Impressões e Expressões

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Impressões & Expressões



IMPRESSÕES &

EXPRESSÕES

JOSÉ GERALDO VIEIRA

ARCADIA


Ficha Catalográfica Vieira, José Geraldo, 1897–1977 Impressões & expressões / organização e seleção de Daniel André Pacheco Fernandes, edição de Jefferson Bombachim e Luiz Cezar de Araújo. – Curitiba, PR: Arcádia, 2016. 316 pp. ISBN: 978-85-92855-02-4 1. Literatura brasileira. 2.Ensaios. 3.Crítica literária. 4. Contos. I.Título.

Editor: Jefferson Bombachim Luiz Cezar de Araújo Coordenação editorial; Seleção & Organização: Daniel André Pacheco Fernandes Revisão: Ademir Júnior Sousa Amaral Capa: Matheus Bazzo

Distribuição: CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas-SP

Os direitos desta edição pertencem à Editora Arcádia - CNPJ: 17.764.031/0001-11 E-mail: contato@ arcadiaeditora.com.br – Site: www.arcadiaeditora.com.br Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.


AGRADECIMENTOS

A publicação deste livro somente foi possível porque as seguintes pessoas colaboraram com a nossa campanha de financiamento coletivo. A elas, a nossa gratidão: Adriano Rodrigues Albert Günther Alex Quintas Alexandre Ademar Alves Aluísio Alberto Dantas Alysson Souza Moura André Carezia Andre Couto André Victor F. Nascimento Antônio Angueth de Araújo Antonio César Landi Junior Antonio Emicherlles Arli Júnior Arthur D. Friedheim Tenório Augusto Carlos Pola Júnior Bruce Oliveira Carneiro Bruno Castagin Bruno Leal Bruno Mendes Bruno Vallini Carla Farinazzi

Carlos Eduardo A. de Pádua Carmen Juliani Celio Antonio Pereira Junior Célio Oda Moretti Cesar Augusto Cavazzola Junior Cesar Claudio Gordon Cesar Cotillo Cesar Mattar Cesario Mattar Neto Christian Avila Cleber de oliveira tavares neto Clotilde Grosskopf Cristiano Lima Cristiano Nunes Laureano Daniel Batista de Siqueira Daniel Braga Daniel Gurjão Daniel Laier Daniel Rochebois Quintão Daniel Vitor Rizzi Isotton Diego Podolsky Paes


Diogo Fontana Diogo Valduga Ederson Oliveira Edgar Martins Lirio Edgar Wiese Zacchi Edilson José da Rosa e Silva Eduardo Fernandes Elpidio Fonseca Emerson Marinho Ennio Layon Dyego G. Matos Enrique de Moura Villanova Eric Cari Primon Ernane Siqueira Fábio Borges de Moura Fabio Furtado Pereira Fabio Mello Fábio Salgado de Carvalho Felipe Oquendo Felipe Sabino de Araújo Neto Félix Ferrà Fernando César Borges Peixoto Flávio Antônio Catanese Jr Fred Giovani Mezaroba Gabriel Castro Gabriel Melati Germano Augusto Rios Ferreira Gilmar Siqueira Gilsonei Aguiar Junior Giovane Goulart fiorentino Giovani de Jesus da Silva Glauco Rocha Gleydson Avelno

Gracian Li Pereira Guilherme Batista A. Ferreira Guilherme Bessa Guilherme Roque Gyordano W. Bordignon Halana Paula Burali Garcia Helio Angotti Neto Henrique Cal Hugo Prado Amaral Humberto Campolina Ítalo França Ivan Jacopetti do Lago Izabel Christina Ghermacovski Jeanderson de Olveira Jefferson G. de S. Albuquerque Jessé de Almeida Primo João Mario Figueiredo Fradera Johann Alves Jorge Camargo José Armando V. Delarovere Julian Ritzel Farret Krishnamurti Andrade Laerte Lucas Zanetti Leandro Casare Leonardo Ferreira Boaski Leonardo Lindbergh Lincoln Almeida Lucas Lacerda Lucas Mendes Luís Gustavo Rodrigues Antunes Luis Mattos Luiz Carreira


Luiz Felipe Adurens Cordeiro Luiz Felipe Ribeiro Lysandro Sandoval Marcelo Cabral de Lucena Marcelo Pasqualette Márcio Elton Marco Antônio Batista de Lima Marco antonio Gomes da silva Marcos Paulo Ferreira Silva Mariana Belmonte Mateus Matos Diniz Matheus Noronha Sturari Matheus Regis Mauro Ventura Moreno Garcia e Silva Nestor Emilio Luersen Nilson Marques Cabral Ovidio Rovella Paulo Brito Paulo de Tarso Pereira Paulo Rogério de Pinho Filho Philippe Nizer Pietro Aires Rafael Carvalho Rafael Lahm Rafael Rodrigues Raïff Dantas Barreto Raimundo Felipe De Aguiar Renato Guimarães Renato Silva

Ricardo Altava Rinaldo Oliveira Araújo de Faria Roberto Smera Rodney Eloy Rodolfo Correia Rodrigo Benevenuto Cantalejo Rodrigo Dubal Rodrigo Fernandez Peret Diniz Rodrigo Lacroix Rodrigo Moura Elarrat Rodrigo Palmeira Ruy Fabiano Rabello Sandro Ebone Sérgio Del' Arco Filho Sérgio Vidal Araújo Silvia Maria Dario Freitas Silvio Donatangelo Tadeu Guimarães Kangussu Jr. Thiago Baran Thiago Neves Tiago Abi-Ramia Tomoyuki Honda Ulysses Siqueira Vanessa Shiguemoto Vanúsia Silva Araújo Veríssimo Anagnostopoulos Victor Hugo Barboza Vinicius Pedrosa Botelho Willian Vieira Ajala Yuri Prestes Rehme


Apoio institucional:


ÍNDICE Conhecendo José Geraldo Vieira ......................................................... 13

PARTE I Crítica & Literatura A biblioteca imaginária ................................................................ 43 A crítica e seu handicap ................................................................ 52 Combatendo o narcisismo ........................................................... 56 Ensaios & Ensaístas O camarada Whitman — Joaquim Nabuco ................................. 63 Joaquim Nabuco ......................................................................... 67 Ensaios filosóficos ........................................................................ 70 Notas sobre o Aleijadinho ............................................................ 74 Romances & Romancistas O estilo de Rachel de Queiróz ..................................................... 81 Grandes esperanças ...................................................................... 85 Saul Bellow, um romancista diferente .......................................... 89 Somerset Maugham ..................................................................... 92 Stendhal ...................................................................................... 97 Bernanos ................................................................................... 101


O jovem José ............................................................................. 105 José no Egito ............................................................................. 110 Luz de agosto............................................................................. 114 No caminho de Swann .............................................................. 117 Obras de Dostoiévski em português ........................................... 121 A lição de Henry Fielding .......................................................... 125 A comédia humana .................................................................... 128 Orlando..................................................................................... 131 Ainda e sempre o termômetro de gerações ................................. 134 Pavilhão de mulheres ................................................................. 137 Atenção! Dois homens caíram no Sol! ........................................ 141 Poesias & Poetas Rilke, órfico e místico ................................................................ 147 Rilke, objetivo e plástico ............................................................ 152 A poesia de Beatrix Reynal ......................................................... 156 Valéry e a poesia francesa ........................................................... 160 Oscar Venceslas ......................................................................... 166 René Char ................................................................................. 169 Poemas traduzidos ..................................................................... 172 A inserção de Guerra Junqueiro na moderna poesia portuguesa..176 Goethe, símbolo e mito ............................................................. 180 Centenário de Edgar Allan Poe .................................................. 183 Segredos da infância .................................................................. 187 O galo branco ............................................................................ 190 Poesia, superação da vivência ..................................................... 193


O conto & O teatro 7 anos de pastor ......................................................................... 201 Cogumelos ................................................................................ 205 Seis dramas de Ibsen .................................................................. 209 Literatura & Infância Livros para a infância ................................................................. 215 Biblioteca infantil ...................................................................... 219 História do mundo para crianças ............................................... 223

PARTE II Crônicas & Contos Simone Weil.............................................................................. 233 Naufrágio no mar vermelho ....................................................... 239 Uma noite de São João .............................................................. 244 Um pobre diabo ........................................................................ 252 A IX Sinfonia ............................................................................ 256 Recordações & Memórias Aliocha-Michkin-Carlitos .......................................................... 265 Plataforma um, plataforma dois ................................................. 274 Confissões ................................................................................. 279 Demolições................................................................................ 282 Martins Fontes .......................................................................... 291 Mansarda Acesa ............................................................................... 295



CONHECENDO JOSÉ GERALDO VIEIRA Francisco Escorsim ∗

A Primeira Existência de José Geraldo Vieira José Geraldo Vieira nasceu no Rio de Janeiro em 1897, um ano depois de sua família ter vindo dos Açores. Sua infância foi solitária e marcada pela perda, começando pela de seu irmão gêmeo, Manuel Germano, falecido aos 3 meses de idade. Tinha outras duas irmãs mais velhas, Adelaide e Ermelinda, mas ambas foram muito jovens estudar na Suíça, não tendo convivido muito com ele, tanto que em Território Humano, romance autobiográfico retratando sua infância, as irmãs mal aparecem. Como seus pais viajavam muito a trabalho, José Geraldo passava longos períodos na casa de seu tio, Manuel Correia Vieira Jr., um rico industrial de tecidos. Mas também os tios viajavam com freqüência e o menino ficava mais com as empregadas da casa do que com seus parentes.

Francisco Escorsim é colunista do jornal Gazeta do Povo, advogado, professor e estudioso da vida e obra de José Geraldo Vieira.

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Em 1908, quando tinha 11 anos de idade, sofreu a perda maior até então, padecendo da primeira tragédia de sua vida: seus pais morreram em um intervalo de poucos meses um do outro. Passou a morar na casa dos tios em definitivo. Suas lembranças mais felizes da infância foram vividas nessa casa. Costumava se enfiar debaixo dum piano de cauda quando a tia tocava, escutando enquanto folheava um Larousse ilustrado. Eram momentos felizes porque a tia somente tocava piano quando estava de muito bom humor, o que acontecia quando recebia notícias do marido que estava voltando de viagem ou da visita próxima de algum irmão dela. Por outro lado, quando recebia notícias ruins, como a de que o marido iria emendar uma viagem atrás da outra ou que não viria na época agendada, ficava um azedume só, verdadeira megera com as empregadas e fazia José Geraldo, que tinha quarto próprio, dormir na cama dela. Outra recordação feliz é a de ficar no quintal da casa lendo livros. Dois tiveram importância fundamental em sua formação. O primeiro foi Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, que fez parte dos currículos das escolas brasileiras até, pelo menos, a década de 1970, tendo mais de 40 edições. É uma obra reunindo todos os escritores de língua portuguesa existentes até aquele momento, não apenas brasileiros. Para cada autor, depois de uma pequena biografia, segue-se excertos de suas principais obras. Com este livro José Geraldo adquiriu, no mínimo, uma perspectiva histórica e literária da língua portuguesa, mas é possível também ver aqui a fonte do seu “estilo em redoma” que tenta abarcar tudo, conforme suas próprias palavras i. O segundo livro foi ainda mais relevante: O Coração, de Edmundo de Amicis. Publicado na Itália em 1886, traz a narrativa de um menino de cerca de 10 anos, ora em forma de diário escolar, com pequenos contos passados pelo professor na escola e copiados pelos alunos, ora com cartas

Depoimento do autor em “José Geraldo Vieira no Quadragésimo Ano da sua Ficção”, publicado pelo Conselho Estadual de Artes e Ciência Humanas do Estado de São Paulo e pela Imprensa Oficial do mesmo Estado, IMESP. i

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recebidas dos seus pais. O impacto do livro na Itália foi impressionante. Em dois meses já estava na 41ª edição. Dois anos depois, de 1888 para 1889, ia para sua 101ª edição. Em 1920, já tinha alcançado a marca de um milhão de exemplares vendidos, só na Itália. Por lá, aliás, foram feitos vários filmes baseados no livro durante todo o século XX, talvez o mais famoso seja um de 1940, de Vittorio de Sica. Mas não foi apenas na Itália que o livro teve tamanho impacto e influência. É considerado um dos livros mais lidos de todos os tempos, tendo sido traduzido em 25 línguas. Virou desenho animado no Japão. Fez sucesso em Israel nos anos 1950. Inúmeros escritores citam esse livro como um de seus mais queridos, como Gabriel Garcia Márquez. No Brasil, influenciou gerações, pois foi publicado em 1891 e sistematicamente reeditado até 1968, quando foi registrada a sua 53ª terceira edição, tendo sido adotado pelo sistema de ensino durante todo esse período, virando até novela da TV Rio, em 1964. Além de José Geraldo Vieira, vários de nossos escritores foram impactados pela obra, como Marques Rebelo. A razão do sucesso do livro decorria da unificação italiana acontecida em 1860, servindo como manifesto do valor do patriotismo, apelando a um sentimentalismo bastante exagerado. Otto Maria Carpeaux, em sua obra magna História da Literatura Ocidental, dedicou três linhas ao livro, afirmando que esse sentimentalismo sufocava toda a obra. Foi justamente isso, esse sentimentalismo exacerbado, que impactou profundamente José Geraldo Vieira. Em vários de seus livros ele cita O Coração, sempre com carinho, mas a influência maior está no seu estilo. Não é raro a benevolência e o padecimento, temas recorrentes em seus livros, ganharem expressão de arrebatamento sentimental, seja de ternura, seja de dor. Nesse sentido, aliás, em meados da década de 1950, José Geraldo revisou seus livros até então escritos, podando muito dessa pieguice, do que falaremos adiante. Quanto à sua formação escolar, estudou no Colégio Santa Rosa, em Niterói-RJ, dirigido por padres salesianos, formando-se em Ciências e Letras — equivalente ao término do atual ensino médio. Também estudou Humanidades no liceu Condorcet, em Paris, a partir de 1911, onde ficou

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até 1914. Neste ano, retornou ao Brasil, matriculando-se na faculdade de Medicina da Praia de Santa Luzia, no Rio de Janeiro, posteriormente voltando a Paris para se especializar em Radiologia, também estudando na Alemanha. Sua vida de adolescente e jovem foi a de um típico burguês, quando no Rio de Janeiro passava seus dias praticando natação e remo no Boqueirão do Passeio, freqüentando os clubes de rua do Passeio, as confeitarias Alvear e Renascença, os teatros Lírico, Municipal e Trianon, apostando corridas de carro, indo às pistas do Flamengo e Niemeyer, ceiando no Largo do Machado e no Mère Louise, no Leme. Foi nesse contexto que deu início à sua carreira literária. Em 1912, quando tinha apenas 15 anos, fez sua estréia com a publicação de um poema na revista Fom-Fom, famosa na época. Aos 20 anos, em 1917, passou a publicar contos semanais em O Jornal, os quais formam seu livro chamado A Ronda do Deslumbramento, lançado em 1922, seu segundo livro publicado. O primeiro publicado foi O Triste Epigrama, em 1920, escrito numa única noite de 1919, na véspera de uma viagem à Europa, muito influenciado pelo poema A Balada do Cárcere, de Oscar Wilde. Quando do lançamento deste, varou a noite bebendo com amigos em um iate, sofrendo um trote dos colegas que o lançaram ao mar por volta das cinco da manhã, em comemoração. Sobre essas primeiras obras, porém, José Geraldo não considerava mais do que testes, exercícios de virtuosismo, razão pela qual jamais permitiu fossem reeditadas. Em suas palavras:2 “Por isso, nos meus dois primeiros livros, fui sobrepondo contos e escritos em terraços de cafés, à guisa de escadas cromáticas, de modo a gradualmente conseguir virtuosismo. Buscava temas em autores e, principalmente, na vida, e buscava desinserir dos autores à sua contingência humana, observando-os na rotina diária de meros transeuntes, de modo a despi-los da indumentária de mitos e epílogos. Assim foi que na esquina da Avenida Central com Rua do Ouvidor, plantado rente a uma vitrina da Garnier, eu via todas as tardes saltar do automóvel um sujeito hercúleo, de fraque e de chapéu desabado, bigodes lustrosos virados para cima, andar solene e cadenciado, passeando a sua imponência parnasiana, era Alberto Oliveira. Pouco depois saltava dum landau arcaico um indivíduo

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histórico, com cabeça de castanha-de-caju, e que antes de se dirigir a pé ao Cinema Ideal na Rua da Carioca, onde dispunha de poltrona reservada, tinha o hábito de dar um giro anônimo até a Livraria Briguiet. Sempre o observei emocionado como avatar retórico do Padre Vieira, até o dia em que um mendigo o seguiu engrolando humildemente uma esmola. Vi-o e ouvi-o então bradar fanhoso e irritado para o pedinte e talvez para mim também: “Não me amole!” Era Rui Barbosa. Foi assim, com pruridos iconoclásticos de protodadaísta, que consegui dissociar em cada escritor a obra e o homem, que até então eu supunha uma hipóstase anátomo-espiritual. Sim, havia a vida mesmo, mais interessante do que a imaginação.”

A busca pela vida verdadeira. Não seria exagero assim intitular esse período da biografia de José Geraldo Vieira. Não apenas a procurava nos seus próximos, mas muito mais em si, para si. Em entrevista dada em 1956 ii, quando perguntado sobre sua maior emoção na vida, respondeu contando uma experiência vivida nesse período de juventude, em 1919: “Foi nos Açores, quando conheci meu avô, o tipo do patriarca. Saltei em Angra do Heroísmo, em 1919, e, enquanto a lancha me levava de bordo para o porto, descobri na escadaria a figura de meu avô, que eu conhecia de retratos. Senti um arrepio, como se ele me fosse interrogar sobre meus propósitos de vida. A sensação é talvez sutil para eu transmitila em uma entrevista. O fenômeno é interior, íntimo.”

O sentido da vida, enfim. Nessa época, José Geraldo ainda era um homem à procura desse sentido. Seu tio, que muito lhe conhecia e amava, sabedor da incerteza sobre quem o sobrinho queria ser e fazer da vida, embora já escrevesse e a medicina lhe fornecesse o script dos anos futuros, recomendou-lhe que ficasse na Europa com a desculpa de se especializar, mas, quero crer, visando muito mais dar ocasião para o sobrinho se encontrar. Assim, a decisão de estudar radiologia na Europa surgiu por lá mesmo, como José Geraldo nos contou em sua quarta obra, a mais autobiográfica

Vide nota 1. Entrevista publicada no jornal Folha da Manhã, edição de 29 de janeiro de 1956, pg. 59.

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de todas, Território Humano, quando em uma conversa com o tio, este lhe disse: “— Dentro de dias sigo com Elisa para Londres e de lá toco para o Brasil. Matricule-se num curso de especialização, alugue um apartamentozinho. Deixo-lhe boa mesada e uma carta de ordem renovável. Depois da França, a Alemanha, não é? Permaneça na Europa o tempo que for necessário; quatro anos no máximo. Comece desde já a orientarse, e a providenciar. (...) Ah! Uma coisa, ainda. Permanecer em Paris um rapaz da sua idade, exposto a casos frívolos mas que podem gerar complicações, é hipótese que me preocupa um pouco. Aquela história com a Norma, em que pé ficou? Escusado acentuar-lhe que sua tia e eu teríamos muito gosto num compromisso. Decida sozinho, comunique-me o seu ponto de vista depois; tem tempo.”

Norma era, na vida real, Elizabeth Câmara Vieira, uma prima de José Geraldo com quem trocava cartas desde a infância. Entretanto, no mesmo dia desta conversa, tio e sobrinho voltaram a se encontrar no vestíbulo do hotel e se dirigiram ao apartamento da tia para chamá-la. José Geraldo nada tinha decidido sobre a sugestão de se casar com a prima, sequer teve tempo de pensar nisso, mas: “(...) o tio mal entrou no aposento do lado foi dizendo: — Filhota! O José vem pedir-te a Norma em casamento...”

O trecho é revelador de como o sobrinho era tratado pelos tios. Como ele realmente noivou com a prima nessa época, mas continuou tendo seus casos amorosos em Paris, mais do que verossímil concluir que decidiu pelo noivado mais para agradar os tios, ainda que sentisse grande afeto por Elizabeth. Até porque não eram simples casos. Além de ter se relacionado com uma romena ruiva, meio andarilha, José Geraldo teve algo mais sério com uma cocotte francesa, pois a cada vestido encomendado para a noiva, José Geraldo também encomendava outro igual para sua amante. Quando retornou ao Brasil em 1922, aos 25 anos — mesmo ano de lançamento de A Ronda do Deslumbramento —, montou um consultório

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no centro do Rio, passando a trabalhar como radiologista-chefe na Beneficência Portuguesa e na Associação dos Empregados do Comércio, onde ficou até 1941, e casou-se, enfim, com Elizabeth. Em Carta a Minha Filha em Prantos — que é uma carta real escrita para uma de suas filhas, em 1943 — , temos registro de como era sua vida de casado. Moravam na casa exatamente ao lado da dos tios de José Geraldo e assim viviam: “(...) Eu e tua mãe ficávamos relegados para um plano simbólico, na casa ao lado que apenas um gradio separava. É que tio Vieira e tia Zinha, que me haviam herdado de meus pais mortos, vos herdaram de vossos pais vivos. Acabada a fase de amamentação, mesmo antes de sobrevir a dentição, os tios — para todos os efeitos avós — se apoderaram do pátrio poder, pois mal amanhecia e a passarada ao sol vos acordava, já as amas vos levavam para a casa ao lado. Dormíeis no 822, mas vivíeis no 826. Sistema que continuou depois que nasceram a Betina, a Marta e o Pedro Henrique. Ó tempo arcaico do rádio com galena! Mil novecentos e vinte e tanto... Em minha casa — um anexo que nem pavilhão da casa grande, dela separada por número, impostos e gradil, por fora, mas por dentro, linda como uma maquete de embaixada — eu e tua mãe, entre quadros e preciosidades que "sobravam" do 826, a esperarmos por vós. Às vezes vos íamos buscar, fazendo uma visita aos Zéios, provando a sobremesa, conversando... Esses contatos que nem sempre cerram, que às vezes afrouxam a vida que é tão dura, tão errada na mocidade... Às vezes uma solução singela, em mera conversa, uma confissão espontânea salvaria tanta cousa! Mas há o amor próprio, a disciplina, a vaidade, o medo patriarcalmente investido na forma vária de sujeição, mentira e disfarce...”

Como se vê, José Geraldo ainda não era um homem maduro. Vivia mais como sobrinho/filho do que marido e pai. É nesse contexto que, em 1924, aos 27 anos, escreveu seu primeiro romance, A Mulher que Fugiu de Sodoma, em três dias e três noites de carnaval, o que é muito simbólico. Entretanto, não teve coragem de publicá-lo de imediato, só o fazendo em 1931, por receio de que fossem considerá-lo autobiográfico. Embora jurasse não fosse, fica difícil assim não considerar, pois quando escreveu Território Humano, o livro seguinte e confessadamente autobiográfico,

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constata-se que a vida que o personagem levou em Paris, em A Mulher que Fugiu de Sodoma, guarda semelhanças com aquela vivida por José Geraldo quando esteve por lá, noivo de Elizabeth. Este primeiro romance, considerado dessa perspectiva biográfica, significa a continuidade da busca pelo sentido da vida, a vida verdadeira e real, não disfarçada, mas espontânea. Ou seja, a típica vida burguesa vivida até ali, feita de aparências, de prazeres, divertimentos, conforto e segurança, sem maiores responsabilidades, cujo resultado não costuma ser outro senão uma vida refém de vícios, uma vida da qual se enjoa, sobrando tédio e vazio espiritual, esta vida precisava, em alguma medida, morrer ou então ele, dela, fugir. Eis, aliás, um dos temas recorrentes nas obras de José Geraldo: o exílio, não como solução, mas necessidade de fuga. Por isso, o livro não deixa de ser também uma súplica por socorro e salvação de quem não conseguia mudar de vida. Nesse sentido, quando o personagem Teodósio pergunta a um dos protagonistas, Mário, se a causa de sua melancolia e tormento não era pela necessidade dele escrever a alguém que o compreendesse, um alguém ainda inexistente, isso se aplicava a José Geraldo, certamente. Era, no fim das contas, exatamente isso que estava fazendo ao escrever esse livro. Por isso, essa obra em especial tem importância capital em sua vida, pois alguém passou a existir em razão dele. De fato, lendo A Mulher que Fugiu de Sodoma sua “alma gêmea” o descobriu, decifrando seu apelo e entrando em sua vida como amante e personagem arquetípico presente em todos seus futuros romances. É a Adri, de Território Humano, a Jandira, de A Quadragésima Porta, a Renata, de A Ladeira da Memória, e por aí vai. Seu nome real ainda não descobri, tendo apenas uma pista de ser uma possível prima de um ex-presidente da república, o que explicaria a reserva de José Geraldo em relação a isso, até o fim de sua vida. O caso de amor dos dois está contado, e romanceado, especialmente em Território Humano e A Ladeira da Memória. Foi a época mais feliz da vida de José Geraldo Vieira. Nesse ínterim, em 1933, quando contava 36 anos, no ano de nascimento de seu quinto e último filho, o único homem, Pedro Henrique, sua

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tia morreu. Na semana seguinte, a família toda se mudou para a casa ao lado, a do tio. Mais um ano, porém, e foi a vez do tio falecer, encerrando assim a primeira metade da vida de José Geraldo, o fim de um ciclo, como ele mesmo dizia. Decidiu vender tudo, mudando-se para Ipanema com a família, onde começou a escrever seu segundo romance, o já citado autobiográfico Território Humano, que seria publicado pela José Olympio em 1936. O simples fato dele ter demorado a publicar o primeiro por receio de acharem fosse autobiográfico e no seguinte publicar um confessadamente autobiográfico dá bem a medida do processo de maturidade pelo qual passava. O disfarce da vida começava a ser retirado. José Geraldo só começou a escrever seu terceiro romance em 1938, aos 41 anos. Sua relação com “Renata” continuava, assim como seu casamento. A amada muito lhe ajudou na escrita de A Quadragésima Porta, um romance ecumênico, segundo o próprio José Geraldo. É tido por muitos críticos como sendo seu melhor livro. Entretanto, em 1940, antes de finalizar o romance, a segunda maior tragédia de sua vida aconteceu: sua amada morreu de tuberculose. José Geraldo despencou num inferno pessoal de crises de angústia e depressão. Não se separou da esposa, mas não podia mais permanecer vivendo como vivia. Abrindo o mapa do país, descobriu Marília, no interior de São Paulo, decidindo lá viver porque o nome lhe evocava o lirismo do grande poema Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, que o escreveu para sua amada, D. Maria Joaquina Dorotéia de Seixas Beltrão, desde o degredo a que foi condenado por participar da conjuração da Inconfidência. Literatura e vida real, nesse momento, tornaram-se uma coisa só e José Geraldo, tal qual seus protagonistas de A Mulher que Fugiu de Sodoma e Território Humano, partiu para Marília “no afã da fuga e do exílio”. iii

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Trecho da última frase de A Mulher que Fugiu de Sodoma, na versão revista de 1956.

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A Segunda Existência de José Geraldo Vieira Em Marília, José Geraldo viveu sozinho entre 1941 e 1946, cicatrizando suas feridas e amadurecendo como homem. É nesse período que terminou A Quadragésima Porta, publicando em 1943, depois Carta a Minha Filha em Prantos, em 1946, e A Túnica e os Dados, em 1947. Desses, interessa mais aqui a carta à sua filha, pois registra o amadurecimento do homem, sua transformação, atestando o início de sua segunda existência. A carta foi escrita porque sua filha, que iria se casar uma semana antes do Natal de 1943 com um aviador da FAB, teve o casamento frustrado pela convocação do noivo para lutar na Segunda Guerra Mundial. A filha caiu em prantos e Elizabeth suplicou a José Geraldo que viesse acudi-la. Entretanto, como levaria 3 dias para voltar ao Rio de Janeiro, José Geraldo decidiu escrever uma carta de imediato e enviá-la via telegrama. A ocasião serviu para recontar sua história de vida, de maneira franca, abrindo-se à filha de maneira comovente. Descreveu cada filho fazendo analogia com uma peça musical para cada um, depois falou da esposa, que ele enxergava num retrato de Fantin-Latour, vendo na atitude e no sentimento da mulher do retrato a atitude da esposa que jamais lhe condenou pelo adultério cometido. Então, chegando a sua vez de se descrever, assim o fez: “E eu? Quem era eu? Nem era preciso responder. Lá estavam na minha mesa de cabeceira, perto de minha cama, os livros que me significam: Lord Jim e Vasco. (...) Eu vim para Marília porque urgia dar uma solução à vida, consertar uns trechos de meu Em Busca do Tempo Perdido. (...) Sou o produto de uma educação burguesa que corrigi errado, ou mais provavelmente, certo, com literatura. Formado fui para a Europa, em lugar de ter ido para o interior conhecer a vida. Em 41, quando resolvi ajustar uns interstícios puídos da vida material e sentimental, já a mocidade estava no fim. Em 1922 me cuidava eu uma exceção, hoje sei o que sou: exceção sim, mas autista, taciturno, embaraçado em complexos de toda ordem, até sobrenatural. Procurando um rumo material, social, religioso, ético, cultural, até me convencer de que a solução tinha que ser em dual control, com a medicina e a literatura, na acepção estrita dos tempos de militância do verbo SERVIR. Depois do Aufklärung o Dienst.”

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Eis o novo homem, passando a servir a algo maior do que ele. Não por acaso Carta a Minha Filha em Prantos, retrabalhada para publicação, é seu menor livro em tamanho, muito menos sentimental, sem a retórica da pieguice encontrada nos primeiros. É meu livro preferido do autor. O sentido do SERVIR (assim mesmo, em caixa alta), já aparecia em A Quadragésima Porta, obra retrabalhada mais de cinco vezes depois do falecimento de “Renata”. No fim, o personagem Albano, mais um alter-ego de José Geraldo Vieira, toma resolução idêntica de servir, inclusive em caixa alta (grifos meus): “Hoje já sei quem foi a intermediária em tudo isso e o meu coração não a pode esquecer. E é preciso que ela saiba. Razões de sobejo tenho para transformar o desgosto que lhe dei, minha mãe, em alguma utilidade para a minha alma e para o mundo. (...) Por mais lancinante que lhe seja tudo isso, sei que aceitou e compreende a MINHA SOLUÇÃO. Eu já não sou mais um homem disponível diante de uma encruzilhada, e sim um filho que está continuando a TRADIÇÃO DA CASA.”

Não mais um homem disponível. O exílio chegara ao fim. Em 1946, com 49 anos, depois de publicada a Carta à Minha Filha em Prantos, José Geraldo decidiu abandonar também a medicina, passando a viver da literatura e da arte. Mudou-se para São Paulo, continuando seus trabalhos de tradutor de autores como Dostoiévski, Mauriac, Hemingway, Joyce, Mark Twain, Pirandello, Steinbeck, Stendhal, Thomas Merton, Tolstoi, dentre outros. Tornou-se professor na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, cuja biblioteca ainda hoje leva o seu nome, sendo responsável pelas disciplinas de História da Literatura Portuguesa, História da Literatura Brasileira, Introdução ao Teatro, Cinema, Rádio e Televisão, História das Culturas Literárias e, por fim, de Semiologia. Ainda, passou a ser crítico literário, crítico de artes plásticas, crítico oficial da Folha de São Paulo durante mais de uma década e diretor de famosa revista Habitat. Foi membro de júris de seleção da Bienal de São Paulo, presidente do Júri Internacional

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de Artes Plásticas. Além disso, em 1948, aos 51 anos, ocupou a cadeira 39 da Academia Paulista de Letras, em substituição a Monteiro Lobato. Mas ainda faltava algo a completar o sentido da vida encontrado. Nesse período de exílio se repetiu o que ocorrera quando da publicação de A Mulher que Fugiu de Sodoma. Se neste “Renata” lhe escutou e veio em seu socorro, com o lançamento de A Quadragésima Porta outra mulher foi capaz de também decifrar os apelos do seu coração contidos no livro. Trata-se da escritora Maria de Lourdes Teixeira. Só então José Geraldo viveu o drama moral real do adultério, outro sinal de maturidade. Permitir que outra tomasse o lugar de Renata lhe parecia infidelidade imperdoável. Desse dilema nasceu a motivação para a escrita de A Ladeira da Memória, romance também autobiográfico em que vai “em busca do tempo perdido”, recontando sua história com sua amada, tentando encontrar uma resposta. No livro, porém, não há solução, não sabemos o que o personagem decidiu fazer, mas na vida do autor a solução foi dada: ele se permitiu. Desta vez, do jeito “certo”. Separou-se de sua esposa e se casou em 1949, aos 52 anos, com Maria de Lourdes Teixeira, também membra da Academia Paulista de Letras. O casal não teve filhos, embora José Geraldo já tivesse 5 e Maria de Lourdes, 1. Depois de publicar em 1949 um livro de crítica de arte, a primeira edição de A Ladeira da Memória saiu em 1950, livro que reescreveria mais duas vezes, pelo menos, em 1963 e em 1971, o que significa dizer que mesmo tendo dado solução à vida, na literatura ainda vivia a mesma história. De fato, em 1952 publicou O Albatroz, variação sobre os mesmos temas, mas com acabamento literário mais apurado, em muitos momentos verdadeiro poema em prosa. Embora desde 1945 já tivesse outro romance escrito, os afazeres com as artes plásticas roubaram seu tempo e um longo intervalo houve até voltar a publicar, o que só viria a acontecer em 1961. Como crítico de arte, José Geraldo Vieira angariou fama e reconhecimento, mas também desafetos. Muitos lhe criticavam por seu tom professoral, como se quisesse educar o público. Mas era isso mesmo que ele fazia e fez, embora nunca confessasse.

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José Geraldo, cronista da destruição causada por duas grandes guerras mundiais em A Quadragésima Porta, cuja vida pessoal era marcada pela perda, morte, exílio e solidão, era esperançoso do futuro, apostando na juventude para reconstruir o mundo. Não nutria ilusões, porém, sabia que essa juventude precisava ser educada para essa missão. Assim, desde que assumiu o trabalho de crítico e professor, a missão que se impôs foi antes pedagógica do que outra coisa. Nos ensaios aqui selecionados, aliás, se poderá conferir isso em diversos textos. Mas quem disse que a juventude queria ou aceitava ser educada? Em 1956, um movimento de jovens revisionistas da cultura brasileira decidiu que era hora de destronar nomes consagrados. Para tanto, se valeram da ridicularização. No caso de José Geraldo, picharam na calçada em frente à sua casa os dizeres seguintes: “Morreu José Geraldo Vieira. Viva o romance brasileiro!” Isso o abalou profundamente. Em entrevista dada em 1957 iv, vê-se que o episódio lhe deixou impressão profunda, narrando tudo como se fosse um romance: “Na manhã seguinte saí para comprar cigarros e vi, como em época de eleições, o letreiro na calçada. Fui-me até a Biblioteca Municipal, reduto da Revisão, e notei nas calçadas e nos degraus da escadaria alexandrinos assim: ‘Morreu a Colombina e Guilherme de Almeida! Morreu Mario de Andrade! Abaixo Di, o Gordo!’. Voltei, taciturno, para o prédio. Pessoas matinais pisavam o anúncio elegíaco da minha morte com indiferença peripatética de bárbaros. Subi, lembrando-me das equipes dadaístas de Berlim, Colônia, Zurique e Paris, que por volta de 192022, pregavam cartazes em andaimes, assim: ‘Morra Thomas Mann! Morra Gide!’. (...) E eis que, de então para cá, estranho estar vivo ainda (...). Sinto-me gradualmente fantasma.”

Nessa época, a editora Martins havia lhe contratado para relançar toda sua obra. José Geraldo já vinha revisando seus escritos, podando aquele excesso de sentimentalismo, mas, depois daquele dia da pichação, decidiu ser ainda mais severo, cortando muito mais, chegando a modificar

iv

Entrevista publicada no jornal Folha da Manhã, de 27 de janeiro de 1957, pg. 60.

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substancialmente algumas de suas obras. Em Território Humano, por exemplo, a versão original trazia o casal de amantes de modo idealizado, somente ao final tendo consumado seu amor com uma relação sexual, algo muito simbólico no livro. Na revisão, relações sexuais existiram desde o primeiro momento, sem maiores significados na história. O que mais foi limado foram as referências e analogias cristãs. Confira, leitor, a mudança que José Geraldo fez de uma de suas mais belas passagens em A Mulher que Fugiu de Sodoma, quando Lucia admirava uma pintura das mulheres fugindo de Sodoma, de Rubens. Eis o trecho original: “Lúcia tapou os olhos com as mãos, sentindo sob a polpa dos dedos o relevo desses olhos agora cheios de esferas violáceas e purpúreas. Ficou muito quieta, como quem vai ouvir um conselho, estranho, desses que, embora partindo de analogias, se levantam do ser uma vez, mas que têm tal clarividência, tal pujança, que todo o ser pasma ante a sabedoria da decisão que vai chegar. (...) Então, desamparada de tudo e de todos, vendo a própria tia Marta flutuar incorpórea, apagada como comparsa de fundo de cena de tragédia, Lúcia se lembrou daquele único refúgio e único amigo que ainda podia valer. Era Ele, o grande Esquecido, Aquele que aprendera a amar em pequenina, Aquele que a Irmã Latour dizia ser O Esposo, o único que lhe podia valer nessa circunstância atroz. Como pudera, tanto tempo, não perceber a sua permanente e total presença, a ponto de Ele, se sentindo em Sua espera paciente, recalcado, ter resolvido ir sozinho ao encontro de Mário!”

Agora, a versão revisada pelo autor e que consta das edições atuais: “Tia e sobrinha passaram devagar a certa distância do quadro de Rubens. Mesmo assim foi como se integrassem por alguns segundos o contexto da tela: num instante fugaz houve coerência de analogias. Logo, porém, as duas rumaram para o pórtico, desceram até o fundo e enveredaram para o parque.”

Aquele romance já escrito em 1945 certamente passou por esse processo de revisão de 1956, sendo publicado pela primeira vez apenas em 1961, razão pela qual não há como saber o quanto o autor modificou do escrito original de Terreno Baldio, mas o impacto desse processo revisional

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e do baque na esperança do autor pode ser encontrado no livro, novamente no seu final, terminando com a citação de um dos diálogos socráticos de Platão: “— Menon: Estarias disposto, Sócrates, a dizer-me se a virtude pode ser ensinada? Ou se pode ser adquirida pelo exercício? Ou não será ela nem ensinável nem adquirível pela prática, mas sim recebida através de nossa própria natureza? — Sócrates: Meu excelente Menon, segundo o nosso raciocínio, a virtude nos parece resultar, naqueles em que ela se encontra, dum exclusivo favor divino.”

Mas isso não significou desistência. Sua missão de SERVIR continuava, ainda que não visse frutos. Terreno Baldio, assim, representa a retomada de José Geraldo Vieira ao romance ecumênico iniciado em A Quadragésima Porta. Eis sua intenção com esses livros: “Quero o romance têmporo-espacial, um estilo em redoma que abarque tudo, mero recesso gráfico e acústico da contemporaneidade total. Tentei isso primeiro e mais densamente em A Quadragésima Porta, naquela agência jornalística aberta em Paris como um radar voltado para a Primeira Grande Guerra, para a Revolução Bolchevista, para a Guerra Civil na Espanha, para a Segunda Hecatombe Mundial, e depois para aquele imenso bueiro de detritos que é Terreno Baldio, súmula do pósguerra atônito, língua retrospectiva, língua prospectiva, e o romance O Albatroz é síntese trágica de tudo isso.”

O que levou à publicação de Terreno Baldio foi sua resolução, ainda em 1956 e confessada na entrevista citada, de abandonar a tradução para se dedicar apenas aos seus romances e a crítica de artes visuais. Deu continuidade à “tradição da casa”, depois de Terreno Baldio, publicando em 1966 o romance Paralelo 16: Brasília, história narrando a construção da nova capital federal. Nesse mesmo ano publicou também o poema Minha Mãe Morrendo, para a Série Trágica, de Flávio de Carvalho. Em 1971, a Academia Paulista de Letras realizou uma série de conferências para comemorar o quadragésimo aniversário da obra ficcional de

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José Geraldo Vieira, com participação do próprio, que em seu depoimento explicitou qual “tradição da casa” tentou dar continuidade, fazendo um balanço de sua vida como escritor: “Esses quarenta anos de novelística me incumbiram da tarefa que cuido ser minha vocação: a diáspora dos temas. A minha obra pretende, não por vaidade, sim por tradição, continuar Fernão Lopes e Zurara, porém quanto ao mundo de hoje. Não como histórias, mas como estórias. Pretende ainda transformar o livro, a página, em vídeo, tendo como a faixas sonoras o idioma que ainda não se cansou nem mesmo após as peregrinações de Fernão Mendes Pinto. De modo que as artes plásticas que me deram tanta responsabilidade e contentamento todavia fizeram as gerações literárias novas me esquecerem, além disso, novos romancistas iam surgindo, devido aos encargos de crítico, meu tempo para a literatura foi minguado.” v

Em 1974, aos 77 anos, foi publicado seu último romance, A Mais que Branca, e a Academia Paulista de Letras também publicou seu único livro de poesia neste mesmo ano, chamado Mansarda Acesa. O que chama a atenção em A Mais que Branca é que, embora os mesmos temas tenham sido trabalhados, o final é diferente de todas as suas obras anteriores. Em vez do exílio, ou da morte, ou da separação e solidão, a história termina com encontro, esperança, luz: “Ele correu imediatamente para a rampa por entre troncos, ramos e penhas; até que, ainda aturdido e já ofegante, avistou a filha, iluminada pelo sol oblíquo das dez horas, esperando-o em êxtase perto da adansônia.”

Nos anos seguintes José Geraldo sofreu de problemas de saúde, tendo sido internado várias vezes, não mais conseguindo escrever. Sua obra estava terminada. E tendo este panorama geral de sua vida creio ser possível compreender melhor sua criação, inclusive o que ele quis dizer naquele seu depoimento:

v

Ver nota 1.

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“Se nos romances entrei reflexamente como personagem, não foi por complexo de culpa, nem por alternativas narcisistas entre o Ego e o Id. Se sou diferente dos meus colegas de geração, Graciliano, Lins do Rego, Jorge Amado, Cornélio Pena, Otávio de Faria, Lúcio Cardoso, Érico Veríssimo, etc., e eles o são entre si, é porque a cada um de nós foi divido em pequeninos o pão de trigais eucarísticos e o sal de jazidas telúricas. Não venho agradecer, venho pedir desculpas por haver dado tão pouco, muito embora os esquemas fossem amplos. Repito, a memória é um asilo com duas alas, numa, as saudades, essas anciãs paralíticas, na outra os complexos, esses loucos domados com camisas-de-força, permitam já agora confessar que extrai minhas personagens das duas alas.”

Próximo da morte, internado no hospital, entrava em constantes delírios. Uma sua aluna, em visita, testemunhou um desses momentos. Estas teriam sido as últimas palavras do escritor, segundo a aluna: “Escreva, anote aí! Comece abrindo estrelas. Já fizemos o cenário para hoje, um céu muito azul. Os pássaros voando vão pousar no colo das casuarinas que eu plantei. Mas quem está aí? Estão batendo na porta do silêncio. Um hospital é sempre desagradável porque não tem lareira. (...) Vejo agora nitidamente que Deus tem asas, enquanto a bondade dos homens é pequena. Fecha estrelas.”

Em 18 de agosto de 1977, aos 80 anos, José Geraldo Vieira faleceu.

A Terceira Existência de José Geraldo Vieira Poucas coisas perduram no Brasil, sabemos bem. Daí o ditado popular dizer que brasileiro tem memória fraca (ou curta). Não seria de estranhar, portanto, que José Geraldo Vieira tenha sido esquecido depois de sua morte. Mas há esquecimentos e esquecimentos. José Geraldo não foi apenas escritor consagrado pela crítica, por seus pares e pelo público, vendendo mais de 50 mil exemplares só de A Ladeira da Memória. Também foi articulista de jornais e revistas por décadas, tradutor, professor. Além disso, também foi reconhecido crítico de arte e um dos principais

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responsáveis pelas primeiras edições da Bienal de Arte de São Paulo, tendo sido escolhido para jurado por diversas vezes. Trabalhou até o fim de sua vida. Que ele fosse esquecido no correr dos anos, seria “natural” no Brasil, mas não com a rapidez com que desapareceu. É espantoso. Em 1982, sua viúva, a também escritora Maria de Lourdes Teixeira, proferiu conferência na Academia Paulista de Letras, posteriormente publicada na revista da Academia, na qual disse: “(...) contudo, decorridos cinco anos de sua morte, José Geraldo Vieira se acha inteiramente esquecido. Seus livros, esgotados, estão ausentes das livrarias, fora do alcance das novas gerações, sem — que eu saiba — despertar o interesse de nenhum professor de literatura de nossas universidades, seja como tema de pesquisas ou teses, ou de conhecimentos a transmitir aos estudantes dos cursos de letras.” vi

Não é esquisito? Nem cinco anos depois de sua morte era como se nem tivesse existido. E assim esquecido permaneceu por, pelo menos, 20 anos. Há uma tese de mestrado de 2003, da prof. Márcia Aparecida Garcia vii, sob orientação do eminente doutor José Carlos Zamboni, em que se demonstra que na década de 1980 houve apenas três ensaios ou artigos de jornal a respeito do escritor; na de 1990, nenhum; e entre 2000 e 2003, por conta do relançamento do romance A Ladeira da Memória, houve um, unzinho só. Algumas hipóteses podem ser levantadas para esse “esquecimento”. Como visto, ainda em vida ele sofreu com isso, com os jovens querendo demolir os nomes consagrados da cultura brasileira. Foi vítima da revolta dadaísta do início do século, por ele testemunhada na Europa, passando pelos reformadores da nossa Semana de Arte Moderna de 1922, continuados pelos jovens revisionistas da década de 1950 e se consolidando com as revoluções culturais e de costumes da década de 1960, nada foi mais

In Revista nº 93 da Academia Paulista de Letras. Disponível para leitura no endereço virtual: http://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/94155/garcia_ma_me_assis.pdf?sequence=1 vi

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