Da Direita Moderna à Direita Tradicional

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DA DIREITA MODERNA À DIREITA TRADICIONAL



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Livraria Danúbio Editora 2019


© Cesar Ranquetat Jr., 2018. FICHA CATALOGRÁFICA Ranquetat Jr., Cesar, 1977– Da Direita Moderna à Direita Tradicional, 2º edição. Curitiba, PR, Livraria Danúbio Editora, 2019. ISBN 978-85-67801-22-3 Ciência Política CDD – 320 Edição: Diogo Fontana Revisão: Fausto Machado Tiemann Capa: Gabriela Fernandes Fontana Diagramação: Lucas Guse Imagem da capa: Knight, Death and the Devil - 1513 - Albrecht Dürer Metropolitan Museum. Os direitos desta edição pertencem à Editora Danúbio CNPJ: 17.764.031/0001-11 — Site: www.editoradanubio.com.br Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas/SP Todos os direitos desta edição pertencem à Livraria Danúbio Editora Ltda. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.


Sumário Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 1 A CARICATURA DA DIREITA PELA SINISTRA. . . . . . . . . . . . . . 29 1.1 As raízes espirituais e intelectuais do esquerdismo. . . . . . . . . . . . . . . 49 2 DIREITA: ORIGENS HISTÓRICAS, TIPOLOGIAS E DEFINIÇÕES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 2.1 Os traços característicos da direita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 3 SIMBOLISMO UNIVERSAL DA DIREITA E DA ESQUERDA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.1 Etimologia e semântica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.2 Tradições metafísicas à direita e à esquerda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.3 Inversão dos sentidos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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4 A GRANDE TENTAÇÃO DA DIREITA MODERNA: O LIBERALISMO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.1 A crítica de Mises ao marxismo e à estatolatria. . . . . . . . . . . . . . . . . 4.2 O liberalismo conservador de Hayek . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.3 Os erros e as fraquezas do liberalismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.4 O liberalismo é de direita ou de esquerda? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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5 A DIREITA CONSERVADORA: OS GUARDIÕES DA CIVILIZAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 5.1 A sabedoria dos ancestrais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166 5.2 O conservadorismo e a sociedade humana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 5.3 O conservadorismo, a esfera da política e o problema das ideologias.177 5.4 O conservadorismo e a economia de mercado . . . . . . . . . . . . . . . . . 181


5.5 O conservadorismo e a esfera da educação e da cultura. . . . . . . . . . . 182 5.6 O conservadorismo e a religião. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 5.7 A direita conservadora e a esquerda revolucionária: algumas notas conclusivas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 6 OS LIMITES DO CONSERVADORISMO E A DIREITA TRADICIONAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.1 A direita tradicional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.2 A revolução antitradicional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6.3 Reacionários, contra-revolucionários e a restauração tradicional. . . .

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7 A NOVA DIREITA BRASILEIRA: UM FALSO DESPERTAR?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7.1 Os equívocos e as debilidades da nova direita. . . . . . . . . . . . . . . . . . 7.2 Por uma cultura de direita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7.3 Cultura hispânica ou cultura anglo-americana?. . . . . . . . . . . . . . . . .

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CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272




APRESENTAÇÃO

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ara o leitor moldado nos estudos de autores liberais, como este que vos escreve, Da Direita Moderna à Direita Tradicional é muito mais que uma provocação: é um cruzado (de direita) fincado na boca do estômago. Todavia, não vos assusteis em sua poltrona, pois o livro que tendes em mãos não é meramente provocativo ou explosivo. Longe disso. Aqui está uma obra rigorosa que, ao fim, oferece um bálsamo ao leitor. É uma história, se não com final feliz, que ao menos sedimenta um final, vos asseguro, esperançoso. Em 2015 e 2016, quando a Nova Direita brasileira ganhava visibilidade no debate público, longe de todo ruído das redes e das ruas, estava o Professor Cesar Ranquetat Jr. escrevendo um verdadeiro tratado, examinando as bases teóricas e culturais dessa Direita, e também, consequentemente, nos alertando de seus riscos. Ao início dessa obra seminal, cuja apresentação fui convidado a escrever e que muito me honra, o autor mostra como a Direita sempre foi retratada pela academia, pelo jornalismo e pela cultura como sendo uma visão política retrógrada, autoritária e mesmo burra. No imaginário popular, portanto, a Direita sempre se deixou deformar pelo inimigo, furtando-se de desafiar a hegemonia discursiva de

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seu adversário. Aqui, Cesar restabelece a discussão mostrando que, para além da moderna divisão Direita versus Esquerda, inaugurada pela Revolução Francesa, tanto uma quanto a outra possuem firmes raízes pré-políticas e sobretudo metafísicas ou religiosas, portanto metapolíticas, cujos significados simbólicos são recorrentes nas mais diversas sociedades humanas, na linguagem e na cultura. Sempre tendo o cuidado de expor as raízes etimológicas dos conceitos de que trata, o professor Cesar examina o que é Esquerda e, numa das várias passagens memoráveis do livro, revela suas raízes espirituais. Assim, pelo método do contraste, lança luzes para a compreensão dos contornos que definem uma genuína cosmovisão de Direita. Após uma análise magistral da Direita e da Esquerda, Cesar enverada no exame dos pressupostos do liberalismo e do conservadorismo que cimentaram a Nova Direita brasileira, de onde assenta também uma interessante crítica a esses fundamentos. A análise não pára por aí, um dos pontos altos do livro nos mostra o caminho para restaurar a nossa valiosa tradição perdida. Nesse sentido, Da Direita Moderna à Direita Tradicional é também obra inauguradora do resgate de toda uma concepção de Direita que está relegada a velhos livros de brilhantes autores, porém ignorados pelo nosso ambiente cultural e acadêmico (o establishment) e que, fatalmente, seguem desconhecidos pela nossa Nova Direita. No entanto, antes de adentrar na concepção dessa Direita Tradicional, Cesar abre um debate rigoroso com as bases intelectuais da Nova Direita. É o momento em que o autor analisa o pensamento de conhecidos nomes como Ludwig von Mises e F. A. Hayek, de um lado, e Russell Kirk e Roger Scruton, de outro; para, no meio do percurso, revelar seus fundamentais problemas à luz da nossa história e da nossa tradição. Após esse exame, Cesar passa então à exposição do pensamento político tradicional estribado em nomes como Rubén Calderón Bouchet, Nicolás Gómez Dávila, Rafael Gambra, Miguel Ayuso, António Sardinha, José Pedro Galvão de Sousa, Arlindo Veiga dos Santos e muitos outros que, somados, compõem um brilhante mosaico do pensamento tradicional. Nesse instante, a dor daquele murro inicial na boca do estômago se desfaz. A vantagem dessa perspectiva não está apenas em seu aspecto teórico, há outra também: o pensamento político tradicional é a essência de nossa própria história enquanto nação latina, lusitana e católica. Esse tem sido o ponto fulcral bastante negligenciado por nossa elite intelectual e, consequentemente, pelos lí-

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deres políticos e ativistas por ela influenciados. É inescapável reconhecer que, depois de desmontar algumas armadilhas e quebrar certas ilusões liberais-conservadoras, ainda caras à Nova Direita, Cesar restaura o nosso lugar no mundo filosófica e metafisicamente. É nesse ponto que o livro torna-se um bálsamo para todo intelecto que de algum modo havia sido afetado pelo pensamento ideológico moderno ou, como diria Eric Voegelin, pelo pensamento imanentista – aquele que oculta premissas fundamentais. Por fim, essa investigação sobre o pensamento político tradicional, ao trazer uma nova luz para um novo exame da Nova Direita brasileira (que influenciou o curso político do país a partir de 2015), fecha o livro com uma mensagem contundente: o Brasil precisa sair da prisão cultural que o encerrou no circunscrito duelo esquerdismo/comunismo versus liberal-conservadorismo. É por essas e outras razões que, nesse ano de 2019, a presente obra já está sendo lida e discutida, em encontros mensais, no Grupo de Estudos Humanitas na cidade de Panambi-RS. Urge reconhecer a fantástica ampliação do horizonte de consciência e a descoberta de nosso próprio lugar no mundo que este livro nos oferece. Concluo no intento de sensibilizar o leitor para o seguinte: este livro é um divisor de águas para a Direita brasileira. Mais que isso, restaura em nós aquilo que sempre fomos, sendo muito mais que um mero lembrete. É como que a primeira rocha lançada na reconstrução de uma grandiosa catedral abandonada. Rogo para que mais rochas desse tipo sejam lançadas e que um dia possamos finalizar esta necessária reconstrução. Boa leitura.

Lucas Mendes Graduado em Economia, Mestre em Filosofia Política. Panambi – RS, Maio de 2019.

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O reacionário verdadeiro não é o sonhador de passados abolidos, é o caçador de sombras sagradas sobre as colinas eternas. Nicolás Gómez Dávila



INTRODUÇÃO

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ireita. Eis uma palavra que, quando evocada nos debates públicos, em referência ao universo da política e das ideologias, provoca ressonâncias emotivas e reações apaixonadas. Há quem diga que ela está morta e enterrada, há quem defenda a tese de que ela é a mais acabada expressão do mal na Terra. Na verdade, é muito difícil ficar indiferente aos seus encantos, ao seu poder de fascinação e às lembranças que esse termo suscita. Por isso, realizar uma análise rigorosa e precisa dessa noção torna-se uma tarefa laboriosa e arriscada. Não são poucos os intelectuais e pesquisadores (historiadores, cientistas sociais e filósofos) que, diante de qualquer fenômeno que tenha alguma relação com a direita, parecem esquecer-se da necessidade de empreender um exame científico, objetivo e honesto. Nessas incômodas e desconfortáveis ocasiões, deixam de lado a seriedade e o olhar analítico e adotam posturas explicitamente bélicas, sectárias e dogmáticas. É bastante comum observar renomados e experientes pesquisadores abandonarem por completo a atitude científica de tolerância e de distanciamento frente a tudo que tenha vínculos com o “direitismo”. Visões deformadoras e superficiais, interpretações distorcidas e parciais, bem como estudos carregados de preconceitos ideológicos e graves erros metodológicos, abundam

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quando o objeto de estudo é a “malvada e pérfida direita”. Acrescenta-se a isso a artimanha usual de omitir e ocultar continentes inteiros de linhagens de pensamento, autores, livros e textos fundamentais da cultura política de direita. Um dos objetivos fulcrais deste trabalho é precisamente recuperar o sentido originário, autêntico, do termo “direita”, resgatando, para tanto, essa noção de usos equivocados, estereótipos e deformações. Para atingir essa meta, faz-se indispensável a utilização do método etimológico que, como sublinha o filósofo Alberto Buela (2002), é uma das vias privilegiadas de acesso ao real, devolvendo às palavras a sua força elemental, seu significado autêntico. A validade e a importância da investigação etimológica – etymos em grego, que significa o verdadeiro –, residem, principalmente, na capacidade de desvelar a realidade das coisas. A etimologia e a simbólica são tomadas aqui como ciências auxiliares, ferramentas hermenêuticas necessárias na tarefa de restabelecer o significado prístino da palavra “direita”. Ao longo de todo este trabalho, procuro restaurar o verdadeiro e mais amplo sentido dessa palavra, porém dedico-me com mais cuidado a essa questão no capítulo 3. Perante qualquer enfraquecimento e quebra da hegemonia política e cultural esquerdista, diante de alguma reação, articulação e do fortalecimento da direita, a intelligentsia está pronta para lançar a acusação sumária de fascista. Associar qualquer força política de direita, por mais confusa, inexpressiva e incoerente que pareça, com o fascismo é a estratégia preferida da esquerda. Trata-se, evidentemente, de uma tática ardilosa, de uma retórica simplificadora que nada explica, mas que serve, até certo ponto, para neutralizar o adversário político e, assim, mobilizar e unificar as fileiras da militância progressista. Demonizar, rotular e intimidar o antagonista não são, de forma alguma, tentativas sérias e responsáveis de compreensão e análise, mas banais e vulgares expedientes propagandísticos de cunho stalinista, conforme assevera, com precisão, o cientista político Alain de Benoist (1981, p. XXV): Disse-se já que as palavras-chave do vocabulário direitista teriam sido desacreditadas pelos fascismos. Diremos, antes, que esse descrédito foi sabiamente construído e mantido por facções especialistas e especializadas na difusão de mitos incapacitantes e culpabilizantes. É necessário que sejamos muito claros neste caso. Aqui, não nos

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encontramos em presença de uma análise, mas de uma propaganda. Consiste esta propaganda em assimilar ao “fascismo” toda e qualquer doutrina de direita que se afirme com algum vigor e, como, corolário, a definir apenas como “democráticos” os regimes que concebam a liberdade sob a forma de um “deixar andar” de qualquer forma estatutário, como indispensável, aos empreendimentos revolucionários da extrema esquerda. A nossa sociedade oferece, assim, o espantoso espetáculo de uma direita que se não pode afirmar como tal sem se ver tachada de “fascismo”, e de uma esquerda e de uma extrema esquerda que a qualquer momento se podem dizer como socialistas, marxistas ou comunistas, afirmando sempre, claro está, que as suas doutrinas nada têm a ver com o stalinismo, nem, aliás, com qualquer forma de socialismo historicamente realizado. Ora, se os seguidores das diversas variedades de socialismos não se sentem comprometidos por qualquer das experiências concretas que os precederam – e nomeadamente pelas mais criminosas dentre elas – não vejo por que razão a direita moderna, que afasta totalmente de si qualquer vocação totalitária, terá de bater com a mão no peito e justificar-se. Este provincianismo ideológico que somente percebe inteligência, cultura, moralidade e bondade no lado esquerdo do campo político é analisado, de forma mais pormenorizada, no primeiro capítulo deste trabalho. Importa sublinhar que a confusão e a ignorância em torno desses conceitos não são oriundas apenas da ação deformadora da esquerda; muitos direitistas de carteirinha não têm a mínima idéia do que realmente é a direita, desconhecendo totalmente suas origens, suas bases filosóficas e antropológicas, suas principais referências intelectuais, suas diversas famílias e sua peculiar forma de entender o mundo, a sociedade e o homem. Boa parte de nossa direita adota posturas conservadoras, anticomunistas e antiesquerdistas mais por razões práticas e instintivas do que, propriamente, por um conhecimento intelectual aprofundado sobre esses tópicos. É uma forma de direitismo sentimental, intuitivo, pouco afeito a especulações sociológicas e filosóficas e às lições da história.1 Procuro, nessa perspectiva, dissipar um pouco 1  O cientista político André Singer, em seu trabalho Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro

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dessas ambigüidades e imprecisões ao longo deste trabalho; em especial, no segundo capítulo, traço a genealogia desse conceito, buscando esclarecer o seu significado, suas principais ramificações, vertentes e seus traços essenciais. Apresento definições e tentativas de conceitualização dessa categoria, realizadas por autores vinculados com essa linhagem de pensamento. Não obstante essas observações preliminares, para importantes analistas e cientistas sociais, direita e esquerda seriam categorias que não teriam mais valor e sentido no mundo contemporâneo – seriam noções obsoletas. Será que realmente as noções de direita e esquerda perderam todo seu significado? A dicotomia direita-esquerda estaria ultrapassada? Creio que não, pois se trata de categorias (2000), demonstra que, em geral, os brasileiros identificam-se com a polaridade direita-esquerda, reconhecendo-a, porém não sabem exatamente o que significam essas categorias: “[...] os dados da pesquisa Cultura Política/89 e Cultura Política/90 mostram que mais de 60% dos eleitores não sabiam dizer o que significava esquerda e direita. [...] Mesmo assim, os 60% de eleitores brasileiros que não sabiam o que significava esquerda e direita contrastam fortemente com o uso coerente da escala esquerda-direita que, como mostramos, a imensa maioria do eleitorado brasileiro fez entre 1989 e 1994. Como pode o eleitor usar seu posicionamento em um espectro esquerda-direita para orientar a decisão do voto, se não sabe o que é esquerda e direita? A nosso ver, trata-se, como assinala a bibliografia internacional (Miller & Shanks1996; Knight & Lewis 1996), de um conhecimento intuitivo, de um sentimento do que significam as posições ideológicas. Esse sentimento permite ao eleitor colocar-se na escala em uma posição que está de acordo com as suas inclinações, embora não as saiba verbalizar” (Singer, 2000, p.142). Ressalto que, apesar do trabalho de Singer ser valioso do ponto de vista das informações e dos dados empíricos, ele apresenta uma orientação ideológica de esquerda, que fica visível na passagem que segue: “Nesses 60% estamos incluindo tanto os que declaravam não saber responder quanto os que produziram respostas como: esquerda é o ‘errado’, é o ‘negativo’ e direita ‘é o certo, o melhor’. Vale destacar que esse último tipo de resposta, embora equivocada, tem uma longa tradição desde que os termos esquerda e direita entraram em uso, na época da Revolução Francesa (Sartori, 1982; Bobbio, 1995). [...] Em contrapartida, aceitamos como respostas ‘corretas’ as que definiram esquerda como ser contra o governo, e direita a favor. Esse tipo de resposta, que representou em torno de 20% das amostras, corresponde tanto à história brasileira quanto aos padrões internacionais, em que a esquerda é vista como sendo uma força de oposição” (Singer, 2000, p. 142). O cientista político paulista considera sem importância e valor a impressão de senso comum, “intuitiva”, de que a esquerda é o negativo e a direita é o certo, o positivo. Pergunto: por que desprezar – desconsiderar – este dado elementar, esta primeira percepção presente em boa parte da população brasileira e mesmo mundial? Por que não rastrear as origens remotas e as motivações sutis dessa intuição? Por sua vez, por que aceitar com facilidade a idéia de que ser de esquerda é ser contra o governo, ser oposição, e ser de direita é ser favorável ao governo? Parece que o autor aceita como correta e válida apenas as opiniões populares que favorecem determinada visão e narrativa, já sedimentada pela própria intelligentsia e pela mídia mainstream, acerca da esquerda, e rejeita e desvaloriza de cara os dados e as impressões que podem associar a direita com o que é bom, justo e reto. Vale lembrar que André Singer é filiado ao Partido dos Trabalhadores. Foi secretário de Imprensa do Palácio do Planalto (2005-2007) e porta-voz da Presidência da República no primeiro governo Lula, (2003-2007).

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usualmente empregadas pelos atores políticos, em suas disputas ideológicas e em suas lutas pelo poder. Ademais, os agentes políticos costumam autodefinir-se, assim como nomear seus adversários, com base nessa dicotomia. Segundo explica o filósofo Olavo de Carvalho (2015): Desde logo, se há pessoas que se dizem de esquerda ou de direita e que agem politicamente sob essas bandeiras, é evidente que esquerda e direita existem como agrupamentos políticos reais que sob esses nomes se reconhecem e por eles distinguem os “de dentro” e os “de fora” Se suprimimos os nomes teremos de designá-los por outros da nossa própria invenção, nos quais os dois grupos não se reconhecerão e que só servirão para complicar o vocabulário. Como autodenominações de grupos políticos e símbolos da sua identidade, os termos esquerda e direita não estão superados de maneira alguma. Expressam uma realidade sociológica inegável. Não se pode negar a validade e a utilidade de noções que continuam a operar na política, na linguagem e no imaginário coletivo, despertando emoções e unificando agrupações políticas. Essa dicotomia topográfica possui um extraordinário poder explicativo, simplificando e facilitando a compressão do intricado mundo da política e das ideologias. Na verdade, como afirma o escritor francês Paul Sérant (1958), essa dualidade se funda em princípios filosóficos eternos. É, assim, uma distinção de origem e caráter metapolíticos. Desta gênese, em parte, deriva sua força simbólica e seu poder cognitivo. E, nesse sentido, penso que direita e esquerda são conceitos meta-históricos, elementos estruturais e permanentes da cultura, constitutivos da humanidade. Essa metáfora espacial está presente em todas as civilizações, representando dois pólos de orientação existencial e societal.2 Há distinções irredutíveis na visão de mundo e da sociedade entre o “partido da ordem” – a direita – e o “partido do movimento” – a esquerda –, conforme 2  O filósofo Norberto Bobbio (1995, p. 69) sublinha que, além desta metáfora espacial (direita-esquerda), existe, na linguagem política, uma metáfora temporal: “que permite distinguir os inovadores dos conservadores, os progressistas dos tradicionalistas, os que se deixam guiar pelo sol do futuro dos que procedem guiados pela inextinguível luz que vem do passado. Não está dito que a metáfora espacial, que deu origem à dupla direita-esquerda, não possa coincidir, em um de seus significados mais freqüentes, com a metáfora temporal”.

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assevera Jacques Du Perron (1991). A direta acredita na existência de um universo ordenado, o “cosmos”, e pensa que a sociedade, por sua hierarquia e diversidade, deve refletir essa ordem. Reconhece e aceita a existência de uma ordem superior a tudo aquilo que é unicamente humano e contingente. A esquerda, por sua vez, defende a tese de que o universo não manifesta nenhuma ordem preestabelecida, que a desordem triunfa e, portanto, a razão humana pode e deve refazer o mundo e transformar radicalmente a vida social. A razão autônoma, desligada de qualquer princípio e autoridade superior rebela-se contra a tradição e a revelação, elementos basilares das grandes civilizações pré-modernas. É deste espírito de ruptura radical e insurreição revolucionária contra a ordem natural e o plano divino da criação que emerge e consolida-se a mentalidade esquerdista. Ademais, a polaridade direita e esquerda apresenta uma insuspeita dimensão antropológica. A maneira como revolucionários (esquerdistas) e contra-revolucionários (direitistas) descrevem e concebem o homem é radicalmente distinta. A direita parte de um inegável pessimismo antropológico de raízes teológicas (doutrina do pecado original e da queda); já a esquerda sustenta uma visão otimista e perfectiva do homem.3 Noções como natureza e condição humana são próprias da gramática conservadora e tradicionalista, que, grosso modo, considera o ser humano uma realidade que não se modifica fundamentalmente, pois foi criada de uma vez por todas por Deus. Por sua vez, a esquerda progressista e revolucionária percebe o homem como um ser indeterminado, uma “matéria plástica e dúctil”, que pode ser moldada por forças sociais externas. Tende a eludir ou mesmo negar a existência de uma natureza humana universal e imutável em sua essência: Encontramos no coração do pensamento revolucionário a convicção de que o homem é seu próprio mestre, que não é escravo de nenhuma ordem, natureza ou condição humana; que deve deixar voar livremente todas as asas suas de sua imaginação (Molnar, 1975, p.70). As múltiplas e variadas dimensões antropológicas, filosóficas e socioló3  O sociólogo belga Léo Moulin escreveu um importante livro sobre esse tema com o título La Gauche, la Droite et le Péché Originel: et autres essais (1984).

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gicas deste fenômeno sinalizam para o fato de que o antagonismo direita e esquerda, presente na vida política e social moderna e contemporânea, é reflexo de um conflito mais antigo, amplo e profundo, que possui uma origem religiosa e metafísica. É, na verdade, a expressão de uma luta multissecular entre as forças tradicionais e antitradicionais. As forças da revolução e da antitradição (esquerda) caracterizam-se pelo espírito de contestação radical, que inicialmente manifestou-se no domínio religioso para, num segundo momento, projetar-se no plano político. Historicamente, a revolta contra o espírito tradicional principia com o Protestantismo e sua feroz refutação à hierarquia da Igreja Católica e à autoridade do Papa. O individualismo religioso protestante, com a sua conhecida doutrina do livre-exame e seu rechaço ao universo simbólico e ritual católico, permeado de figuradas mediadoras como os anjos, santos e a Virgem Mãe de Deus, possibilitou o advento do individualismo político moderno. Do individualismo derivam o racionalismo, o democratismo e o igualitarismo. É inconteste que o Humanismo da Renascença e a Reforma Protestante representam uma ruptura com a ordem tradicional, pois substituem a autoridade da Igreja romana pela autoridade do indivíduo. Esses movimentos históricos possibilitaram o aparecimento, mais tarde, de uma nova religião, própria da esquerda, que cultua o homem no lugar de Deus (Perron, 1991; 1998). Das ruínas da ordem tradicional surge o mundo moderno, plasmado pelas forças revolucionárias de esquerda. A autêntica direita, identificando-se com o “mundo da tradição”, apresenta uma relação tensional quando não mesmo de franca e aberta oposição à modernidade. Uma direita entusiasticamente moderna, simpática e patrocinadora dos mitos individualistas, igualitaristas, progressistas e libertários, é uma contradição em termos. Conforme assinala o cientista político Jean Laponce (1981), de maneira geral, a linguagem da religião, das tradições culturais e dos costumes sociais continua a associar a direita com o positivo; e a esquerda, com o negativo (trato com mais cuidado desta questão no capítulo 3), mas, no campo da política moderna, a relação é reversa: a esquerda, neste campo da atividade humana, assume muitas das características de positividade e criatividade que, em outras esferas, são normalmente associadas com a palavra direita. Comparada com a religião, a política, principalmente em sua forma democrática, é um sistema social marcado pela mudança, instabilidade, agitação e oposição. A política emerge na modernidade como uma força desestabilizadora da religião e da própria ordem social, portanto

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tende a ser percebida como o pólo negativo e disruptivo da vida societal. Deste modo, enquanto a religião é normalmente vista como o pólo positivo e ordenador, a política, por conta de seus traços conflitantes e desagregadores, tende a ser concebida como algo nocivo e maléfico. Assim, aquilo que é visto como positivo na religião e nos hábitos e costumes sociais, é tomado como negativo na política. Se a “direita” é algo positivo no universo tradicional da religião e das práticas sociais costumeiras, no mundo da política, é uma força negativa. Na política, a “esquerda” é que representa a positividade, exprimindo, paradoxalmente, o caráter fundamentalmente negativo da política. A essencial negatividade da política moderna é melhor expressa por um termo negativo, a esquerda, que, por conseguinte, adquire um valor positivo no sistema político. Em síntese, por uma necessária e simples inversão de signos, o negativo no mundo da tradição e da religião transfigura-se em positivo na política moderna, ou seja, a esquerda; e o negativo na política moderna, a direita, é apreendido como uma força positiva nos sistemas religiosos e sociais tradicionais.4 Entendo que tais termos – direita e esquerda – são símbolos, representações esquemáticas e sintéticas de um conjunto de idéias, valores, crenças e concepções. Mais do que movimentos, partidos e ideologias políticas, eles personificam dois tipos radicalmente distintos de mentalidade, orientação existencial e sensibilidade. Direita e esquerda representam modos antagônicos de perceber e interpretar o mundo, dois sistemas de referências espirituais, intelectuais e valorativas absolutamente antitéticos. Estabeleço, ao longo deste livro, uma contraposição entre a direita moderna e o que defino como direita tradicional. Resumidamente, argumento que aquela modalidade de direita apresenta feições liberais e conservadoras. Na verdade, o liberalismo político e econômico é o verdadeiro rosto da direita moderna, e que investigo no capítulo 4 deste trabalho. Por sua vez, a direita conservadora pa4  Laponce (1981) ressalta ainda que os termos direita e esquerda começaram a fazer parte do vocabulário da política somente a partir do século XVIII, durante a Revolução Francesa. Com essa revolução igualitária, a dimensão horizontal (direita-esquerda) substitui o ordenamento vertical e hierárquico presente nas sociedades tradicionais, representado nas figuras do rei, dos sacerdotes e dos guerreiros. A direita toma o lugar da noção de “alto”, relacionada com os estamentos mencionados; e a esquerda identifica-se com a categoria “baixo”, que representaria o povo e as classes sociais produtivas: o proletariado e a burguesia. Em resumo, a metáfora espacial horizontal esquerda e direita sobrepõe-se ao simbolismo vertical do alto e do baixo presente nas culturas políticas pré-modernas do antigo regime.

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rece oscilar entre o “mundo moderno” e o “mundo da tradição”, não abandonando por completo os preceitos liberais da civilização burguesa e democrática. Trato, especificamente, dessa importante vertente da direita no capítulo 5. No capítulo 6, examino os limites e as tensões existentes no conservadorismo e, principalmente, apresento as características e os atributos principais da direita tradicional. Por fim, no capítulo 7, trato da ascensão de uma nova direita em terras brasileiras, descrevendo brevemente as bases ideológicas desse movimento, assim como procuro sublinhar os aspectos problemáticos e contraditórios presentes no discurso e nas idéias defendidas por essa vertente política. Neste último capítulo, defendo a necessidade da formação e do desenvolvimento de uma cultura de direita no Brasil. Aliás, um dos motivos que me levou a escrever este livro foi ter notado certa confusão e desorientação doutrinária e conceitual presente nas fileiras direitistas de nosso país. Tornar esta desconhecida mais compreensível, divulgar alguns de seus principais autores e vertentes, revelar sua peculiar visão do mundo, da sociedade e do homem, evidenciar suas características centrais, assim como explorar suas nuanças e paradoxos são, também, outras finalidades desta investigação. Ressalto, contudo, que este trabalho não tem a pretensão de esgotar esta amplíssima e controversa temática, mas intenciona, acima de tudo, preencher uma lacuna e, também, provocar um debate mais sério sobre este apaixonante assunto.5

5  Ao realizar a pesquisa para este livro, notei a escassez de obras e trabalhos sobre este tema no Brasil. Enquanto nos Estados Unidos e, principalmente, na Europa existem livros muito importantes acerca desta questão, em nosso país e mesmo em outros países da América Latina, os poucos trabalhos publicados pecam por seu indisfarçável viés ideológico esquerdista.

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DA DIREITA MODERNA À DIREITA TRADICIONAL foi composto em corpo Adobe Garamond Pro 11 e títulos Adobe Garamond Pro Bold 14 no mês de Maio de 2019 para a Editora Danúbio


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