Aventuras de um sueco nos confins do Alto Amazonas, incluindo uma temporada entre índios canibais

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Hélio Rocha é atualmente professor na Universidade Federal de Rondônia. Traduziu outros relatos, dentre os quais O Paraíso do Diabo.

Aventuras de um sueco nos confins do Alto Amazonas, incluindo uma temporada entre índios canibais

ISBN 978-85-5953-024-7

Aventuras de um sueco nos confins do Alto Amazonas, incluindo uma temporada entre índios canibais Algot Lange Tradução de

Hélio Rocha

In the Amazon jungle: adventures in remote parts of the upper Amazon river, including a sojourn among cannibal indians (1912), agora em português, é o relato da primeira viagem de Lange à Amazônia brasileira, no início de 1910. O rio Amazonas/Solimões foi a estrada principal por onde esse aventureiro solitário e sonhador viajou em busca de emoções, glória, riqueza e fincou os pés no “túmulo do homem branco”, na região do Vale do Javari. É da confluência do rio Itecoaí, afluente do Javari, num vilarejo de palafitas chamado Remate de Males, que a narrativa de Lange se inicia. Registra o próprio viajante em sua narrativa de cunho dramático e, muitas vezes aterrorizante que, "Finalmente, depois de mais de 47 dias de viagem, eu chegava à fronteira do Brasil com o Peru e observava a fumaça do navio a vapor ainda dissipando-se preguiçosamente sobre a imensidão da selva. Para mim, mais do que um resto de fumaça, era minha última ligação com o mundo civilizado. Quando a fumaça se dissipou completamente, voltei-me para o vilarejo e caminhei no lamaçal rumo a uma pequena palafita. Foi no final de janeiro de 1910 que me aproximei daquela palafita fincada em terra firme – porque as águas estavam inundando tudo. Por trás de mim estava o rio Amazonas, à direita o rio Javari, enquanto a cabana em que eu iria me hospedar ficava em Esperança, posto oficial na fronteira do Brasil com o Peru, do outro lado do rio, com uma faixa contínua de mata fechada, pantanosa, imensa e desoladora à visão do espectador"... Essas aventuras estão agora à disposição de leitores brasileiros....



Aventuras de um sueco nos confins do Alto Amazonas, incluindo uma temporada entre índios canibais

Algot Lange Tradução de Hélio Rocha

Editora Scienza 2017


Copyright © 2017 – Todos os direitos reservados. Todos os direitos reservados – A reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio deste livro só é autorizada pelo autor/editora. A violação dos direitos do autor (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Este livro é uma tradução realizada por Hélio Rocha da obra original intitulada In the Amazon Jungle, Adventures in Remote Parts of the Upper Amazon River, Including a Sojourn Among Cannibal Indians do autor Algot Lange. Fotos e imagens: Com exceção das fotos das páginas 20 e 49, as demais fotos e imagens deste livro fazem parte da obra original intitulada In the Amazon Jungle, Adventures in Remote Parts of the Upper Amazon River, Including a Sojourn Among Cannibal Indians do autor Algot Lange, retirados da cópia digital do acervo que participa do projeto Brasiliana – USP. A foto da contra-capa foi retirada do Jornal do Commercio, anno IX - nº 2954 de 10 de julho de 1912, Manaus, AM. Revisão Técnica: Jaqueline Prestes de Souza (Universidade Federal de Rondônia); Raquel Ishii (Universidade Federal do Acre).

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Lange, Algot In the Amazon Jungle, Adventures in Remote Parts of the Upper Amazon River, Including a Sojourn Among Cannibal Indians / Algot Lange – tradução de Hélio Rocha; São Carlos: Editora Scienza, 2017. 157 p. ISBN 978-85-5953-024-7 1. Alto Amazonas. 2. Remate de Males. 3. Seringal Floresta. 5. Canibais Mangeroma. I. Título. CDD 960

Editoração, padronização e impressão:

Rua Juca Sabino, 21 – CEP 13575-080 – São Carlos – SP (16) 3364-3346 | (16) 9 9285-3689 | (16) 9 9767-9918 www.editorascienza.com.br gustavo@editorascienza.com


Aventuras de um sueco nos confins do Alto Amazonas, incluindo uma temporada entre índios canibais

Algot Lange Tradução de

Hélio Rocha

Editora Scienza 2017



Je ne fay rien sans

Gayeté Não faço nada sem

Alegria Montaigne, Des livres



Ă?ndio Mangeroma (Mayoruna) usando a zarabatana com flechas envenenadas De uma fotografia tirada por Algot Lange inclusa em sua obra


Para

Miguel NenevĂŠ


Agradecimentos Meus agradecimentos aos passageiros do navio “O rei Davi”, com quem mantive diálogos interessantes durante uma viagem ao Alto Solimões, na primeira semana do mês de janeiro de 2017. Em especial, ao José Farias, neto de Dona Damiana, de Atalaia do Norte, pelas conversas sobre a vila de Remate de Males e das histórias indígenas que povoam as mentes de muitos desses amazônidas. Também ao historiador Luís Ataíde (o seu Lulu), de Tabatinga, que me contou muitas histórias fantásticas e esclarecedoras sobre essa região fronteiriça do Brasil com a Colômbia e o Peru. À Maria Eliése Gurgel, que me acompanhou nessa viagem exploratória e de reconhecimento desses povoados, aldeias, cidades e pessoas hospitaleiras, como a Dona Raimunda, uma mulher indígena Tikuna, que, amavelmente, nos atendia todas as manhãs em nosso desayuno, como se diz na região, quando estávamos hospedados no Novo Hotel. Em Atalaia do Norte, às margens do Itecoaí, fui recebido generosamente pelo senhor Nailson Tenazor, secretário de governo no município, que me recebeu em seu gabinete e, muito calorosamente, passou-me informações acerca da antiga vila de Remates de Males e a mudança de seus moradores para a sede de Atalaia do Norte, fundada em 1943. Agradeço pela foto da fundação da cidade, que me foi, gentilmente, concedida por esse amazônida. Gostaria de agradecer ao Waqui Tumi, um jovem Mayoruna, que viajou no mesmo táxi que eu, de Benjamin Constant para Atalaia do Norte, naquela manhã quente do dia 12 de janeiro de 2017. Durante o percurso, soube das inúmeras etnias que ainda estão dispersas pelo Vale do Javari. Soube também das Associações ‘Casa dos Matsés’, ‘Casa dos Mayoruna’, etc., algo que me fez imaginar muitas outras aventuras, além das vividas por Algot Lange, esse sueco que esteve na região em 1910, e morou com os Mangeroma, bem como com caucheiros, seringalistas, caçadores, pescadores e todos esses “filhos e filhas das matas amazônicas”.

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Por fim, agradeço ao professor Daniel Costa, da Universidade Federal de Uberlândia, por ter feito a leitura de parte da tradução e sugerido alguns ajustes. Também à Jaqueline Prestes, da Universidade Federal de Rondônia, por sua leitura atenciosa da tradução e pelas indicações de ajustes e acréscimos ao texto traduzido e, por último, gostaria de agradecer à Raquel Ishii, da Universidade Federal do Acre, pela leitura e pelo cotejo entre as línguas trabalhadas neste livro.

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Sumário

Apresentação..............................................................................................13 Notas do Tradutor sobre o Autor e a Obra..................................................17 Introdução.................................................................................................27 Prefácio......................................................................................................31 Capítulo I – Remate de Males...................................................................33 Capítulo II – A Vida Política e Social em Remate de Males.......................49 Capítulo III – Outros Incidentes Durante Minha Temporada em Remate de Males................................................................57 Capítulo IV – Viagem Rio Itecoaí Acima...................................................63 Capítulo V – Seringal Floresta: A Vida Entre os Seringueiros.....................81 Capítulo VI – Marcha Funesta na Mata...................................................109 Capítulo VII – No Trágico Tambo nº 9...................................................117 Capítulo VIII – O que Aconteceu na Mata..............................................123 Capítulo IX – Entre os Canibais Mangeroma..........................................131 Capítulo X – A Batalha Entre os Mageroma e os Peruanos......................147

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Apresentação

Nenhuma leitura deveria tentar generalizar a ponto de apagar a identidade de um texto, um autor ou um movimento particular. Da mesma forma, ela deveria admitir que o que era, ou parecia ser, certo para uma determinada obra ou autor pode ter se tornado discutível para Cultura e Imperialismo – Edward Said

Não sendo “homem de ciência” ou um “explorador comissionado”, Algot Lange, um sueco radicado nos Estados Unidos, registra em seu relato de viagem ao rio Amazonas e afluentes a sua aventura em terras “remotas”, bem ao estilo testemunhal sobre “acontecimentos fantásticos” como o seu convívio com “índios canibais”, a morte de uma anaconda com tiro de pistola ou os acessos de febre malárica que quase lhe tiraram a vida. Uma “aventura” que teve lugar em 1910 e que culminou com a publicação da obra In the Amazon jungle: adventures in remote parts of the Upper Amazon river, including a sojourn among cannibal indians, no ano de 1912, contendo 86 fotografias do autor. Agora, sob o título de Aventuras de um sueco nos confins do Alto Amazonas, incluindo uma temporada entre índios canibais, a obra de Lange vem a público em sua primeira versão em língua portuguesa, traduzida sob os cuidados do professor Hélio Rocha, da Universidade Federal de Rondônia, cuja experiência em tradução de relatos de viagem tem nos possibilitado contato com obras significativas que versam sobre a “Amazônia”. Graças ao empenho de seu tradutor, o grande público poderá atribuir sentidos ao texto de Algot Lange, especialmente pela escolha de Hélio Rocha em utilizar expressões e palavras reconhecidas no mundo amazônico e em outras partes do Brasil, tais como “jabá”, “embira”, “picada”, “emborcar”, “coriscar”, “rebuliço”, “caroçuda”, “olhar de través”, “a torto e a direito”, dentre outras. Certamente, a forma como nós, residentes em uma região de uma ampla diversidade cultural como a “Amazônia”, recepcionamos a obra de Lange na atualidade difere bastante, após 105 anos da edição em língua inglesa, do

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modo como a obra foi recepcionada pelo público norte-americano, no início do século XX. Lange narra de maneira instigante, cativante e, às vezes, bem humorada os acontecimentos vividos no povoado de Remate dos Males, no Seringal Floresta e na aldeia dos Mangeroma. Contudo, o que o viajante também faz é reproduzir o discurso da conquista de terras distantes, o discurso da colonização e o discurso etnocêntrico, ao passo que descreve o que compreende como “terras ermas”, “desconhecidas” ou “exóticas”, além de reafirmar em vários momentos o que considera como “primitivo” e “inferior”. Não são poucas as passagens de seu texto em que se percebe o olhar direcionado do viajante, enquadrando as práticas culturais de homens e mulheres nos referenciais de mundo reduzidos a dois axiomas que parecem “guiar a marcha da civilização ocidental: o trabalho e a propriedade”1, ao passo que marginaliza modos de vida com os quais se depara, estabelecendo a lógica do “mercado” como a única filosofia de vida possível, da qual seringueiros e o mundo da floresta não fazem parte. Nas palavras do próprio Lange: A essa hora da manhã em Nova York (...), milhares de pessoas estão entrando nos metrôs quentes e inúmeros trabalhadores estão chegando aos seus escritórios e lojas abafadas para tomar seus lugares na enorme maquinaria que mantém o mundo em movimento. Na mesma hora, um punhado de seringueiros está passando em frente à casa em que estou hospedado, de volta de sua primeira jornada nas estradas, depois de fazerem o corte nas seringueiras, e rumo às suas casas para tomarem seu café da manhã. Aqui, nos confins do Brasil, não há metrôs e nenhuma preocupação com o “mercado”, nem mesmo qualquer preocupação com o amanhã. A natureza produz as seringueiras e o “patrão” as ferramentas para o trabalho; a filosofia dos trabalhadores não passa disso.

Solidão, apatia, melancolia, ausência de perspectiva e a sensação de que cidades amazônicas estão fora do tempo, são as emoções escritas por Lange como o “reflexo da realidade” amazônica, como se seu testemunho “retratasse” sua experiência tal como ocorreu sem a mediação da linguagem, ou seja, sem

1 Barreiro, J.C. Imaginário e viajantes no Brasil do século XIX: cultura e cotidiano, tradição e resistência. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 14


Apresentação

a dimensão dos valores, das relações de poder, da preexistência de discursos colonialistas sobre a “Amazônia”. Ao recuperar-se, depois de ter contraído malária, enquanto um garoto e um “negro grande e pesado” faleceram da mesma doença, Algot Lange supõe que sua melhora deveu-se ou porque não contraíra uma febre fatal ou por conta da “vitalidade maior da raça branca”. Reproduzindo a linha do mais simples e puro determinismo geográfico, Lange atribui à floresta o motivo pelo qual homens, em especial os brancos, são metamorfoseados pelas agruras que se obrigam a enfrentar naquelas localidades sendo que suas características físicas são acentuadas como o resultado do contato com a “terra selvagem”. Sobre a dieta da população com quem conviveu, Lange “registra” sabores desagradáveis para o que ele compreende como um “paladar civilizado”. A farinha assemelha-se a serragem e o charque é “um alimento tão gostoso e suculento quanto uma bota de equitação”. Quanto à moradia, o viajante observa com espanto que tudo em Remate dos Males, da igreja ao chiqueiro, é construído primitivamente em cima de barrotes. E conclui: “Na verdade, se há alguma coisa sobre isso na teoria da evolução, não serão necessárias muitas gerações para que seus habitantes e animais domésticos nasçam com pernas de pau.” O viajante ainda dedica muitas passagens para a descrição das mulheres e de seu perfil selvagem e carente de civilização. Suas roupas, seu papel social e seus dentes são alvo da pena de Lange que, vez ou outra, nos surpreende com observações como esta: Na verdade, a principal tarefa da mulher brasileira é a lavagem de roupa. (...) Há menos mulheres do que homens em Remate de Males; e nenhuma delas é bonita. Em sua maioria são indígenas ou brasileiras da província do Ceará, com a pele, cabelo e olhos muito escuros e dentes proeminentes como dentes de tubarão. Andam descalças. Ali você encontra todas as incongruências típicas de uma raça dando o primeiro passo rumo à civilização. As mulheres mostram, com suas vestimentas, como os homens bem pagos em pródiga extravagância, o lado selvagem persistente em sua natureza.

Além das generalizações produzidas sobre a mulher de Remate dos Males, Lange nos apresenta sua visão sobre a mulher, seja indígena como as Mageroma 15


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com que conviveu, sejam as mulheres compreendidas por ele como civilizadas, como sendo “escravas da moda”, com nenhuma participação social relevante. Diante da narrativa “civilizatória” de Lange, cabe a nós, então, ao lermos este relato, decidirmos se tomaremos a posição de fato tomada de que nos fala Edward Said2 ou se reforçaremos suas sínteses e conclusões sobre a “realidade amazônica”. Ou seja, se leremos Lange como parte de uma literatura de viagem em estreita conexão com a expansão e manutenção de projetos imperiais/coloniais e como forma de elaborar a crítica e pensar alternativas de desconstrução dessa “visão consolidada” ou se “consumiremos” a obra sem a devida reflexão para que se continue a reproduzir estereótipos, permitindo que homens e mulheres continuem sujeitos a classificações e catalogações racistas e que os problemas sociais dessas localidades sejam entendidos como naturais ou como consequência de relações entre grupos humanos inferiores. Aos leitores de Algot Lange, em especial aos “amazônidas”, fica o convite a uma “leitura em contraponto”, ainda acompanhando Edward Said. Contraposição a uma leitura que se constitua de “apologia imperialista” e que seja atenta para que não nos deixemos seduzir pelo viajante e por suas peripécias - registradas, imaginadas, construídas, hiperbolizadas, sintetizadas, ficcionalizadas -, a ponto de reproduzirmos o discurso colonizador do viajante que insiste em manter a relação hierarquizante entre civilizados e não civilizados. Raquel Alves Ishii Centro de Educação, Letras e Artes – Universidade Federal do Acre

2 Said, E. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia das

Letras, 1995. 16


Notas do Tradutor sobre o Autor e a Obra

Nesta província de Machifaro que eu vi se podem povoar cinco ou seis vilas mui ricas, porque sem dúvida há nela muito ouro (…). Esta terra está entre o rio Prata e o Brasil pela terra adentro. Por esta terra vem o rio grande das Amazonas, e na paragem desta terra tem este rio muitas ilhas no rio e bem povoadas e gente bem luzidia. E da outra banda do rio há muita povoação da mesma gente, de maneira que de uma banda e de outra está bem povoado. (…) Por este rio há de prover esta terra, porque podem ir navios por ele até onde se poderá povoar uma vila que seja porto e escala de toda esta terra. (Trecho da carta de Diogo Nunes ao rei D. João III de Portugal, Sertões de bárbaros – Auxiliomar Ugarte).

Além das expedições europeias que partiram dos Andes, a pé e a cavalo, e adentraram o território correspondente, hoje, à Amazônia brasileira3, foi por vias aquíferas que – Vicente Yañez Pinzon, Diogo Nunes, Walter Raleigh, Francisco de Orellana, Gaspar de Carvajal, La Condamine, Alexandre Rodrigues Ferreira, Alexander Humboldt e Bonpland, Jean-Baptist Debret, Johann Moritz Rugendas, Maria Graham, Richard Spruce, Spix e Martius, Alfred Wallace, Clement Markham, Paul Marcoy, Luíz e Elizabeth Agassiz, Henry Bates, Lewis Herndon e Lardner Gibbon, William Chandless, Samuel Fritz, Ermano Stradelli, Theodor Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Margareth Mee, Walter Hardenburg, Thomas Whiffen, Eugéne Robuchon, Sidney Paternost, Henry Tomlinson, Theodore Roosevelt, Joseph Woodroffe, Lévi Strauss e muitos outros viajantes, fossem esses “sujeitos enunciadores”, aventureiros, exploradores, naturalistas, etnólogos, antropólogos, geógrafos, artistas, mitólogos, jornalistas etc. – deram início à construção, através de suas traduções/representações, ao que chamamos Amazônia. Embalados, mas não apenas, pelo mercantilismo, viajaram do 3 Ver Sertões de bárbaros: o mundo natural e as sociedades indígenas da Amazônia na visão dos cronistas ibéricos (séculos XVI – XVII), de Auxiliomar Ugarte. Manaus: Valer, 2009. 17


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Norte para o Sul do globo e, imbuídos de certo espírito altruísta, contribuíram, sobremaneira, com o imaginário que temos da América do Sul, em especial, da Amazônia ou, Amazônias, pois além de ser impossível pensá-la no singular e no diminutivo, devemos ter em mente as Amazônias que se interpenetram historicamente. Assim é que, depois que essa Esfinge foi sendo “gerada” por esses primeiros exploradores e viajantes estrangeiros e apresentada ao Norte, seja em forma de relatos, de imagens ou de produtos da fauna e flora, bem como de artefatos culturais e outros “troféus”, muitos leitores dessas representações sígnicas e iconográficas, recheadas de superlativos, começaram a sonhar com essa Boiuna e, em muitos casos, a amá-la de forma platônica. Visitar o rio Amazonas/Solimões4 – “o rio dos meus sonhos”, na visão idílica de H. M. Tomlinson, ou na vivacidade de Bates e Wallace, “ambos ávidos para apreciar as belezas de um país tropical” – é a tônica de muitos dos viajantes europeus ou estadunidenses, como é o caso do sueco Algot Lange, que aos 28 anos de idade viajou ao Alto Solimões e alguns de seus afluentes e, dessas viagens de exploração/aventuras, escreveu duas obras: In the Amazon jungle (1912) e The lower Amazon (1914), ambas publicadas em Nova York com uma apresentação do explorador e escritor norte-americano Frederick Samuel Dalllenbaugh, amigo de Lange. In the Amazon jungle: adventures in remote parts of the upper Amazon river, including a sojourn among cannibal indians (1912) é o relato da primeira viagem de Lange à Amazônia brasileira, no início de 1910. O rio Amazonas/Solimões foi a estrada principal por onde esse aventureiro solitário e sonhador viajou em busca de emoções, glória, riqueza e fincou os pés no “túmulo do homem branco”, na região do Vale do Javari. É da confluência do rio Itecoaí, afluente do Javari, num vilarejo de palafitas chamado Remate de Males, que a narrativa de Lange se inicia. Registra o próprio viajante em sua narrativa de cunho dramático e, muitas vezes aterrorizante, que, Finalmente, depois de mais de 47 dias de viagem, eu chegava à fronteira do Brasil com o Peru e observava a fumaça do navio a vapor ainda dissipando-se preguiçosamente sobre a imensidão da selva. Para mim, mais do que um resto de fumaça, era minha última ligação com o mundo civilizado. Quando a fumaça se 4 De acordo com Samuel Benchimol, o nome Solimões advém dos índios Sarimáguas, que em português, Sorimão, no plural, Sorimões, de onde o Alto Amazonas tomou o nome de Solimões. Ver a obra Amazônia, formação social e cultural. Manaus: Valer, 2009. p. 52. 18


Notas do Tradutor sobre o Autor e a Obra

dissipou completamente, voltei-me para o vilarejo e caminhei no lamaçal rumo a uma pequena palafita. Foi no final de janeiro de 1910 que me aproximei daquela palafita fincada em terra firme – porque as águas estavam inundando tudo. Por trás de mim estava o rio Amazonas, à direita o rio Javari, enquanto a cabana em que eu iria me hospedar ficava em Esperança, posto oficial na fronteira do Brasil com o Peru, do outro lado do rio, com uma faixa contínua de mata fechada, pantanosa, imensa e desoladora à visão do espectador.

Algot Lange (1884-?), que ao nascer em Estocolmo (Suécia), foi registrado como Ake Mortimer Lange, assumiu o nome do pai ao migrar para os Estados Unidos, em 1904. Era filho de um casal de artistas. O pai – Algot Lange (18501904) – era um cantor de ópera, e a mãe era a pianista e escritora finlandesa, Ina Forstén (1856-1930), nascida em Helsinki, de acordo com o Historical Dictionary of the Music and Musician of Finland (1997), de Ruth-Esther Hilila e Barbara Blanchard Hong. Conforme esse verbete do referido dicionário, Ina Forstén começou a estudar música em Helsinki. Em Moscou estudou com Nikolai Rubinstein e Tchaikovsky e em Berlim com Carl Taussig. Em 1876 casou-se com o sueco Algot Lange e em 1885 tornou-se pianista da corte dinamarquesa e foi professora de piano das filhas do rei Frederico VII da Dinamarca. Participou de concertos como pianista e harpista nos países nórdicos; fez recitais e escreveu sobre música sob o pseudônimo Daniel Sten. No artigo “Katú Kama-rãh: amizade, imagem e texto segundo Algot Lange”, de autoria de Raphael Fonseca, publicado pela Revista 19&20, volume X, número 1, janeiro/junho, Rio de Janeiro, 2015, há alguns dados sobre Algot Lange. A partir de uma nota publicada no New York Times (28/09/1912), intitulada Calls America a great school, Fonseca (2015) esclarece que tal notícia versa sobre o encontro do brasileiro José Carlos de Carvalho, então almirante da Marinha Brasileira, com o jovem explorador e escritor sueco Algot Lange, durante a Terceira Feira Internacional da Borracha, realizada em Nova York e de cuja comissão organizadora Carvalho era vice-presidente. Segundo a matéria, Lange faria uma expedição na região do baixo Rio Amazonas com financiamento da Universidade da Pensilvânia e com interesse do governo brasileiro no que diz respeito ao registro biológico e etnográfico de uma área 19


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supostamente “não explorada pelo homem branco” até então (FONSECA, 2015).

Durante a entrevista, o almirante brasileiro afirma que, “os Estados Unidos são um grande país” e que estava falando a pouco com o senhor Lange e concordamos que se pudéssemos entusiasmar os brasileiros com um pouco do espírito de Nova York, logo convenceríamos o mundo de nossa importância como uma nação comercial. Os Estados Unidos são uma escola formidável onde os estudantes brasileiros mais brilhantes podem aprender mais do que nunca aprenderam antes. Eu já estive em todo o mundo, mas vocês fazem as coisas de modo diferente do que se faz em qualquer outro lugar. Portanto, eu digo que todo homem, não importa o quão estudado seja, pode obter uma parte maravilhosa de conhecimento adicional nos Estados Unidos. (Trecho traduzido do jornal New York Times).

Julio Frederico Sorzano, José Carlos de Carvalho (Almirante da Marinha Brasileira), e o autor deste livro Algot Lange em NY, 1915. (Fonte: Flickr Commons project, 2011). 20


Notas do Tradutor sobre o Autor e a Obra

Raphael Fonseca esclarece que “na inexistência de livros ou pesquisas baseadas nas narrativas de Lange”, encontrou uma nota datada de 2008, no blog da New York Public Library e que, após estabelecer contato com a instituição, rastreou um pouco da trajetória do escritor e explorador sueco. Assim, afirma que Lange naturalizou-se cidadão estadunidense em 1915 e, que, nessa data, retornou ao Pará, no Brasil, e lá permaneceu até 1917. “Em 1923”, escreve Fonseca, há em seu passaporte um pedido de autorização para viajar ao Japão, China e Filipinas. Em 1927, há o registro de seu retorno de Marseille para os Estados Unidos. Por fim, apenas se sabe que aos 57 anos, em 1941, estava vivo, residia em Nova York, identificava-se como “desempregado” em catalogação dos homens aptos para participar da Segunda Guerra Mundial (FONSECA, 2015).

Voltando ao primeiro livro de Algot Lange (1912), devo pontuar que há pouca referência em língua portuguesa, diria mesmo que nenhuma, com exceção do artigo de Fonseca (2015) sobre Lange. Refiro-me à análise crítica da obra de Lange elaborada por algum literato ou crítico brasileiro. Em língua inglesa, encontrei dois textos sobre In the Amazon jungle (1912); um de Victor Weiss e outro de Oriana Lerner, publicados no Journal of Postcolonial Cultures and Societies (2011). Ambos fazem uma breve análise do relato da viagem de Lange às cabeceiras do rio Amazonas, no território brasileiro. Muitas das aventuras do relato desse sueco pelos rios Amazonas, Javari, Itecoaí, Branco e igarapés e lagos são deveras interessantes e questionáveis para um caboclo da Amazônia, mesmo tendo se passado mais de um século que esses retratos tenham sido produzidos pelo explorador. Interessantes porque mostram o encontro do homem ocidental com o caboclo da Amazônia e o “homem selvagem”, questionáveis porque reapresentam os habitantes da região, suas culturas e seus modos de vida, em sua maioria, como aquém de uma cultura supostamente ideal e imutável. Da diversidade de estrutura arquitetônica das casas ao alimento do amazônida, o preconceito e a estereotipia dão a tônica do relato de aventuras de Lange. De fato, o viajante oscila entre o seu imaginário construído nos moldes europeu/estadunidense e o amazônico, numa completa assimetria entre esses dois mundos e culturas distintas. Claro, a lente utilizada por ele é a europeia e, às vezes, a norte-americana, país adotado por ele a partir de 1904, como sua Patria Mater.

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As comparações feitas por Lange de algumas personagens da vila de Remate de Males, onde residiu por cinco meses, antes de subir o rio Itecoaí e morar no seringal Floresta, como também com os índios Mangeroma, ou Mayoruna, são retiradas da literatura inglesa, comprovando, assim, seu conhecimento literário de parte do Reino Unido. Seja o exemplo: O gerente dos Correios é um cavalheiro de pijama, cuja aparência é calculada intencionalmente para infundir terror às almas dos humildes seringueiros, que vão aos Correios de tempos em tempos. Em cada uma dessas ocasiões, vi esse importante cavalheiro, que tinha a palavra coronel prefixada ao seu nome, João Silva de Costa Cabral, levantar as mãos em absoluto desespero ao ser perturbado, e lentamente caminhar até sua escrivaninha. Com grande orgulho, esse “Pooh-Bah” afixara uma grande placa acima da porta de entrada.

Alude o viajante ao personagem da comédia O Mikado ou A cidade de Tipitu, de Gilbert e Sullivan. Pooh Bah é alguém arrogante, que acredita ter influência e poder. Na cultura brasileira, Pooh Bah seria, provavelmente, o Zé Ninguém, João Ninguém e por aí vai. Aludindo a esse personagem, Lange satiriza o chefe dos correios em Remate de Males. Mas essas comparações fazem parte do espírito crítico de Lange, como o leitor terá a oportunidade para verificar ao ler seu relato. Os caboclos são os half-breeds, como escreveu Lange, que vivem num mundo completamente diferente do seu, mas não incompreensível para esse homem ocidental. Observando a vida cotidiana desses “filhos da floresta”, ele absorve grande parte do imaginário local e, revigorado por essas formas imagéticas, que às vezes são vistas como supersticiosas, outras vezes como forças sobrenaturais para enfrentar as adversidades próprias da região, integra-se ao mundo social, político e mitológico dos caboclos de Remate de Males, vilarejo de palafitas, às margens do Itecoaí, na confluência do Javari, no Alto Solimões. É dessa vila - que alguns anos depois da visita de Lange foi abandonada pelos moradores por não ser uma área de terra firme, e que, portanto, alagava todos os anos durante as cheias dos rios, e assim os moradores decidiram se mudar para uma área de terra firme alguns quilômetros Itecoaí acima, na atualidade a sede do município de Atalaia do Norte, no estado do Amazonas - que Lange partiu rio Itecoaí acima em busca de aventuras. Antes, porém, escreveu sobre o

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Notas do Tradutor sobre o Autor e a Obra

surgimento da vila, ou seja, sobre a “fundação” desse último local da “civilização”. De fato, escreve o viajante, Remate de Males ainda não constava no mapa da região. Era uma pequena vila de palafitas; a última “chama” da civilização nas cabeceiras do rio Amazonas. Quando a temporada chuvosa expulsava da mata todas as criaturas que não podiam se refugiar ali, os seringueiros abandonavam sua produção ainda em fase bruta e se reuniam na vila para usufruir o melhor que a vida podia lhes oferecer. Nessas ocasiões, a população aumentava para cerca de 500 almas, a maior parte de brasileiros, índios domesticados ou caboclos.

Como muitas outras cidades da região, Rio Branco, capital do Acre, por exemplo, Remate de Males nasceu da força e coragem de um grupo de exploradores, que procuravam seringueiras e pés de cauchos. “Há cerca de trinta anos”, afirma o sueco viajante em seu relato, um explorador, com sua família e empregados, num total de vinte pessoas, chegaram a esse local perto da confluência dos rios Javari e Itecoaí, próximo à linha do equador. Chegaram pelo único caminho possível, o rio, e decidiram se estabelecer ali. Logo a variedade infinita de destruidores da vida humana, que abundavam na região do Alto Amazonas, começou seu trabalho na pequena comunidade, reduzindo para quatro o número de pessoas e ameaçando eliminá-las por completo. Mas o explorador, firme em seu propósito, conseguiu dar à humanidade uma base sólida naquela imensidão de selva. Em memória ao que ele e outros colonizadores enfrentaram, a vila recebeu sarcasticamente o nome de Remate de Males.

Lange contribui com a história do município de Atalaia do Norte e Benjamin Constant; contribui também com os estudos etnográficos do Vale do Javari, pois passou cinco semanas com os Mayoruna, que afirma serem eles, à época, índios canibais, como o leitor terá a oportunidade para ler e fazer suas reflexões sobre essa prática. Alexandre Rodrigues Ferreira, em sua Viagem filosófica (2008), faz referência a esse grupo indígena, os Mangeroma, ou Mayoruna, a partir de um texto de Bernardo Pereira de Berredo. De acordo com Ferreira, [Os Cambebas ou Omáguas] conservavam pela banda do Sul uma contínua guerra com várias províncias, sendo a principal, 23


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a dos Mayorunas, nação tão poderosa, que não somente se defendia deles pela parte do rio; mas de outras muitas, pela de terra; e na do Norte não encontravam menos oposição nos índios Tikunas, porém hoje se acham quase todos domesticados (FERREIRA, 2008, p. 199).

Esta assertiva de que os Mayoruna formavam uma nação poderosa pode comprovar as descrições das armas usadas por eles numa batalha contra os peruanos caucheiros, no último capítulo do relato de Lange. Ela também serve para comprovar que esse povo já habitava aquela região fronteiriça do Brasil com o Peru há muito tempo, porque Pedro Teixeira, no ano de 1639, de acordo com Ferreira (2008), registrou que se achavam naquelas paragens muitas nações indígenas, entre elas, os Mayoruna ou, como escreve Lange, os Mangeroma. Paul Marcoy, quando de sua descida pelo rio Amazonas, na segunda metade do século XIX, também faz menção aos Mayoruna em seu relato Viagem pelo rio Amazonas (2006). De acordo com Marcoy, “O Javary-Açu, cuja direção oeste-sudeste é indicada na embocadura, não tem nenhuma ilha ao longo de todo o seu curso. Sua margem esquerda é habitada pelos índios Mayoruna e Maraua” (MARCOY, 2006, p. 61). Marcoy atravessou do Pacífico ao Atlântico por via terrestre nos Andes e por via fluvial, descendo pelo rio Marañon/Amazonas, o inverso da viagem que Lange empreendeu cerca de sessenta anos depois, portanto, já no século XX. Samuel Benchimol, em sua obra monumental, Amazônia: formação social e cultural (2009), partindo de uma relação ipsis litteris-verbis dos povos indígenas, elaborada pelo barão Frederico José de Sant’Anna Nery, publicada em Paris em 1884, também menciona os Mangeroma. De acordo com Benchimol: Maiurunas, Maerunas, Maxorunas, Maxurunas, Majorunas, Mangeronas, índios atuais do Jutaí, do Javari e de São Paulo de Olivença. Usam cabelos longos e tinham uma tonsura no meio da cabeça; nariz e lábios furados; no lábio inferior e nas orelhas, usam conchas; nos cantos da boca, penas de arara; passavam por antropófagos e eram acusados de comer não somente os prisioneiros inimigos, mas também os velhos e doentes da tribo. (BENCHIMOL, 2009, p. 63).

Partindo de Manaus, Lange chega a Remate de Males, “há semanas e semanas de viagem de barco do ponto de civilização mais próximo, rio abaixo”. Sombria como a vila pareceu ao viajante, Lange procurou elaborar um retrato da 24


Notas do Tradutor sobre o Autor e a Obra

vila. Assim, escreve o explorador sueco, “se eu conseguir elaborar uma descrição adequada nestas páginas será um monumento ao instinto de conquista do homem, bem como de sua habilidade e coragem”. A seu ver, jamais outros pioneiros enfrentaram uma batalha mais difícil do que esses brasileiros, enfiando o pé no “túmulo do homem branco”, como é chamada a região do Vale do Javari, na América do Sul, enquanto enfrentavam inúmeros perigos. O mercado mundial precisava de borracha e o seu suprimento lhes garantia, a cada ano, salários elevados, mediante alguns meses de trabalho na mata.

É a partir desse ponto do relato que Lange elabora sua primeira reflexão sobre a produção da borracha e o mercado internacional. Dentre tantos outros assuntos abordados em seu relato de aventuras na selva amazônica, a caça, a pesca, as práticas religiosas, as diversões, o trabalho, as hierarquizações dos diversos grupos de pessoas e suas lutas cotidianas pela sobrevivência, o encontro do homem ocidental com o selvagem faz-nos pensar o que é “civilização”, ou o que significa ser “civilizado”. Ele mesmo, o viajante, tenta, de quando em vez, fazer essas reflexões, em especial quando está sendo alimentado e cuidado pelos Mayoruna, deitado numa rede de fibras, enquanto a malária corria em seu sangue. Para que o leitor possa deliciar-se ou, no mínimo, inquietar-se com essas páginas quentes e douradas do relato langeriano, recomendo a leitura tanto para amazônidas viajantes quanto para os menos corajosos das viagens pelos rios lendários e terras de matas míticas, antes que a viagem se torne impossível devido aos desastres causados ao meio ambiente amazônico.

Referências BATES, H.W. Um naturalista no rio Amazonas. Trad. Regina Régis Junqueira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979. BENCHIMOL, S. Amazônia: formação social e cultural. Manaus: Valer, 2009. FERREIRA, A.R. Viagem filosófica. Manaus: Valer, 2008. FONSECA, R. Katú Kama-rãh: amizade, imagem e texto segundo Algot Lange. In: 19&20, Rio de Janeiro, v. X, n. 1, jan./jun. 2015. Disponível em http://www.dezenovevinte.net/ uah1/rf.htm. JOBIM, A. Panoramas Amazônicos. vol. VI - Benjamin Constant. Manaus: Moura Tipografia Fênix, 1943.

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LERNER, O. Algot Lange’s In the Amazon Jungle: Adventures in remote parts of the upper Amazon River, including a sojourn among cannibal Indians. 2011. Disponivel em: https:// www.yumpu.com/en/document/view/39407088/the-adventures-of-algot-lange-jpcs MARCOY, P. Viagem pelo rio Amazonas. Trad. Antonio Porro. Manaus: EDUA, 2006. TOMLINSON, H.M. O mar e a selva: relato de um inglês na Amazônia. Trad. Hélio Rocha. Jundiaí: Paco Editorial, 2014. UGARTE, A. Sertões de bárbaros: o mundo natural e as sociedades indígenas na visão dos cronistas ibéricos dos séculos XVI – XVII. Manaus: Valer, 2009. WEISS, V. The adventures of Algot Lange. In: Journal of Postcolonial Cultures and Societies. 2011. Disponivel em: https://www.yumpu.com/en/document/view/39407088/the-adventuresof-algot-lange-jpcs

Hélio Rocha Tabatinga, Benjamin Constant e Atalaia do Norte/AM, janeiro de 2017

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Introdução Quando Algot Lange disse-me que viajaria para as cabeceiras do rio Amazonas, eu fiquei particularmente interessado, porque há alguns anos tinha tido um grande desejo de conhecer essa região. Eu sabia que Lange encontraria muitas dificuldades, mas nunca poderia ter previsto as aventuras a que ele, efetivamente, sobreviveu. Ele começou a viagem em ótima condição: leve, forte e vigorosa. Quando o vi novamente em Nova York, depois que voltou, mais ou menos um ano mais tarde, ele estava esquelético, destruído pela febre malárica, andava com muita dificuldade e, na verdade, estava incapaz de manter-se ereto. Após algumas semanas internado num hospital seguindo uma dieta diária de quinino, ele melhorou, mas mesmo depois de meses de recuperação, ele ainda não havia voltado à excelência do seu estado físico anterior. Muitos exploradores viveram experiências semelhantes às relatadas neste livro, mas, no que diz respeito à febre e aos canibais, poucos deles sobreviveram para contar a história. As suas conversas com canibais têm se limitado, infelizmente, a questões demasiadamente particulares para serem disponibilizadas para publicação neste mundo; mas Algot Lange, felizmente, não só preveniu-se contra uma intimidade calamitosa, mas ainda foi autorizado a acompanhar as preparações culinárias para a degustação de indivíduos menos favorecidos; e ele mesmo poderia ter se juntado ao banquete antropofágico, se possuísse estômago para isso. Esses bons amigos de Lange, os Mangeroma, mantiveram-no vivo quando o encontraram quase morto; e, por mais surpreendente que possa parecer, eles não o salvaram para seus próprios interesses antropofágicos, mas apenas para que ele pudesse retornar ao seu povo. Soa um tanto quanto paradoxal que os Mangeroma tenham amado um estranho a ponto de poupá-lo com uma bondade suspeita, e amado a outros a ponto de transformá-los em iguarias. A explicação provável é que os Mangeroma eram o oposto de certo jovem estrangeiro com pouca fluência em inglês que, em Nova York, quando lhe oferecerem uma fruta que nunca 27


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tinha visto antes, respondeu: “Obrigado, como apenas meus conhecidos” – os Mangeroma comem apenas seus inimigos. A narrativa de Lange sobre o seu convívio com esse povo, suas armas, costumes, formas de guerras e métodos de cozer os humanos cativos, etc., constitui uma das partes especialmente interessantes deste livro, e é, ao mesmo tempo, uma contribuição valiosa para a etnologia da região ocidental do Amazonas (ou Marañon), onde vivem numerosas tribos pouco conhecidas do homem branco. Particularmente notável é sua descrição do maravilhoso veneno wourahli (urari), do seu extraordinário efeito e do modus operandi de seu preparo; esse veneno é bastante usado pelas tribos da Amazônia, mas não é produzido por todas elas. Lange também descreve os arcos e flechas, as bordunas (tacapes) de guerra e uma arma extremamente científica – a zarabatana. Ele teve a sorte de tirar uma fotografia de um Mangeroma no momento em que usava essa arma. É claro que uma grande habilidade é necessária para o uso efetivo dessa simples, mas terrível arma; e, assim como para o uso do bumerangue ou do laço, a prática começa na infância. A região dessas experiências quase fatais para Lange – o Vale do Javari (na fronteira do Brasil com o Peru) – é uma das mais incríveis e desconhecidas partes do continente sul-americano. Ela está repleta de obstáculos do tipo mais intransponível à exploração. A região é de planície, cheia de chavascais, com chuvas torrenciais e seus rios alagam anualmente, como a maior parte da bacia amazônica, a ponto de, na época das cheias, eles não conhecerem limites. Como é uma região que fica bem perto da linha do equador, o calor é intenso e constante, opressivo até mesmo para o nativo. A mata – localizada em qualquer parte que não seja rio – é tão fechada que é extremamente difícil ter progresso nas marchas, e cresce de modo semelhante ao de uma enorme estufa. Há não apenas obstruções no caminho, como arbustos, trepadeiras e cipós semelhantes a cordas, mas o chão da mata não é outra coisa senão um tapete de raízes entrelaçadas. A mata também é triste e sombria. Para tirar uma fotografia nessas circunstâncias são necessários de três a cinco minutos de exposição. Não se vê uma pedra, nem mesmo um seixo, em qualquer lugar que seja. Há muitas doenças, especialmente nos igarapés. O incurável beribéri e uma grande variedade de febres reivindicam o primeiro lugar como negociantes da morte, matando o viajante com uma facilidade terrível. Em segundo lugar, há uma miríade de insetos e répteis, jacarés e aranhas enormes, que se alimentam de aves e cobras de muitas espécies. As serpentes, tanto as venenosas quanto 28


Introdução

as não venenosas, encontram ali condições bem ao seu gosto. A surucucu vive nos lugares mais abertos e há muitas que são venenosas, mas a mais aterradora, embora não seja um réptil que dê picada, é a que vive nas águas – a sucuri (Eunectes murinus) ou anaconda. Essa cobra vive até uma idade avançada e atinge um tamanho quase inacreditável. Como geralmente se alimenta durante a noite, ela escapa ao observador comum, e o homem branco, até agora, ainda não viu os maiores espécimes relatados, embora dez metros seja um comprimento aceito. Henry Walter Bates, um naturalista inglês, afirma em seu relato que ouviu falar de sucuris com quase treze metros de comprimento. Não é nenhuma surpresa que Algot Lange tenha se deparado com sucuris na região selvagem por onde andou e, provavelmente, de proporções ainda maiores, um monstro horrível, que devido ao seu tamanho compara-se às feras gigantes dos tempos antediluvianos. Dizem que a sucurí é capaz de engolir animais inteiros do tamanho de uma cabra ou um burro, ou até mesmo maiores. E o citado naturalista conta a história de um menino de dez anos de idade, filho de seu vizinho, que, tomando conta da canoa enquanto seu pai entrava na mata, em plena luz do dia, e brincando à sombra das árvores, foi furtivamente envolvido por um desses monstros. Os gritos do garoto fizeram com que seu pai o socorresse a tempo. Como as nascentes do rio Javari ficam na beira das inclinadas encostas orientais da cordilheira peruana, onde um dia viveu o rico e poderoso povo Inca, dono de grandes quantidades de ouro puro, obtido das ricas minas conhecidas, não é, mais uma vez, surpreendente, que Algot Lange tenha tropeçado num rico depósito do metal precioso em formato singular. A geologia da região é desconhecida e a origem do ouro que o Sr. Lange encontrou não pode, atualmente, ser determinada. Por causa do imenso valor da borracha, o ouro atrai menos atenção do que atrairia em outro país. A indústria da borracha é grande e milhares de seringueiras selvagens são localizadas e riscadas. Como as seringueiras são primeiramente encontradas perto dos rios, a busca por essas árvores leva o extrativista cada vez mais para o interior da mata. De tempos em tempos, os ricos barões da borracha enviam expedições em busca de novas seringueiras, e depois de sua estadia em Remate de Males e no Seringal Floresta, completamente dominados por esses interesses, o Sr. Lange acompanhou uma dessas expedições rumo ao desconhecido, com resultados extraordinários descritos de modo simples, mas dramático nas páginas seguintes, que recomendo muito cordialmente, tanto para

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o explorador experiente quanto para o sedentĂĄrio, como uma narrativa incomum e excitante de aventuras. Frederick S. Dallenbaugh5 Nova York, 24 de novembro de 1911

5 Frederick Samuel Dellenbaugh (1853-1935), escritor, pintor e explorador norteamericano. Publicou as obras North Americans of yesterday (1901) e Romance of the Colorado River (1902). (N. T). 30


Prefácio É difícil ou até mesmo impossível que haja um povo mais hospitaleiro e generoso do que o brasileiro. As lembranças da minha viagem ao Alto Solimões, em todos os detalhes, embora essas experiências nem sempre tenham sido agradáveis, suscitaram em mim o mais profundo sentimento de gratidão aos brasileiros, cuja generosidade ficará para sempre em minha memória, seja devido ao tratamento bondoso ou à recepção calorosa a mim concedidos. Existe uma palavra na língua portuguesa que, melhor do que qualquer outra, descreve o sentimento com o qual o viajante se lembra de sua temporada no Brasil. A palavra saudade é carregada de sentimentos e, apesar de não ser possível uma tradução literal que, de fato, transmita todo o seu significado, o termo se aproxima de “doces recordações do passado”. Embora haja certa limitação em relação aos agradecimentos que expresso àqueles que me trataram de forma amável, não devo omitir minha eterna gratidão a três pessoas, pois sem sua compreensão e ajuda valiosa ter-me-ia sido impossível concluir este livro. Primeiramente, meus agradecimentos ao respeitável Coronel Rosendo da Silva, proprietário do Seringal Floresta, no rio Itecoaí. Por meio de seu interesse e generosidade, pude estudar as condições de vida e de trabalho dos seringueiros empregados em seu seringal. Benjamin, igualmente generoso, mas um pouco menos civilizado, tuxaua dos Mangeroma, uma tribo de índios canibais, é o segundo a quem desejo expressar minha eterna gratidão, embora seja um tanto quanto diferente: em primeiro lugar porque não ordenou que eu fosse morto e servido, bem ou mal passado, para satisfazer suas fantasias (que ele até tinha o poder de fazer); e em segundo lugar, porque demonstrou tamanho interesse em meu bem-estar pessoal e concedeu-me todos os favores estranhos que estão registrados neste livro. Abriume os olhos para coisas que, naquele tempo e sob tais circunstâncias, não me impressionaram muito, mas que, no entanto, convenceram-me de que, mesmo nesse período tardio da história do mundo, nosso planeta não tinha sido reduzido 31


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à inércia de uma existência monótona e comum e que, em algumas partes remotas do mundo, ainda existem pessoas que nunca viram ou ouviram falar do homem branco. E por último, mas não finalmente, devo expressar minha gratidão ao meu estimado amigo Fredrick S. Dellenbaugh, cujas sugestões valiosas, feitas antes de minha partida, contribuíram essencialmente para o sucesso dessa empreitada e cuja assistência amigável e generosidade foram sendo demonstradas no decurso deste livro. Algot Lange Nova York, janeiro de 1912

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I Remate de Males

Vila de Remate de Males

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Meus olhos fitavam o gracioso R.M.S6 Manco, que desaparecia lentamente na curva do Alto Solimões, a mais de três mil e quinhentos quilômetros de distância do oceano Atlântico. Finalmente, depois de mais de 47 dias de viagem, eu chegava à fronteira do Brasil com o Peru e observava a fumaça do navio a vapor ainda dissipando-se lentamente sobre a imensidão da selva. Para mim, mais do que um resto de fumaça, era minha última ligação com o mundo civilizado. Quando a fumaça se dissipou completamente, voltei-me para o vilarejo e caminhei no lamaçal rumo a uma pequena palafita. Foi no final de janeiro de 1910 que me aproximei daquela palafita fincada em terra firme – porque as águas estavam inundando tudo. Por trás de mim estava o rio Amazonas, à direita o Javari, já a casa em que eu iria me hospedar ficava em Esperança7, posto oficial na fronteira do Brasil com o Peru, do outro lado do rio, com uma faixa contínua de mata fechada, pantanosa, imensa e desoladora à visão do espectador. Um senhor de meia-idade, usando um uniforme militar, caminhou em minha direção e cumprimentou-me cordialmente, de fato me abraçou; e dando ordens para que um funcionário pegasse minha bagagem, conduziu-me por uma escada de madeira para o interior da palafita. Contei-lhe que tinha a intenção de subir o rio Javari, para um lugar chamado Remate de Males8, onde passaria certa temporada na companhia de um amigo, que era médico. Informou-me que uma lancha deveria chegar a Esperança naquela noite e que zarparia imediatamente rumo ao meu destino. Tarde da noite a lancha aportou e embarquei imediatamente, depois de ser mais uma vez abraçado pelo Coronel 6 Royal Mail Ship, que traduz-se como “Navio de Correios Real” e, normalmente, abrevia-se R.M.S. Era um prefixo usado em embarcações mercantes britânicas contratadas pela Royal Mail (Companhia Postal Nacional do Reino Unido) para o serviço de Correios. (N. T). 7 Em 1880 foi fundado o povoado Esperança, pelo comerciante Antônio José dos Remédios. Em 1898 torna-se a sede do atual Município de Benjamin Constant. Ver Panoramas Amazônicos. Vol. VI – Benjamin Constant, de A. Jobim. Manaus: Moura Tipografia Fênix, 1943. (N. T). 8 O nome REMATE DE MALES foi afixado ao barracão que traduziu toda a angústia e dissabores sofridos pelo proprietário e também a esperança no lugar, que prosperou e tornou-se importante centro comercial, chegando a se constituir num polo de grande importância para o desenvolvimento e para a defesa da Amazônia Brasileira, o que lhe valeu a elevação para Vila, abrigando a sede do Município de Benjamin Constant (Ver Anysio Jobim, 1943, p. 15-16). No ano de 1943, os moradores da vila de Remate de Males, devido às enchentes, mudaram-se para o seringal Cametá, localizado rio Itecoaí acima, que recebeu a denominação de Atalaia do Norte. (N. T). 34


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Hélio Rocha é atualmente professor na Universidade Federal de Rondônia. Traduziu outros relatos, dentre os quais O Paraíso do Diabo.

Aventuras de um sueco nos confins do Alto Amazonas, incluindo uma temporada entre índios canibais

ISBN 978-85-5953-024-7

Aventuras de um sueco nos confins do Alto Amazonas, incluindo uma temporada entre índios canibais Algot Lange Tradução de

Hélio Rocha

In the Amazon jungle: adventures in remote parts of the upper Amazon river, including a sojourn among cannibal indians (1912), agora em português, é o relato da primeira viagem de Lange à Amazônia brasileira, no início de 1910. O rio Amazonas/Solimões foi a estrada principal por onde esse aventureiro solitário e sonhador viajou em busca de emoções, glória, riqueza e fincou os pés no “túmulo do homem branco”, na região do Vale do Javari. É da confluência do rio Itecoaí, afluente do Javari, num vilarejo de palafitas chamado Remate de Males, que a narrativa de Lange se inicia. Registra o próprio viajante em sua narrativa de cunho dramático e, muitas vezes aterrorizante que, "Finalmente, depois de mais de 47 dias de viagem, eu chegava à fronteira do Brasil com o Peru e observava a fumaça do navio a vapor ainda dissipando-se preguiçosamente sobre a imensidão da selva. Para mim, mais do que um resto de fumaça, era minha última ligação com o mundo civilizado. Quando a fumaça se dissipou completamente, voltei-me para o vilarejo e caminhei no lamaçal rumo a uma pequena palafita. Foi no final de janeiro de 1910 que me aproximei daquela palafita fincada em terra firme – porque as águas estavam inundando tudo. Por trás de mim estava o rio Amazonas, à direita o rio Javari, enquanto a cabana em que eu iria me hospedar ficava em Esperança, posto oficial na fronteira do Brasil com o Peru, do outro lado do rio, com uma faixa contínua de mata fechada, pantanosa, imensa e desoladora à visão do espectador"... Essas aventuras estão agora à disposição de leitores brasileiros....


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