocorre na forma de pergunta-resposta ou ordem-execução etc., causando reações mais imediatas nos ouvintes aos enunciados. Já nos gêneros secundários, como em um artigo científico, a alternância acontece de modo menos explícito, sendo marcada, normalmente, pelo fim de uma publicação e início de outra. Nestes casos, tanto a alternância dos sujeitos quanto o ato responsivo gerado pelos enunciados não são tão facilmente identificáveis. As respostas a enunciados de

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gêneros secundários tendem a ocorrer em um período de tempo maior. É comum, no entanto, que alguns gêneros secundários imitem os processos de alternância dos gêneros primários, por meio de uma estruturação que envolve perguntas, objeções e respostas feitas por um mesmo sujeito. Ocorre, assim, uma tentativa de reprodução de uma característica que é explícita nos gêneros primários, dos quais os gêneros mais complexos derivam: a alternância dos sujeitos do discurso. Nesse sentido, um artigo ou uma obra de caráter científico torna-se uma unidade da comunicação discursiva, que, por meio dessa precisão externa motivada pela alternância dos sujeitos do discurso, adquire um caráter interno devido ao fato de o sujeito do discurso revelar determinado estilo e determinada visão de mundo. São justamente essas marcas internas que a “[...] separam de outras obras a ela vinculadas no processo de comunicação discursiva de um dado campo cultural: das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia, de outras obras da mesma corrente, das obras das correntes hostis combatidas pelo autor etc” (BAKHTIN, 2010b, p. 279). Cada obra espera, então, uma resposta do outro, seja modificando as crenças desse outro, suas convicções ou suas ações. Podemos afirmar, desse modo, de acordo com Bakhtin, que uma obra é capaz de determinar “[...] as posições responsivas dos outros nas complexas condições de comunicação discursiva de um dado campo da cultura” (2010b, p. 279). Ao ter contato com determinado enunciado, em algum momento, se houver compreensão, o sujeito irá responder a ele de alguma forma. Outra importante característica do enunciado é sua conclusibilidade específica. Tal característica consiste naquilo que permite a alternância dos sujeitos do discurso, já que sinaliza que o falante disse tudo o que queria dizer em determinado momento ou em determinadas condições. A conclusibilidade de um enunciado depende, assim, da possibilidade de responder a ele, isto é, Círculo

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de ocupar uma posição responsiva. E essa inteireza do enunciado – sua conclusibilidade – é determinada, de acordo com Bakhtin (2010b), por três elementos: a exauribilidade do objeto e do sentido; o projeto de discurso ou a vontade de discurso do falante; e as formas típicas composicionais de gênero do acabamento. A exauribilidade semântico-objetal pode ser quase plena em alguns casos, como em pedidos e ordens ou nas respostas a eles, e também pode ser relativa, como no campo científico, por exemplo, em que há um mínimo acabamento que permite ocupar uma posição responsiva. O objeto é objetivamente inexaurível, mas ao se tornar tema do enunciado (por exemplo, de um trabalho científico) ele ganha uma relativa conclusibilidade em determinadas condições, em certa situação do problema, em um dado material, em determinados objetivos colocados pelo autor, isto é, já no âmbito de uma idéia definida do autor (BAKHTIN, 2010b, p. 281, grifos do autor).

Já o segundo elemento, extremamente ligado ao primeiro, diz respeito à intenção ou vontade discursiva do falante, que determina o todo do enunciado, bem como seus limites. De certa forma, o ouvinte ocupa uma posição responsiva porque imagina que o falante já disse aquilo que desejava, ou seja, já concluiu sua ideia. O último elemento consiste nos modos de construção discursivos relativamente estáveis de gêneros do discurso e está intimamente ligado à vontade discursiva do falante, pois esta [...] se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes etc. A intenção discursiva do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, é em seguida aplicada e adaptada ao gênero escolhido, constitui-se 390

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e desenvolve-se em uma determinada forma de gênero (BAKHTIN, 2010b, p. 282, grifos do autor).

Bakhtin (2010c) explicita, ainda, que toda e qualquer fala ocorre com base nos gêneros do discurso, isto é, em formas relativamente estáveis e típicas, já que a língua materna é apreendida por meio de enunciados concretos proferidos por aqueles que nos rodeiam e, por vezes, reproduzidos por nós em situações reais de comunicação discursiva. Assim, interagir pela fala, segundo Bakhtin (2010b), consiste em aprender a construir enunciados na forma de determinado gênero segundo os interesses que nos movem. O autor explica, ainda, que, em alguns gêneros, a vontade discursiva do falante só se manifesta no ato de escolher esse gênero devido a um elevado grau de padronização, como no gênero jurídico ou legislativo, em que há uma estrutura rígida de organização do discurso que deve ser seguida. Outros gêneros, no entanto, permitem uma maior liberdade do falante, variando de acordo com a função, a posição social e as relações pessoais estabelecidas entre os participantes da comunicação, como ocorre em conversas do cotidiano. Assim, além das formas da língua, o falante leva em conta os modos de combinação dessas formas, ou seja, os gêneros do discurso, que são formas relativamente estáveis e normativas de enunciado. Dessa maneira, a vontade discursiva ocorre sempre tendo em vista a inteireza do enunciado com base em determinado gênero. Por fim, Bakhtin (2010b, p. 288-289) discorre sobre uma terceira característica do enunciado: sua relação com o próprio falante e com os outros participantes da comunicação discursiva, isto é, com um determinado campo de atividade humana, porque todo enunciado é um [...] elo real na cadeia da comunicação discursiva em determinado campo da atividade humana [...] Por isso cada enunciado se caracteriza, antes de tudo, por Círculo

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um determinado conteúdo semântico-objetal. A escolha dos meios lingüísticos e dos gêneros do discurso é determinada, antes de tudo, pelas tarefas (pela idéia) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido.

O segundo elemento que determina o enunciado consiste na relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e do sentido do enunciado. Trata-se do elemento denominado por Bakhtin (2010b) de expressivo. Embora esse elemento apareça em maior ou menor grau dependendo de cada gênero, já que a forma é determinada pela expressão, ele sempre determinará a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais empregados pelo falante. Por isso, nenhum enunciado é neutro (ainda que as palavras enquanto unidades da língua o sejam), mas carrega sempre uma posição valorativa por parte do falante quanto àquilo que enuncia, que é social e histórico. Isso leva Bakhtin a afirmar que “[...] só o contato do significado linguístico com a realidade concreta, só o contato da língua com a realidade, o qual se dá no enunciado, gera a centelha da expressão: esta não existe nem no sistema da língua nem na realidade objetiva existente fora de nós” (2010b, p. 292). Contudo, o falante costuma tirar suas palavras de outros enunciados que pertençam ao mesmo gênero, ou seja, que se assemelhem pelo tema, pela composição ou pelo estilo. Além disso, as palavras geralmente adquirem certa expressão típica em cada gênero, justamente porque os [...] gêneros correspondem a situações típicas da comunicação discursiva, a temas típicos, por conseguinte, a alguns contatos típicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstâncias típicas. Daí a possibilidade das expressões típicas que parecem sobrepor-se às palavras (BAKHTIN, 2010b, p. 93).

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Embora haja um significado lexicográfico neutro das palavras que assegure sua compreensão, seu emprego é sempre de índole individual-contextual. Isso significa, conforme entende Bakhtin (2010b), que as palavras existem para o falante de três modos distintos: como palavra da língua que não pertence a ninguém; como palavra alheia dos outros; e como minha palavra – aquela com a qual opero/operei em uma situação específica e com determinada intenção discursiva. Dessa forma, Em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo familiar, de amigos e conhecidos, de colegas, em que o homem cresce e vive, sempre existem enunciados investidos de autoridade que dão o tom, como obras de arte, ciência, jornalismo político, nas quais as pessoas se baseiam, as quais elas citam, imitam, seguem. Em cada época e em todos os campos da vida e da atividade, existem determinadas tradições expressas e conservadas em vestes verbalizadas: em obras, enunciados, sentenças etc. [...] Eis por que a experiência discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os enunciados individuais dos outros. [...] Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos (BAKHTIN, 2010b, p. 294-295).

Bakhtin também explicita que um enunciado sempre dialoga com outros enunciados do mesmo gênero, de modo que atua, antes de tudo, como uma resposta a esses outros enunciados. Um enunciado ocupa, assim, uma posição definida em uma dada esfera da comunicação, sobre um determinado assunto, e só é possível adotar certo posicionamento correlacionando-o com outros pontos de vista. Desse modo, os enunciados consistem em atitudes responsivas a outros enunciados de um mesmo gênero. Por Círculo

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isso, podem adotar certas posições avaliativas, seja por meio de reprodução de trechos de enunciados alheios, seja baseando-se neles ou incorporando certos recursos linguísticos, por exemplo. Tendo isso em vista, Bakhtin (2010b, p. 298) afirma que “[...] por mais monológico que seja o enunciado [...] por mais concentrado que esteja no seu objeto, não pode deixar de ser em certa medida também uma resposta àquilo que já foi dito sobre dado objeto, sobre dada questão”. Isso ocorre, também, porque nossas ideias sobre determinado conteúdo nascem justamente da interação com as ideias dos outros. O autor discorre, ainda, sobre um modo de alternância interna dos sujeitos do discurso, que ocorre quando o falante cita o enunciado do outro ou parte dele entre aspas ou em itálico. Essa forma de apropriação concede ao enunciado do outro uma dupla valoração: a do autor citado e a do discurso que incorporou esse enunciado. Nesse caso, as relações dialógicas com a palavra do outro são mais aparentes. Apesar disso, em todo e qualquer discurso, verifica-se a presença de palavras alheias, assimiladas de diferentes modos ou graus de alteridade, pois, ainda que os limites precisos de um enunciado sejam determinados pela alternância dos sujeitos do discurso, internamente, ele reflete o processo do discurso, ou seja, dialoga com outros enunciados e a eles responde em maior ou menor grau. E como o falante não é o primeiro a falar sobre aquele objeto, tema de seu enunciado, [...] o próprio objeto do seu discurso se torna inevitavelmente um palco de encontro com opiniões de interlocutores imediatos [...] ou com pontos de vista [...] O enunciado está voltado não só para seu objeto mas também para os discursos do outro sobre ele (BAKHTIN, 2010b, p. 300).

É importante lembrar, no entanto, que o enunciado é criado, em grande parte, em prol das atitudes responsivas que ele gerará, ou seja, levando em conta seu direcionamento ou endereçamento 394

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para alguém. Esse destinatário é definido pelo campo da atividade humana e da vida a que o enunciado se refere, bem como pela influência desse destinatário na composição do enunciado. Assim, ao compor seu enunciado, o falante define seu destinatário, tentando, de alguma forma, prever e antecipar-se em relação às suas objeções. Bakhtin (2010b, p. 302) crê, então, que o falante, ao construir seu enunciado, considera quanto ao seu destinatário: “[...] até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação”, bem como suas convicções, concepções e preconceitos. Conforme o autor russo, são justamente essas previsões que irão determinar o gênero, os procedimentos composicionais e os meios linguísticos utilizados pelo falante. Até os gêneros que procuram um estilo neutro ou objetivo, como o discurso científico, por exemplo, que se concentram ao máximo em seu objeto, apresentam determinada concepção imaginária de destinatário. Isso faz com que, em tais gêneros, haja o pressuposto de certo “[...] triunfo do destinatário sobre o falante, uma unidade dos seus pontos de vista, mas essa identidade e essa unidade custam quase a plena recusa à expressão” (BAKHTIN, 2010b, p. 304). Por fim, Bakhtin (2010b) explicita que todos os recursos linguísticos, independentemente do gênero, são escolhidos pelo falante em função de uma maior ou menor influência do destinatário e da previsão de sua atitude responsiva.

CONCEPÇÕES DE GÊNERO PARA O CÍRCULO DE BAKHTIN Ainda que seja possível encontrar certo refinamento/detalhamento da definição de gêneros do discurso nas obras analisadas – O método formal nos estudos literários, Marxismo e filosofia da linguagem, Questões de literatura e estética e Os gêneros do discurso – com o passar do tempo, percebemos que há pontos-chave Círculo

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em comum que se fazem presentes desde as primeiras reflexões do Círculo sobre o tema. Além disso, tais aspectos, retomados a seguir, também se relacionam, de algum modo, com as proposições expostas em outras obras desse grupo de pensadores. Para os integrantes do Círculo de Bakhtin, podemos afirmar que tais concepções são fundamentais aos estudos da língua, já que a utilização da língua pelos falantes sempre acontece com base em tipos relativamente estáveis de enunciados, ou seja, de gêneros do discurso. Isso ocorre uma vez que a língua é aprendida por meio de enunciados concretos proferidos por aqueles que nos rodeiam em situações reais de comunicação discursiva (VOLOCHÍNOV, 2013) de modo que aprender a interagir pela fala consiste em saber construir enunciados na forma de determinado gênero, tendo em vista as relações histórico-sociais estabelecidas em cada contexto de produção. Assim, os tipos de enunciados estão diretamente relacionados ao campo da atividade humana em que foram originados, refletindo, portanto, as condições específicas de cada campo (hierarquização das relações sociais vigentes, momento histórico-cultural da sociedade), bem como suas finalidades. Como o uso da língua está presente em todas as áreas da atividade humana (BAKHTIN, 2009), a palavra, embora sirva igualmente a todas elas, faz com que cada uma delas entenda a realidade com base em suas próprias formas de percepção do mundo, alterando e influenciando esse meio também de uma forma particular. Desse modo, cada gênero do discurso é voltado a determinados aspectos da realidade, sendo capaz, consequentemente, de comunicar certas noções acerca das coisas e não outras, já que possui certos princípios de seleção e determinadas maneiras de compreensão dessa realidade. Assim, é possível afirmar que a consciência humana (formada justamente a partir dos embates que a palavra trava nos diferentes campos de produção) possui uma série de gêneros interiores que servem para

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ver e compreender a realidade, o que faz dos gêneros um conjunto de meios de orientação coletiva na realidade. Um falante, ao construir seu enunciado, sempre leva em conta, assim, tudo aquilo que já foi dito sobre o objeto ou acontecimento em questão e tudo aquilo que ainda será dito, estabelecendo, desse modo, uma relação de diálogo com outros enunciados anteriores pertencentes ao mesmo gênero e suscitando em seu ouvinte, aquele a quem o enunciado se destina, uma resposta, ou seja, uma posição ativa frente àquilo que foi dito. Assim sendo, um enunciado, além de suscitar uma resposta, é ele mesmo uma resposta a outros enunciados precedentes sobre o mesmo tema. Cada enunciado é definido, dessa maneira, pela alternância dos sujeitos do discurso; pela relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do enunciado; e por sua relação com o próprio falante e com os outros participantes da comunicação discursiva. Tais características definem o enunciado como unidade da comunicação discursiva, isto é, como unidade real de comunicação, e o distinguem de unidades isoladas da língua, como palavras e orações. Por esse motivo, as formas relativamente estáveis de enunciado devem ser o ponto de partida de qualquer análise linguística (BAKHTIN, 2015), já que as formas isoladas da língua (aquilo que é repetível nas enunciações, as palavras dicionarizadas) não podem ser compreendidas em seu todo. Como as relações sociais ocorrem em grupos, os quais originam a comunicação e são por ela originados, as formas de comunicação são determinadas pelas relações de produção e pela estrutura sócio-política desses grupos. Desse modo, uma mudança estilística, semântica ou composicional nos gêneros reflete alterações que ocorrem na vida social, fazendo do gênero um importante meio para compreender a sociedade. Com base em tais reflexões, compreendemos que a concepção de gêneros do discurso ocupa um papel fulcral na produção bakhtiniana, entrelaçando-se com discussões realizadas em diferentes Círculo

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momentos. Destacamos, contudo, que as considerações aqui expostas poderiam ser enriquecidas a partir da leitura e análise da versão mais recente de Marxismo e filosofia da linguagem, traduzida diretamente do russo por Sheila Grillo e Ekaterina Américo, cuja primeira edição data de 2017.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. O freudismo: um esboço crítico. São Paulo: Perspectiva, 2009.

BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). Tradução de Aurora Fornoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis Nazário e Homero Freitas de Andrade. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010a. BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010b. p. 261-306.

BAKHTIN, M. M. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Américo. São Paulo: Editora 34, 2015. BAKHTIN, M. M. (VOLOCHÍNOV, V. N). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo, Hucitec, 2009. MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. São Paulo: Contexto, 2012. SIPRIANO, B. F.; GONÇALVES, J. B. C. A difusão do pensamento bakhtiniano no Ocidente: uma leitura dos contextos de recepção no Brasil. Eutonia, Recife, v. 21, n. 1, p. 120-143, jul. 2018. Disponível em: https://webcache. googleusercontent.com/search?q=cache:2SJO-92DqKwJ:https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/237080+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em: 18 out. 2019.

SOUZA, G. T. de. Gêneros discursivos em Marxismo e Filosofia da Linguagem. The Especialist, São Paulo, v. 24, n. especial, p.185-202, 2003. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/esp/article/view/9493. Acesso em: 18 out. 2019.

VOLOCHÍNOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.

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Texto composto em Minion Pro pela Editora Polifonia, Porto Alegre, verão de 2020.


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