À SOMBRA DO PAI
À SOMBRA DO PAI LUIZ CEZAR DE ARAÚJO
© À Sombra do Pai: Luiz Cezar de Araújo, 2017
Ficha Catalográfica Araújo, Luiz Cezar de, 1981– Sombra do pai, à / Luiz Cezar de Araújo; posfácio de Diogo Fontana; edição de Diogo Fontana. — 1º ed. — Curitiba, PR: Livraria Danúbio Editora, 2017; 220 pp. ISBN: 978-85-67801-12-4 1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Título. CDD – B869.93
Editor:
Diogo Fontana
Revisor:
Jefferson Bombachim
Editoração:
Caterina Veneziano Pacce
Capa:
Matheus Bazzo
Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas/SP Todos os direitos desta edição pertencem à Livraria Danúbio Editora Ltda. CNPJ: 17.764.031/0001-11– Site: www.editoradanubio.com.br Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor
Aos meus filhos, Maria Valentina, Maria Alice e JoĂŁo Paulo.
I
Fecho os olhos e vejo-me deitado em um quarto sem janelas, recostado sobre os travesseiros. Respiro ofegante, puxo o ar, a respiração é curta — o ar não vem. Mais uma crise de asma, a terceira em um mês. Sinto, no entanto, o bafo quente a cada volta do ventilador, e ouço o seu ronco monótono. Eu estava fazendo a lição de casa quando a crise começou. O caderno está agora ao pé da cama. E agora só penso em respirar: ar... ar que não vem! Tive febre. Dormi e perdi-me no tempo. Acordei pensando já estar no dia seguinte, ou em outro lugar. Sonhei estar na Fazenda São João. Delírios da febre. Lembro-me da São João, de uns anos atrás, quando nos dias de chuva, como o de hoje, eu montava um cabo de vassoura e com a molecada ia tocar boiada no quintal.
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Não faz três anos isso. Ainda morava na São João, não tinha crises de asma e acreditava que cabos de vassoura eram cavalos. Apanho o caderno ao pé da cama. Na contracapa uns rabiscos, desenhos cúbicos, caricaturas dos professores, palavras aleatórias, “Janaína”. Imagino-me voltando para Vera-Cruz casado com Janaína, brincando em dias de chuva nas sebes da São João com Janaína. Penso em Janaína, e é então impossível dominar-me... Um trovão reboou pelo quarto. Desvencilhei-me dos pensamentos lúgubres. Desligo o ventilador e afio o ouvido. Há no prédio agora um falatório. A água subiu, invadiu os apartamentos do térreo, e os vizinhos que vão chegando do trabalho param à porta dos blocos. Moramos no térreo. Dona Lourdes, do terceiro andar, está aqui em casa — posso ouvir; dona Diná veio ajudar minha mãe. Parece que os outros vizinhos estão felizes, estão mais falantes do que o normal, decerto porque a água não invadiu os seus apartamentos — e propõem soluções para que a água não suba mais ao nosso apartamento. E houve mesmo uma, a Lorena, do segundo andar do bloco 2, que tenho certeza que ficou feliz ao ver a minha mãe ali se esfalfando com o rodo e o balde. Ela não gosta da minha mãe. Já discutiram. E nem foi culpa da minha mãe,
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e acho que nem da Lorena. Foi o meu pai, que um dia, bêbado, resolveu invocar com o marido da Lorena, por uma besteira, nem sei por quê. Eu era amigo das filhas da Lorena, e desde então elas estão proibidas de falar comigo. Tenho certeza que quando a Lorena passou, deu risada da minha mãe, que puxava água de dentro do apartamento. Meu pai não está em casa. Quem levantou nossos móveis foram uns estudantes do apartamento em frente, quando a água começou a subir. Eu, se não estivesse com essa crise de asma, teria ajudado. Mas estava aqui, com febre, delirando, sonhando com a São João. Daqui a pouco meu pai fecha o mercado e chega. Parou de chover, a casa agora está seca. Moramos num condomínio ordinário, baixo, de três andares, revestido de tijolinhos, a três quadras da praia, e muitas unidades ficam desocupadas fora da temporada, o que dá ao prédio um ar de coisa abandonada na maior parte ano. Fica perto do nosso mercado, e não muito longe da minha escola. Na rua de trás passa o esgoto e nos dias quentes, que são quase todos, há fedor e moscas. As baratas estão por todos os lugares. Eu não ligo para nada disso. As únicas coisas que me importam são a Janaína e a minha mãe. E a lição de amanhã.
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Apanho o caderno ao pé da cama e tenciono recomeçar a lição. Mas estou doente, penso, e não preciso fazer lição, talvez nem mesmo precise ir à aula amanhã. Apanho um gibi. “Mas se posso ler gibi, posso fazer a lição”, diz-me a voz da consciência. Largo o gibi e torno a deitar, apoiando o corpo na cabeceira de uma cama tubular branca que range. Tremo. Deve ser a febre, e penso em chamar minha mãe, mas não quero incomodá-la. Ouço lá de fora que o trabalho está terminado. Dona Lourdes despediu-se e subiu. Sinto frio e meto-me debaixo das cobertas. Na São João, havia uma infinidade de lugares para abrigar-se da chuva quando ela chegava, o galpão, a casinha de fogo, a balança, o chiqueiro, até para dentro do taquaral dava para correr, que no meio das taquaras não caía um pingo, mas no taquaral meu pai me proibia de entrar, porque dizia que ali era ninho de cobra... Minha mãe bateu à porta e veio sentar-se ao meu lado. — É de fundo emocional filho, se acalme... E o mofo deste apartamento... O ar não faz a volta, né? Eu sei como é, mas se acalme, se acalme — e dava-me pancadinhas na mão. Ajeitou os travesseiros, passou a manga da blusa em minha testa porejada, que depois beijou.
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Ela estava nervosa, eu via em seus olhos que parecia segurar o choro. — Tô melhorando mãe. — Vamos dar uma volta? Vamos até a beira-mar? Vai te fazer bem respirar ar puro. A chuva parou e parece que não volta. A chuva havia parado. A casa já estava limpa. Saímos. O vento desfolhara as árvores, os bueiros estavam entupidos, e a cada carro que passava nas ruas alagadas formavam-se marolas, para alegria dos moleques em algazarra. Eu também achava graça de tudo aquilo, e até queria estar ali com eles. Mas ia de braço dado com minha mãe: já respirava um pouco melhor. Na praia, ficamos abraçados e imóveis, minha mãe massageando-me as costas, ambos a contemplar o mar, as vagas, os navios lá no horizonte... de repente, um acesso de tosse... — Se acalme, se acalme, filho... ...E vomitei. Num relance, com os olhos lacrimejando e as pernas bambas, em esgares e contrações, vi as ondas que vinham quebrar aos nossos pés, e um casal que brincava com seu cachorro atirando-lhe um pedaço de pau; vi os navios lá muito longe; e vi, bem perto de
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mim, os olhos de minha mãe angustiados, como se procurassem na linha infinita o Deus que não responde. Súbito, anoitecera. Estávamos ainda na praia, e a cidade iluminara-se. — Vamos na farmácia da tia Sue, você precisa fazer uma inalação. A farmácia é o médico de quem não tem dinheiro para consultas médicas. Fomos, no mesmo passo lento. Agora, para me proteger do sereno, eu ia debaixo da asa de minha mãe, aconchegado em seu casacão cinza de lã, casaco velho, impregnado do cheiro de mãe, como só os casacos velhos de mãe têm. Numa saleta dos fundos, muito iluminada e silenciosa, para onde me conduziu a tia Sue, um senhor de rosto encovado, de dedos longos e nodosos abre uma caixinha de remédios, pinga umas gotas em um frasco, encaixa-o numa máscara e ajusta uma fivela; guarda o remédio; abre outra caixa, pinga, uma, duas, três gotas com cuidado; tampa, com cuidado; olha para mim e sorri; volta a guardar o remédio, fecha a caixinha, abre o armário, e guarda tudo, com cuidado; afivela a máscara em mim, e liga o nebulizador, que bafeja, roncando. Eu, comigo, olhando aquele ritual de abre e fecha e pinga e guarda, fiquei a pensar: “Tudo tão diferente lá de casa, tudo tão limpo e ordenado, tudo feito com tanta
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calma e precisão... Para ser farmacêutico é preciso ser ordeiro e organizado, ter dedos finos e nodosos... Nem eu, nem minha mãe e nem meu pai jamais poderíamos ser farmacêuticos...” Terminada a inalação, me pesaram. Emagreci. Maldita asma. — Anote pra mim, Sue. Tia Sue balançou a cabeça, benevolente, e aquiesceu com um movimento de olhos, com uma piscadela demorada, como quem diz: “Paula, querida, tens tantos problemas, não te preocupes com esta inalação para o teu Luciano.” O céu estava carregado, relâmpagos riscavam a noite escura. A claridade débil e amarelada dos postes de luz era inútil, e de tanto pisar em poças d’água nos molhamos até os joelhos. Ao pisar nas primeiras lajotas soltas, amaldiçoamos o prefeito, a administração pública, a Secretaria de Obras, “um raio que partisse a cabeça do prefeito, maldito, que não dava conta sequer de assentar as pedras da calçada!” Encharcados, dávamos risada. Eu me sentia melhor, respirava, e gostava de ver o alívio nos olhos da minha mãe. Bendita tia Sue, que nos fez a inalação fiada! Bendita farmacêutica, médica dos que não têm médico! E o que são, afinal, as canelas molhadas se o filho agora respira?
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Quando abrimos o portão do condomínio, nos olhamos, e minha mãe suspirou. Já sabíamos o que nos esperava. Já da porta do bloco ouvimos a televisão, sempre naquele volume insuportavelmente alto. No sofá, meu pai bebia. À simples pergunta, “Não vai jantar?”, meu pai, com um olhar baço, amassou furiosamente o cigarro contra o cinzeiro, virou um gole e disparou: — Vá à merda, gringa filha da puta! A cabeça meneia, os olhos estão em chamas. Há em sua barba uns cuspes, que saltaram junto com o impropério violento. Ele acende mais um cigarro, que traga com força, e expira a fumaça pelas narinas, que se dilatam. Minha mãe olha-o demoradamente. Cerrando os olhos, suspira em solavancos, fitando-o não apenas com os olhos, sentindo-o com todo o seu ser, como se buscasse dentro de si força para suportar mais uma vez calada a ignomínia — e dando as costas sai. Vai chorar em seu quarto, vai ler um livro, vai rezar, mascar chicletes. São essas as suas pequenas consolações à noite. Às vezes surpreendo-a na janela do quarto com um livro aberto, fumando, mascando chicletes e rezando, tudo ao mesmo tempo. Vai agora, enfim, suportar mais uma
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vez. Eu vou para o meu quarto. Mas nem bem me retiro e lá vem o lôbrego chamado da sala: — Lucianinho! Lucianinho!... — O que, pai? Obedeço. Sei que devo atender. É meu pai. Minha mãe sempre me diz: “Com todos os defeitos que tem, foi quem te pôs no mundo. Não fosse ele você não existiria. Respeite-o.” Vou. É-me indiferente. Sempre foi assim. Como o mau cheiro e os ratos do ribeirão de trás em dias de calor. — Vem aqui com teu pai. Senta aqui. — É que... Trôpego, balbuciando, como se não tivesse ofendido absurdamente a minha mãe, como se nada fosse, quer que me sente!, naquela fedentina de cigarro, naquela barulheira infernal de televisão... até o amor filial, até a compaixão encontra às vezes o seu limite. — Pai, chega por hoje, o senhor já bebeu demais... Ah!, para quê fui dizer isso? A ira do demônio voltou-se agora contra mim: — Piá de merda! Suma daqui! Você e aquela gringa, sumam daqui... Sumam... E subitamente, seguiu-se um choro, que não durou muito, é verdade, apenas uns soluços. Cessado o choro,
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levantou-se, deu dois passos incertos e apoiou-se na parede; mirou a porta da cozinha e foi. Ouvi-o, então, abrir a geladeira, encher o copo (eu já conhecia todos os sons característicos), quebrar a forminha de gelo e mexer o açúcar no copo: mais uma caipirinha. Com o mesmo cambalear com que foi, voltou; apoiou-se na janela e desabou no sofá, acendeu mais um cigarro e continuou a beber. Aumentou mais um pouco o volume da televisão, para espezinhar minha mãe, afrontar a vizinhança. Eu, do meu quarto, só torcia, como em todas as noites, para que ele fosse logo dormir e não agredisse a minha mãe, para que não houvesse escândalo no condomínio, briga com vizinhos, luzes acendendo na rua, o síndico de pijama, a polícia na porta...
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II
Janaína morava na quadra de trás, uma casa de esquina, casa de alvenaria, com lajotas na garagem do carro, grades do pátio pintadas de branco e árvores no quintal, de cujos galhos pendiam bebedouros de beijaflor. Era a minha melhor amiga e a menina mais bonita do colégio. Tinha uns olhos meigos, sonolentos, a testa pequena e retilínea, lábios vincados e de contornos definidos. Parada, Janaína parecia um anjo; andando, uma dessas modelos de passarela, não obstante, e até pela idade, não fosse alta. Não era mais menina, mas ainda não era mulher, e eu quedava-me morto, só de tocá-la, só de vê-la. Estudávamos na mesma sala, a sétima série de uma escola pública de bairro, o Colégio Tiradentes. Agora, no intervalo, eu não jogava mais futebol, eu não formava
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mais a rodinha da baderna, eu era todo Janaína, o intervalo era todo dela, eu respirava, eu lanchava Janaína. Eu, que nunca gostara de ir à aula, agora não via a hora de ir para a escola. Eu, que nunca pedia nada para minha mãe — a coitada estava sempre sem dinheiro, já tinha tanto problema — pedi e ganhei um boné, só para impressionar a Janaína. Santo Deus, como era bom beijar a Janaína! Por causa da crise de asma, faltei aula, e no dia seguinte fui à casa da Janaína recuperar a matéria. Dona Lucia sentiu-me abatido. Sinto que ela gosta de mim, acha-me uma boa companhia para Janaína, porque sou educado, tiro boas notas, faço sempre as lições, e até vou com eles às vezes à Missa aos domingos. Eu faço questão de corresponder, e como Janaína é meio avoadinha, não perco a oportunidade de repreendê-la em frente da mãe, de modo que dona Lucia e eu estamos sempre a nos dar piscadelas cúmplices, quando Janaína franze a testa se depois de um lanche ela deixa de tirar o prato da mesa e dizer “Obrigado, Deus que ajude”. Fui eu quem ensinei a Janaína a tirar o prato da mesa e dizer “Obrigado, Deus que ajude”. O pai de Janaína é gerente do Banco do Brasil e chega do trabalho todos os dias trazendo café da tarde,
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no mesmo horário. Depois veste uma bermuda e vai regar o gramado, podar as roseiras, ou pintar as grades do quintal. As grades já foram cinza, verde, vinho e agora estão brancas. Acredito que regar o gramado, podar as roseiras e pintar as grandes seja uma espécie de terapia para o seu Sérgio. Há também uma serra na qual ele corta madeira. Não sei porque ele corta madeira. Seu Sérgio tem um cabelo encaracolado, que mantém sempre rente, formando ondulações; tem as maçãs poucos salientes; o bigode, grisalho, é curto e bem aparado; é magro, de pernas branquelas; nunca o vi ter arrebatamentos, em geral está calado. De vez em quando ele e dona Lucia tomam chimarrão na área em frente à sala de estar, ouvindo música; ela serve petiscos, conversam, ou lêem cada qual alguma coisa. Quando anoitece, eles chamam Janaína para dentro. É preciso que chamem umas quatro ou cinco vezes, para que ela, então, depois dizer “já vou, já vou”, obedeça. — Janaína, agora vem, filha, chega de “já vou”, a Paula já deve estar preocupada. Dona Lucia foi nos encontrar na calçada em frente. Riscávamos no chão os nossos nomes com uns cacos de tijolo — “Luciano”, “Janaína”, “Luciano e Janaína”...
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— Não está, não, dona Lucia, ela sabe que estou aqui. — Mas já é hora Luciano. Dá tchau pro Luciano e entra, filha. Eu volto para casa com a matéria copiada. Fica a apenas uma quadra. Fui-me. No caminho até em casa fiquei a imaginar o que Janaína estaria a fazer. Estaria em seu quarto a escrever bilhetes para mim, ou dependurada no telefone com a Mariana. Depois tomaria banho e jantaria com os pais, pois que sempre jantam juntos, sempre na hora do jornal. Depois os três assistiriam a novela. Janaína vestiria um pijama rosa-claro, passaria algum creme no corpo, teria o cabelo ainda molhado, reclamaria por ter de tirar os pratos da mesa... Passando pelo esgoto persigo uns ratos, atiro-lhes umas pedras. Erro. Está anoitecendo. Não tenho vontade de voltar para casa. Estaco em frente ao portão do condomínio e fico a pensar em minha mãe, que àquela hora já deve ter fechado o mercado e está voltando. Sigo adiante e vou até à beira-mar. O brilho fervilhante de um cardume de sardinhas próximo à costa atrai as gaivotas, e um pescador com a água pela cintura joga sua tarrafa. Sento-me para assistir uma partida de futebol, vejo os casais que passam, casais de todas as idades. E tenho a impressão de que entre todos os casais da cidade
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apenas os meus pais nunca foram fazer caminhada na praia de mãos dadas ao pôr-do-sol.
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POSFÁCIO
Em alguns contos do seu primeiro livro, A Vida é Traição , Luiz Cezar de Araújo insistiu num tema, epitomado no verso de Manuel Bandeira que nomeia a coleção. São narrativas em que a traição se mostra viva, e o leitor, desorientado por um desfecho inesperado, ou pela súbita revelação de um caráter vil, sente-a concretamente, como se fosse ele mesmo o ingênuo, o homem enganado. De novo e de novo, as personagens e o enredo se desviam de um trajeto que parecia natural, e a realidade emerge, franqueando toda a maldade, toda a malícia e toda a infâmia que subjazem à condição humana desde a Queda. O resultado é aterrador, uma impressão de fatalidade tangível que provoca, ao final, a sensação de um calafrio incômodo. Ao contrário do que acontece com escritores pouco habilidosos, cujas desastradas inversões no curso
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dos acontecimentos quebram a moldura narrativa, aniquilam as personagens e decepcionam o leitor, deixando-o com a sensação de que algo está errado e fora do lugar, Luiz Cezar de Araújo conduz as histórias com mão firme, patenteando um domínio do ofício que lhe valeu o elogio de Olavo de Carvalho: “Um escritor que sabe escrever — coisa cada vez mais rara no Brasil de hoje”. Mas Luiz Cezar não é apenas competente. Seus contos não são artifícios, joguetes tolos, onanismo técnico, a mera permutação de palavras tão ao gosto dos Leminskis inglórios que abarrotam os departamentos de Letras e os suplementos culturais. Sua técnica serve à verdade literária. Nela, é a coerência interna das personagens que impõe o andamento do enredo. As reviravoltas de A Vida é Traição não são a intervenção gratuita de um escritor caprichoso, mestre absoluto das suas criaturas, que aplica um poder demiúrgico simplesmente porque pode ou porque quer. As personagens traem porque trair é da sua natureza; porque têm livrearbítrio; e porque, sobretudo, o autor as desenvolveu em conformidade com esta natureza traiçoeira. A desonestidade, a perfídia, o fingimento, as sementes podres já estavam todas lá, ocultas, o tempo todo, sob um disfarce de inocência, exatamente como acontece na vida real de todo mundo. As revoluções da trama não são, portanto, conversões abruptas ou gratuitas. Elas acontecem porque deveriam acontecer. Repentina é a nossa percepção,
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a nossa surpresa. Experimentamos o terror incrédulo de quem exclama, ao sentir a dor da punhalada: et tu Brute! Para provocar efeitos tão poderosos, Luiz Cezar de Araújo usufrui da tradição. Ele a respeita. E procura incorporar e enaltecer o poder dos seus predecessores. Não comete a tão comum bobagem de abdicar do legado dos grandes escritores. Qualquer um que tenha se arriscado na escrita sabe: é duro, é árduo, é doloroso compor um texto, seja de que tipo for, mesmo quando nos servimos do auxílio de outros trabalhos como modelo. Qual não seria, então, a dificuldade de se produzir ex nihilo, dispensando o conselho dos poetas mortos! A exigência de “originalidade”, com o pressuposto de que a reminiscência de outros autores seja uma profanação grotesca, um defeito indesculpável, é recente e se afiguraria absolutamente ridícula nos tempos de Machado ou de Camões. Uma obra inédita não precisa ser original em tudo, mas deve apresentar-se como nova fonte por onde flui a reflexão, a emoção e a beleza capturadas pela forma anterior. No Brasil contemporâneo, a renúncia ao legado literário fossilizou-se num novo tipo de academicismo. Escreve-se conforme alguns preceitos e regras, e ai de quem ousar rompê-los ou ignorá-los! Se a prosa não for fragmentada, experimental e solipsista, se o escritor tiver a empáfia de querer contar uma história coerente, com começo, meio e fim, narrando-a em terceira pessoa
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e usando uma linguagem limpa, ou seja, o bom e velho português, logo receberá o carimbo infamante: é arcaico. Se a isto somar-se uma postura pessoal de indiferença política ou, pior, de aversão explícita ao Partido dos Trabalhadores, então esqueça, será o fim, o escritor se verá anatematizado, expulso para sempre de qualquer circuito literário. Décadas desse fetiche vanguardista esterilizaram a literatura brasileira e afugentaram o grande público, que não tem paciência para tentar decifrar as maluquices compostas pelos autores incensados. Baixou-se ao ponto em que a ruptura formal e lingüística, outrora a força-motriz de experimentos como Macunaíma, já não é mais premeditada. Vai-se além do pavor de narrar — é a narratofobia, fenômeno identificado por Rodrigo Gurgel. Um medo de narrar pressupõe a capacidade de narrar. Os jovens prosadores brasileiros já não têm escolha. Fazem o que fazem porque é tudo o que sabem fazer. Afinal, quantos brasileiros nascidos antes de 1960 dominam realmente a técnica literária? Quantos deles são capazes de compor um conto redondinho, coeso, legível? Ao longo do último quarto de século, os escritores de outra época, um Josué Montello, um Dalton Trevisan, um Herberto Sales, um Antônio Olinto, um Jorge Amado, um Carlos Heitor Cony, um João Ubaldo Ribeiro, foram envelhecendo, foram morrendo e a arte literária tornou-se
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tradição extinta no Brasil. Rompeu-se o elo entre as gerações, apagou-se a chama sagrada. Veio o dilúvio. A prosa de ficção é hoje um conhecimento arcano, perdido, uma cabala, uma alquimia. A conseqüência é dupla e difícil de resumir aqui. Há um efeito interno, por assim dizer, que age sobre a alma de todo brasileiro, e um efeito externo, social, que pode determinar o futuro e a própria continuidade da nossa civilização. Por um lado, sobrevém o sonambulismo geral de um povo que tem vivido na escuridão, incônscio como um muar, incapaz de entender o seu estado, o seu lugar no mundo, os seus sentimentos, ou de até mesmo nomear as dores de que padece; por outro, vejo uma diglossia acelerada, um hiato crescente entre a norma culta e o idioma falado nas ruas e na mídia, agravado pelas sucessivas (e injustificáveis) reformas ortográficas, pelo escândalo dos novos métodos pedagógicos, responsáveis pela fabricação serial de analfabetos funcionais, e pela complacência criminosa de professores como o Dr. Marcos Bagno, cuja teoria do preconceito lingüístico, se levada às últimas conseqüências, obstruirá para sempre o acesso de milhões e milhões de brasileiros à alta cultura e aos clássicos da língua. Torna-se cada vez mais próximo o dia em que, para o brasileiro médio, um Memórias Póstumas de Brás Cubas será tão impenetrável quanto o é um Beowulf para leitor inglês contemporâneo. Então veremos a realização plena do projeto
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modernista da Semana de 22: o advento do idioma brasileiro. Nada haverá para celebrar. Estaremos enfim sós, flutuando no espaço, num eterno presente, culturalmente isolados, tanto de nosso passado quanto do restante do planeta, numa âge de ténèbres auto-imposta. Nesse momento, mais do que nunca, estaremos expostos ao desaparecimento definitivo da nossa cultura, mediante a sua absorção por alguma outra matriz qualquer. Pois é isto que está em jogo, e não exagero: o Brasil vai sobreviver? Continuará existindo neste canto meridional do planeta uma cultura própria, de herança lusa, chamada brasileira? Somos uma cultura ameaçada de um modo muito mais acentuado e grave do que em 1940, quando Gilberto Freyre escreveu um ensaio que levava justamente este nome. Globalismos nos assediam, incansavelmente, com métodos e planos de longo prazo. Há cada vez menos lugar para os povos periféricos neste século XXI. Se perdermos a língua, perderemos tudo. Não haverá Dantes ou Petrarcas para re-estabilizar um português vulgar nos séculos vindouros. A cultura brasileira morrerá logo após sair do berço, ainda engatinhando, antes mesmo de firmar os seus primeiros passos. Mas basta de fazer projeções futuras, com minha voz de oráculo sombrio. Voltemos ao presente, pois ainda há vida, e devo ser moderado nas minhas desesperanças. Algo ainda pode ser feito pelo Brasil.
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Acredito que o caminho para a restauração da literatura brasileira passa pela multiplicação de esforços similares aos que Luiz Cezar de Araújo vem fazendo. À Sombra do Pai é um romance composto por impressões genuínas e vinculado à nossa tradição literária. As fórmulas consagradas pelos nossos grandes escritores são recuperadas e usadas para dar forma literária às experiências e aos acontecimentos do Brasil recente e atual. Não conheço mais ninguém que escreva assim. Na homogeneidade geral, este livro aparece como mancha. Encontrei nele algo da melancolia de José Lins do Rego, sem os maneirismos, e algo do sintetismo de Graciliano Ramos, sem a atmosfera opressiva. Há também um lirismo comedido, de uma beleza chã, que nos toca lentamente, como uma triste melodia. Só poderia ser assim. O livro é triste, a história é triste, apesar das pitadas picarescas que revelam um autor herdeiro da propensão satírica que cruzou o Atlântico a bordo das primeiras caravelas. Falo da ironia saborosa, ibérica, picante mas não cáustica, que traz ecos de Cervantes, do Lazarillo de Tormes, que está onipresente na fase boa de Machado de Assis e que lhe foi transmitida por seu mestre Manuel Antônio de Almeida. Há passagens hilárias, de humorismo devastador, nas quais o leitor gargalha e que me remetem ao elogio que Otto Maria Carpeaux fez a Marques Rebelo no prefácio de Marafa: “esse grande humorista também é um grande sentimental”.
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Luiz Cezar de Araújo também é um grande sentimental, um sentimental nostálgico, que reconstitui a sua infância neste livro. “A pátria é a infância”, dizia Ernesto Sábato. Pois este À Sombra do Pai revela a pátria do autor, o Brasil da virada dos anos 80 para os 90, um período cuja memória nacional está nublada pelos mitos fundadores da Nova República. Democracia, progresso, crescimento econômico, justiça social, modernidade, diziam... Mas vemos outras coisas. Vemos o fim de um mundo. A velha elite brasileira morre, com toda a sua crueza, sua brutalidade, seu atavismo. O Brasil rural, profundo, familiar e rotineiro, gilbertofreyriano, ainda retratado no filme Central do Brasil em 1998, decai, definha e desaparece. A ruína da família de Luciano, o protagonista, simboliza a morte desse Brasil. É o ocaso de uma elite inconsciente das suas responsabilidades, incapaz de atinar o rumo dos acontecimentos e incapaz de preparar os filhos para a sucessão. Esta é uma oligarquia que amealhou dinheiro há tempos e nunca entendeu ao certo como isto foi possível. Do mesmo modo, sem entender bem como, deitou fora toda a sua riqueza. Vemos, a exemplo dos contos de A Vida é Traição, o destino, a fatalidade, a Fortuna pesando sobre os personagens — tão brasileiros! — que vivem ao léu, impotentes, sem comandar a sua vida, arrastados por mudanças que não compreendem e que não podem controlar. É uma tragédia. Uma tragédia
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brasileira. A tragédia dos brasileiros. A tragédia de ser brasileiro, de pertencer a um povo irônico, mas irônico no sentido atribuído por Northrop Frye: o de ser sempre vencido pelas circunstâncias. O que resta, então? Conformar-se com a miséria psíquica e a mediocridade material. Talvez beber, como o pai de Luciano. Encher a cara de caipirinhas, embotarse e esquecer da existência rebaixada, da vida que poderia ter sido. Agora, sobrevive-se apenas. O futuro se desenha assustador. Tudo se degradou. A rotina urbana agora é feia, atormentada e caótica. Os dias se acumulam, vê-se o Jornal Nacional e depois a novela. E o destino de cada brasileiro oscila entre os espasmos econômicos, os surtos inflacionários e o descontrole cambial. O desamparo é a matéria mesma deste livro, que expõe o novo Brasil pelo que ele é: um deserto abrasador, sem local ameno no qual se refugiar. Só há esperança além, no Salmo 90, que Luciano lê numa das noites na fazenda, ou no conselho simples do humilde lavrador Lizandro: “olhe pra frente, Jesus faz novas todas as coisas”.
Diogo Fontana
Escritor e editor.
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À SOMBRA DO PAI foi composto em corpo Minion Pro 11 e títulos em Adobe Garamond Premiun Pro 22 no mês de julho de 2017 para a Editora Danúbio.