A Exemplar Família de Itamar Halbmann

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DIOGO FONTANA

A EXEMPLAR FAMÍLIA DE

ITAMAR HALBMANN


© A Exemplar Família de Itamar Halbmann: Diogo Fontana, 2018 Ficha Catalográfica Fontana, Diogo, 1980– Exemplar família de Itamar Halbmann, a / Diogo Fontana — 1ª ed. — Curitiba, PR: Livraria Danúbio Editora, 2018. 160 pp. p&b ; 14 x 21cm ISBN: 978-85-67801-17-9 1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Título.

CDD – B869.93

Editor: Jefferson Bombachim Editoração: Caterina Veneziano Pacce Capa: Gabriela Francine Fernandes

Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas/SP Todos os direitos desta edição pertencem à Livraria Danúbio Editora Ltda. CNPJ: 17.764.031/0001-11– Site: www.editoradanubio.com.br Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor


para a minha Gabriela



“Fiz melhor do que o historiador, porque sou mais livre” Honoré de Balzac



Prólogo

Comecei a escrever este livro em Curitiba, na casa dos meus pais, no mês de fevereiro de 2017, quando a lembrança dos acontecimentos políticos do ano anterior ainda estava fresca na memória. Tentei, a princípio, fazer um exercício de imitação de estilo, emulando deliberadamente a escrita de Balzac, e percebi, ao longo do tempo, como a forma balzaquiana era perfeita para o meu objetivo maior: fixar no papel um tipo humano com o qual me confrontei várias vezes


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durante o início da minha vida adulta, um espécimen fácil de encontrar no meio jurídico e universitário, o petista milionário, que vive do capital alheio, profere um discurso radical, mas não se furta de adotar os valores e o estilo de vida burguês. Por obra do destino, competiu a mim, escritor iniciante, a tarefa de salvar do esquecimento esta figura extravagante, conferindo-lhe, assim espero, uma forma de imortalidade. Busquei em tudo ser justo, refreando minha animosidade, a fim de cumprir a obrigação maior do poeta, nunca se afastar da verdade. Neste espírito, desejo ter seguido o preceito de D. H. Lawrence: “One may hear the most private affairs of other people, but only in a spirit of respect for the struggling, battered thing which any human soul is, and in a spirit of fine, discriminative sympathy”. Devo agradecer aos meus pais e à minha esposa Gabriela, pela compreensão e suporte sem os quais não poderia realizar minha vocação. Devo agradecer ao meu irmão Rodolfo Fontana a paciência e o bom humor com que me transmitiu o vocabulário arquitetônico que uso no livro. Devo agradecer as sugestões e encorajamentos, que muito me ajudaram, aos Srs. Alexandre Müller Ribeiro, André Ghiggi Caetano da Silva, Francisco Escorsim,

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Jefferson Bombachim, João Pedro de Mello, Luiz Cezar de Araújo e Simón Aliendres León. Por fim, envio um agradecimento especial ao professor Olavo de Carvalho; esta novela não existiria sem os seus ensinamentos.

Balneário Camboriú, 28 de janeiro de 2018.

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Nos arredores de Santa Felicidade, quase na fronteira com o município de Almirante Tamandaré, ergueu-se recentemente um daqueles condomínios fechados, coalhados de casas quadradas, bem ao gosto dos arquitetos contemporâneos, dentro dos quais se encastela parte da elite curitibana. Os entornos ameaçadores daquele feudo moderno — e como chamar de outro modo aquela fortaleza de cancelas, cercas elétricas, guaritas e homens armados? — mais parecem as muralhas de uma Shangri-lá, salubremente apartada da desordem estética que a circunda: os sobrados geminados erguidos para


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revenda; os bares duvidosos que fazem prosperar os fabricantes de cerveja de milho; os mercadinhos familiares em cujas prateleiras se empilham os produtos mais baratos das marcas mais desconhecidas. Os habitantes nativos daquele subúrbio, os italianos de terceira ou quarta geração, os filhos de migrantes do interior do Paraná, aos poucos foram se acostumando à convivência dos vizinhos abastados e ao fluxo constante de utilitários e sedãs, alguns deles importados, a desviar diariamente os buracos daquelas ruas pavimentadas de antipó. Há não muitos anos, ainda na primeira gestão Rafael Greca, aquelas regiões eram silvestres, e era comum encontrar, aqui e ali, pontuando os matagais e os terrenos baldios, uma clareira com uma antiga casinha de madeira, onde ainda se criavam vacas e galinhas, cultivavam-se hortas e milharais, e em alguns casos até mesmo — na mais charmosa das permanências — fabricava-se algum tipo de vinho artesanal. Naquele tempo, não era raro que um visitante domingueiro, vagueando à procura de uma especulação imobiliária num daqueles bairros dotados de nomes tão surpreendentes como Butiatuvinha, Tanguá e Lamenha Pequena, desacelerasse o seu automóvel para dar a vez à uma charrete com pangarés, ou se visse obrigado a desviar bolas, crianças e tijolos que se passavam por trave de futebol.

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O motorista que quiser chegar ao Residencial Città di Livorno, se não for habituado às redondezas, fará bom uso dos modernos sistemas de navegação por satélite. Ele certamente estranhará os longos quilômetros que será preciso percorrer depois de deixar a Avenida Manoel Ribas; e talvez sinta-se como um exilado ao perceber que os últimos resquícios de familiaridade urbana ficaram para trás. Será imediata a sua desorientação quando se vir implicado numa expedição labiríntica, dirigindo para lá e para cá, para a esquerda e para a direita, cada vez mais entranhado em território ignoto. Para onde ele olhar, nada verá além de mato, araucárias e muralhas de condomínios. Não vislumbrará vivalma. Nesse momento, é muito provável que experimente um desamparo profundo, a sensação de uma orfandade absoluta, se porventura constatar que naquele meio do nada não haverá nem sequer um pedestre, um transeunte, um frentista de posto de gasolina para o auxiliar; e, por isso, temoroso de um assalto, este nosso visitante talvez entre em parafuso, desespere-se, amaldiçoe-se, perguntando-se como raios fará para sair dali. Mas não demora a vir o refrigério. Logo surgem as primeiras casinhas, dois ou três carros velhos se arrastando pela rua, um boteco, uma panificadora; e a pito-

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resca igrejinha do bairro, num sopé, com a porta fechada, diante do seu gramadinho e da sua pequena escadaria; e a meia-dúzia de templos neopentecostais, improvisados em construções de concreto, pequenas, quadradas; e uma escola municipal, feia, colorida, pichada; e os grupinhos de adolescentes, a fumar, em boné de aba reta, e regatas de torcida organizada; e, no final da alameda, ao largo de uma confusa rotatória, o centrinho comercial, com a costureira, a locadora, o cabeleireiro, a papelaria e a minúscula pizzaria. Depois de toda esta miscelânea, o motorista avistará, enfim, o desejado condomínio, defendido por um muro de 3 metros de altura, sobre o qual, emaranhado aos cacos de vidro e ao arame farpado, corre um fio elétrico de baixa tensão. A amperagem é suficiente para afugentar invasores sem fornecer, contudo, uma dose letal de eletricidade. Placas posicionadas a cada 50 metros advertem a vizinhança contra os riscos à saúde provenientes da tentativa de expugnação. Tudo se encontra, portanto, nos mais estritos limites da legalidade. A entrada é marcada por um pórtico de concreto, pintado em amarelo, e ornamentado com gesso acartonado. Entre as eclusas, vê-se a inevitável guarita blindada. Ao redor, pinheiros kaizuka, plátanos, lavandas e ciprestes; ao fundo, um lindo bosque de araucárias

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É inútil descrever todas as casas que compõem o loteamento, por serem quase todas iguais; fixemo-nos, portanto, na única que nos interessa, a residência da família Halbmann. O primeiro elemento que salta à vista, mesmo do observador mais distraído, é a desproporcional cornija que se assenta sobre os frisos de gesso do frontão. Entre os capitéis situa-se a porta pivotante de angelim perobado, trabalhada em ferro, com motivos da natureza. Quem entra, de imediato se espanta com a vasta dimensão do hall de entrada, de pé direito duplo, e com a rosa dos ventos encravada no piso de botticino. Na sala de estar, logo se vê um espaçoso sofá, uma mesinha de vidro e dois tamboretes para se sentar. A enormidade da televisão contrasta com a economia dos painéis de lâmina sintética. No lavabo, impressiona a opulência da pia esculpida em mármore. Sobre a escada em semi-lua paira um colossal lustre de cristal iugoslavo, capricho da dona da casa, barganhado em um antiquário. A mesa de jantar é rodeada por oito cadeiras sem braço, de alto espaldar. O tapete é curto, semi-persa. A cozinha americana é revestida por um piso tabuleiro de xadrez. Sua ilha de granito parece ocupar todo o seu espaço, e só perde atenção para a torneira cromada com misturador helicoidal. Completam-na a coifa, o cooktop e a lixeira de inox com sensor. Há água gelada na porta

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da geladeira; e, numa mesinha rente à parede, sobressai a máquina automática de café, com seu mostruário de cápsulas coloridas. No segundo piso, estão as duas semisuítes, que dividem o mesmo banheiro, posicionado ao meio. À esquerda fica o escritório, inteiro de nogueira. Tomos jurídicos preenchem as suas prateleiras. Destaca-se o roda-teto de gesso, com frisos, e o busto de bronze da Justiça vendada. As cortinas são de tafetá. Através da janela vê-se o quintal e a piscina. O ponto culminante dessa moradia, como não poderia ser diferente, é a suíte master do casal, sua verdadeira razão de ser, com lareira a gás, salas de banho separadas, hidromassagem redonda, chuveiro quadrado, e, o mais importante, a formidável cama California King Size extra-macia, de cabeceira alta capitonê, lençóis e fronhas de algodão egípcio, afundada em uma profusão de travesseiros e almofadas. Salvo em alguns pequenos hábitos, todas as famílias curitibanas se parecem. Há, antes de tudo, a família de classe média, aquele núcleo pai-mãe-filho-filha-cachorrinho, cuja encarnação mais freqüente atravessa a vida dentro de um apartamento em avenida estrutural; entenda-se: uma das vias rápidas que interligam bairros e são cruzadas pela canaleta exclusiva para ônibus. O casal é empregado em multinacional ou exerce a medicina,

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a odontologia, a advocacia, coisas assim. Os filhos estudam no Positivo ou congênere. Sonham em passar na Federal. São realistas: querem concurso. O patrimônio da família consiste no apartamento, financiado, e em uma casa de praia (herdada, dividida com irmãos, tios e primos), erguida em algum ponto do litoral do Paraná. Locomovem-se com carros de preço levemente acima do que seria conveniente para os seus ordenados, e, nos casos mais pomposos, um dos maiores sacrifícios do orçamento é manter em dia a mensalidade do Clube Curitibano. Olhando o mapa da cidade é fácil traçar um círculo ao redor do seu hábitat. É uma área de raio inferior a 10 quilômetros, talvez 5. Tome-se quatro localidades cardeais: o parque São Lourenço, o Aeroporto do Bacacheri, o restaurante Madalosso e a sede social do Paraná Clube. Em seguida firme-se a ponta do compasso no centro da cidade, na Praça Tiradentes, por exemplo, e desenhe-se um círculo unindo os pontos. Voilá. Teremos a delimitação desse território. Raras serão as incursões cotidianas dessas pessoas em áreas externas. É fácil identificá-los também por alguns costumes típicos, o mais característico a romaria a Santa Felicidade para os almoços de domingo. Três quartos da sua vida social cumprem-se no interior de um shopping.

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E, a depender da sua localização geográfica, será fácil deduzir sua preferência esportiva. Um pouco mais ao Norte, Coxa; um pouco mais ao Sul, Atlético. A essa família arquetípica opõe-se outra, minoritária, rica, de dinheiro novo. Marido e mulher revestemse de um verniz de cultura e zombam da ignorância dos vizinhos. Vão ao teatro uma vez por ano, em março, durante o festival; visitam as exposições do MON, mas não tão freqüentemente; apreciam filmes franceses no Espaço Itaú Cultural; dentro do carro ouvem MPB contemporânea, sintonizados na 97.1FM, a emissora do governo estadual. Sempre votaram no 13, mas de uns tempos para cá namoram o PSOL. Lêem o Veríssimo e o Paulo Henrique Amorim. Odeiam a Veja, desprezam a Globo. Na sua casa só entram a Piauí e a Carta Capital. São daqueles concursados de instituições federais que acumulam benefícios e remunerações, obtendo proventos que em muito extrapolam o teto constitucional. O pai, desembargador, grande conhecedor das intrigas dos tribunais, conta anedotas sobre os Ministros Fachin e Paulo Bernardo, considera-os amigos. Seu contracheque mensal, após todos os descontos, engordado pelas verbas indenizatórias, auxílios e abonos — vantagens pessoais albergadas pelo princípio da irredutibilidade de

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vencimentos, e pagas em consonância com as Resoluções 13 e 17 do Conselho Nacional de Justiça — tem atingido, ultimamente, a média de 87.484 reais e 60 centavos. Qualquer cidadão de bem pode facilmente consultar estas informações numa das 47 tabelas de detalhamento da folha de pagamento, impressas em arquivo PDF de 391 páginas, sem ordem alfabética, disponível para download em algum ponto do site do tribunal. Este simples magistrado veste apenas roupas da VR, da Lacoste e da Hugo Boss, ou encomenda ternos de 3,5 mil reais de um alfaiate octogenário que ainda atende na Galeria Tijucas; ele coleciona gravatas, fuma charutos e cultiva com esmero sua adega; uma noite por semana, mais por vaidade do que por dinheiro, leciona Constitucional numa faculdade privada. A senhora também é elegante, particularmente no inverno. Maquia-se com discrição, exibe as unhas bem-feitas. Veste tailleur, calça sapatos de salto, e adora envolver-se nas suas echarpes de seda. Em tudo assemelha-se à uma professora francesa. Trabalha fora, é uma mulher independente, membro do quadro permanente da Universidade Federal do Paraná, sob contrato em regime de tempo integral e dedicação exclusiva. Tem título de doutora. No seu currículo lattes, atualizado no dia 13 de dezembro de 2015, descobre-se que ela é Vice-Coordenadora do Programa

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de Pós-Graduação em Direito, além de Professora de Direito Civil, Direitos Humanos e Novos Direitos. Seu endereço profissional é na Praça Santos Andrade, número 50. Suas linhas de pesquisa são Direitos Humanos nas Relações Inter-privadas (sic), Gênero, Adoção, Orientação Sexual e Proteção Integral à Criança. Compõe o corpo editorial da Revista Jurídica da Faculdade Cristo Rei. Fala francês avançado e espanhol intermediário. Em 2013 recebeu menção honrosa da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná. Presidiu a Comissão de Diversidade Sexual da sucursal paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil. Publicou 26 artigos e organizou 7 livros. É autora de Novas Entidades Familiares à Luz da Constituição de 88. Ela cria as duas filhas num ambiente de liberdade e tolerância. Não faz perguntas demais, não exige horário para voltar para casa, contenta-se com algumas poucas satisfações, mensagens e telefonemas sumários. É uma mãe moderna, progressista, que pouco interfere, não sufoca a prole. Nisso, quer muito ser o oposto simétrico dos próprios genitores; pais que, a seu ver, asfixiaram a sua liberdade e lhe subtraíram os melhores anos de juventude. Até hoje ela ainda pensa nesse assunto com ressentimento. Ela tolera os namoros, mesmo quando uma filha apareceu com um surfista in-

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